terça-feira, 12 de julho de 2022

Fragmentos 41 - parte 3

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


1921

91) No congresso em julho do ano anterior, a Internacional Comunista fez sua escolha, articulada em 21 teses peremptórias como pregos cravados no caixão da unidade proletária: para poder permanecer na Internacional, os italianos precisam mudar o nome do partido e repudiar como contrarrevolucionários todos os companheiros de luta que acreditam no socialismo, mas não na revolução. O problema é que na Itália, após o fracasso da ocupação das fábricas, Bombacci e seus companheiros, a essa altura, são os únicos que acreditam na revolução.

92) Na manhã do dia 16, toma a palavra Christo Kabakčiev, delegado da Internacional. Após ajeitar a gravata-borboleta e os óculos redondos de míope, o comunista búlgaro berrou seu ultimato: não há mais tempo a perder, a situação é revolucionária, portanto, qualquer um que a atrapalhe ao lado de reformistas fracos é um traidor. Por isso, a Comintern de Moscou expulsará quem votar a moção unitária dos maximalistas. Bombacci e os comunistas o aplaudiram enquanto, em todos os outros setores do teatro, explodiam gritos sarcásticos: “Grande excomunhão! Viva o Papa! Viva o Papachieff! Não somos servos, não queremos legados papais!” Enfim, um circo equestre. Com três picadeiros.

Durante todo o dia 17, a polêmica prosseguiu em um clima turbulento entre reformistas e revolucionários, unitários e divisionistas, intransigentes de direita e de esquerda, políticos e sindicalistas.

93) No dia anterior, enquanto Giacomo Matteotti era perseguido pelos fascistas nas ruas de Ferrara, no Teatro Manzoni de Livorno o líder comunista Amadeo Bordiga subia ao palco do congresso e, com o costumeiro tom gélido, desdenhoso, ao estilo de toda a sua batalha, ordenava que os delegados da fração comunista abandonassem a sala.

Os comunistas, segundo os relatos, saíram entoando “A Internacional” e foram para um segundo teatro, o San Marco, a poucas centenas de metros, onde fundaram o Partido Comunista da Itália.

94) A expedição punitiva que parte de Ferrara em 23 de janeiro rumo aos povoados rurais e às aldeias da comarca é a primeira concebida com métodos militares. O encontro é marcado por dezenas de homens, todos bem armados e organizados para atingir ao mesmo tempo inúmeros objetivos. A fim de destruir as ligas camponesas de San Martino, Aguscello, Cona, Fossanova San Biagio, Denore e Fossanova San Marco, contam com a determinação da violência premeditada, com técnicas de ataque surpresa e com caminhões postos à disposição pela Agrária. Por isso, devem ser muitos. Os “vermelhos” provavelmente os esperam, e a subjugação não deve deixar margem alguma à incerteza no confronto.

95) D’Annunzio se recolheu em Cargnacco, no lago de Garda, em uma cômoda villa, embalsamado nos confortos e luxos, onde jura querer voltar a se dedicar à única ocupação que já conheceu: si mesmo [depois do fim da anexação de Fiume]. Seus amigos o descrevem como cansado, subitamente envelhecido, desiludido, cego, derrotado, mas é imprescindível de qualquer forma chegar a um acordo para evitar que ele atrapalhe. Será preciso facilitar seu principesco desejo de isolamento, ajudá-lo a se tornar de novo o decorador de interiores que sempre foi, a se enterrar vivo na sua pirâmide à beira do lago junto aos seus fiéis, aos seus ourives, aos seus louros, aos seus canhões, aos seus cavalos, às suas velhas e novas amiguinhas, às suas manias, aos seus amados cães. Bastarão apenas alguns meses de agonia no lago e o Comandante se tornará, como nos versos da sua última poesia, o cão do seu nada.

96) Benito Mussolini, Il Popolo d’Italia, 1o de março de 1921:
É triste, visto de um ponto de vista humano, tudo o que está acontecendo, mas é inevitável. É por meio dessa crise interna que a nação reencontrará seu equilíbrio. Os fascistas estão decididos a não recuar um passo: tornarão cada vez mais inteligente sua violência, mas dela não abrirão mão até que, do campo adversário, seja levantada, e com sinceridade, a bandeira branca da rendição. Os fascistas se mantêm coesos e prontos para todos os acontecimentos [...].

97) “Na calada da noite, enquanto os homens de bem estão em casa dormindo, chegam os caminhões dos fascistas nas aldeias, nos campos, nos povoados com poucas centenas de habitantes; chegam, naturalmente, acompanhados dos chefes da Agrária local, sempre por eles guiados, ou não seria possível reconhecer na escuridão em meio aos campos isolados o casebre do chefe da liga camponesa ou a miserável central de empregos.

“Apresentam-se diante de uma casinha e a ordem é ouvida: cerquem a casa. São vinte, são cem pessoas armadas com fuzis e revólveres. O chefe da liga camponesa é chamado e intimado a descer. Caso não acate, dizem: se não vier, queimamos sua casa, sua esposa, seus filhinhos. O chefe da liga desce, abre a porta, eles o pegam, amarram, levam para o caminhão, aplicam as torturas mais inenarráveis, fingindo matá-lo, afogá-lo, e o abandonam no meio do campo, nu, amarrado a uma árvore!

“Se o chefe da liga camponesa é um homem corajoso e não abre e recorre às armas para se defender, então é o assassinato imediato que se consuma na calada da noite, cem contra um. Esse é o sistema no Polesine.”

98) Em Salara, um desafortunado operário ouve baterem à sua porta à noite. Quem é? Pergunta. Amigos!, respondem. Abre e, através da fresta, vinte tiros de fuzil o transformam em um cadáver. Em Pettorazza, o chefe da liga camponesa ouve baterem à porta de casa à noite, sempre à noite... Em Pincara, um pequeno povoado no meio do campo, à meia-noite, chega um caminhão e para na frente da central de empregos, um casebre miserável, um quartinho... Em Adria, vão à meia-noite à casa do secretário da seção socialista, que é pego, amarrado, levado até o Ádige, mergulhado e abandonado amarrado a um poste telegráfico... Em Loreo... em Ariano... em Lendinara... E assim continua a história; mas ninguém intervém, ninguém é descoberto, ninguém sabe quem são os delinquentes. Noite após noite, dia após dia, é assim que incêndios e assassinatos são cometidos. Nos miseráveis campos do Polesine, todos já sabem que, quando batem à porta de casa à noite e dizem que é a força pública, os moradores estão condenados à morte.

99) “Agora trata-se de um ataque, de uma organização de bandidos. Não é mais luta política; é barbárie; é medieval.”

100) “Digo aos socialistas uma palavra leal e serena: vocês querem que essa situação vergonhosa, intolerável, indigna de um país civilizado cesse? Para fazer isso, para construir a paz, não basta apenas condenar a violência dos outros e encontrar atenuantes para a própria violência, mesmo quando a desaprovamos.”

101) Agora Giolitti [primeiro-ministro] pôs na cabeça que vai desarmar os fascistas. Mandou um novo governador para a província de Bolonha, Cesare Mori, que já se destacou pela dura repressão à bandidagem na Sicília e às agitações dannunzianas em Roma. Mori, em seu primeiro ato, proibiu a circulação de caminhões na província de sábado à tarde até domingo à noite, o período em que as expedições saem. Tanto que, para a expedição a Pieve di Cento, o motivo para a recente prisão de Arpinati, eles tiveram de estacionar os caminhões nos pátios das fazendas e pegar os rapazes em campo aberto.

Não é assim que Mori vai detê-los. Não é com proibições de circulação que aqueles velhos políticos mumificados, sem sangue nas veias, destruirão seu ímpeto. Claro, de vez em quando algo dá errado. Em Pieve, uma pobre coitada, uma operária — dizem que se chama Angelina — foi atingida por engano, bem na cara, por um tiro de revólver enquanto fechava uma janela.

Mas Leandro Arpinati não estava em Pieve di Cento, e a reação do Fascio di Combattimento bolonhês à prisão do seu chefe foi impulsiva. Além disso, muitos partidos que os apoiam expressaram solidariedade a Leandro Arpinati, o homem que deteve os bolcheviques em Bolonha. A Confederação do Comércio e da Indústria até ameaçou o fechamento de lojas em protesto contra a sua prisão.

Arpinati é solto pela quinta vez em 17 de março à noite. No Il Resto del Carlino, principal jornal da cidade, lê-se que, no seu retorno a Bolonha, um “mar de gente” o acolheu como herói e o levou até a Piazza Nettuno. O relatório do chefe de polícia fala de um cortejo com cerca de 3 mil pessoas. Nos tempos atuais, as coisas avançam rapidamente: hoje se é preso, amanhã se sai triunfante.

102) Benito Mussolini, Milão, 23-27 de março de 1921

São 23h. Para os burgueses bem-comportados e trabalhadores de Milão, é quase hora de ir dormir. Este ano, a Páscoa cai cedo, no último domingo de março, mas amanhã é somente quinta-feira, ainda se trabalha.

No seu edifício no Corso Venezia, após um jantar leve, Margherita Sarfatti está tomando chá de erva-doce, hibisco e valeriana na companhia de alguns amigos. Erva-doce é recomendada para ajudar na digestão; a valeriana, para o sono; as propriedades benéficas do hibisco ninguém se lembra mais.

De repente, a xícara de porcelana do conjunto de chá chinês treme sobre o pires; a massa vitrificada de granulação finíssima racha. Após uma fração de segundo, o estrondo segue o deslocamento de ar: os vidros das grandes portas-balcão que dão para a rua reverberam, parece que o edifício vai se partir desde os alicerces.

Todos correm para a janela; porém, lá fora, está tudo deserto, em silêncio. Mais dois minutos e a rua é tomada por uma multidão em fuga. Fogem pelo Corso Venezia rumo ao Centro.

De vez em quando, alguém se vira, mas sem interromper a corrida, e gesticula para trás, no vazio, na direção do horror de onde partiu. Mas ninguém grita, nem uma voz sequer: qualquer que seja a causa, o horror deles é mudo. Uma turba de fantasmas afônicos e ensandecidos irrompe na noite de Milão.

O espetáculo no Kursaal Diana começara com grande atraso por causa da demissão de um músico da orquestra, que foi readmitido devido ao protesto dos colegas. Seria a décima quinta e última apresentação de Mazurka azul de Franz Lehár.

O público burguês adora a opereta, sua tramas simples e inverossímeis, seu gosto pela paródia, suas cenas suntuosas, a vivacidade da música, o prazer imediato e, sobretudo, adora a onipresença quase maníaca das danças em coreografias de dez, doze, às vezes dezesseis bailarinos, que reevocam a alegria despreocupada de histórias sentimentais ambientadas na boa sociedade do fim do século. “Meu amigo, vista-se alinhado, fique elegante, caiu a noite caprichosa...” Senhoras e senhores, eis aqui os prazeres da vida antes da guerra mundial.

O populacho também lota de bom grado a sala do círculo recreativo, lúdico e artístico do Kursaal Diana. Esta noite, porém, estava em cena a mazurca — amadíssima pelos pobres —, aquela dança com volteios de compasso ternário dos camponeses poloneses, muito semelhante à valsa vienense, mas com um ritmo mais moderado e movimentos muito mais secos, acentuados por uma batida com o salto; aquela dança desenfreada e graciosa a ser bailada por casais dispostos em um círculo, o círculo mágico das antigas danças primitivas, o símbolo da união e da força de pequenas, corajosas comunidades de mulheres e homens que, à margem da floresta escura, dançam em uma minúscula poça de luz circundada pelas trevas infinitas.

Dizem que a bomba explodiu no fim do primeiro ato.
Deve ter sido colocada perto da entrada dos artistas, no lado da Via Mascagni, porque, naquele ponto, a rua está enterrada debaixo de destroços e, através do que restou das estruturas das janelas, avista-se o palco coberto de cadáveres mutilados dos músicos da orquestra. As patrulhas da guarda real estão desocupando a rua até a altura da Via Melzo.

Diante da entrada, em parte fechada pelas portas abaixadas, um pequeno grupo de bersaglieri, enviado pela chefatura de polícia, prepara um bloqueio posicionando-se em arco. O toque das cornetas dos bombeiros ressoa em toda a área enquanto uma equipe de cerca de trinta homens apaga as chamas com o caminhão dos bombeiros. A cada vez que um grupo de maqueiros surge dos escombros, a multidão, que correu para a rua vinda do Corso Buenos Aires, acompanha com um murmúrio de angústia a aparição do corpo mutilado.

O ambulatório de Porta Venezia, ali perto, já está repleto de mortos ou de feridos graves. Os outros são enviados em ambulâncias dos bombeiros para locais de atendimento médico mais distantes, muitos são medicados nas casas dos moradores do bairro, que, comovidos pela tragédia, os recebem. Na entrada do que resta do teatro, os parentes sobreviventes uivam de dor como lobos na noite de Milão, os jornalistas anotam minuciosamente o estado dilacerado dos corpos para os jornais da manhã: pouco depois do último degrau, perto do camarote no 8, jaz um pedaço de calota craniana coberto de longos cabelos femininos; no camarote no 10, entre entulhos, fragmentos de vidro e ossos, um fino braço feminino ainda oculto pela manga de uma camisa de seda; entre o camarote no 13 e o camarote de boca, o tronco nu de uma menina.

Os anarquistas. Não há dúvida, isso é obra deles. Errico Malatesta, seu velho chefe histórico, encarcerado em Milão, protesta há dias fazendo greve de fome contra sua prisão sem motivo e há dias dispositivos de pequeno calibre explodem por toda parte. Um dos sobreviventes afirma que viu um anarquista atirar a bomba no camarote. É quase certamente uma bobagem, mas, certamente também, essa é uma obra deles.

Benito Mussolini conhece os anarquistas. E também conhece muito bem aquele lugar: esteve lá várias vezes para encontrar o chefe de polícia Gasti, que mora em um apartamento em cima do hotel Diana Majestic, ao lado do teatro. É provável que fosse ele quem os perpetradores do atentado queriam atingir.

Um grupo de fascistas atraídos até ali pela explosão avista o Chefe na multidão. Reúnem-se à sua volta manifestando intenções imediatas de vingança. Competem em audácia vingativa: a sede do Avanti!; a sede da União Sindical; a sede do Umanità Nova, a folha anarquista dirigida por Malatesta. Os objetivos são sempre os mesmos, o ódio quase sempre é desprovido de criatividade.

103) O fascismo não é uma igreja, é uma academia de ginástica; não é um partido, é um movimento; não é um programa, é uma paixão. O fascismo é a nova força. Trata-se, agora, de dirigir o olhar até o fundo do abismo, de destacar a qualidade certa da luz no espectro óptico da violência. Uma coisa deve mostrar-se óbvia para o olho que se alinha à mira da arma, e Benito Mussolini, o Fundador, escreve claramente no seu jornal: os fascistas surram, atiram, incendeiam, mas não colocam bombas em teatros. Os fascistas lutam em campo aberto contra os socialistas, mas nunca fariam mal ao público da opereta, às pessoas de bem e indefesas que proporcionam a si mesmas uma noite de lazer com a Mazurka azul; os fascistas são guerreiros, não perpetradores de massacre. Os massacres são a violência tenebrosa dos outros, dos anarquistas, dos comunistas. A violência fascista é luz, seu comprimento de onda vibra na faixa do amarelo, do laranja, do vermelho, não no ponto cego do preto; seu fenômeno de guerra é a antítese do terrorismo. Mais do que isso: a guerra do fascismo é a guerra contra o terrorismo. O artigo do dia seguinte já está pronto. E também o de dois dias depois. A partir de amanhã, nos candidatamos a governar a nação.

104) A junta socialista de Milão logo se ofereceu para providenciar os funerais a expensa da prefeitura, mas as delegações de muitas associações da cidade opuseram-se à participação dos socialistas, considerados apoiadores dos culpados. As investigações, como previsto, logo identificaram os responsáveis entre os militantes anarquistas da extrema esquerda. Além disso, em Turim e Milão, a facção comunista não condenou com clareza o massacre. Por isso, após longas negociações, o nó foi desatado por Roma: por meio do governador da província, foi decretado que fossem funerais de Estado. Somente a bandeira tricolor tremulará, enlutada. Nenhuma outra.

Os mortos são vinte; os feridos, oitenta; pelo menos trinta em estado grave.

105) Logo atrás dos féretros, há uma densíssima coluna de 2 mil fascistas. Entrecortados por coroas de flores, divididos em pelotões, marcham com passo cadenciado. Conforme prometido, vingaram os mortos a seu modo, atacando as sedes do Avanti! e do jornal anarquista. É a primeira vez que Milão, cidade operária, cidade “vermelha”, assiste nas próprias ruas a um desfile de camisas negras. Tudo dá a entender que não será a última. O cortejo dos fascistas desfila e é observado com respeito. Ninguém protesta.

106) Benito Mussolini segue à frente das esquadras, de camisa negra, o rosto taciturno, a cabeça erguida. Ninguém lembra que dez anos antes ele exaltara os anarquistas que lançaram bombas entre os espectadores do Teatro Colón em Buenos Aires.

107) Aquele que todos começam a chamar de “Duce” do fascismo chegou à estação de Ferrara acompanhado por dois homens que, nem dez anos antes, tinham sido chefes da incendiária e socialista Câmara do Trabalho local — Umberto Pasella e Michele Bianchi —, e que agora estão do mesmo lado do que Vico Mantovani, o reacionário chefe da Agrária contra o qual, antes da guerra, eles atiçavam os camponeses.

108) O que importa é o arranjo. O diretor do Il Popolo d’Italia escreveu claramente: a vida, para quem não quer ficar na torre de marfim de sempre, impõe certos contatos, certas transações e, digamos a terrível palavra, certos arranjos. Páginas de arranjos fazem parte da vida de todos os grandes homens, e não são páginas vergonhosas: são páginas de sabedoria. O arranjo é importante, o resto é alegria de náufragos.

109) Mussolini tem um contraplano: suscitar a desordem para mostrar que só ele pode restabelecer a ordem.

110) Os eleitores moderados, por sua vez mestres do duplipensar, com Giolitti à frente, ficam ao mesmo tempo tranquilizados e horrorizados com as violências fascistas. Não se pode culpá-los: aqueles canibais de camisas negras das colinas de Pisa mataram, em 13 de abril, a tiros de revólver, no pátio de uma escola primária, Carlo Cammeo, ativista do sindicato dos professores primários, diante dos olhos das meninas que, com o avental branco e a fita cor-de-rosa, formavam confiantes e disciplinadas uma fila dupla atrás do professor.

111) Balbo ri. Das burlas das quais é mestre, dizem que também faz parte a artimanha do óleo de rícino. Agarram um socialista indômito, enfiam um funil na sua boca, obrigam-no a beber 1 litro de laxante. Amarram-no ao capô do automóvel e circulam pela aldeia enquanto ele peida, se esgoela, caga nas calças. Um remédio barato, sem derramamento de sangue, sem ameaça de prisões. Impossível não rir.

E a tragicomédia também tem outras vantagens. Impede que a vítima se torne um mártir porque a vergonha afasta o pesar: não é possível dedicar um culto a um homem que caga nas calças.

O ridículo, por fim, tem um alto valor pedagógico. E, ainda por cima, é duradouro, influencia o caráter. A merda, mais do que o sangue, se estende sobre o futuro de uma nação. A ideia de vingança, se manchada de excrementos, é transmitida por décadas, de geração em geração. Para ser apagada, a vergonha do purgante, vista ou sofrida, exige nada menos do que um apocalipse.

112) Os dados que chegam do ministério do Interior são incontestáveis. Os socialistas perdem, mas menos do que o esperado, conservando-se como o primeiro partido com 25% dos votos, e boa parte do que perdem está sendo ganho pelos comunistas, com 3%, ou pelos republicanos, que sobem para 2%. Os populares se mantêm em 20% e os partidos do Blocco Nazionale crescem, mas menos do que Giolitti esperava: democratas, liberais, nacionalistas e seus aliados menores, somando todos os votos, mal chegarão a 47%. Portanto, não pode haver dúvida alguma. Os vencedores dessas eleições de maio de 1921 são os fascistas.

113) A crise da democracia entra agora na sua fase mais aguda, a decadência parlamentar é irreversível, uma estrela fixa, baixa no horizonte do céu do equinócio. Na sua luz crepuscular, o jovem, pequeno, robusto Partido Fascista começará sua vida parlamentar com a XXVI legislatura, a última da decadência, preparando-se para lutar sozinho pela XXVII, que será a primeira legislatura fascista.

E há também o seu triunfo pessoal. Benito Mussolini foi o cabeça de chapa em Milão com 197 mil votos, o cabeça de chapa em Bolonha com 173 mil votos. Terceiro entre os dez mais votados em nível nacional!

114) O sucesso é tal que, assim que recebeu a notícia, em um raríssimo ímpeto de entusiasmo conjugal, o vencedor até abraçou a esposa Rachele, segurou-a contra a porta da cozinha e, encarando-a como não era seu costume fazer, advertiu-a comovido: “Rachele, lembre-se de que este será um dos períodos mais bonitos da nossa vida.” A mulher, assustada pela profecia de uma alegria estranha, sem saber como recebê-la em sua casa plebeia, abaixou o olhar para o chão de granilito ocre e preto.

Agora, porém, sozinho, Benito Mussolini se afasta da janela, deixa a estrela da noite ao seu pôr do sol e anda pelo cômodo enchendo-o com a própria euforia. Os fantasmas a serem afugentados são muitos: o fantoche do seu cadáver afogado no canal pelos 4 mil míseros votos de 1919; o traidor expulso como um cão raivoso pelos companheiros em 1914; o emigrante furioso que dorme embaixo das pontes na Suíça em 1908; o professorzinho de escola primária que percorria 1,6 quilômetro desde a aldeia, andando com os pés descalços sobre os trilhos do trem, segurando os sapatos sobre os ombros para não gastar a sola; na raríssima luminescência diurna de Vênus, reverbera até o espectro do menino que, muitos anos atrás, nos campos da Romanha, em uma manhã clara de sol, as vinhas amarelas e as dornas já prontas para a vindima, ouve soar no ar de setembro o sino de luto pela sua avó.

O “deputado” Mussolini. Sua hora se aproxima, a hora de todos, a hora da vingança. Ele venceu com o dinheiro dos proprietários rurais que esfomearam sua infância, sob a égide de Giolitti, ao lado dos inimigos da sua gente, da sua juventude. Mesmo assim, venceu. Por um instante, olha com desconfiança, com rancor, para seu novo escritório elegante. Mas a voz da Sarfatti [sua amante] está pronta para sussurrar no seu ouvido:

“É preciso ser homem, a juventude semeia, a virilidade colhe.”

Afinal, a esta altura, ele já está chegando aos 40 anos, está quase calvo, daqui a pouco não terá mais um fio sequer na cabeça, a semeadura tem seu tempo, um tempo breve. É necessário ceifar, é necessário concluir, é necessário vencer. E então voltar a vencer mais uma vez, porque o mundo não tem piedade dos vencedores.

O deputado Mussolini se entrega sem mais freios à própria alegria insolente. Tornou-se o homem que odiava quando menino.

115) Benito Mussolini, Roma, 21 de junho de 1921 – Parlamento da Itália
“Não me desagrada, caros colegas, iniciar meu discurso naquelas cadeiras da extrema direita, onde, quando a quitanda da fera socialista triunfante tinha um comércio em pleno andamento, ninguém mais ousava se sentar. Declaro logo que, no meu discurso, defenderei teses reacionárias. O meu discurso será antidemocrático e antissocialista.”

116) Seu plano para salvar o fascismo das consequências letais da sua própria violência é simples e delirante: fazer as pazes com os socialistas. O nome do plano é “pacto de pacificação”.

117) Hoje, após muitas contradições, Mussolini ameaça destruir o fascismo se o fascismo não se corrigir.

118) Ugo Dalbi, sindicalista revolucionário, Sindacato Operaio, 30 de julho de 1921:

É uma utopia. O fascismo destruirá seu Duce, e esse homem que traiu os socialistas, os intervencionistas revolucionários, os fiumanos e os fascistas mais antigos vai se lançar com a mesma desenvoltura na direção de outro partido ou agrupamento, dando origem tenazmente a uma nova agremiação contrária, oposta ao que fez até aqui.

Será que vai encontrar outros iludidos que o seguirão, ou o bom senso do povo italiano acabará por triunfar e gritará um basta?

119) O Vate [D’Annunzio], fotofóbico, recebeu-os na manhã do dia 17 na penumbra de cortinas pesadas e luzes difusas em sua villa asfixiada por dezenas de milhares de objetos e livros dispostos em um preciso e imperscrutável jogo de referências simbólicas, como um mausoléu consagrado à memória de uma múmia viva.

120) O “pacto de pacificação” que deveria decretar o fim do conflito entre “vermelhos” e “negros” foi firmado na noite de 3 de agosto no gabinete de Enrico De Nicola, presidente da Câmara, por uma delegação de representantes dos grupos parlamentares fascista e socialista e também por Baldesi, Galli e Caporali da Confederação Geral do Trabalho. A primeira assinatura da lista foi a de Benito Mussolini. Segundo o pacto, as duas partes se comprometiam a cessar de imediato qualquer tipo de violência e a perseguir os transgressores. Ao que parece, depois das assinaturas, os líderes socialistas se negaram a apertar a mão do fundador do Fascio. Talvez essa seja apenas uma maledicência, mas, em contrapartida, a recusa dos chefes do fascismo nas províncias é uma certeza clamorosa.

Os Fasci di Combattimento toscanos, vênetos e emilianos, reunidos em uma conferência, denunciaram o pacto já nas primeiras 48 horas após sua assinatura.

Mussolini respondeu com desprezo: apelidou-os de “rases”, o nome dos selvagens chefes guerreiros etíopes. Em um artigo no Il Popolo d’Italia, dirigiu-se a eles como o pai que deve “usar as varas” para corrigir o próprio filho transviado. Deplorou-os como aldeões ignorantes, presos a pequenos bairrismos, incapazes de se desligar de seus ambientes, de enxergar e até mesmo de acreditar “na existência de um mundo mais vasto, complexo e formidável”.

121) Grandi respondeu ao Duce em 6 de agosto, inaugurando a dissidência aberta com um artigo no qual afirmava que o “pai” não era Mussolini, mas D’Annunzio e que o verdadeiro fascismo, no caso, nascera em Bolonha, com a carnificina do Palazzo d’Accursio, e não em Milão. Depois foi a vez de Balbo atacar o Líder sem nenhuma diplomacia. A luta entre fascismo e socialismo — escreveu Balbo — só se resolverá com a aniquilação de um dos dois. Essa é a realidade, todo o resto são “fantasias infantis, sentimentalismos de mulherzinha”.

Mussolini, com o apoio de Cesare Rossi, rebateu que o movimento dos emilianos, subjugados aos produtores rurais, não é mais fascismo. Ameaçou expulsá-los ou, até mesmo, sair.

O plano de Mussolini, como sempre, era astuto e, como sempre, dúplice. Se tivesse êxito, prevaleceria a imagem do fascismo “respeitável”, e ele seria recebido de braços abertos pelos liberais, levaria um ministério. Se fracassasse, de todo modo ele teria o crédito de ser o único fascista razoável naquele bando de rases ferozes das províncias. Enfim, Mussolini só tinha a ganhar com tais ladainhas.

Já eles tinham tudo a perder. A pacificação, para gente como Balbo e Grandi, significa o fim certeiro e rápido, a condenação a um limbo obscuro, sem ação, sem história porque sem luz e sem luz porque sem história. Eles estão dispostos a perder a vida, mas não a entregá-la de mãos beijadas.

Essa é a situação em 16 de agosto, na reunião de Bolonha: seiscentos Fasci di Combattimento da Emília Romanha renegam o Líder proclamando que, enquanto durar aquela situação, não vão depor as armas da violência. Depois, oferecem ao Vate a direção do movimento.

Entretanto, a resposta de D’Annunzio demora. Ele deixa Balbo e Grandi mofando quase dois dias naquele limbo lacustre de pensionistas moribundos que se agarram ao último suspiro com o bridge e os tratamentos termais. No fim da manhã do dia 18, respeitado o repouso do poeta até quase meio-dia, os dois peregrinos sobem de novo até a villa de Cargnacco. D’Annunzio não os recebe. Manda seu empregado dizer que é preciso esperar mais: a noite tinha sido nebulosa, Diana não apareceu, talvez “os astros não estejam propícios”.

A Balbo e Grandi, achincalhados, furiosos, resta voltar ao ponto de partida ou, talvez, tomar a estrada para Milão. Entretanto, na aldeia, os vendedores de jornais já anunciam aos gritos a notícia do dia: Mussolini renunciou ao Comitê Central dos Fasci.

“A partida chegou ao fim. Quem foi derrotado deve ir embora. E eu saio do primeiro escalão. Continuo, e espero poder continuar, a ser um simples soldado raso do Fascio milanês”, escreveu o Duce do fascismo no Il Popolo d’Italia.

122) Se for preciso dar fortes marteladas para acelerar a ruína desse fascismo, eu me adaptarei a essa ingrata necessidade. O fascismo não é mais libertação, mas tirania; não é mais salvaguarda da nação, mas defesa de interesses privados das castas mais opacas, surdas, miseráveis que existem na Itália; o fascismo que assume essa fisionomia talvez ainda seja fascismo, mas não é mais o motivo pelo qual, nos anos tristes, alguns — poucos — de nós enfrentaram a cólera e o chumbo das massas, não é mais o fascismo como foi concebido por mim.

123) Benito Mussolini, “O berço e o resto”, Il Popolo d’Italia, 7 de agosto de 1921:
De que vale um líder que comanda apenas a si mesmo?

Para governar o ingovernável, para subjugar o caos, é preciso um partido, um organismo político que contenha a violência das esquadras, uma doutrina ecumênica que abrace todos os heréticos das outras doutrinas, um partido dos antipartidos. O Partido Nacional Fascista. É isso que decidirá a vida ou a morte do fascismo.

Mussolini propôs a transformação do movimento fascista em partido em 7 de setembro, na discussão do grupo parlamentar. A proposta foi aprovada com alguns votos contrários, mas em seguida deverá ser aprovada pelo Conselho Nacional e, depois, será necessário um congresso.

124) O socialismo, sem dúvida, está se afogando. Apenas duas semanas antes, os líderes socialistas, após terem desperdiçado nos dois anos anteriores todas as oportunidades de revolução, rejeitaram qualquer hipótese de colaboração parlamentar com o governo Bonomi em uma ação antifascista. Sua expulsão da Internacional Comunista já foi decidida em Moscou e, na Itália, cem mil militantes não renovaram a filiação após a insensata cisão em Livorno: o isolamento deles é total, agora que rechaçaram a responsabilidade de governar o país com Bonomi, velho companheiro. Mussolini, nas colunas do seu jornal, suspirou de alívio e exultou: “Declaramo-nos, então, particularmente satisfeitos. O fascismo agora tem diante de si um jogo de amplas possibilidades.”

125) A questão é simples: se o congresso não quer votar o pacto de pacificação, ele não insiste. Se, em contrapartida, fizerem questão de votar, ele se empenhará na luta até o fim. Ou se vota, ou não se vota, mas, se votarem, é necessário fazer uma contagem. Até o último homem. Como sempre, o orador dá o melhor de si dosando afagos e ameaças.

Eis que, com o costumeiro salto de acrobata, Mussolini reverteu o prognóstico. O pacto de pacificação que dividia a plateia já ficou para trás, sacrificado. Não há mais matéria de disputa, ela desapareceu. Basta que os membros das esquadras aceitem o partido, e a concórdia, como que por encanto, voltará entre os irmãos de armas.

No fim do discurso, Mussolini recebe uma segunda ovação. Acertou na mosca.

126) Nasceu o Partido Nacional Fascista.

127) O fascismo é a síntese de tudo. Absorveremos os liberais e o liberalismo porque, com o método da violência, sepultamos todos os métodos precedentes. Depois, olhando para o futuro, introduz temas novos. O fascismo completará a nacionalização dos italianos. O fascismo fará com que, dentro das fronteiras, não existam mais vênetos, romanholos, toscanos, sicilianos e sardos, mas italianos, somente italianos. No entanto, além das fronteiras o fascismo sente o mito do império. Não pode haver grandeza nacional se a própria nação não é sustentada por uma ideia de império. A Igreja romana, com seu magistério milenar e universal, entra na apologia do império. Chega de anticlericalismos tolos. Quanto ao Estado, o problema é simples: o Estado somos nós. Na economia? Liberalismo no sentido mais clássico da palavra. Depois, uma definição sobre a “conquista das massas”, tema caro a Grandi e aos sindicalistas. Dizem: é preciso conquistar as massas. Há também quem diga: a história é feita pelos indivíduos, pelos heróis. A verdade está no meio.

128) Além da nova edição de Notturno publicada pelo editor milanês Treves e autografada pelo poeta, neste fim de ano Mussolini recebe um segundo texto sobre o qual refletir. Trata-se de um projeto para a organização militar das esquadras fascistas redigido pelo general Asclepio Gandolfo e encomendado pela recém-nascida direção nacional do partido. Gandolfo concebeu o Exército das milícias fascistas a partir do modelo da legião romana, subdividindo-as em duas formações: Príncipes e Triários. As esquadras serão compostas por grupos de vinte a cinquenta homens, quatro delas formarão uma centúria; quatro centúrias, uma coorte; e de três a nove coortes, uma legião. Esta última, comandada por cônsules, terá como insígnia a águia romana, e seus alferes carregarão o Feixe Litório sob uma estrela da Itália. Todos usarão o uniforme, mas cada legião, após a devida autorização, será livre para adotar pequenos ornamentos e distintivos próprios. Todos os postos serão eletivos porque, no âmbito regional, as esquadras gozarão da máxima autonomia. O fascismo ainda é, por enquanto, uma agregação heterogênea de guerreiros que elegem seu chefe, e não de soldados submetidos a ordens. Por isso, o chefe político e o chefe guerreiro serão a mesma pessoa. O general Asclepio destaca a dificuldade de conciliar a eletividade dos postos com o princípio hierárquico, mas a estrela guia, e nisso todos estão de acordo, tem três pontas: militarização, disciplina e hierarquia. A política — e aqui também não pode haver dúvidas — é uma guerra civil contra os próprios adversários apresentados como inimigos da nação. É o que todos fazem desde o fim do primeiro conflito mundial, absolutamente todos, sejam fascistas ou socialistas, só que os outros se limitam a comícios de protesto e a uma guerra de símbolos, enquanto o fascismo vai além. É evidente que, para os fascistas, a guerra nunca acabou.

Um sopro misterioso ergue da vastidão ofuscante relevos de formas humanas e bestiais. Tenho à minha frente uma rígida parede de rocha fervente esculpida como homens e monstros. A dificuldade não está na primeira linha, mas na segunda e nas seguintes.

129) Michele Bianchi é o homem certo para a secretaria do Partido Fascista. Calabrês, filho de burgueses, Bianchi foi primeiro socialista, sindicalista revolucionário, antimilitarista, anticlerical e anti-imperialista; depois, como Mussolini, em uma noite, bandeou-se com o mesmo ardor para o intervencionismo, convicto de que a guerra mundial teria levado à revolução proletária. A despeito da posição adotada na sua vida, Michele sempre a defendeu com um fanatismo implacável, o mesmo que usa para fumar um cigarro atrás do outro. Fisicamente insignificante, politicamente perspicaz, não suporta fardas, usa a camisa preta sobre roupas à paisana e sabe ser alvo de gozações por causa do aspecto funéreo. Expectoração estriada de sangue, febrezinha constante, suores noturnos, perda de peso, o diagnóstico é patente. Tuberculoso, Michelino Bianchi carrega em si a morte. Tem apenas 32 anos, mas não lhe resta muito a viver. Todos sabem, qualquer um que o vê, até mesmo o desconhecido que, no final do corredor, ouve os acessos raivosos da sua tosse seca, entende. É esse destino de morte evidente e iminente que faz dele o secretário perfeito para o Partido Nacional Fascista. Nenhuma ambição pessoal de poder, dedicação fanática à revolução. E aquela autoridade irrefutável que apenas os estertores da necrose pulmonar podem dar.


CONTINUA

Fragmentos 41 - parte 2

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


1920

38) Não é morrer que nos assusta, é esse não viver que nos exaspera.

39) Do diário de Ettore Conti, magnata da indústria.
Partimos de Roma em 4 de fevereiro ao anoitecer: nenhum dos inscritos deixou de comparecer, exceto Mussolini, retido na Itália [...] sinto muito; porque esperava conhecer esse homem tão dinâmico e estranho que, por meio de suas diversas manifestações, não é fácil de decifrar [...]. Um de seus colegas de jornalismo, Pietro Nenni, que viaja conosco e que diz tê-lo conhecido bem quando não estavam em lados diferentes da barricada, reconhece nele um fascínio obscuro de líder, homem forte que quer se distinguir, ser o primeiro, de uma maneira ou de outra; hoje contra os burgueses, amanhã senhor; um homem, portanto, que poderá fazer muito bem ou muito mal, mas que, de qualquer modo, dará o que falar. É, de fato, uma pena que, no último minuto, tenha me deixado a ver navios: teria me interessado enormemente [...]

[A agitação social que provoca a adesão popular ao fascismo como antagonista do socialismo:]

40) E, na cidade, tudo ainda vai bem. O campo está perdido. Não há vilarejo livre da influência do Partido Socialista. Em cada município, há um sindicato de camponeses, uma Casa do Povo, uma cooperativa, uma célula. As ligas “vermelhas” são donas da situação. Conseguem impor aos proprietários rurais condições de trabalho que chegam a privá-los quase por completo do direito de propriedade sobre suas terras. Os proprietários que violam as regras impostas pelas ligas são submetidos a multas pesadas a favor dos caixas dos grevistas. A aversão é particularmente tenaz em relação aos arrendatários e aos pequenos proprietários. A esses semelhantes, os trabalhadores temporários reservam o ódio mais impiedoso. O Vale do Pó, ao longo das duas margens do rio, da nascente até a foz, é teatro de lutas épicas pelo domínio dos campos.

41) Começaram, é óbvio, em Ferrara, província dominada pelas ligas “vermelhas”. Os camponeses temporários iniciaram a agitação em 24 de fevereiro para a renovação do pacto dos colonos, acompanhados pelos meeiros. A convocação à greve suspendeu a semeadura do cânhamo e da beterraba, sustento de toda a província. Intimidações, incêndios de palheiros, animais abandonados nos estábulos. A luta dos grevistas foi determinada e unânime a ponto de obrigar os proprietários a admitir a derrota em todos os pontos de discussão. Em 6 de março, aceitaram os aumentos salariais, os escritórios de recrutamento administrados pelos trabalhadores e, sobretudo, a imposição da mão de obra que obriga os proprietários a contratarem 5 trabalhadores para cada 30 hectares de terra cultivável no período entre novembro e abril, ou seja, nos meses em que não há trabalho. Em 5 de março, o exemplo de Ferrara foi seguido nas províncias de Novara, Pavia e na comarca de Casale Monferrato. A agitação durou quarenta e sete dias. Quarenta e sete dias e quarenta e sete noites de estado de sítio: de novo incêndios, sequestro de animais, tocaias, tiroteios, casas rurais transformadas em acampamentos de combatentes, os “guardas vermelhos” em Lomellina controlando as comunicações viárias e vigiando a presença de fura-greves. A adesão dos trabalhadores temporários e assalariados foi total; sua vitória, esmagadora. Os proprietários se renderam em 21 de abril.

42) Um comício sobre o pacto dos colonos estava sendo realizado, quem falava era Sigismondo Campagnoli, enviado da Câmara do Trabalho de Bolonha. Poucas menções à questão agrária e, de súbito, as afrontas costumeiras a capitalistas, padres, carabineiros e, por fim, a incitação da multidão, a palavrinha mágica de sempre: revolução.

43) Da Associação Bolonhesa de Defesa Social, memorial para o Presidente do Conselho Francesco Saverio Nitti, Bolonha, 15 de abril de 1920: Que o governo saiba que estamos prontos, acima de tudo, para defender nossas famílias e nossos lares, para proteger nosso direito ao trabalho, a nobreza de nosso trabalho cotidiano, para pôr fim de todas as maneiras a uma sucessão de coisas intoleráveis e desastrosas, criando nós mesmos os meios de defesa que até agora havíamos cedido às leis do Estado.

44) A força do socialismo italiano, por sua vez, é enorme: em apenas quinze meses, o número de afiliados aumentou dez vezes, superando 200 mil. [Em 1919-20].

45) Milão, 24 de maio de 1920
Segundo Congresso Nacional dos Fasci di Combattimento. A guinada definitiva para a direita acontece por volta da meia-noite.

46) Todavia, o congresso de verdade só começa em 24 de maio. É a “reunião mesquinha de sempre, que comunica a escassa vitalidade do movimento”, anota Cesare Maria De Vecchi, fascista monarquista de Turim. Há semanas que Mussolini anuncia nas colunas do Il Popolo d’Italia que a “hora da desforra está próxima”, Pasella informa números animadores, mas a verdade é que se contam 600 afiliados em Milão, 300 em Cremona graças ao ativismo de Roberto Farinacci, apenas 300 na capital, 100 em Bolonha, Parma, Pavia, Verona, 40 em Mântua, Oneglia e Caulônia, 20 em Piadena e Recco, e assim por diante. No total, os fascistas inscritos e regularmente afiliados são 2.375 em toda a Itália. Essa é a base militante na qual se pode confiar.

47) Mais de um ano se passou desde a fundação; no entanto, a plateia que Mussolini vê à sua frente no Teatro Lirico é pouco mais numerosa do que a de San Sepolcro. Alguma coisa, porém, mudou. Os números se parecem, mas os rostos já não são os mesmos. A falange de aventureiros, desajustados e combatentes desmobilizados mantém sua posição. O rancor dos veteranos é tenaz.

48) Apesar disso, a primeira aparição matinal de Mussolini foi prudente. Desde o início do mês, vem lançando ameaças abertas aos socialistas. O ódio daquela gente contra ele — escreve — é totalmente compreensível. Ele, de fato, mantém a promessa feita na noite de sua expulsão do partido: será implacável. E agora sente que o dia de sua vingança não está distante.

No entanto, na manhã do dia 24, no Teatro Lirico, o vingador faz um primeiro discurso de mediação. Ainda afirma que não representa um ponto de reação, ainda distingue o proletariado da direção socialista, volta a dizer que quer se aproximar do povo.

A tarefa de cortar os laços é deixada para Cesare Rossi. Há meses Rossi prega a necessidade de se proclamarem brutal e resolutamente conservadores e reacionários. Também no congresso do Teatro Lirico, manifesta-se contra os saltos no escuro, pinta a imagem de um proletariado incapaz de substituir a burguesia, como uma plebe vermelha moralmente desequilibrada, egoísta, inculta, sem alma, surda aos valores patrióticos, um rebanho de iludidos. Acima de tudo, Rossi agora julga que o proletariado é inseparável do Partido Socialista, já abraçou sua causa e, por isso, não merece qualquer indulgência. É preciso olhar para aqueles que não “trabalham com o braço”. A pequena burguesia é ainda mais maltratada do que os operários. Combater um duelo decisivo a três não é possível. Por isso, os Fasci di Combattimento devem se alinhar por enquanto com o regime atual, apesar de lhes causar asco. Nenhum pré-requisito antimonárquico, mas puro oportunismo. Os aliados devem ser escolhidos a cada vez, assim como o terreno do combate. Enquanto os Fasci di Combattimento autodenominavam-se um antipartido, eram capazes de viver de ar, mas agora precisam de uma base social. Acertarão as contas com o decadente Estado liberal em seguida.

Rossi conclui seu discurso trêmulo de raiva. O extremismo do sindicalista revolucionário que, antes da guerra, por ódio aos patrões, incendiava palheiros nos campos de Parma e Placência não o abandonou. Agora, porém, aquela aversão encontrou um novo alvo: dirige-se aos camponeses que antes ele incitava à revolta. Cesare Rossi volta a seu lugar na plateia entre os aplausos de boa parte do público.

Os futuristas, em contrapartida, rebelam-se contra a guinada à direita. Marinetti se enfurece. Grita que a monarquia é uma mochila cheia de coisas velhas a serem jogadas fora, ataca como sempre o Vaticano, fala de pastores e de rebanho, atribui a si mesmo a função do cão inteligente que fica de guarda quando o dono está bêbado. Termina com poesia: “Nós viemos do Carso”, relembra, “não iremos rumo à reação.”

49) Antes de voltar ao teatro para a sessão noturna, quando Rossi menciona o discurso de Marinetti, Mussolini dispara contra o pitoresco fundador do futurismo: “Mas quem é esse palhaço extravagante que quer fazer política e ninguém na Itália leva a sério, nem mesmo eu!?”

50) Fiume d’Italia, 15 de junho de 1920:
Em Fiume, é dia de São Guido, e toda a cidade está se preparando para ir à festa. Só que em Fiume, nos últimos tempos, é sempre dia de São Guido, e a cidade está sempre indo a uma festa.

Em 10 de junho, caiu de maneira definitiva o governo [em Roma] do odiado Francesco Saverio Nitti e, em Fiume, festejou-se.

51) Há meses Léon Kochnitzky — um jovem poeta belga com talento modesto, mas de grandes ideais — está trabalhando na Liga de Fiume, uma assembleia que pretende reunir os representantes de todos os povos oprimidos com o objetivo de se contrapor à Liga das Nações desejada pelo presidente americano Wilson, definida por D’Annunzio como: “um complô de ladrões e vigaristas privilegiados.” Fiume está isolada do mundo, mas não importa, pois o projeto que Kochnitzky cria a partir do entusiasmo do Comandante se expande para “todo o universo”. Todos os oprimidos da Terra deverão fazer parte dele, povos, nações, raças. A lista que aparece nos memorandos enviados ao Comandante abarca todas as nações (e os povos) privadas de liberdade, com Fiume à frente: Dalmácia, Albânia, Áustria alemã, Montenegro, Croácia, irredentistas alemães, catalães, malteses, de Gibraltar, da Irlanda, flamengos, e também dos povos islâmicos do Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Egito, Síria, Palestina, Mesopotâmia, Índia, Pérsia, Afeganistão, chegando até quase os antípodas, convocando para Carnaro também birmaneses, coreanos, filipinos, panamenhos e cubanos. Entre as raças oprimidas listadas por Kochnitzky, não faltam nem mesmo os israelitas, os negros americanos e os chineses da Califórnia. Este é o mundo sob a perspectiva sem muito discernimento de D’Annunzio: um globo cintilante de liberdade, dignidade e revolta. A sala de baile do espírito em festa. Kochnitzky está inspirado, tem 28 anos, também é um poeta. Por isso, o Comandante o nomeou ministro das Relações Exteriores.

Esses são os ideais. Na prática, porém, a atividade da Liga de Fiume se reduz à trama de pequenas e obscuras intrigas balcânicas. Misteriosos chefes de exércitos rebeldes croatas, montenegrinos, dálmatas, albaneses batem às portas de Fiume para obter armas e dinheiro contra sérvios que querem submetê-los a uma grande nação iugoslava.

52) Antes de voltar para as terras baixas de Flandres, o jovem poeta belga participa da festa pela última vez. Em 15 de junho, são celebrados os santos padroeiros de Fiume. No costume popular, é chamada apenas de festa de São Guido. Este ano, a cerimônia é ainda mais solene, porque dela participa o Comandante com todo o seu estado-maior e uma delegação veneziana que trouxe como presente uma lápide comemorativa de mármore com o leão alado de São Marcos. Às 11h, na praça central, é inaugurada a lápide inserida na fachada do palácio da prefeitura. O Leão de São Marcos, a pata cheia de garras que segura o livro do evangelista, abre suas asas sobre Fiume e sobre o mundo sonhador de Gabriele D’Annunzio. O poeta, que sempre atribuiu idealmente à Sereníssima República de Veneza a filiação de Fiume, fica entusiasmado. Fala de um dia glorioso, esculpido segundo a vontade da Dominante. Lista todas as cidades da Ístria e da Dalmácia, de Muggia a Piran e Poreč, de Zara a Šibenik e Split. Todos, por enquanto, fecharam o livro. Todos são leões. É o dia da revanche. Seguem-se, à tarde, competições esportivas e, à noite, bailes populares nos bairros antigos.

Ali, antes de partir para sempre, Kochnitzky grava em sua mente uma lembrança indelével. Não poderá esquecer aquela atmosfera de festa perpétua, os cortejos, as procissões, as fanfarras, os cantos, as danças, os foguetes, os fogos de artifício, os discursos, a eloquência, a eloquência, a eloquência... Na praça iluminada, admira as bandeiras, as grandes escritas, os barcos com as lanterninhas floridas, porque até o mar tem sua parte na festa, e as danças... as danças estão por toda parte: na praça, nos cruzamentos, no cais; de dia, de noite, dança-se sempre, canta-se. E não são barcarolas sem energia, mas fanfarras marciais. Todos bailam e dançam ao seu ritmo, girando em um bacanal desenfreado de soldados, marinheiros, mulheres, cidadãos. O olhar, onde quer que se detenha, vê uma dança: de lampiões, de tochas, de estrelas. Faminta, destruída, angustiada, Fiume, agitando uma tocha, dança diante do mar.

53) Enquanto Fiume dança, outro jovem poeta, o italiano Giovanni Comisso, passeia na cidade em festa. Vai ao hospital militar visitar um amigo. Erra o caminho e vai parar na ala de doenças venéreas. Naquela cidade povoada por jovens legionários armados prontos para abrir fogo contra o mundo, é claramente a ala mais cheia. Comisso fica atônito. Os tratamentos são confiados a uma mulher, jovem e enérgica, uma espécie de dona de casa ou parteira. Com as mangas arregaçadas sobre os braços brancos e carnudos, trata os terríveis Arditi como se fossem meninos birrentos. Com severidade, manda que tirem as roupas e se deitem às dezenas sobre tábuas rústicas, segura seus pênis flácidos como se fossem excrescências inúteis, abre feridas, retira chumaços de algodão imundo, desinfeta, fecha de novo, rega, massageia aqueles corpos musculosos e de uma magreza perfeita, inconcebível para os povos que conheceram o bem-estar. Eles se viram, dóceis, malandros, complacentes, e abandonam-se de lado, tristes.

54) Em Ancona, no fim de junho, amotinou-se um regimento inteiro de bersaglieri que deveria reforçar o comando militar italiano de Vlorë, ameaçado por rebeldes albaneses. A população operária da cidade rebelou-se em apoio aos soldados insubordinados. Atacaram a tiros de canhão o quartel para fazê-los sair dali. A crise militar do Exército italiano é desanimadora. Mussolini, desconsolado, escreve a D’Annunzio lamentando a “tremenda crise de avacalhamento” atravessada pela Itália.

55) Giunta é um advogado toscano, intervencionista voluntário, ex-capitão e legionário dannunziano, que se distinguiu nos movimentos contra a carestia de 1919 em Florença por ter comandado o ataque a uma loja de calçados. Depois de Fiume, Mussolini o enviou para organizar os Fasci di Combattimento da Veneza Júlia na fronteira eslovena. Giunta os organizou com precisão militar, subdividindo-os em grupos destinados a territórios específicos. Trieste respondeu magnificamente. Nas zonas de fronteira, ao inimigo de classe se soma o inimigo da pátria; ao bolchevique, o estrangeiro; ao socialista, o eslavo: os operários eslovenos também são comunistas. A mistura é explosiva e perfeita para que o fascismo crie raízes.

A fagulha surgiu durante uma manifestação para protestar contra o assassinato na Croácia de dois soldados italianos.
Longe do palco, no qual Giunta invocava a lei de talião (“É necessário lembrar e odiar”), um rapaz é esfaqueado numa briga entre italianos e eslovenos. Chama-se Giovanni Nini, tem 17 anos, é de Novara, cozinheiro na trattoria Bonavia. Segundo alguns, estava apenas passando por ali. Parece que, durante a agressão, antes que a lâmina cortasse seu fígado, ele gritou: “Não tenho nada a ver com isso!” Mas não importa. Um mártir é um mártir, a despeito das suas opiniões.

Após o esfaqueamento do patriota italiano, os fascistas de Giunta logo abandonam a praça, marchando em colunas disciplinadas nas quais muitos observadores percebem um plano premeditado. Uma hora mais tarde, as chamas se deflagram no maciço edifício do Hotel Balkan, onde os representantes dos eslovenos de Trieste ficam sitiados e submetidos aos tiros de catapultas improvisadas. No dia seguinte, a sede do Fascio di Combattimento em Trieste é invadida por uma multidão que pede para se afiliar.

— O Balkan — anuncia Giunta, radiante, a todos os novos afiliados — é nosso programa eleitoral.

Entusiasmante. Não resta dúvida. Aquele é o caminho. Organizar-se militarmente. É o que Cesare Rossi repete a Mussolini há meses. Em 18 de julho, os Arditi da Via Cerva pronunciaram um novo juramento de lealdade pessoal ao fundador dos Fasci di Combattimento. Poucos dias depois, D’Annunzio faz de Fiume uma proclamação aos Arditi. O poeta gritou que coisas que cortam e explodem nunca o intimidaram. Dando asas ao entusiasmo — é preciso dizer —, Mussolini até retoma as aulas de voo. O instrutor, o tenente Redaelli, o vê chegar afobado, às vezes até de bicicleta, ainda usando a roupa de diretor de jornal: terno preto, chapéu duro, polainas cinzentas. O fundador dos Fasci di Combattimento está tão determinado, impetuoso, que, quando surge, abre-se à sua volta um vazio. Um vazio de dar medo.

56) Em seguida, porém, o país volta a cair na depressão, e ele também. O novo governo decidiu abandonar o protetorado da Albânia, uma das poucas conquistas que restam à Itália da Primeira Guerra Mundial, uma guerra paga com o preço de 600 mil mortos. Tudo desmorona. Tudo é um lamaçal, burguesia e proletariado, governo e governantes. Naquela terra miserável de leis tribais, de febres quartãs, de tifo e malária, os soldados italianos haviam sulcado estradas, marchado contra os guerreiros sérvios, ainda que reduzidos a fantasmas, esqueletos vagantes, saciando a fome com ervas e a sede em poças infectadas por carniças e cadáveres. Agora a grande exibição de avacalhamento atinge todos nós, dos governantes ao povo, leva-nos a abandonar até aquela ínfima posse além-mar. Fora da Albânia, fora de tudo, vamos nos reduzir ao osso, vamos acabar cuspindo uns nos outros. Mas a paz a todo custo não vai nos poupar uma nova guerra. Vai jogá-la contra nós. É preciso ter coragem de atear fogo na casa para poder salvá-la.

57) Tem sempre um fim de mundo qualquer que enlouquece e resolve brincar de revolução, tornando-se por alguns dias o centro das atenções nacionais enquanto, do outro lado das fronteiras, os outros nos fodem. Somos uma nação-carnaval, um país-avanspettacolo. Cante que passa!

58) Em agosto de 1920, os cereais apodrecem nos campos ceifados, mas não debulhados. A decomposição é acelerada pela disposição em forma de caldeira, que favorece a estagnação de ar quente e úmido, uma vez recebido o ciclone subtropical que sopra do norte da África. Está fazendo quase 40 graus na planície do rio Pó e os grãos sufocam, não separados do folhelho, no invólucro da espiga. Sobre o grão que apodrece, estende-se por quilômetros, como uma sirene de alarme aéreo, o mugido dilacerante das vacas não ordenhadas. O ódio dos camponeses em luta mortal contra os patrões os tornou cruéis. Estimularam a produção de leite massageando os úberes e aí trancaram a porta dos estábulos. O leite fermenta, as bactérias proliferam, as tetas desenvolvem mastite. Com a boca escancarada, fazendo vibrar as grandes línguas porosas, as vacas emitem na grande planície gritos desesperados de alta frequência. Imploram aos próprios vitelos, com suas bocas vorazes por leite, que venham salvá-las da dor.

As vacas não ordenhadas são apenas um episódio da maior ofensiva das ligas camponesas contra os patrões. Os “baronatos vermelhos”, como os chama com desprezo o chefe comunista obreirista Palmiro Togliatti, optaram por uma luta sem fim. Na Emília, os socialistas controlam 223 municípios de um total de 280. A economia rural e as atividades industriais são muito rentáveis, mas, enquanto para os patrões se trata de uma questão de lucro, para os camponeses é uma de vida ou morte. A população de assalariados rurais temporários consegue trabalhar em média 120 dias por ano, por isso precisa de salários altos para não morrer de fome nos meses improdutivos. Nas lutas da primavera, as ligas camponesas conseguiram que toda a contratação de mão de obra passasse por suas centrais de empregos.

Agora controlam toda a vida econômica das províncias, administram tudo: turnos de trabalho, funcionamento das debulhadoras, fornecimento de sementes e safras agrícolas. Para funcionar, o sistema deve ser totalitário, o controle da mão de obra, completo. Basta os arrendatários não respeitarem a disciplina proletária dos assalariados temporários, basta algum desesperado aceitar um salário mais baixo, basta abrir uma pequena brecha para a ação dos fura-greves, e o sistema desmorona. Por isso, quem cede e aceita trabalhar por menos, reduzindo o espaço vital dos outros, é atormentado sem piedade. O padeiro nega-lhe o pão, todos o abandonam, emigrar é a única solução. Os proprietários que violam os acordos sobre o imposto local da mão de obra são obrigados a pagar tributos e multas.

Ferrara é a província mais vermelha da Itália. Para destacar sua primazia, o vermelho não basta: foi rebatizada de “província escarlate”. Em meados de maio, o primeiro Congresso das Ligas de Unidade Proletária contou com 81 mil inscritos, entre operários agrícolas, arrendatários, meeiros e pequenos proprietários. Os presentes são mais do que o dobro em relação a dez anos antes, a expansão é contínua, progressiva, impressionante. A vitória nas lutas da primavera foi acachapante. Primeiro os assalariados temporários, em seguida os meeiros e os arrendatários, impuseram sua vontade aos patrões. Ditam as condições de trabalho, os níveis salariais, até a escolha dos cultivos. Os proprietários estão reduzidos a pouco mais do que o fornecimento de capital. O ódio ancestral dos patrões em relação ao miserável que aspira a uma repartição diferente da terra volta a despertar.

Na outra trincheira, a expectativa dos camponeses é febril: a revolução prometida ao longo de todo o ano de 1919 não pode estar longe. Esse triunfo sobre os patrões já deve ser necessariamente uma fase pré-revolucionária. Não é possível fugir. Por isso, chegam a trancar os estábulos dos renitentes, a incendiar os paióis, até a mutilar os animais e a atormentar os homens. Em Tamara, perto de Copparo, um contador tenta arrendar suas terras a 25 famílias sem o acordo das ligas. Seus campos são incendiados, os animais, mortos, os homens, surrados. Em agosto, permaneciam apenas 4 das 25 famílias. Em Berra, um certo Luigi Bonati compra uma pequena propriedade com a intenção de cultivá-la pessoalmente. A liga o condena a boicote vitalício, obrigando-o a abandonar o vilarejo. Em San Bartolomeo in Bosco, um jovem veterano tenta fundar um círculo com orientação nacionalista. O pai é boicotado até aceitar expulsar o filho. Suas colheitas apodrecem nos campos. Ainda em Copparo, o arrendatário Roncaglia é ferido mortalmente, pois se negou a aderir à greve e abandonar os animais que lhe foram confiados. Mors tua, vita mea. O poder, no entanto, degenera, não se sacia com a morte, estende-se sempre até a vida. Em Cona, o chefe da liga decide até mesmo em que dias de festa os jovens podem dançar e estabelece de maneira autoritária o calendário dos espetáculos de marionetes.

Agora o ponto mais fervoroso do front se desloca para a província de Bolonha. As agitações camponesas, iniciadas no fim de 1919 por causa dos novos contratos de trabalho, já duram oito meses. A luta se torna dramática quando os trabalhadores temporários se negam a debulhar a safra. Reúnem-se nas vias públicas, onde a polícia não os pode prender, tocam os sinos a rebate e, quando são milhares, invadem os campos. Irrompem todos, homens, mulheres e crianças, em massa, para destruir as debulhadoras. Até meados do mês, ainda não aconteceu nenhum episódio cruento. Mas está próximo... está próximo.

Em 17 de agosto, enquanto os que podem estão na praia, em Bolonha, no meio do caldeirão fervente do rio Pó, pela primeira vez os proprietários de terras se unem em uma federação nacional. Nasce a Confederação Geral de Agricultura. O ódio se acumula. Os acordos com os governadores de províncias e chefes de polícia são feitos por debaixo dos panos. Começa o calvário.

59) Benito Mussolini – Milão, 28 de setembro de 1920:
A fábrica de automóveis Alfa Romeo em Portello é um moderníssimo estabelecimento industrial na periferia noroeste de Milão e está na vanguarda da Europa. Seus engenheiros estão preparando o lançamento do modelo Alfa Romeo RL, um inovador esportivo com motor de seis cilindros em linha, dotado de carroceria conversível com dois lugares e em forma de torpedo. Será o primeiro modelo esportivo produzido após o final da guerra e visa completar a série, ocupando uma faixa de mercado até este momento vazia. Executivos, diretores e proprietários depositam grandes esperanças neste Torpedo vermelho a ser produzido em série e em diferentes versões. Os operários, todavia, também têm grandes esperanças. No estabelecimento da Alfa Romeo em Portello, em primeiro de setembro, tremulam as bandeiras, vermelhas como o Torpedo, mas com a foice e o martelo.

Tudo começou ali. O antecedente é sempre o mesmo: a longa e espinhosa disputa por aumentos salariais.

60) Os operários reagiram à ruptura com obstrução. Uma forma de greve branca que desacelera o ritmo da produção sem a abstenção do trabalho. Em 30 de agosto, embora o governador da província de Milão tenha tentado impedi-lo, Nicola Romeo, um engenheiro napolitano que ganhou dinheiro com a guerra e com a faladíssima Banca Italiana di Sconto (BIS), proclama o lockout de sua fábrica. A FIOM, federação que é o sindicato dos metalúrgicos, proclama a sua ocupação. Em poucas horas, todas as fábricas milanesas são invadidas por operários: os diretores, e às vezes os proprietários, são feitos reféns. No dia seguinte, os industriais decidem o lockout em nível nacional. A Confederação Geral do Trabalho revida: mais de 500 mil operários ocupam 600 manufaturas em toda a Itália. A operação é tão rápida e arrebatadora que pega todos de surpresa.

61) No vale do rio Pó, as disputas pelo acordo agrícola concluem-se com a vitória total dos camponeses. Agora é a vez das fábricas. Tudo indica uma guerra civil. O socialismo está chegando, gritam nas oficinas. “Uma declaração de guerra”, escreve o economista liberal Luigi Einaudi no Corriere della Sera sobre a ocupação das fábricas.

62) Não falta violência. Os operários improvisaram comandos armados com corpos de guarda, guaritas, sentinelas, capacetes, fuzis. Os “guardas vermelhos” posam diante das objetivas dos fotógrafos dispostos em duas filas, em pé ou agachados, como nas fotos de escola ou de times de futebol. Seguram os fuzis em posição de tiro.

63) São os dias da glória operária, os dias em que todos se elevam à altura do próprio destino. A produção, de fato, passou para a mão do operariado. Sem financiamentos dos bancos, suprimento de matérias-primas e orientação de técnicos e engenheiros, os torneiros, fresadores, montadores de tubulações ou simples trabalhadores braçais fazem funcionar sozinhos o processo industrial. Homens robustos, simples e brutos se autodisciplinam com rigor: proíbem a si mesmos o consumo de bebidas alcoólicas durante os turnos na oficina, instituem turnos de vigilância para evitar furtos, protegem com escrúpulo maquinário e materiais. Durante trinta dias memoráveis, a classe operária faz frente ao dinheiro, à organização, à técnica, com uma profusão de energia moral, uma corrida rumo a formas superiores de atividade humana. Durante quatro semanas, os operários não são mais somente braços e costas cansadas, não são mais apêndices vivos das máquinas. Merecem a revolução.

Mas ela, mais uma vez, não chega. Os dirigentes socialistas decidem, novamente, adiá-la. Os chefes obreiristas de Turim temem que, ao levarem sozinhos a luta do ambiente fechado das fábricas para as ruas, serão esmagados. Sentem que a diferença é enorme.

64) Em meio a toda essa confusão, Mussolini não se mexeu. Agitou-se, gesticulou, andou de um lado a outro, escreveu a favor e contra, mas não se mexeu. Ganhar tempo: às vezes não há mais nada a fazer. Quando todo o mundo desmorona à sua volta, você permanece no lugar.

65) Por fim, no dia 19, partiu para Trieste, onde, diante de milhares de pessoas, ridicularizou a loucura dos bolcheviques italianos: “Como vocês acham que o comunismo seria possível na Itália, o país mais individualista do mundo?” Foi lindo. Ele não via uma multidão como aquela desde os tempos dos comícios socialistas.

66) Enquanto isso, nas fábricas, tocava a sirene da dispersão e da derrota. A retirada, após um mês inteiro de ocupação, é submetida a um referendo entre os ocupantes. Em Milão, 70% dos operários a aprovam. Em Turim, todos abandonam-se ao desânimo de violências crescentes e insensatas. Confiscos de propriedades, tiroteios com as forças de segurança, tocaias noturnas. Funerais de operários. Batalhas sangrentas em volta dos caixões.

67) Mussolini não se mexe nem mesmo agora. Agarrado à sua escrivaninha, no editorial desta manhã exaltou a suposta vitória dos operários que, na sua qualidade de produtores, conquistaram o direito de controlar toda a atividade econômica.

68) Os camponeses do Polesine estão entre os mais miseráveis da Itália. Levaram por séculos uma vida de animais, abestalhados pelo ar mefítico, sempre febris, condenados a morrer jovens, criados em casebres apinhados de pais, filhos, irmãos, avós, irmãs, em uma convivência asquerosa de homens, frangos e porcos que disputam o alimento e o oxigênio com os patrões. Um mundo degradado, desequilibrado, desnutrido, no qual os incestos são frequentes, os organismos estão sempre debilitados, as doenças são sempre crônicas, onde choram a morte da vaca, mas conformam-se com a morte da esposa.

69) Poucas coisas corrompem tanto um povo quanto o hábito do ódio.

70) Há muita violência a ser saneada: os párocos foram obrigados a fechar as igrejas, as pessoas que vão às missas são agredidas, equipes de comunistas armados com porretes tomam conta dos locais de votação, obrigando as pessoas a pôr na urna cédulas já marcadas.

71) A única condição que D’Annunzio não aceitava era adiar a insurreição até a primavera de 1921. Queria agir logo. Exaltou-se novamente depois que Guglielmo Marconi, o genial inventor do “telégrafo sem fios”, foi a Fiume, encarregado por Giolitti, para convencer o Comandante a se render, mas acabou na verdade permitindo que D’Annunzio difundisse para o mundo, pelo ar, a partir da estação de rádio instalada em seu iate Elettra, um de seus magníficos, incompreensíveis e inúteis pronunciamentos. Antes de ir embora, Marconi aproveitou para requisitar o divórcio da mulher, algo permitido pela legislação libertária de Fiume e proibido pela italiana.

72) A situação tinha sido esclarecida dois dias antes, em 14 de outubro. Os socialistas haviam organizado em toda a Itália manifestações a favor da Rússia dos sovietes, e os fascistas posicionaram-se definitivamente em defesa do desprezado Estado liberal, contra o ataque dos “vermelhos”.

73) Gazzetta Ferrarese (jornal conservador), 20 de outubro de 1920, editorial:
A Itália precisa de um homem que diga com vontade decisiva “chega!” a essa corrida louca em direção ao suicídio. Um homem que não tenha a irritante preocupação cotidiana de manter o equilíbrio parlamentar [...]. Um homem que saiba encarar a realidade que não suporta meias medidas [...]. Não se cura a gangrena com panos quentes. Esse homem existe? Que surja, e ele terá consigo o unânime consenso nacional.

74) O velho amigo Pietro Nenni esteve em Fiume em setembro por ocasião da promulgação da Carta de Carnaro no primeiro aniversário da marcha sobre a cidade. Ao voltar a Milão, Nenni relatou excessos bíblicos, devassidões carnavalescas. Diz que, um dia, D’Annunzio ridiculariza os senhores medievais e, no dia seguinte, se comporta como um príncipe do Renascimento. A polícia envia relatórios segundo os quais Fiume é definida como “Eldorado de todos os vícios”, “cidade da vida mansa”. Enquanto isso, a degradação é tanta que os hospitais distritais assinalam casos de peste bubônica. Nenni até imitou o Vate que dialoga com o povo da sacada do governo. Palhaçada, tudo palhaçada. Chega de cheques em branco assinados por poetas.

75) Aquilo é coisa de quem tem presbiopia, e ele [Nenni], desde garoto, sempre teve hipermetropia. Nele, a maior capacidade de visão global corresponde a uma menor capacidade de foco. Uma maior potência visual que, em contrapartida, o condena a não ser capaz de distinguir as minúcias, a ser obrigado a perder de vista os detalhes insignificantes. Sem dúvida, uma deficiência grave em uma época na qual o insignificante é a única coisa importante.

76) Leandro Arpinati, Bolonha, 23 de novembro de 1920
[Nota: Trata da sublevação socialista em Bolonha que marca a virada da ascensão fascista comandada por Mussolini.]
“Domingo, as mulheres e as crianças que fiquem em casa. Se querem ser merecedores da Pátria, exponham em suas janelas o Tricolor. Pelas ruas de Bolonha, domingo, deve haver apenas Fascistas e Bolcheviques. Será a prova. A grande prova em nome da Itália.”

Arpinati ordenou que o escrevessem com clareza. Foi pessoalmente com os seus rapazes afixar o ultimato em todas as ruas da cidade. Teve de fazer os cartazes em casa com um mimeógrafo porque o chefe da polícia negou a autorização de impressão.

A espera do confronto é ardente, unânime, simétrica. Tendo chegado a esta situação, lutemos: esse é o único ponto em que os inimigos concordam. Em 12 de novembro, em Cremona, os fascistas de Farinacci advertiram os conselheiros municipais socialistas: “Se amanhã, após a conquista da prefeitura, os socialistas quiserem conquistar a praça, saibam que tem gente disposta a matar e a morrer.”

Em Módena, onde os socialistas conquistaram 59 dos 68 municípios, 2 dias depois, em uma espécie de resposta a distância, o presidente do Conselho Provincial, ao inaugurar a assembleia, anuncia: “Nós não queremos discutir com os nossos inimigos; queremos abatê-los.” A linha de frente já se estende por todo o Vale do Pó.

Em Bolonha, a União Socialista se reúne na noite de 16 de novembro. Superando as numerosas divisões, decidiram se aparelhar para rechaçar com violência a violência fascista. A vitória dos socialistas nas eleições foi clara, o mandato dos eleitores é inequívoco, não é possível se dirigir às forças de segurança pública porque o Estado é o “comitê executivo da burguesia”. Vamos nos defender dos fascistas sozinhos, está decidido. Para enfatizar a vitória, foi convocada uma grande manifestação popular para a cerimônia de posse da junta no Palazzo d’Accursio. Decidiram realizá-la no domingo, 21 de novembro, para permitir a participação das multidões operárias. A vigilância armada foi delegada aos “guardas vermelhos”. Em resposta, na noite do dia 17, os cerca de 400 afiliados do Fascio di Combattimento de Bolonha se reuniram na Via Marsala. Decidiram também manter-se prontos e atentos.

Dos dois lados, há exaltação, circula uma euforia grosseira, acontecem bizarras explosões de vitalidade. A longa espera parece ter chegado ao fim. O choque parece inevitável, o conflito é anunciado, premeditado, até mesmo negociado. Em 18 de novembro, no Parlamento, pela primeira vez o deputado socialista Niccolai denunciou a difusão das violências fascistas, o Avanti! destacou as conivências do governo, o Corriere della Sera, porém, replicou falando abertamente de “santa reação da opinião pública” aos abusos dos socialistas. Em Bolonha, o governador da província e o chefe de polícia estão plenamente cientes de que basta uma faísca para que o fogo seja ateado. Circulam boatos sobre o caixote de bombas que os socialistas estariam guardando no Palazzo d’Accursio para a festa de posse da junta, são enviadas cartas anônimas, são feitas negociações sobre os símbolos. O chefe de polícia foi pessoalmente à sede fascista da Via Marsala negociar as regras de participação. Após longas reuniões secretas dos dois lados, chega-se a um acordo digno de um protocolo imperial: os fascistas não atacarão, com a condição de que não seja soado o “grande sino” e não seja exposta a bandeira vermelha, exceto no momento em que, ao fim da sessão, o novo prefeito aparecer na praça para agradecer aos eleitores. Só então poderá ser tolerada como bandeira do partido. O chefe de polícia, enquanto isso, solicitou ao governador da província o envio de mais 1.200 soldados e 800 carabineiros como reforço para os 400 guardas reais já disponíveis. Na manhã de 21 de novembro, segundo os relatórios de Visconti, o governador da província, nas ruas do Centro circulam 900 homens da infantaria, 200 a cavalo, 800 carabineiros, 600 guardas reais. Bolonha é uma cidade em estado de sítio.

O Palazzo d’Accursio é desde sempre a sede do poder civil de Bolonha, Senado ou prefeitura que seja. É um palácio com ameias ao lado da catedral de São Petrônio, que dá para a Piazza Maggiore. Depois das 14h, começaram a afluir os cortejos dos delegados socialistas. São cerca de dois mil, não mais do que isso, obedecendo a um acordo feito com a chefatura de polícia. A praça é isolada, todos os acessos da Via Rizzoli e da Via Indipendenza estão interditados. Um cordão de carabineiros a fecha de cada lado.

Todavia, ao que parece, alguns fascistas conseguiram entrar antes do bloqueio. São talvez uma dezena, reunidos sob os toldos do restaurante Grande Itália na praça repleta de milhares de socialistas aglomerados em volta da fonte de Netuno. No interior do palácio, tudo está preparado para o início da cerimônia de posse. No pátio, cerca de cinquenta guardas reais supervisionam a entrada. Nas sacadas, estão os “guardas vermelhos” armados de fuzis e granadas. Qualquer pessoa está em linha de tiro. Não voa uma mosca sequer.

Porém, às 14h30, apesar das precauções do governador da província e dos acordos com o chefe de polícia, na Torre degli Asinelli tremula uma bandeira vermelha. Os fascistas, liderados por Arpinati, saem em massa da sede da Via Marsala e marcham em grupos rumo à praça. Um punhado consegue penetrar pela Via Ugo Bassi em um espaço aberto para permitir a entrada da cavalaria. Não são mais do que quinze. Entoam suas canções nas margens da multidão socialista.

No palácio, às 15h, começa a sessão do Conselho. O discurso de posse do novo prefeito prossegue sem problemas. Ele se chama Enio Gnudi, é operário das ferrovias, comunista, rende a costumeira homenagem à Revolução Russa. Meia hora mais tarde, enquanto os grupos fascistas aumentam a algazarra, Gnudi, eletrizado, se apresenta na sacada da Sala Vermelha para saudar a multidão circundado pelas bandeiras vermelhas das associações socialistas. Para ele, é um dia de festa, mas o prefeito está olhando para a própria ruína. Liberta de uma gaiola pombos que saem em revoada sobre socialistas e fascistas, sem distinção. As aves também carregam bandeirinhas vermelhas amarradas à cauda. Do restaurante Grande Itália, uma pistola é disparada.

Ao sinal do desastre, um grupo de 26 fascistas de Ferrara rompe a pauladas o cordão de segurança. Tiros continuam a ser dados do restaurante Grande Italia, e, das sacadas do palácio, abre-se fogo em resposta; mais disparos de fuzil vêm da fonte de Netuno. A multidão se vê no meio do fogo cruzado. Aterrorizada, corre em todas as direções. A maioria se dirige para o pátio do palácio. Começa a debandada.

Os camponeses e operários socialistas suam, tremem, têm medo de morrer, sensações de torpor, de sufocamento, de formigamento nos membros, de pressão no peito, de desmaio, têm medo de enlouquecer, a respiração está curta, a taquicardia é cada vez mais forte, a pressão sanguínea aumenta e em seguida despenca, há calores, calafrios, náusea, os homens têm medo de não conseguir se recuperar, sentem que o pior ainda está por vir, uma sensação de irrealidade invade o mundo. Das sacadas, os “guardas vermelhos”, vendo seus companheiros procurando se salvar no pátio, acham que se tratam de fascistas que foram invadi-lo. Jogam cinco bombas. Os cadáveres dos companheiros se amontoam na entrada.

Enquanto um socialista termina seu discurso, da praça sobem os ecos de detonações que chegam até a Sala do Conselho repleta de público, de guardas municipais, de “guardas vermelhos”, de funcionários aduaneiros. Pelas janelas, avistam-se os corpos caídos. Os conselheiros socialistas, sem saber o que de fato aconteceu, sobem nas mesas da maioria parlamentar acompanhados por bombeiros de plantão. “Assassinos! Estão matando nossos companheiros!”, gritam para os poucos conselheiros dos partidos de minoria.

O advogado nacionalista Aldo Oviglio joga sobre a mesa o próprio revólver: “Eu não estou matando ninguém.”

Há todo um mundo de homens armados nesse dia no Palazzo d’Accursio. Do outro lado da sala, um deles — um militante socialista anônimo — se levanta, aponta a arma contra aqueles senhores indefesos que, naquele momento, ele vê como os responsáveis por uma carnificina causada, na verdade, em grande parte por seus companheiros, e abre fogo. Ele nunca será identificado pela polícia nem entregue pelos dirigentes do partido. O advogado Giulio Giordani, conselheiro do Partido Nacionalista, ex-combatente, medalha de prata, com uma perna mutilada, morre na hora. Quando vivo, não era sequer fascista, mas se tornará quando morto. O advogado Biaggi cai no chão com ferimentos leves. O advogado Cesare Colliva se arrasta sangrando, de quatro, até a saída. Dizem que Leandro Arpinati foi visto incitando os fascistas ao ataque, agarrado à estátua de Netuno. Outros juram tê-lo visto ir até o pátio do palácio com o revólver em punho. Boatos, rumores, lendas. Certo é que há dez mortos e cinquenta feridos. A credibilidade da organização militar socialista está destruída, a reputação do partido, também. O Conselho Municipal, democraticamente eleito, abalado pelas prisões e pelo escândalo, renuncia em bloco. Bolonha será governada por um comissário indicado pela administração da província. Uma outra estação começou.

77) Corriere della Sera, 23 de novembro de 1920:
De quem é a culpa? Quem, senão o Partido Socialista, aspira à guerra civil na Itália? Quem, senão o Partido Socialista, cria e deseja esse ambiente de batalha selvagem? A batalha encontra necessariamente os seus combatentes também do outro lado [...]

Filippo Turati, líder socialista, discurso na Câmara, 24 de novembro de 1920:

Está na hora de todos nós decidirmos nos desarmar e desmobilizar os ânimos, depor não apenas as armas materiais, mas desarmar e desmobilizar os ânimos [...]. Mãos para o alto, todos!

78) “Uma poltrona? O que faz uma poltrona no meio do meu escritório!?”, pragueja Mussolini, apertando os olhos e fazendo as pupilas percorrerem aquela decoração habitual como se tivesse avistado um inimigo irredutível. “Uma poltrona, para mim?! Levem isso embora daqui, ou vou jogá-la pela janela. A poltrona e as pantufas são a ruína dos homens!”

79) Nos seus trajes à paisana, com o chapéu-coco na cabeça, no vazio da sala nua, Benito Mussolini ensaia uma pose de espadachim, a mão na terceira posição, a arma alinhada. A violência está cada vez mais na ordem do dia.

80) [A transformação mostra sinais de evidência histórica. O povo começa a aderir ao fascismo]

A escalada aconteceu após a carnificina de Bolonha. A progressão foi exponencial, a diretriz, unívoca e clara, como se estivesse sendo guiada por um instinto da espécie. Imediatamente após a matança, enquanto os cadáveres e os feridos ainda gemiam na praça, os fascistas já se enfileiravam e percorriam as ruas da cidade cantando seus hinos. No dia seguinte, começou sua ascensão — milhares de novos afiliados em poucos dias —, e os fascistas não tinham intenção alguma de se desarmar. Arpinati havia declarado ao público: enquanto o período de violência não cessasse nos campos, enquanto os órgãos do Estado não voltassem a ter domínio da situação, o Fascio di Combattimento bolonhês continuaria a manter as armas em riste.

81) Mussolini logo enviou Cesare Rossi e Celso Morisi de Milão para coordenar a formação das equipes. As formações paramilitares fascistas, sonhadas em vão por muito tempo pela ambição por poder do Fundador, agora eram resultantes de um processo de geração espontânea a partir do sangue derramado na Piazza Maggiore em Bolonha. Rossi disse que já em 23 de novembro, durante o cortejo fúnebre de Giordani, os fascistas desfilaram em formação entre duas alas da multidão carregando o estandarte do município. Os socialistas não apareceram. Nem sequer reuniram coragem para proclamar a greve geral em protesto contra o ataque fascista. Aniquilamento político total. Naquele dia, a junta renunciou ao próprio mandato; na mesma noite, a administração provisória foi confiada a um governador de província; no dia seguinte, o comissário provincial tomou posse. Começou a caça às bruxas vermelhas.

No dia 28, Arpinati, acompanhado por um bando de fascistas, partiu para o monte Paderno para advertir o chefe da liga e trouxe de volta a bandeira vermelha. Queimaram-na na Via Indipendenza. Em 4 de dezembro, em uma assembleia no Teatro Comunale de todas as associações antibolcheviques, os fascistas foram aclamados com gritos de “fora os bárbaros!”. Em 7 de dezembro, saquearam a Câmara do Trabalho de Castel San Pietro; no dia 9, houve um conflito em Monzuno; no dia 18, na saída do tribunal, agrediram e atacaram a pauladas os deputados socialistas Bentini e Niccolai; no dia 19, foi a vez do deputado Misiano, o desertor. E assim chegaram ao dia de hoje, 20 de dezembro, a apenas 5 dias do Natal.

Justo na manhã de hoje, Arpinati, eleito pelo furor popular como secretário do Fascio di Combattimento de Bolonha, anunciou, por meio de um telegrama, que estava partindo para uma expedição em Ferrara em apoio a uma manifestação dos fascistas locais em homenagem ao advogado Giordani no trigésimo dia do seu assassinato no Palazzo d’Accursio. De Ferrara, chegaram a requisitar 3 mil distintivos para que a manifestação fosse bem-sucedida. Até se comprometeram a antecipar o valor.

De fato, uma onda de entusiasmo e um coro de consensos havia saudado por toda parte as ações dos grupos fascistas. O sucesso era total, o choque causou reviravolta, o encanto vermelho se partira. E não somente em Bolonha. A violência triunfal se propagava ao longo de toda a Via Emilia com uma velocidade contagiante: na região de Rovigo, apoiadas pelos proprietários de terras, os Fasci di Combattimento se difundiam ao longo do eixo Cavarzere-Cona-Correzzola-Bovolenta; em Adria, as esquadras haviam expulsado as cooperativas de assalariados temporários que haviam ocupado a grande fazenda de Oca; em Módena, atacaram os conselheiros municipais; em Carpi, a Câmara do Trabalho; dali, as ações penetraram por infiltração até Reggio e Mântua; em Bra, na região de Cuneo, guiados por De Vecchi, os fascistas perseguiram a pauladas os “guardas vermelhos” até entrarem nos escritórios da prefeitura. O efeito era como o de uma avalanche, passava-se da legítima defesa à contraofensiva; o fascismo desabrochava irrefreável em todas as províncias da Itália. Um ar de batalha pairava nos campos.

82) Mussolini o proclamara pessoalmente nas colunas do jornal: logo, seriam invencíveis, aproximava-se sua grande, sua grandíssima hora. Corações ao alto! Vamos transformar o medo em ódio e nos atirar contra o inimigo. Vamos fazer de todas as nossas vidas um aríete!

Os socialistas, por sua vez, coitados, gritaram “mãos para o alto”! Filippo Turati içou sua barba de profeta sobre as cadeiras do Parlamento e fez um nobilíssimo discurso. Denunciou a aquiescência das autoridades, chorou a matança involuntária dos próprios companheiros socialistas, defendeu as instituições e as liberdades estatutárias. Turati esclareceu que não queria recriminar, mas cuidar do amanhã. Tinham de dar trégua aos excessos de todos os lados, removendo suas causas. Era hora, concluiu, para todos se decidirem a desmobilizar e a desarmar os ânimos. Para encerrar, deixou elegantemente escapar uma culta e irônica citação literária.

O plenário em Montecitório escutou em silêncio absoluto, comovido. A imprensa esclarecida aplaudiu admirada: o velho eremita socialista conseguiu realizar o milagre de devolver aos deputados do seu grupo a consciência socialista, e aos democratas, a consciência liberal.

Lendo a transcrição do discurso de Turati, Mussolini balançou a cabeça divertido. Não havia nada a ser feito: aquela gente não entendia a brutalidade. Lindo discurso — sem dúvida —, mas o terreno da violência não era para os socialistas. Sim, claro, as ligas mandavam e desmandavam nos campos, as Câmaras do Trabalho nas cidades oprimiam com multas, boicotes e gravames os inimigos de classe, os camponeses socialistas até incendiaram alguns paióis, mutilaram algumas vacas, surraram alguns arrendatários, atiraram em autodefesa contra alguns policiais ou proprietários agrícolas, chegaram até mesmo, em casos raros, à ferocidade de mutilar cadáveres ou violentar moças que voltavam da missa, mataram a pauladas alguns fascistas, mas, no fundo, eram sempre explosões de cólera ancestral, as costas chicoteadas que em um espasmo de desespero se erguem e agarram a chibata, o colono que após séculos de abusos, em uma noite de lua cheia e grappa, degola no sono o feitor que estuprou sua filha, incendeia o celeiro e, em seguida, enforca-se. A violência socialista era uma realidade indubitável, mas nela tudo se reduzia a esse impulso. Os chefes socialistas discutiam sobre organizar a revolução por meio de um exército de militantes armados e, na verdade, não havia organização alguma. Ele conhecia bem aquela gente, havia décadas. Quanto à violência, eram e permaneceriam sendo uns episódios precários.

83) O vazio da sala de armas de repente é ocupado por uma multidão. Um mensageiro chegou correndo da Via Cannobio: ocorreu um pandemônio em Ferrara. Mussolini balança a cabeça para se desfazer de suas meditações sobre a espada fantasma. Pede mais detalhes. O mensageiro os fornece.

Houve violentos confrontos à margem de um comício convocado pelo prefeito socialista de Ferrara. De um cortejo de enfermeiros que ia ao comício agitando a bandeira vermelha, foram feitos disparos em direção à contramanifestação guiada por cerca de cinquenta fascistas bolonheses, com Arpinati à frente.

84) Terminado o cortejo fúnebre, os fascistas, cerca de mil, reunidos em grupos e ordenados em uma coluna, voltam às ruas do Centro da cidade cantando seus hinos. Toda a burguesia, grande e pequena, abre alas e os exalta. Empresários, industriais, comerciantes, lojistas, pequenos proprietários de terras, arrendatários, meeiros, funcionários, profissionais liberais, artesãos. O sonolento Centro da cidade de Ferrara, abandonado pela classe operária, desperta.

85) D’Annunzio desperta. O disparo de canhão o catapulta do torpor depressivo para a raiva vingativa. Ordena que, em represália contra a Itália indigna, seja torpedeado o encouraçado Dante Alighieri, bloqueado no porto de Fiume. A ordem não é executada.

Enquanto isso, espalhou-se a notícia de que o poeta estaria morto. Mas ele está vivo e, a essa altura, pretende permanecer assim. Sua ira agarra de novo a pena. Assina a segunda proclamação desde o início do ataque. “Ó, covardes da Itália, ainda estou vivo e implacável.” O Vate se lança contra um povo incapaz de se erguer pela justiça e até mesmo de sentir vergonha. Ele que ofereceu cem vezes a vida sorrindo agora não está mais disposto a fazê-lo. Declara abertamente que esteve pronto para o sacrifício até o dia anterior, mas que não está mais.

Poderia se dizer que, pela primeira e última vez na sua longa e resplandecente existência, Gabriele D’Annunzio depara-se com o senso de ridículo: tenham paciência, mesmo com toda a boa vontade, como é possível se sacrificar por um povo que, nem mesmo quando o governo manda assassinar seus heróis com determinação impiedosa, consegue se afastar por um instante da farra natalina?!

86) Nenhuma morte heroica tem sentido para os italianos, sempre prontos a sacar a faca para se degolar em brigas de taberna, mas incapazes de mover um dedo pela Itália, essa abstração geográfica e política com a qual não podemos sequer bater um papo, dar duas risadas, tomar um drinque, essa palavra vazia que não dá para convidar para jantar.

87) Pela primeira vez, Umberto Pasella não é mais obrigado a mentir sobre os dados de afiliação. Após os fatos sangrentos de Bolonha e Ferrara, de 1.065 carteirinhas vendidas no bimestre de outubro/novembro, o número pulou para 10.860 vendidas em dezembro. A esta altura, contam-se na Itália 88 seções com 20 mil afiliados. Só em Bolonha alcançaram 2.500 afiliados, ao passo que no início de novembro eram poucas dezenas. Além disso, categorias sindicais inteiras estão abandonando a Câmara do Trabalho socialista. Em poucas semanas, funcionários municipais e provinciais, empregados das repartições aduaneiras, professores catedráticos e também guardas municipais, professores primários, funcionários das obras de caridade, todos rasgaram a carteirinha da Confederação Geral do Trabalho para fazer a fascista.

88) O fascismo se difunde com a progressão de um contágio. É gente nova, gente desconhecida, gente com quem até um ano antes ele não teria sequer tomado um café; uma multidão de funcionários e lojistas que, antes da guerra, assistia indiferente à política, nem de direita nem de esquerda, e muito menos de centro, nem vermelhos nem negros; gente que se mexe sempre, e para todo sempre, na zona cinzenta. Mas agora não estão mais apenas olhando. Ah, sim... os espectadores mudam.

89) Às vezes, como em Ferrara, basta uma colheita ruim para difundir o pânico. Que coisa maravilhosa é o pânico, essa parteira da história! Cesare Rossi repete o tempo todo que esse pode justamente ser o milagroso escambo deles: ódio em troca de medo. Os novos fascistas são todos pessoas que até ontem tremiam de medo da revolução socialista, gente que vivia de medo, comia medo, bebia medo, deitava-se na cama com medo. Homens que choramingavam no sono como crianças e, quando a mulher perguntava “o que foi, querido?”, respondiam fungando: “nada, não é nada, durma.” Agora, na bolsa de valores dos miseráveis, estão trocando o metal pesado da angústia pela apreciada moeda do ódio mortal.

90) As classes médias rebaixadas por causa das especulações bélicas do grande capital, os oficiais que não se conformam em perder um comando para voltar à mediocridade da vida cotidiana, os burocratas de baixo escalão que, acima de qualquer outra coisa, se sentem insultados pelos sapatos novos da filha do camponês, os meeiros que compraram um pedacinho de terra pós-Caporetto e agora estão dispostos a matar para mantê-lo, todas pessoas de bem tomadas pelo pânico, consumidos pela ansiedade. Pessoas abaladas no mais íntimo de seu âmago por um desejo irrefreável de submissão a um homem forte e, ao mesmo tempo, de domínio sobre os indefesos. Estão prontas para beijar os sapatos de qualquer novo patrão desde que também lhes seja possibilitado pisar em alguém.


CONTINUA

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Fragmentos 41

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Antonio Scurati – M: O Filho do Século

Trata da ascensão do fascismo pela biografia de Mussolini na descrição cronológica dos acontecimentos entre os anos de 1919 a 1926 na Itália, neste primeiro volume. O autor promete outros dois.

Scurati é um professor de letras e seu pendor literário fica claro na construção do texto e nas sutilezas e particularidades pessoais dos personagens da grande tragédia política produzida pelas consequências devastadoras da Primeira Guerra Mundial.

É a história contada por um homem de letras, com a sensibilidade para o histriônico e para o anedotário que existiam em torno deste jornalista excêntrico expulso das fileiras do jornal Avanti, de encarnação socialista, para a dissidência política através de seu próprio periódico Il Popolo D’Itália, tribuna onde do nada se tornou a figura mais importante do século XX na península.

Em uma Itália pobre, ainda sob o jugo do modelo agrícola de trabalho onde os camponeses eram explorados e sujeitos ao mandonismo e arbítrio dos proprietários locais, do desespero humilhante de ex-combatentes desmobilizados à procura de emprego nas cidades e de uma instabilidade política permanente, formaram-se as condições sociais para o descontentamento e a inserção dos novos métodos trazidos pela Revolução Russa nos movimentos de inspiração sindicalista insuflados pela agitação revolucionária.

Com a crise se agravando e sem uma estratégia para governar, o movimento de massas foi avançando na produção de seu próprio programa de expropriação e imposição de normas arbitradas por seus líderes.

Sem a ascensão meteórica dos socialistas nas eleições parlamentares, não se entende o fascismo, primeiro como aliado e depois como inimigo principal.

Os líderes que gravitavam ao redor de Mussolini tinham um propósito de ação impulsionado pela política de tomar decisões em nível local à revelia dos mandatários eleitos, abrindo confrontos que, através de um populismo no contrapé da ordem social, foram arregimentando seguidores para suas fileiras antes simpáticos ao socialismo até se transformar em um movimento nacional unificado e com capacidade de coerção e eliminação de todas as pessoas que constituíam um obstáculo para seus desígnios políticos.

De pacifistas passaram ao terrorismo social justificado por sua própria ideia de construção de uma nova ordem hegemônica.

Das cinzas do fracasso dos socialistas parlamentares nasceu um movimento que haveria de impor mais de três décadas do regime que seria imitado parcialmente em todos os governos autoritários latino-americanos.

Se a promessa socialista se esvaiu em 1922, a promessa fascista acaba no assassinato de Matteoti, o principal parlamentar socialista de oposição ao regime fascista, não restando a Mussolini senão o rompimento com a tradição que o elegeu, como sempre acontece com os ditadores.

Um livro para ser lido e meditado nesta fase de confronto do lulopetismo com o bolsonarismo.
[São Paulo, 14/07/22]

1) Os Fasci Italiani di Combattimento (no singular, Fascio di Combattimento), conhecidos em português como Grupos Italianos de Combate, foram uma organização paramilitar fundada em 1919 que viria a se tornar, mais tarde, o Partido Nacional Fascista. Seu inspirador e fundador foi Benito Mussolini que tomou o poder em 30 de outubro de 1922 em uma sequência de episódios que será descrita a seguir.

2) O germe do fascismo se formou na fileira dos Arditi, uma brigada de assalto criada na primeira guerra mundial para enfrentar os inimigos nas trincheiras. O autor define assim:
“-Em uma guerra que aniquilara a concepção tradicional do soldado como agressor, na qual eram os gases abrasivos e as toneladas de aço disparadas de locais remotos que os faziam explodir imóveis nas trincheiras, em um massacre tecnológico decorrente da superioridade do fogo defensivo em relação à mobilidade do soldado lançado no ataque, os Arditi trouxeram de volta a intimidade do combate corpo a corpo, o choque causado pelo contato físico, a convulsão do morto transmitida pela vibração da lâmina ao punho do matador. A guerra nas trincheiras, em vez de produzir agressores, havia formado milhões de combatentes com uma personalidade defensiva, inspirada na identificação com as vítimas de uma inevitável catástrofe cósmica. Naquela guerra de ovelhas prontas para o abate, eles trouxeram de volta a confiança em si mesmos que só é obtida através da mestria em esquartejar um homem com uma arma de corte de lâmina curta”.

3) Benito Mussolini, após ser expulso do Partido Socialista [em 1914], ao perder as armadas do proletariado, recrutou-os [os Arditi] logo, instintivamente. Em 10 de novembro de 1918, no dia da comemoração da vitória, após o discurso do deputado Agnelli no Monumento aos Cinco Dias de Milão, o diretor do Il Popolo d’Italia instalou-se em meio aos Arditi no caminhão que desfraldava a bandeira preta com o crânio. No Caffè Borsa, erguendo os cálices de espumante, brindou a eles dentre os milhões de combatentes. “Companheiros de armas! Eu os defendi quando o covarde os difamava. Sinto algo de mim nos senhores e talvez os senhores se reconheçam em mim.”

4) Os trabalhadores do Avanti!, jornal socialista com sede na Via San Damiano, bem atrás da Via Cerva, entoam a plenos pulmões “Bandiera rossa trionferà!”. Brindam ao 17 de fevereiro, o dia em que Milão e a Itália, após a breve ressaca pela vitória da nação sobre os históricos inimigos austríacos, descobriram com perplexidade que havia um novo inimigo no futuro: a revolução bolchevique.

5) Chama-se Filippo Tommaso Marinetti e, em 1909, fundou a primeira vanguarda histórica do Novecento Italiano. Seu manifesto por um movimento poético futurista teve ressonância pela Europa, de Paris a Moscou. Nele, propõe destruir os museus, as bibliotecas, as academias de qualquer espécie, assassinar o luar e louvar as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta, glorificar a guerra — “a única higiene do mundo” —, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertadores, as belas ideias pelas quais morremos e o desprezo pelas mulheres.

6) “Ai, ai... o Avanti! não existe mais! Ai, ai... o Avanti! não existe mais! Ai, ai...” Mussolini escuta e acaricia a cabeça calva na qual os fios ralos que despontam sombreiam uma calota cinza-azulada. Cinco anos antes, ele era o diretor do Avanti!. Muito amado pelos leitores, elevara a tiragem do jornal a números nunca antes atingidos. Agora está prestes a pisar no cadáver.

7) Gabriele D’Annunzio – Roma, 6 de maio de 1919
A enorme multidão reunida na Piazza del Campidoglio está imóvel, imóvel como a estátua equestre do imperador Marco Aurélio, ao redor da qual ela se aglomera. Todos esperam, com a cabeça inclinada para trás e o olhar voltado para o alto, que Gabriele D’Annunzio apareça na sacada da prefeitura de Roma. São dezenas de milhares de homens, em sua maioria jovens, robustos, fisicamente íntegros. No entanto, aquele homem consegue fazer com que se sintam mutilados. Graças à metáfora da “vitória mutilada”, cunhada pelo poeta, 20 mil rapazes íntegros e robustos sentem agora a falta de um membro ou de um órgão. E é por isso que o adoram.

São em boa parte veteranos da Primeira Guerra Mundial, a maior guerra da história, que combateram e venceram o inimigo ancestral do povo italiano há menos de um ano às margens do rio Piave, porém D’Annunzio consegue fazer com que se sintam derrotados. E isso os faz venerá-lo. Adoram e veneram o mago capaz do milagre de alquimia psicopata que está transformando a maior vitória jamais obtida pela Itália nos campos de batalha em uma derrota humilhante.

8) Em 24 de abril, Orlando, o presidente do Conselho de Ministros, e Sonnino, seu ministro das Relações Exteriores, abandonaram a Conferência de Paz de Paris. O Tratado de Londres, que em 1915 determinou as condições de entrada na guerra ao lado da Rússia, da França e da Grã-Bretanha, havia prometido à Itália, em caso de vitória, a Dalmácia, que durante séculos foi domínio da República de Veneza. Segundo os nacionalistas, a nova doutrina da autodeterminação dos povos, propagandeada por Wilson, daria agora à Itália também Fiume [Rijeka], pequena cidade de fronteira com ampla maioria de população italiana, excluída dos acordos de Londres. O slogan é: Tratado de Londres mais Fiume. Mas o presidente dos Estados Unidos da América, senhor do jogo diplomático, não quer, ao que parece, dar em recompensa ao aliado italiano nem um nem outro.

9) Após o abandono das negociações em Versalhes, a desilusão logo assumiu a aparência de drama na Itália. Os companheiros da véspera negavam o que haviam prometido ao preço de 600 mil mortos. A conferência de paz, observa Ivanoe Bonomi, “se revela à luz de uma emboscada”.

10) De fato, na conferência de paz, Wilson e os outros líderes da vitória continuaram a negociar e a decidir tranquilamente as novas fronteiras do mundo sem os italianos. Durante quinze dias de frenesi patriótico, enquanto os liberais, os nacionalistas e os fascistas italianos estavam hipnotizados por alguns rochedos no Adriático; em Paris, os aliados partilhavam as colônias alemãs na África e o Império Turco no Oriente Próximo. Apenas duas semanas após o abandono desdenhoso, Orlando e Sonnino [delegados do governo nas conversações do armistício] foram, então, obrigados a voltar a Paris com o rabo entre as pernas. O dano moral foi enorme. Um povo que acalentou a ilusão de ser capaz de resistir sozinho a todos cai no abandono. A milhões de camponeses pacíficos, ignorantes da realidade do mundo, que por quatro anos lutaram nas trincheiras de uma guerra mundial sem nem saber direito em que terra elas foram cavadas, é dito que o sacrifício foi em vão, que a ferida sangra por nada. A desilusão estoura dentro deles como uma dor quase desesperada.

11) Nascido em 1863, Gabriele D’Annunzio passou os primeiros cinquenta anos de vida tentando se tornar o maior poeta da Itália. Conseguiu. Seus versos e suas prosas — em especial o romance Il piacere — influenciaram os gostos de uma geração e tiveram ressonância internacional. Ele afirma com arrogância que “levou a literatura italiana de volta para a Europa” e tem razão. Os maiores intelectuais do continente o leem, admiram-no e o elogiam publicamente. Sua vida, enquanto isso, é vivida como uma obra de arte: dândi inigualável, hedonista militante, sedutor triunfal, histriônico, sensual, imaginativo, põe a própria erudição infinita a serviço da busca obsessiva pelos prazeres sensuais e pela saciação dos apetites carnais desenfreados. Em seguida, em plena Belle Époque, quase de repente, o culto estético transmuta-se nele em culto à violência, a inquietação de uma época assume tons sanguinolentos. Seu insaciável desejo de conquistas femininas se torna desejo de expansões territoriais. O cantor da languidez infinita se torna o cantor do massacre: louva primeiro as aventuras coloniais em Canzoni d’Oltremare, depois empurra a Itália para a guerra com o discurso de Quarto; o esteta decadente se transforma em Vate, um poeta sacro, profeta da glória nacional.

12) Não contente, ao eclodir da Primeira Guerra Mundial, na marca dos 50 anos, idade em que os homens do seu tempo entram na velhice, D’Annunzio, o colecionador de lacas e esmaltes, decide se tornar o maior soldado da Itália. E consegue. Após obter a autorização para se alistar como oficial de ligação nos lanceiros de Novara e conseguir um brevê de voo, participa de incursões aéreas sobre Trieste, Trento e Parenzo, e do ataque ao monte San Michele, no front do Planalto Cársico. Ferido durante uma aterrissagem de emergência, perde o olho direito. Usa a convalescência na composição de Notturno, uma de suas obras mais misteriosas e inspiradas. De volta ao front, contra todas as recomendações médicas, na décima batalha do Isonzo concebe o ataque arriscado ao Ponto 28, para além do curso do rio Timavo. É ali que morre Giovanni Randaccio. Como se quisesse vingar o amigo, o poeta prepara uma série de sensacionais aventuras bélicas: ataca o porto de Cátaro, sobrevoa Viena com sua esquadrilha e faz com que do céu chovam manifestos de propaganda que convidam a capital do inimigo à rendição, e fura o bloqueio naval austríaco na baía de Bakar, a bordo de pequenas embarcações de assalto, com uma incursão zombeteira que levanta novamente o moral das tropas italianas após a derrota de Caporetto. Seu nome conquista o direito de estar inscrito na lista dos campeões e dos heróis.

13) Gabriele D’Annunzio, Roma, 6 de maio de 1919:
“Esta, romanos, esta, italianos, esta, companheiros, é a bandeira desta hora. A imagem sublime do soldado de infantaria que apoiou nela a cabeça e deixou sua efígie. E é a imagem de todos os mortos; para todos os que morreram pela pátria e na pátria se assemelham [...]. Agora, ouçam. Façam o mais absoluto silêncio [...]. Mais uma vez, está suspensa no desconhecido a alma da nação, que, na dureza da solidão, havia reencontrado toda a sua disciplina e toda a sua força. Esperamos em silêncio, mas em pé [...]. Eu, para que a expectativa seja fundamentada e o recolhimento seja vigilante e o juramento seja fiel, fixo na arca de Aquileia, quero tarjar de luto minha bandeira até que Fiume seja nossa, até que a Dalmácia seja nossa. Todo bom cidadão, em silêncio, tarje de luto a própria bandeira, até que Fiume seja nossa, até que a Dalmácia seja nossa.” 14) Benito Mussolini, Cesare Rossi – Fim de junho de 1919 Para o problema político, nós queremos: política externa não submissa, reforma da legislação eleitoral, abolição do Senado.

Para o problema social, nós queremos: jornada de trabalho de oito horas, salários mínimos, representações sindicais nos conselhos de administração, gestão operária das indústrias, seguro por invalidez e aposentadoria, distribuição aos camponeses das terras incultas, a reforma eficiente da burocracia, escola laica financiada pelo Estado.

Para o problema financeiro, nós queremos: imposto extraordinário sobre o capital com caráter progressivo, expropriação parcial de todas as riquezas, confisco de 85% dos lucros da guerra, confisco de todos os bens das congregações religiosas.

Para o problema militar, nós queremos: a nação armada.

O programa dos Fasci di Combattimento foi publicado no Il Popolo d’Italia de 6 de junho, quase três meses depois da reunião na Piazza San Sepolcro, após mil discussões e ajustes. Foi alardeado em página inteira, em seis colunas, com manchetes em letras garrafais. Com exceção da revolução, é quase o mesmo programa dos socialistas revolucionários, mais à esquerda do que os reformistas. Um programa concebido por dissidentes do socialismo para atrair ex-companheiros.

15) Cesare Rossi tem razão no diagnóstico: os Fasci di Combattimento não têm noção do futuro, não sabem onde desaguar. Mas Cesarino erra o prognóstico: esse deficit será sua salvação, e não sua condenação. É preciso encarar a realidade de um modo generalizante. No fundo, cada vida valia uma outra vida, cada sangue, um outro sangue. Os fascistas não querem reescrever o livro da realidade, querem apenas seu lugar no mundo. E o terão. Trata-se apenas de fomentar os ódios de facção, exasperar os ressentimentos. Nada, então, será impedido. Não há mais esquerda nem direita. Basta alimentar certos estados de espírito que afloram neste crepúsculo da guerra. Nada mais. Só isso.

16) Por isso, eles podem, e devem, se dar o luxo de ser reacionários e revolucionários de acordo com as circunstâncias. Eles não prometem nada, e cumprirão a promessa.

17) Em 17 de julho, a primeira reunião dos Fasci di Combattimento da Itália central e setentrional, realizada em Milão, deliberou a mais firme oposição à “grevíssima”. Estavam representadas uma dúzia de cidades, no máximo, diante de poucas centenas de inscritos. Mesmo assim, pela primeira vez, os fascistas decidiram pela linha dura contra os agitadores “vermelhos”, “a raça bastarda que desonra a Itália”, tomando como modelo a Rússia de Lênin, e não a própria pátria vitoriosa contra os austríacos.

18) O governador da província lhe comunicou uma novidade explosiva: uma circular sigilosa do governo prevê e estimula pela primeira vez a colaboração dos fascistas no trabalho de repressão, inclusive violenta, das tentativas de revolução, desde que aceitem ser dirigidos pelas autoridades. O Estado liberal, em suma, para frear o avanço dos “vermelhos”, se coloca ao lado dos fascistas, e esses, pela primeira vez, vão se opor a uma greve das massas populares.

19) Gabriele D’Annunzio – 11 de setembro de 1919
[Descreve a tomada de Fiume por D’Annunzio e seu exército de granadeiros à revelia do governo, do exército, de todo mundo:]
O poeta, então, é arrebatado por uma lembrança. Por um longuíssimo instante, o ancião encarquilhado e cego volta, como um estudante, para as carteiras da escola: abre o capote que cobre seu corpo febril e repete o gesto com o qual Napoleão, desembarcado na França após a fuga de Elba, nos arredores do lago de Laffrey, ofereceu o peito ao general francês, seu ex-ordenança, enviado para detê-lo. O mímico bate nervosamente no peito com o gesto napoleônico que esperou toda a vida para usar.

“Vamos, dispare sobre estas medalhas”, intima ao general que viera detê-lo.

Encantado pela fitinha azul da medalha de ouro sobre o peito de D’Annunzio, seduzido ele também por aquele sentimento audacioso da vida e do mundo no qual fogo guerreiro e rebelde se tornam uma só coisa, o homem de armas e o homem em revolta, o general Pittaluga retruca citando o pai e o avô, ambos garibaldinos. Naquele instante, na fronteira entre duas nações e duas épocas, no cruzamento das ressonâncias, a história se reduz a uma figura retórica, a metáfora remete a outra metáfora, o poder dos símbolos se transfere através dos séculos, tudo se confunde, o carro blindado acelera, a cancela da fronteira se estilhaça.

Fiume, com seus navios ancorados no porto, com os montes ao fundo, surge para D’Annunzio como uma “noiva vestida de branco”. Na curva da estrada, uma centelha de desejo faz brilhar a pupila do único olho que lhe restou: o poeta tem aos seus pés uma cidade a ser conquistada. O literato conhece, finalmente, a luxúria que assedia o condottiero prestes a liberar para o saque suas tropas mercenárias. Na sua idade — dirá Nitti —, para o poeta-soldado, a Itália é apenas mais uma das muitas mulheres com quem se deitou.

As tropas de D’Annunzio entram em Fiume pouco depois das 11h. A população as recebe extasiada. As mulheres de Fiume, em suas melhores roupas, se oferecem aos libertadores. Dos edifícios, chovem folhas de louro.

D’Annunzio, ao chegar no Hotel Europa, segue direto para a cama. Foi guiado por uma estrela da sorte. É ele a própria estrela. Nunca teve outra. São 11h45. Nem mesmo um disparo foi feito.

20) No entanto, de modo inesperado, os integrantes do conselho aceitaram confiar a administração de uma cidade disputada por três nações, no centro de uma controvérsia diplomática de alcance mundial, a Gabriele D’Annunzio, um homem famoso pela incapacidade de administrar até suas finanças pessoais, um famoso e orgulhoso esbanjador, perseguido pelos credores de toda a Europa por ter dilapidado uma enorme fortuna, a sua e a de outros, com gastos insensatos com futilidades como pedras preciosas, esmaltes, lacas e decorações suntuosas de mansões.

21) O esteta fica de lado. Entra em cena o legislador. Daqui em diante, é ele quem seguirá em frente. Sua primeira providência será o fechamento temporário dos bordéis para impedir as brigas entre os legionários de Fiume e os soldados franceses. Para D’Annunzio, que é um amante insaciável, é uma renúncia enorme. O comandante, todavia, está disposto a dar o exemplo. Priva-se daqueles luxos que por toda a vida julgou irrenunciáveis. Manda cobrir seu quarto de bandeiras no lugar das inevitáveis tapeçarias. Permite a si mesmo apenas um maço de flores em um vaso de cristal e um punhado de bombons em uma copa de prata maciça.

22) Em um circuito mais amplo, a aventura de Fiume ganhou a inimizade de Wilson, o presidente dos Estados Unidos da América, a nova grande potência planetária, os únicos autênticos vencedores da Primeira Guerra Mundial. Wilson considera Fiume o capricho de um rapazola que põe em risco a constituição da Liga das Nações, a grandiosa instituição jurídica, diplomática e humanística que, a seu ver, deverá dar ao mundo um século de justiça e paz.

23) D’Annunzio, nesse meio-tempo, oscila entre êxtases sublimes e furores apocalípticos.

24) Mussolini também hesita. No fim de setembro, após voltar do passeio a Veneza, parecia ter se comprometido com o fanatismo. Escreveu sobre uma “revolução em marcha” que, iniciada em Fiume, poderia se concluir em Roma. Aconselhou o Parlamento para que votasse a anexação [de Fiume]. Ameaçou-o, por sua vez: “Ou a anexação em curtíssimo prazo ou a guerra civil entre a Itália dos combatentes e a dos parasitas.”

25) Wilson tem razão: Fiume é um delírio. O automóvel em que Mussolini entra pela primeira vez na cidade em 7 de outubro se desloca devagar entre manifestações populares entusiasmadas. É terça-feira, mas parece domingo, é outono, mas parece o auge do verão, já é noite, mas parece meio-dia. Toda a cidade parece estar em pleno orgasmo. O clima humano é de orgia a céu aberto. A libido desenfreada do sedutor a invade. Soldados, marinheiros, mulheres, cidadãos agitam-se, entrelaçados de várias maneiras, ao ritmo de fanfarras militares. Em cada esquina, grupos de Arditi juram comovidos sobre punhais desembainhados, as moças desfilam com guirlandas como estátuas votivas ou então com um corte de cabelo masculino e trajando fardas emprestadas, os muros estão cobertos de inscrições que declaram: “pouco me importa!” Até os trajes marciais estão dissipados.

Tudo é bizarro, incomum, excitante. Mas há algo de sinistro nesta festa. A juventude do século, depois de ter escapado por quatro anos da morte nas trincheiras de toda a Europa, em vez de voltar à economia, à família, à religião, aos antepassados, às virtudes, aos dias, parece ter deslizado para Fiume, arrebatada por uma esbórnia, para pôr fim àquela vida estúpida e inútil.

26) É a mesma água que Mussolini jogara sobre o fogo do Comandante por carta em 25 de setembro: marchar sobre Trieste, declarar derrubada a monarquia, nomear um diretório de governo com D’Annunzio presidente, preparar uma Constituinte, declarar a anexação de Fiume, mandar tropas fiéis para desembarcar na Romanha a fim de suscitar um levante republicano.

27) Agora estava decidido. Se os socialistas o odiavam, se os companheiros da esquerda intervencionista não o queriam na chapa, se os partidos tradicionais de governo eram “velharia” a ser despachada, os fascistas se candidatariam sozinhos. Respaldados por combatentes e Arditi. Mais ninguém. Ele se apresentaria como principal candidato da lista eleitoral.

Margherita Sarfatti [a aristocrática amante de M] riria dele. “Mas como? Até ontem você dizia que nunca se candidataria à palhaçada dessas eleições!?” Sim, claro, ontem... Mas amanhã é outro dia.

28) Em contrapartida, em pouco mais de um mês Fiume já se tornou um mundo entre mundos, o porto franco da rebeldia de todas as facções políticas: nacionalistas e internacionalistas, monárquicos e republicanos, conservadores e sindicalistas, clericalistas e anarquistas, imperialistas e comunistas. As vanguardas políticas, sociais e artísticas de toda a Europa estão indo ao encontro da feira das maravilhas: sonhadores, libertários, idealistas, revolucionários, anticonformistas, aventureiros, uma multidão de heróis e desajustados, talentos inquietos e excêntricos, homens de ação e ascetas, desesperados sem nada a perder e milionários em busca de emoções, jovens violentos e escritores parisienses em voga, artistas vegetarianos e padres reformados, amazonas em uniformes militares e militares enfeitados como bailarinas, sedutores em busca de conquistas femininas e pederastas em busca de conquistas masculinas. A mistura é entusiasmante, o bacanal, orgíaco, a licenciosidade, normal, o arrebatamento, absoluto, o espetáculo, contínuo, a festa, ininterrupta. O individualismo, a pirataria, a excentricidade, a transgressão, as drogas, a liberdade sexual, o cosmopolitismo, o feminismo, a homossexualidade, o anarquismo colocam Fiume fora do mundo e, ao mesmo tempo, acima dele. Um só mundo não basta. Nos corredores dos palácios romanos do poder, os politiqueiros recorrem às intrigas de sempre, tramam estratagemas, temporizam, propõem soluções de meio-termo. Aquele é o submundo. Fiume, na visão de Gabriele D’Annunzio, é o supermundo. Por ali, não se passa.

29) Entre os 19 candidatos [à eleição de 2019 depois da dissolução do parlamento], 18 estiveram no front, dos quais 7 eram voluntários, 5 receberam medalhas de prata, 8 foram feridos e 2, mutilados. Os nomes de destaque, além do principal candidato da chapa, são o de Filippo Tommaso Marinetti, o do anticlericalista Podrecca, o do sindicalista Lanzillo, o do industrial De Magistris. Também figura na lista Arturo Toscanini, celebérrimo maestro e sócio diligente do Fascio di Combattimento milanês. O maestro soube que seria candidato durante uma assembleia na quadra de uma escola. Estava distante, apoiado em um cavalete. Marinetti o convenceu a aceitar. Toscanini também financiou a lista com 30 mil liras.

30) Mussolini começa como um filósofo: “A vida nas sociedades modernas é de uma complexidade formidável.” Suas várias necessidades inadiáveis exigem habilidades técnicas, homens livres e audaciosos. Exigem “a derrocada do passado”. É preciso eliminar por completo aquela burguesia inerte e parasitária que ostenta uma riqueza mal adquirida e uma dupla imbecilidade impotente. Ele não é contra o proletariado. É uma calúnia. Ele sempre lutou pelas oito horas dos metalúrgicos. Ele é contra as tiranias, inclusive aquela proletária. Só isso. E também é falso que eles sejam violentos. Se atacados, reagem, mas os fascistas não são bebedores de sangue. Ele, pessoalmente, é contra a violência. E também não dá a mínima para o fato de ser ou não eleito, não faz questão da medalhinha.

31) Com a mão esquerda, Netuno aplaca as tempestades, mas na direita segura o tridente. Uma extremidade tricúspide capaz de eviscerar um cetáceo de sete toneladas.

32) “Obtivemos poucos votos, é verdade, mas, em compensação, disparamos muitos tiros de revólver.” Ou algo do gênero. Ri com escárnio até mesmo da piada que já circula por Milão: “Com um maestro como Toscanini na chapa, a sonata só podia ser excepcional.”

A verdade é que a derrota foi mortal para os fascistas, e a humilhação pessoal para ele, que já se imaginava “o deputado de Milão”, foi constrangedora. As eleições de 16 de novembro foram “vermelhas”. Os socialistas receberam 1.834.792 votos, correspondentes a 156 parlamentares eleitos. Um resultado triunfal, um presságio de revolução. O fracasso da chapa fascista foi, inversamente, total: de cerca de 270 mil votantes do colégio eleitoral de Milão, os fascistas obtiveram apenas 4.657 votos. Mussolini obteve apenas 2.427 votos preferenciais. Nenhum dos candidatos fascistas foi eleito. Nenhum. Nem sequer ele. Foi um fiasco completo.

Confessou apenas à mulher, mentindo a todos os outros: “Uma derrota total. Não obtivemos sequer uma cadeira. Na Galleria, as pessoas avançaram contra nós.” Foi obrigado a ligar para Rachele e tranquilizá-la quando informaram que a galhofa do cortejo fúnebre encenado pelos socialistas havia ficado de tocaia até mesmo embaixo da casa deles em Foro Bonaparte. “Aqui está o cadáver de Mussolini!”, gritavam as pessoas e batiam contra o portão. Atrás do seu caixão, outros dois caixões vazios acolhiam fantasiosamente os cadáveres de Marinetti e D’Annunzio. Rachele, por sua vez, confessou ao marido que havia se refugiado no sótão com as crianças. Parece que a pequena Edda foi acometida por uma crise de nervos.

Os visitantes, como se fosse um funeral, continuam a afluir à sede do jornal. É inútil tentar manter a porta fechada. Quando na rua estão tentando enterrar até sua sombra, as pessoas vêm procurá-lo.

Para se mostrar inalterado, ele mandou lhe trazerem um copo de leite.

33) Benito Mussolini para por alguns segundos, dando tempo ao redator para ser invadido pela perplexidade. Mexe de novo o leite, recomeça: “Deram-me por morto, mas por isso mesmo eles sabem que, se subirem, dou cabo de pelo menos uns dois com esta pistola. E, se você não sabe, em Milão não existem entre os afiliados do Partido Socialista dois heróis sequer que saibam enfrentar o perigo. Um bando de tolos. São um bando de tolos. Por isso... eu bebo leite.”

34) Corriere della Sera, 18 de novembro de 1919.
Um cortejo socialista havia parado na Via S. Damiano, embaixo das janelas do Avanti!, para aclamar um discurso de Serrati celebrando o socialismo. O cortejo estava se recompondo e voltando a se deslocar quando, segundo o primeiro relato, um desconhecido, na altura da ponte de ferro-gusa, lançou na direção da frente do cortejo um objeto que, ao tocar o solo, explodiu; os estilhaços, da distância de 20 ou 30 metros, atingiram os primeiros manifestantes. Em meio ao pânico que se seguiu, ergueram-se dos feridos gritos de dor e, enquanto alguns companheiros prestavam socorros, outros tentavam seguir o desconhecido, que logo desapareceu na escuridão.

35) Os agentes de segurança pública encontram, escondidos em um aquecedor, 13 revólveres novos de vários calibres, 419 cartuchos, e um lança-foguetes usado recentemente. Umberto Pasella, Enzo Ferrari, Filippo Tommaso Marinetti são presos.

Albertini, senador do Reino, grande burguês, proprietário e diretor do Corriere della Sera, convencido de que o destino do fascismo está marcado pelo desastre eleitoral, para convencer o presidente do Conselho a liberar Mussolini, usou um argumento típico do pensamento liberal do qual ele é um dos principais expoentes italianos: “Mussolini é uma ruína, não façamos dele um mártir.”

36) [Na posse dos novos parlamentares:] Nicola Bombacci, os cabelos desalinhados e a barba por fazer, marcha à frente dos dissidentes. Enquanto passa diante do trono, encara o soberano e grita: “Viva a república socialista!” Seu sucesso pessoal na circunscrição de Bolonha foi enorme. Alguns jornais o definem como “o rei das preferências”. Só com ele, sem contar todos os outros parlamentares socialistas, saem de Montecitório mais de 100 mil italianos. O rei se vê pronunciando o discurso da Coroa em um plenário quase vazio.

A cena é memorável; seu efeito teatral, fortíssimo. Os deputados dissidentes, lá fora, na Piazza di Montecitorio, regozijam, se congratulam e se abraçam. Suas risadas são genuínas, despreocupadas. O sonho de uma vida livre e justa se realiza. No morno sol de inverno de uma praça romana, neste momento, são os representantes de um povo que voltou a ser criança. A alegria dura alguns instantes. Pouco depois, deputados e senadores percebem com perplexidade que não têm nenhum projeto para o resto do dia. Os socialistas conquistaram a Itália, mas não sabem o que fazer com ela.

Uma vez que aqueles homens não sabem o que fazer, são espancados. Bandos de nacionalistas começam a espancá-los já no início da tarde. São perseguidos pelas ruas de Roma, agarrados pelas gravatas pretas de republicanos e obrigados a gritar “viva o rei!”. No início da noite, a pancadaria continua com a estreia dos guardas régios, o novo corpo de polícia recém-constituído para manter a ordem pública. Giacinto Menotti Serrati, líder do partido, é levado à força para a chefatura de polícia e coberto de socos.

Do lado socialista, como sempre, é proclamada a greve geral. A primeira vítima é registrada no dia seguinte na Piazza Esedra. Trata-se de Tiberio Zampa, operário da tipografia do Avanti!, com 23 anos.

As fábricas param novamente. Milão dorme mais uma vez com as armas aos pés, à espera da revolução.

37) Benito Mussolini, por enquanto, está ali de mãos vazias, mas ele foi o primeiro a entender que podia explorar o rancor no contexto da luta política, o primeiro a assumir a dianteira de um exército de insatisfeitos, rebaixados e fracassados que passam seus dias lustrando os próprios punhais enquanto ele alterna entre a redação e a rua, esperando que algo exploda. E que ele possa aproveitar a onda de choque ou então escrever a respeito no jornal. Tasca nota em Mussolini o pescoço grosso que se ergue sobre um tronco grandioso, o rosto empertigado e cheio, o porte arrogante, o cigarro recém-aceso que pende, em todo o seu comprimento, bem do meio dos lábios carnudos, como um falo exibido e despudorado. Mussolini tem a exuberância selvagem do homem do povo repaginado.


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