domingo, 23 de fevereiro de 2020

Fragmentos 19

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Matt Ridley — The Evolution of Everything (How New Ideas Emerge)

Um livro difícil de resumir em poucas palavras. Ridley começa com a evolução de nosso entendimento do Universo, depois passa para a Moralidade, a evolução da Vida, dos Genes, Cultura, Economia, Tecnologia, Mente, Personalidade, Educação, População, Liderança, Governança, Religião, Moeda e Internet.

A corrente inglesa de pensamento, apoiada no darwinismo, tem produzido excelentes trabalhos intelectuais que estão irrigando boa parte do pensamento mundial.

Para Ridley o gradualismo não é apenas a expressão da evolução da natureza nos processos biológicos, mas o modo como o conhecimento avança, a sociedade se diferencia, e nossa vida se transforma.

Em A Evolução do Universo cita (p8) diversas formulações de pensadores que compartilham a ideia de um arranjo de cima (divino) no Universo. E também seus contestadores, como Epicuro que ensinava: tudo o que existe emerge por fenômenos espontâneos, não requerendo nenhuma intervenção divina, nenhum monarca benigno, nem um estado tutelar para explicá-los.

Por sua vez, Ridley declara ter encontrado em Lucrécio a fonte referencial de um modo de explicar a natureza (De Rerum Natura) que foi perdido com o cristianismo e que só a modernidade resgatou. Lucrécio repete os mesmos argumentos de Epicuro 300 anos depois.

Greenblatt - The Swerve [A guinada]

A guinada é uma das referências que Ridley usa para mostrar contradição no espírito dos autores com foco na evolução quando envolvidos na trama ilimitada dos efeitos do criacionismo no desenvolvimento de ideias.

Com Newton e seguidores, como Voltaire, Diderot, Copérnico, Galileu, Spinoza, Locke e Montesquieu, juntamente com Darwin e Wallace, a noção de design inteligente imposta de alto a baixo, começou a ruir. As explicações naturais substituíram as sobrenaturais. O mundo emergente finalmente emergiu.

Ridley discute o darwinismo e a resistência ao evolucionismo enraizada nos EUA como “teologia natural”, depois “ciência da criação” e por último “design inteligente”. Em A Evolução dos Genes afirma que sempre que as pessoas ficam confusas com uma explicação sobre a vida, elas tendem a se apoiar em explicações místicas.

Em A Evolução da Economia considera que o evolucionismo de Adam Smith faz parte da tradição inglesa. Porém, assim como a economia dirigida, o design inteligente faz parte da direita naftalina porque as políticas de planejamento estão enraizadas na alma nacional e, por isso, o mercado deve atuar em harmonia com um órgão de planejamento centralizador.

“Quando se trata de economia, frequentemente as pessoas ficam dominadas pelo criacionismo. Don Boudreaux, acha que a maior parte das pessoas são teístas seculares que acreditam que a ordem social é o resultado de algum poder superior que projeta, orienta, impõe e guia intencionalmente a ordem que vemos ao redor”. Elas acham que a ordem econômica e social que experimentamos é o resultado do governo que desapareceria ou entraria em colapso caso o governo desaparecesse ou falhasse em efetuar suas obrigações.

Muitas pessoas contestam a realidade do mercado dizendo que ele não existira se não houvesse o governo por trás, providenciando estradas, semáforos, etc. Estas pessoas confundem o governo como um ente sábio e onipresente, com seu papel democrático de exercer ações que o mercado dirige e não o governo. Portanto, é o governo que é dirigido pela economia e não o órgão que a dirige. Ele deve representar o interesse coletivo obtido em um serviço que envolve muitas propriedades e proprietários que necessitam de uma mediação, tanto em segurança e justiça, como em infraestrutura (em parte) e saúde e educação.

A história do desenvolvimento econômico (pelo comércio internacional) é um processo bottom-up. A história da falta de desenvolvimento é uma história top-down. Ver toda a pg 220 em que fala do enriquecimento de industrialistas em governos populistas e da manutenção da pobreza. Fala também da pilhagem do estado sobre a sociedade, um tema que venho desenvolvendo há tempo.

A teoria do Grande Homem, do grande dirigente, seja político ou empresarial é abordada na pg 222.

Interessante notar que Ridley usa o termo criacionismo para referi-se à ideia imaginária de que o governo, se imiscuindo na sociedade, segue esta lógica. Assim, os controles, regulamentações e protecionismo são ideias criacionistas (pg 254). Esta ideia nunca apareceu na crítica brasileira, provavelmente porque Ridley vive em uma monarquia.

Resumindo, a experiência humana em qualquer área, por exemplo, no comércio local, regional, nacional e internacional avança gradualmente em processos de baixo para cima (bottom-up), e a partir de Adam Smith passam a ser estudadas com especial atenção sobre a iniciativa individual; enquanto as construções estatistas, protecionistas, socialistas, são construídas como processos verticais de cima para baixo (top-down).

Neste sentido, o conhecimento humano também é um processo bottom-up, portanto evolutivo, ao contrário dos processos verticais, que são considerados criacionistas. O imaginário dos povos determina a prevalência do modelo político e de estado na sociedade, e este imaginário faz parte do processo histórico, e não está condicionado a apenas uma ideologia, porém presente em sua maioria.

Os processos verticais são usados para explicar a história, a cultura e os interesses coletivos, criando versões curiosas sobre a ação humana. No Brasil temos o verticalismo nas correntes socialistas de esquerda e na sua rejeição, especialmente na filosofia do olavismo, que atribui a conspiração como fator central na conduta humana e não a bagagem cultural da sociedade. O conspiracionismo adquire uma deformidade ao tentar explicar ações humanas fora do contexto de um evento, porém como mecanismo mental de ação ideológica.

A conspiração existe, mas está marcada pelo evento. A Intentona Comunista foi uma conspiração, mas o marxismo não pode ser considerado como tal, porque sua filosofia não é uma conspiração já que não tem data para eclodir.

Olavo e seus seguidores acreditam que o maior erro do regime militar foi ter permitido que a Universidade fosse tomada pela esquerda, que invadiu as redações dos jornais e por fim, se apoderou da cultura.

Trata-se de uma visão criacionista do mundo que informa a construção de suas ideias. Ele não pode admitir que as bases culturais de nossa sociedade impliquem em que a simples criação de uma estatal (com Geisel foram 240) é o melhor patrocínio do socialismo do que qualquer ação política imaginada. Negando a relação estatais-socialismo, ele precisa uma explicação ideológica e, para isso, criou o gramscismo, uma teoria em que a conspiração marxista trata de se apoderar do poder gradualmente por infiltração e influência.

Este equívoco se tornou popular porque a mentalidade brasileira foi formada na visão top-down da sociedade. Embora seja evidente de que em se criando uma estatal brasileira e escolhendo os elementos entre os mais antissocialistas encontráveis no mercado, ela um ano depois já estará socializada. A cultura brasileira rejeita esta evidência apenas porque acredita no indivíduo como um ser que age segundo a razão com que foi doutrinado, e não como uma experiência em que o contexto social forma as ideias. Uma visita ao BNDES confirmaria minha opinião.

The Evolution of Everything é um livro para ser relido a cada 5 anos.


Vélez Rodriguez — O Liberalismo Francês

Apresenta a influência das ideias liberais surgidas na França com a revolução na formação do Império e depois, da República. Inicia com madame Stäel, a brilhante filha de Necker, ministro de finanças de Luís XVI, crítica do despotismo, que situa a presença de Napoleão na política francesa com as seguintes palavras: “Ele permite, depois de ter proibido; ele proíbe, depois de ter permitido”. E esta pérola para o entendimento do olavismo pós-petismo: “a revolução tinha feito tábula rasa em face de Bonaparte e ele só tinha raciocínios para combater, espécie de arma com a qual ele se sentia muito à vontade e a qual opunha, quando lhe convinha, uma espécie de imbróglio veemente, que parecia muito lúcido com o auxílio das baionetas, nas quais ele poderia se apoiar.” As finas observações de Madame Stäel sobre o destino da França pós-revolucionária, sua acuracidade e lucidez foi o ponto de partida de sua análise de influências no panorama nacional, então embevecido com a cultura francesa.

Depois passa para o estudo da influência de Benjamin Constant, o homem que haveria de influenciar fortemente o ministro português Silvestre Pinheiro Ferreira, que viveu no Brasil ao tempo das invasões napoleônicas junto com Dom João.

A seguir Guizot, o grande gênio da organização política do período da restauração dos Bourbons, de cuja influência foi enorme no reinado de Dom Pedro II através de seu principal divulgador no Brasil, o visconde de Uruguai, Paulino Soares de Souza. Vale destacar que Vélez, seguindo a tradição de seu mestre Antonio Paim, penetrou naquilo que representa a falha mais gritante de tantos quanto se aventuraram a descrever o Brasil pela ótica da teoria da conspiração: o estudo do culturalismo sociológico iniciado por Tobias Barreto e elaborado por Sylvio Romeiro, que irrigou as correntes do pensamento brasileiro do início do século XX, especialmente Oliveira Viana.

Sobre Tocqueville, transcreve esta observação extraordinariamente adequada ao Brasil, quando o escritor francês, opondo-se ao golpe de Luis Napoleão em 2/12/1851, foi preso e conduzido a Vincennes: “O que acaba de acontecer em Paris é abominável, no fundo e na forma, e quando se conheçam os detalhes, parecerão ainda mais cruéis que todo o acontecimento. Quanto a este, já se encontrava em germe desde a revolução de fevereiro, como o pintinho no ovo; para fazê-lo sair, não faltava mais do que o tempo necessário de incubação. A partir do momento em que se viu aparecer o socialismo, devia ter-se previsto o reino dos militares. Um geraria o outro. Eu esperava isso há algum tempo e, embora sinta muita pena e dor pelo nosso país, e uma grande indignação contra certas violências ou baixarias, que vão além do aceitável, estou pouco surpreendido ou perturbado interiormente... Neste momento, a nação está com medo louco dos socialistas e deseja ardentemente voltar a encontrar o bem-estar; é incapaz, digo-o com pena, e indigna de ser livre... É necessário que a nação, que tem esquecido desde há 34 anos o que é o despotismo burocrático e militar... o prove de novo e, desta vez, sem o ornato da grandeza e da glória”.

Ao sintetizar sua análise comparativa de Tocqueville e Aron, Vélez conclui: “E ambos professam, no meio do fluir do rio da democracia, a sua fé inabalável na liberdade e na dignidade humanas. Oportuna lição para estes tempos de angústia e perplexidade, em face do novo inimigo que a todos ameaça, o terrorismo globalizado, diante do qual não poucos capitulam nas várias opções do irracionalismo pós-moderno, que se travestem de fanatismo religioso, de ressentimento terceiro-mundista, de fundamentalismo político ou de mimetismo politicamente correto.”

“O principal risco que Tocqueville enxerga para as sociedades modernas é o fato de a consolidação da democracia enveredar pelo caminho do despotismo. Esta opção apresenta- se como algo de democrático, saído do voto popular. Os tutelados podem muito bem abrir mão da sua liberdade, alegando que elegeram, à la Rousseau, o seu tutor. Ora, é necessário denunciar com claridade esse risco. Eis as palavras de Tocqueville a respeito: "(Os cidadãos) imaginam um poder único, tutelar, todo-poderoso, mas eleito por eles mesmos. Eles confundem centralização e soberania popular. Isso lhes traz uma certa tranquilidade. Consolam-se de estar sob tutela, imaginando que eles próprios escolheram os seus tutores. Cada indivíduo tolera ser acorrentado, porque percebe que não é nem um homem nem uma classe, mas o próprio povo que segura a extremidade da corrente" [Tocqueville, 1992: 838].

O despotismo, frisa Tocqueville, não aparece nas grandes declarações constitucionais, mas disfarça-se nas medidas administrativas do dia-a-dia. Por isso é fundamental, para a preservação da democracia, desmontar esse tipo de atentado miúdo à liberdade, impedindo que os administradores tomem conta da vida privada dos cidadãos. O caminho básico para se defender a sociedade desse vício do despotismo administrativo, é reforçar a soberania popular. ”

Este último parágrafo serve de epitáfio ao meu trabalho no Facebook.


Fernando Savater — O Valor de Educar

Conheci Savater ainda nos anos 70, quando, de passagem por Barcelona fiz a assinatura (por engano) da revista El Viejo Topo por um ano. Aquele ambiente anarquista pós-Franco fervilhava de socialismo em todos os órgãos de imprensa, exceto o ABC, pois a revista proclamava consultar todas as correntes de opinião. Nunca esqueci a entrevista com um dirigente de um partido marxista, afirmando peremptoriamente, “a infalibilidade da direção do partido comunista m-l espanhol”. Foi uma prova testemunhal da associação do marxismo com a religião, um tema que só viria a entender completamente 25 anos depois com a leitura de O Ópio dos Intelectuais.

No livro de Savater, que encontrei em um passeio no Shopping Cidade de São Paulo em fevereiro de 19, redescubro a confirmação de minha tese da questão ibérica como geradora dos mesmos valores e, consequentemente, dos mesmos problemas sociais. As questões levantadas por Savater chamam a atenção pela forma como ele coloca, especialmente quando discorre sobre o aprendizado humano, os conteúdos do ensino, a crise da família e suas consequências sobre a educação e, de forma interessante, o argumento de que a liberdade é inseparável da disciplina, e que aquela não se atinge sem o exercício desta.

Como filósofo, ele reserva uma importância exagerada sobre a questão do ensino de humanidades, uma vez que acredita que somente uma educação universal pode preparar o homem nos tempos em que vivemos.

Como o livro não trata de discussão pedagógica, porém de discorrer sobre o valor social da educação, ele não aborda a questão ibérica que nos afoga impenitente: o excessivo número de cursos de formação “humanística” frente as exigências de uma sociedade tecnológica. Acreditar que é mais importante o platonismo que a álgebra booleana faz parte do erro com que os filósofos continuam incorrendo mesmo depois de terem sido derrotados pelos tempos. O Brasil estaria muito melhor se trocasse 90% de seus advogados por agrônomos, os sociólogos por engenheiros, os letrados por químicos, os antropólogos por físicos e os filósofos por matemáticos. As ciências humanas, no bojo da explosão tecnológicas, transformaram-se em uma busca desenfreada de pessoas em busca de um título para se formarem na profissão dos inadaptados, que terminam alimentando a pressão social por mais estado. Uma pequena elite de humanistas seria suficiente.


Tavares Bastos (1839 — 1875) — Cartas do Solitário

“A meu ver, os erros administrativos e econômicos que afligem o império, não são exclusivamente filhos de tal ou tal indivíduo que há subido ao poder, de tal ou tal partido que há governado: não; constituem um sistema seguido, compacto, invariável. Dele procedem todos de um princípio político afetado de rachitis [raquitismo], de uma ideia geradora e fundamental: a onipotência do Estado, e no Estado a máquina central, e nesta máquina certas e determinadas rodas que imprimem movimento ao grande todo.”

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“Apesar de recomendações e avisos recentes do governo, o juiz de direito, v. g., não resolve por si uma espécie qualquer que se lhe ofereça sob o aspecto de certa gravidade ou novidade. Consulta ao presidente, o presidente ao ministro, o ministro a secretaria, e da secretaria aos consultores, e dos consultores ao conselho de estado... O ministro, em regra, conhece de tudo, mas não resolve nada sem ser apoiado em tantas e tantas informações. Como a judiciária, procede a autoridade militar, a eclesiástica, a administrativa. Assim, uma concentração, que não estava nem podia estar no pensamento da lei, torna-se a realidade insuportável dos nossos dias.

A esse receio infantil de cada um pensar e resolver por si mesmo quanto compreende-se nas suas faculdades, ajunta-se outro mal ainda mais grave, que gerou aquele e o tem alimentado talvez.

Apontei a circunstância de ser o ministro árbitro de todas e ainda das menores questões. É um fato das mais graves consequências. Todos aqueles que trataram com a administração devem ter conhecido que nisso está a explicação de muitas demoras, da fraqueza das autoridades inferiores que nada fazem por si, dos embaraços à marcha do serviço e imperfeição de seus resultados. Este sistema deplorável, transmitido das secretarias do governo patriarcal de Lisboa, constitui a enfermidade mais profunda do processo administrativo.

Com efeito, enquanto gasta-se o tempo inutilmente através das informações e das consultas, aumentam-se a necessidade do pessoal nas repartições afim de satisfazer às exigências de um serviço de propósito complicado. Enquanto este sistema enfraquece ou anula a iniciativa dos funcionários e das estações subalternos, fortalece o ministro de forma que exige uma atividade excedente da medida ordinária.”

Tavares Bastos cita a espera de uma companhia de navegação do Parnaíba do Piauí por 2 anos para aprovação de seus estatutos pelo conselho de estado. E casos semelhantes que depois foi combatido sob o entendimento dos males da centralização.

Cita também o caso do envio dos documentos relativos a Mogi das Cruzes quando da separação de Jacareí que levou 2 anos para serem autorizados pelas autoridades em uma escala ascendente. E conclui:
“Se as protelações de que falo dissessem respeito só a negócios sem grande alcance, como os dos avisos supra-ditos, ainda poder- se-iam tolerar. Muito infelizmente, porém, elas afetam a interesses graves, comprimem as fontes do trabalho, exercem uma ação esterilizadora sobre o desenvolvimento moral e material das províncias do império.”

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Há, em primeiro lugar, o regime protetor, regulamentador e preventivo; isto é, a intervenção do estado em todas as esferas da atividade social, desde a indústria até a religião, desde as artes até as ciências .

Há, depois, a absorção dos interesses da circunferência no centro, a acumulação de negócios diversos em um ponto único.

Há, finalmente, no mesmo centro, outros menores que não gozam de vida própria, que dependem inteiramente de um ponto de apoio mais alto.

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Com efeito, nas leis orgânicas dos diversos serviços públicos preside sempre o pensamento despótico, preventivo ou centralizador, de não conceder aos inferiores tanto quanto baste para torná-los independentes do superior — a ideia de desconfiança, a pretensão de parte do governo a uma superintendência absoluta e universal.

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[Sobre governadores de província indicados]: ...perde muito no conceito público o princípio da autoridade: o nomeado não atribui ao merecimento próprio uma escolha lembrada todo o dia pelo seu patrono, que faz assim valer o serviço prestado e a influencia de que goza.

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Não me respondam com estatísticas falsas de interessados. Eu mesmo já assisti em uma vila do interior, a 10 léguas de distância da capital, ao exame de uma menina de escola, e notei admirado que ainda não lia correntemente, não obstante declarar a própria professora que essa discípula contava já seis anos de estudo. As escolas primárias, em verdade, não são confiadas a indivíduos de habilitação. Criam-se desses estabelecimentos para sinecuras de agentes eleitorais ou de suas mulheres. Para isso decretam-se anualmente outros, e cresce a despesa.

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Entre a fisionomia viva e animada de um povo assim constituído, e a face triste e descarnada do nosso povo semi-bárbaro das províncias, que diferença enorme, meu amigo! Nada pode ser mais antipático ao estrangeiro do que o atraso moral de nossa população. Sem os emigrantes da Alemanha e da Grã-Bretanha, nunca o Brasil progredirá; é preciso que o sangue puro das raças do norte venha desenvolver e remoçar a nossa raça degenerada.

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... em regra, o estudo e os conhecimentos não levam ninguém às presidências ou ao ministério. Para chegar, é preciso, na maioria dos casos, não exceder de uma certa mediocridade e possuir qualidades que sejam de proveito para o adiantamento dos homens públicos e não para o bem da sociedade.

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Os homens de espírito forte, porém, contestam, sustentando que foi o abuso ou excesso de religião que matou a religião. Francamente o digo, eu penso como estes últimos. Sim, foram os horrores do Santo Ofício, os absurdos da censura, o ridículo de um culto exterior exagerado, as pretensões clericais e o espetáculo, ainda hoje subsistente, da imoralidade, da intolerância e do feudalismo reinando em Roma, foram essas as causas tristíssimas da reação ímpia que hoje ostenta-se.

Ao contrário, porém, fundou-se sobre a base do interesse pecuniário, uma propaganda, cujo fim é não tornar o povo mais religioso, porém fazer a religião mais rendosa. Essa propaganda, meu amigo, que tem o seu clube na Santa Casa da Misericórdia, as suas filiais em todas essas irmandades e corporações religiosas que aí formigam, e os seus agentes no padre lazarista, na irmã de caridade, nos tesoureiros, proclamadores, administradores, provedores, etc.; essa propaganda de crucifixos e enormes rosários pendentes, de opas, tochas e foguetes, filha legítima do silício, do sambenito e da fogueira; essa propaganda sinistra está iminente sobre nossas cabeças, ameaçando substituir o luzeiro da liberdade pela cegueira do fanatismo, e transformar a sociedade brasileira no vasto convento que já foi Portugal.

[Em toda a página fala do horror da vida religiosa dos conventos e do obscurantismo da alma e encerra assim:]
Levantemo-nos, meu amigo, e apressemo-nos em combater o inimigo invisível e calado que nos persegue nas trevas. Ele se chama o espírito clerical, isto é, o cadáver do passado: e nós somos o espírito liberal, isto é, o obreiro do futuro.

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Eu penso como Lamennais, como Montalembert, como o conde de Cavour, como todos os adeptos do catolicismo, mas não do papismo.

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[Sobre a lei de 1831 que obrigava o governo a devolver os escravos entrados ilegalmente pelo tráfico]. Quando, porém, havia apenas encetado esta vereda franca da justiça, o governo brasileiro mudou de rumo de repente e entranhou-se no dédalo das concessões ao egoísmo, no caminho da imbecilidade.

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A Carta IX trata da questão da escravatura e lembra a denúncia de Muniz de Souza sobre o assunto. O lado curioso, que eu não sabia é que: “O ministro lembrou então às câmaras o alvitre de comprar-se das possessões portuguesas da Costa d'África um terreno para colônia, como a da Liberia, ali fundada junto ao Cabo de Monserrado por associações filantrópicas dos Estados Unidos, autorizada pelo congresso.”

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Carta X, na continuação fala do: “Na ordem dos tempos aparece antes de tudo o Tratado de 10 de fevereiro de 1810. Aí Portugal promete à Inglaterra não estabelecer a inquisição no Brasil e também estipulou-se a gradual abolição de comércio de escravos; e reservou-se aos portugueses o direito de comprá-los só nos domínios africanos de Sua Majestade Fidelíssima.

Interessante o depoimento (pg 116-136) reproduzido do Dr. Cliffe a respeito do modo como eram transportados os escravos da África para o Brasil. Confere com os horrores que se atribui nos textos de história.

Tavares Bastos calcula que 1/3 de emigrantes europeus produza a mesma coisa que o número de escravos importados. E descobre que o número de europeus na década de 1850 é quase 2/3 do número de escravos. E faz uma afirmação curiosa: “Faça-se um paralelo entre o desenvolvimento da província da Bahia, que possuiu relativamente o maior número de negros, e o do Rio Grande do Sul, que contém os maiores núcleos de colonos europeus. Enquanto a agricultura, o comércio e as rendas da primeira definham a olhos vistos, a outra prospera em tudo. No Rio Grande a lavoura aperfeiçoa-se; as indústrias aparecem; o povo contrai os hábitos de trabalho; derrama-se a abundância e tudo vai por diante. Nas colônias do Rio Grande a cultura não se restringe a um produto somente; aproveita-se o terreno de todos os modos.

Cada dia vê-se ali introduzir um melhoramento; há pouco começou com muito sucesso a cultura da vinha e o fabrico do seu precioso licor. Ainda mais: o colono é lavrador e fabricante ao mesmo tempo. Enfim, o Rio Grande do Sul é a província que conta uma navegação interna a vapor mais numerosa.

E enfatiza o que tenho pesquisado, a herança cultural: “O tráfico era uma verdadeira peste; infelizmente ele não desapareceu sem deixar no espírito, nos hábitos e nas tradições do povo muitos sinais de sua passagem!“

“O emigrante é, cedo ou tarde, o pequeno proprietário; e na pequena propriedade está o espírito de conservação e liberdade, que caracteriza os habitantes dos campos em todos os países.”

[Agora um argumento muito importante lançado em livros de história contra a Inglaterra:]

“A ignorância, porém, do que estava passando na Grã-Bretanha , levava a afirmar-se no Brasil que o gabinete de St. James, reprimindo o tráfico, pretendia aniquilar as nossas fábricas de açúcar para proteger os plantadores da Jamaica e de outras possessões, os quais, então justamente, o parlamento inglês expunha à concorrência nossa, de Cuba, de Porto- Rico, e de todas as colônias da Espanha, Holanda e França.· Um exame desinteressado do assunto convenceria do que dizemos. Bastava considerar que era a Inglaterra quem fazia o mais extenso Comércio com o Brasil. Para que pudéssemos consumir os produtos variados das suas ricas manufaturas, sabiam os fabricantes ingleses que era preciso que a nossa agricultura prosperasse, que o Brasil fosse feliz. Seria um absurdo acreditar que, empobrecendo-nos, tirariam maior vantagem do comércio conosco.“

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Carta XII

Costuma-se alegar que o privilégio nacional, ou por outra, o monopólio da navegação costeira, é exigido por um princípio político, o da segurança do estado, que ainda não pude compreender.

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Nestes assuntos, no Brasil, só as repartições públicas possuem informações. Mas elas entesouram-se com avareza e escondem-se, quando existem, dos olhares profanos.

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O último relatório do ministério da justiça noticia a seguinte dúvida de um dos tribunais do comércio: «Se, depois da lei de 10 de setembro de 1860, podem obter cartas de registro e navegar com bandeira brasileira as embarcações possuídas por brasileiras casadas com estrangeiros?» O presidente do tribunal da Bahia pronunciou-se pela negativa, sendo essa também a opinião do tribunal da corte, que a manifestou por edital de 22 de outubro de 1860.

[Este texto, obtido depois da análise de Tavares Bastos das restrições à navegação de cabotagem por navios estrangeiros, e ao embarque e importação de mercadorias nos portos nacionais, me fez lembrar que nossa estupidez se propaga endemicamente na sociedade pela burocracia proibitória do Estado, sempre zelando pelo que é melhor para ele em termos de controle, sabendo, desde sempre, que fere o desenvolvimento do país do qual deveria suspeitar depender para sua opulência além dos estreitos limites das cabeças que o dirigem].

Como todos os monopólios, portanto, o de cabotagem torna-se em resultado uma ESPOLIAÇÃO LEGAL.

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Infelizmente, não é só nesse ramo do serviço público (Ministério da Marinha) que reina a desordem e impera o disparate.

Se a concorrência excita e faz prosperar, o privilégio paralisa e faz morrer.

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[Tavares Bastos repete na carta XX, a análise feita 100 anos depois por Emil Farhat (O País dos Coitadinhos) sobre as tripulações de navios (de acordo com a tonelagem transportada), comparada com os navios ingleses:]

Há, porém, outras razões. Em primeiro lugar, a nossa tripulação é, em regra, muito numerosa, um terço mais do que a inglesa e dois quintos mais do que a americana. Segundo o Sr. Souza Martins, um navio de cabotagem do Rio Grande do Sul, arqueando 200 toneladas brasileiras, leva a bordo um capitão, um contramestre, 8 marinheiros e 4 moços: ao todo 14 pessoas. Os ingleses não empregariam rigorosamente mais de 10 indivíduos. ” O artigo cita dados valiosos para comparar com os de Farhat sobre esta questão. Note-se que da carta XII a XX o assunto preponderante é a cabotagem e o monopólio exercido pela companhia de navegação de paquete.

“Um piloto ganha 55$ por mês nas viagens para Lisboa; mas do Rio para a Bahia percebe 60$”.

“Pessoa respeitável desta corte pagou 5 libras (50$ aproximadamente) pelo frete de um carro que lhe veio de Inglaterra encaixotado no porão do navio. Cedeu-o a um amigo que retirava-se para Pernambuco. Este, forçado a enviar o carro por um vapor da companhia brasileira, pagou 120$ pelo seu transporte.”

TB cita o Dr. Almeida: «Os empresários de uma fábrica de tecidos de algodão estabelecida nesta cidade verificaram que lhes fazia mais em conta mandar vir de Inglaterra por torna-viagem a matéria prima de sua indústria, do que importá-la diretamente das províncias que a produzem. Um fardo de algodão da província de Pernambuco, por exemplo, trazido dali diretamente por um barco mercante nacional, chega mais caro ao Rio de Janeiro do que se levado por um navio estrangeiro a Liverpool ou Southampton, e for desse porto enviado para o nosso!” ++++++++++

Por exemplo: a exageração dos fretes é tal que o consumo do café do sul nas províncias extremas do norte, antes de desenvolver-se a sua produção no Ceará, era limitado, e até sucedeu, alguma vez que dos Estados Unidos se importasse no Pará e no Maranhão café do Rio de Janeiro.

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...“quando os pontos do debate acham-se de pé e interrogam-no com uma impertinente assiduidade, o governo, esse retardado governo, herdeiro legítimo das tradições coloniais, volta-lhes as costas, ri-se de nossa credulidade e ousa imprudentemente reviver paixões que dormiam, com extravagantes reformas da constituição, projetando criar novo funcionalismo, premeditando a morte das câmaras, e tentando o parto de uma nova alavanca que torne fácil o caminho do despotismo administrativo.

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Terei ocasião, como acima digo, de desenvolver em artigos as minhas teses, de precisá-las, de completá-las e de ajuntar-lhes medidas necessárias a fim de que a passagem do monopólio ·para a liberdade não seja fatal ao que se chama — direitos adquiridos.

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Para quem se encanta com o levante monárquico protagonizado pelo fracasso do socialismo, TB diz o seguinte: “quer se tenha gerado no centro da monarquia e irradiado com energia pela circunferência; seja como for, o que poucos negam pela palavra, mas todos sentem no íntimo da alma, é essa atmosfera pútrida, sombria, pesada, detestável, que chama-se a vida pública no Brasil.” ...”A desordem moral se continua, gera o absolutismo ou, por outra, só pode resolver-se no absolutismo.”

A Carta XXII é um manifesto que poderia ser levada ao blog de ensaios. O Anexo IV fala da escravidão e o V da libertação dos escravos, mostrando as seguintes diligências que um suposto advogado deveria percorrer para obter a carta de alforria: “Segue-se, portanto, que esses infelizes devem resignar-se com a pulha da lei, ou esperar que o acaso lhes apareça um protetor desinteressado e que, revestido da mais evangélica paciência, se prepare a sofrer e acompanhar as seguintes provas desta nova inquisição moral:

1. Pedir ao escrivão dos africanos a certidão demonstrativa de que é passado o lapso de tempo.
2. Requerer ao governo imperial por intermédio da secretaria da justiça.
3. O ministro da justiça manda ouvir ao juiz de órfãos.
4. O juiz de órfãos informa e faz voltar a petição ao ministro.
5. O ministro manda ouvir o chefe de polícia.
6. O chefe de polícia manda ouvir o curador geral.
7. O curador geral dá a sua informação e faz voltar a petição ao chefe de polícia.
8. O chefe de polícia manda ouvir o administrador da casa de correição.
9. O administrador da casa de correição informa e faz voltar ao chefe de polícia.
10. O chefe de polícia informa e faz voltar à secretaria da justiça.
11. A secretaria faz uma resenha de todas as informações para o ministro despachar.
12. O ministro despacha ao final, mandando passar a carta de liberdade.

Este final quer dizer:
13. Volta a petição ao juiz de órfãos.
14. E expede-se um aviso ao chefe de polícia comunicando o despacho.
15. O juiz de órfãos remete a petição ao escrivão e faz passar a carta, que este demora em seu poder até que a parte vá pagar os respectivos emolumentos.
16. Remete-se a carta ao chefe de polícia.
17. O chefe de polícia oficia ao administrador da casa de correição, mandando vir o africano.
18. O administrador manda-o, e o chefe designa o termo ou município em que há de residir.
19. O chefe de polícia da corte oficia ao da província, a que pertence o termo designado, e remete ao africano acompanhado da carta.
20. O chefe de polícia da província oficia, remetendo o infeliz e a sua carta à autoridade policial do lugar para onde ao chefe de policia da corte aprouve designar o degredo do homem livre e não condenado por crime algum.

E, depois de todo o trabalho, de despesas feitas com procuradores ou veículo para que a petição não ficasse sepultada no mare magnum das nossas repartições, o misero africano consegue ser banido do lugar em que residiu por 10, 15 ou 20 anos, em que adquiriu raízes, em que começou a preparar o seu futuro, os seus “interesses” !....


Tavares Bastos — A Província (Estudo de descentralização no Brasil)

Segundo livro que leio do autor liberal do século XIX, morto aos 36 anos, e com inigualável lucidez na crítica social do império.

“Tendo a centralização por alvo tudo dominar, esta necessidade impõe-lhe, como elemento indispensável, um número ilimitado de agentes, organizados com a hierarquia militar, que é seu tipo e seu ideal. Então se cria um país oficial diferente do país real em sentimentos, em opiniões, em interesses”.

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“Transformado o funcionalismo em polícia dos comícios”, fala TB ao tempo em que este tratava das eleições, mas hoje agindo como cabos eleitorais licenciados de candidatos.

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“Quando sairemos deste circulo vicioso? Toda a tutela prolongada produz infalivelmente uma certa incapacidade e, esta incapacidade, serve de pretexto para continuar a tutela indefinidamente. E ademais, esses tutores que nos são impostos, donde saem? Não saem do meio dessa população que declarais radicalmente incapaz? Por que maravilhosa metamorfose sucederá que esse homem, confundido na véspera nessa raça de incapazes, súbito se torne um ente superior, dotado de todas as qualidades governamentais, só por que recebe um diploma ou veste uma farda?”

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“Sucedendo a esta, a monarquia no Brasil reclamou como herança a suserania que pertencera aos reis de Portugal, encarando com ciúme as tendências descentralizadoras. Nossas províncias mudaram de amo, mas o sistema de governo não mudou. Com a independência perpetuou-se nesta parte da América a centralização.”

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O livro trata da organização política e administrativa do tempo do império, enfatizando os malefícios do centralismo francês, combatido por Tocqueville em O Antigo Regime e a Revolução e gerando no Brasil a odiosa empregocracia. Os temas seriam mais aproveitáveis para quem tem experiência em administração pública e anseiam por reformas.

O Ato Adicional de 1834, que estabelecia as assembleias provinciais e outras organizações foi torpedeada pela reforma conservadora, que descaracterizou-a através de medidas centralizadoras, gerando revoltas em 1840 e 1848.

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“A ilegalidade das doutrinas e dos precedentes estabelecidos pelos governos conservadores não é mais duvidosa para nenhum espírito esclarecido, para alguns dos nossos próprios adversários.”

“ ...vamos também propor o complemento do sistema esboçado no ato adicional. Este sistema supõe nas províncias um poder legislativo e uma administração próprios que falta para que funcionem com regularidade e até onde devemos chegar no empenho de reabilitá-los? Quais as circunscrições da descentralização que os liberais promovem?

“O que somos nós hoje? Somos os vassalos do governo, da centralização. Ouçamos o que à sua pátria dizia em iguais circunstâncias o autor da Democracia na América.” Sobre a alteração do voto direto para a escolha dos presidentes de província (governadores de estados) por nomeação do governo central, protesta TB pedindo a volta da eleição: “Seguramente, erguer-se-á aqui o fantasma da anarquia, com que se intimida o povo e afugenta qualquer ideia nova. O estado presente é que é a anarquia.”

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“.... intervieram nas eleições de um modo raras vezes igualado neste país clássico da corrupção e opressão do voto ”.

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Sobre a instrução pública:
Vede o triste espetáculo, resultado fatal da imprevidência com que descuidaram da educação do povo: nossos costumes que se degradam, nossa sociedade que apodrece, o fanatismo religioso que já se chama o partido católico, um país inteiro que parece obumbrar-se, na segunda fase deste século, quando as nações carcomidas pelo absolutismo e ultramontanismo, Itália, Áustria, Espanha, França, reatam gloriosamente o fio das grandes esperanças do seculo XVIII.

Explica a escandalosa desproporção estatística entre EUA 1 X 7, contra Brasil 1 x 90 (aluno por habitantes).

[Interessante que se falasse em 1860:] “O século propõe-se realizar o ideal da máxima simplificação do mecanismo que se chama Estado.”

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Depois de examinar a educação do ponto de vista municipalista (descentralizada) e provincial (estadual), dedica um capítulo A Emancipação (dos escravos) apresentando dados sobre a situação demográfica da escravatura e dos meios de cobrança de taxas sobre o comércio humano a tal ponto que seja mais vantajoso o trabalho livre.

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[Proust estabelece uma divisão da passagem da servidão à aristocracia, para a condição de trabalho independente no capitalismo com a seguinte anotação: “... como esses empregados democratas, que afetam independência em relação aos burgueses e restabelecem entre si o princípio da autoridade...” Este texto vale como crítica ao olavismo na exaltação da sociedade medieval, onde os empregados ainda que assalariados, mantinham a postura de submissão, e que é até insinuada como solução para as divergências pessoais causadas pela democracia.]

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“O regime das sociedades anônimas instituído pela legislação de 1860 contém uma dupla violência: ao direito de reunião e às franquezas provinciais. Nenhuma sociedade anônima pode constituir-se sem licença, e esta licença é sujeita a formalidades vexatórias: tal é a primeira violência.”

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“Falando da liberdade de culto. Princípio de Cavour: «Igrejas livres no Estado livre.» Insurge-se contra ele o ultramontanismo fanático; mas não há mais solene confissão da liberdade, que em vão reclama o catolicismo romano sob a forma odiosa de um privilégio exclusivo.”

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“... enquanto subsistir o privilegio do católico para o exercício de certos cargos políticos e até do magistério; enquanto se exigir o juramento religioso, mesmo na condição de graus científicos; enquanto o culto católico for o único público, mantido e largamente auxiliado pelo Estado, e os outros apenas tolerados em suas práticas domésticas; enquanto não se reconhecer a validade do casamento civil, nem se admitir a plena liberdade de ensino; enquanto, na frase de E. Picard, o Estado não for livre, há de sê-lo somente a Igreja? [situação em 1860].

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IMIGRANTES
Sobre a falha de particulares na incorporação e venda de terras aos imigrantes: “Com efeito, basta considerar a sorte de um núcleo de colonos estabelecido em província longínqua e dependente, não das autoridades dessa província, mas do ministro das obras públicas na corte. A menor questão assume logo o caráter de gravidade. As distâncias, a falta de comunicações regulares, aumentam os inconvenientes de pequenos negócios tratados por via de correspondência. É mister construir uma capela ou abrir um caminho? Começa a papelada, repetem-se informações, vão e vem os documentos, enchem-se as pastas, passam os anos, e os colonos desesperam, e o núcleo [povoado], criado sob os melhores auspícios, para, ou definha, ou dissolve-se”.

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Quanto as obras públicas, analisa o desenvolvimento vertiginoso das estradas de ferro dos EUA e cita o adiantamento da Argentina para constatar que tal se faz sem o poder moderador, para concluir: “O adiamento! eis o epitáfio do governo imperial. Progresso constante, concepção rápida, execução ativa; eis o mote dos governos responsáveis perante o povo. Inércia, protelação, esterilidade, não são no Brasil resultados do seu sistema politico, onde o poder é irresponsável, absoluto?”

“Mas o que realmente maravilha a negligência do governo é no inconcebível adiamento da navegação do alto São Francisco. Um só vapor, mesmo microscópico como alguns que para lá enviaram, um dos quais está a caminho há quatro anos, ainda não sulcou as 400 léguas que esse poderoso rio e seus confluentes oferecem à navegação! Custa crê-lo: a dois milhões de habitantes sequestrados do mundo, e a sete províncias aproveita essa facílima navegação.”

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Sobre a questão financeira, em que sempre e irremediavelmente padeceu todos os governos, afirma: “Se o mais seguro meio de atingir a redução do imposto é o de reduzir simultaneamente a despesa, haja um governo patriótico que se levante sobre as ruínas dos ministérios áulicos, e combata as grandes causas permanentes dos nossos embaraços financeiros: o funcionalismo exagerado pela centralização, o luxo administrativo, os subsídios estrangeiros, a onerosa política de intervenção e proteção.”

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Tributação:
É forçoso reconhecer que alguns produtos acham-se sobrecarregados: a goma elástica do Pará paga direitos municipais, provinciais e gerais, que perfazem 25% do seu valor; pagam igualmente os couros e charque do Rio Grande do Sul 12%, que dificilmente lhes permite afrontar a concorrência de produtos similares dos Estados do Prata.

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Funcionários públicos e burocratas
“Concentrada nas secretarias da capital toda a sorte de interesses, apurou-se o sistema com a adição de novo vexame; as informações e consultas, multiplicada na razão direta da pequenês do objeto ou da inexperiência do ministro. Vive a administração literalmente sufocada pela prodigiosa correspondência oficial, prova sem réplica, não da fecunda energia do governo, mas da sua inércia esterilizadora.


Ninguém desconhece os inconvenientes de uma administração, cujos comissários na província e cujos próprios chefes na capital, meros intermediários, são destituídos da facilidade de resolverem sobre assuntos ordinários, e despacharem o expediente de cada dia. A divisão de responsabilidade, o enfraquecimento mútuo resultado das decisões ad referundum dependentes de ato definitivo [do] poder central; a protelação de todos, ainda os mais singelos negócios; a consequente exageração do funcionalismo, sempre reputado inferior às exigências de um expediente monstruoso; as teias de multiplicados regulamentos; as ilusórias combinações do sistema preventivo; a falta de iniciativa e autoridade própria dos mais elevados funcionários, nivelados com os escreventes, de quem se distinguem, somente por títulos pomposos; o regime da desconfiança do chefe para com seu delegado, e das repartições centrais para com as províncias, tornaram impotente e odiosa a administração brasileira, vítima dos mais pungentes sarcasmos.”
… e os anos têm visto requintar este suplício da concentração e protelação.
… “Onde o povo não é pupilo do governo, simples e expedita é a marcha administrativa: conhecem os Estados Unidos e a Inglaterra a peste designada pelo nome expressivo de papelada? Onde não é o povo que a si mesmo se governa, mas é o poder real que gere paternalmente os negócios da nação, a burocracia tudo domina, tudo enreda e prejudica com as suas fórmulas rotineiras”.

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Nacos:
Inania verba — palavras vazias.


Hipólito José da Costa — Narrativa da Perseguição

Mais um depoimento sobre a Inquisição de parte de um brasileiro que caiu em suas garras e teve que viver no exílio em Londres. Por sorte, a causa de sua prisão foi a mesma de sua fuga. Detido por ser maçom, escapou com ajuda de amigos e deixou um depoimento dos mais valiosos do funcionamento tardio da Inquisição que viria a ser acabada 30 anos depois como resultado das invasões napoleônicas na península ibérica.

Para entender a Inquisição é preciso ler os processos de Moscou e ter conhecimento do nazismo referente ao tratamento dado aos judeus. Na Inquisição se tem as origens do que ocorreu no século XX.

Se a projeção dos séculos sobre os outros nos permite entender as raízes do totalitarismo, os movimentos de direita e esquerda latino-americanos são os atuais depositários da mentalidade que tem no desprezo do liberalismo suas fontes mais fecundas de ressurgimento dos flagelos humanos na forma de expressão política.

Pg 42: “Os jesuítas apresentavam uma ação “missionária” de caráter proselitista, em que os meios mais controversos justificavam a prossecução dos fins transcendentes”. Neste ponto, são precursores do marxismo.


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