terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Fragmentos 2


H. W. Janson — History of Art

Pg 478: Pieter Bruegel – O cego puxando os cegos. Pode se considerar uma representação metafórica ds modernos estadistas.

Não fiz anotações do extraordinário e didático livro de Janson porque é todo baseado em estudos de obras de arte comparadas em fotografias. Também não tenho a data. Desconfio que li em 1984/85. Reli alguns artistas tempos depois e considero um trabalho excelente para a formação artística de quem quer que se interesse por arte. Não sei se foi traduzido ao português. Mantenho esta obra no índice apenas para recomendação.


Meu: O que comprova a torpeza dos dirigentes dos organismos estatais é o fato deles nunca serem líderes para os dirigidos. Ao contrário, dirigentes e dirigidos não comungam simpatias pois o que predomina é o figurão de passagem, que se relaciona através de informes e não do carisma de liderança.


Bernard James — The Death of Progress – Alfred A. Knopf – 1973:

Pg. 15: A ideia fundamental no pensamento de Charles Sanders Pierce é que o ‘real’ é separado daquilo que acreditamos dele. É aquilo ‘cujos caracteres são independentes do que se pode pensar ser’. É independente, entretanto, ‘não necessariamente do pensamento em geral, mas somente do que você ou eu ou um número finito de homens pensam dele’ (real). A objetividade tem sua cota de subjetividade, inevitavelmente uma coisa pública. Não podemos simplesmente considerar que a realidade é aquilo que cada um de nós produz ou que aquilo que é verdade para você pode não ser para mim. O ‘real’ está indubitavelmente ‘além’, separado daquilo que o indivíduo pode crer dele’....

‘Uma vez dada a noção de que o real e aquilo que nós pensamos são coisas distintas, uma teoria de sentido diz que o que dá utilidade a uma opinião é o grau daquilo que ela corresponde a realidade. O uso implica, ou fornece um contexto para a ideia, e esse contexto são as consequências que lhe seguem’... ‘Assim, o significado de uma ideia ou opinião, ou hábito – que é uma ideia em nossa rotina – depende da concordância dela com a realidade, e sua verificação pelo uso. O peso que podemos botar numa ideia, uma opinião, varia como resultado do número de testes na qual ela está exposta. Ou, como Hans Reichembach coloca, ‘peso é aquilo que o grau de probabilidade fornece se ela é aplicada num simples caso’. Entretanto, verdade absoluta, peso absoluto, seria o mesmo que uma predição sem erro. Não chegamos a esta condição, embora nos aproximamos assintomaticamente quanto mais expomos uma ideia ao uso e a verificamos. Mas desde que uma ideia pode ser derrotada por investigação posterior, o peso é sempre relacionado com a frequência de testes.

Pg. 18: O gênio dos ingleses foi sua percepção intuitiva de que nos assuntos humanos muito mais é decidido por acidente e inépcia que por intenção.

Pg 26: Conclui que organizações centralizadas tendem a fazer menos porém maiores erros que organizações descentralizadas.

Pg. 31 – Cita exemplos de como a ideologia do Progresso cria algo e seu efeito nocivo na natureza e na saúde humana. Podendo ser efeitos colaterais de primeira, segunda, terceira, quarta ou quinta ordem de grandeza. ‘Se a distância entre cada boa intenção e seu efeito colateral aumenta, a predicabilidade diminui’... Mas a diferença entre um efeito colateral vantajoso e um desvantajoso é que podemos sobreviver por sorte’.

Pg. 43: Algo mais acontece para fazer o mundo da ciência e tecnologia num ‘novo’ fenômeno. A especialização fragmenta a experiência em ‘dados’ e a quantificação achata a experiência onde um ‘fato’ é tão importante como qualquer outro ‘fato’. O mundo torna-se uma caricatura nominalista, um borrifo de eventos, cada qual desconectado do outro, cada qual sem contexto, como contas caindo de seu rosário. A quantificação destrói a coesão ideológica da experiência, e o conhecimento torna-se uma coisa perversa e vazia; e logo se torna impossível determinar que cientista está fazendo algo significante e qual algo trivial. Ela nivela a distinção entre homens ordinários e excepcionais. É por isso que a ciência e a tecnologia tornou-se singular expressão da cultura do homem-massa moderno, capaz de absorver milhares – de fato dezenas de milhares – de homens de talento limitado, bem como de crua sensibilidade ética, ao mesmo tempo que eles exibem a arrogância peculiar de especialistas, a arrogância do ‘ignorante ilustrado’, como Ortega y Gasset chamou-o’. [Homens de talento limitado também precisam de empregos]

Pg. 47: Em 1229, quando estudantes na Universidade de Paris revoltaram-se em protesto contra o custo de vida, bem como da qualidade do vinho das tabernas, o Papa Gregório IX lançou uma bula concedendo aos estudantes a liberdade de regularem seus assuntos próprios, incluindo o direito de suspender as aulas.

Mas quando olhamos as universidades como sistemas naturais percebemos que elas estão com a maioria das boas posições ocupadas por multidões de especialistas, e que as relações desses especialistas com outros são meticulosamente reguladas por uma teia complexa de regras simbióticas de comensais e convidados-parasitas.

Pg. 65: Muitos escritores comentaram a tendência para a abstração nas artes. Em 1906, Wilhelm Worringer observou que a tendência para a abstração parece ser motivada pelas ansiedades da vida incerta, e que entre os povos primitivos formas abstratas e motivos decorativos são usados para ‘estabelecer um mundo estável além do mundo das aparências’, para reduzir o ‘tormento da percepção’. Num ambiente agreste e incerto, ele sugere, os homens produzem formas abstratas, e num ambiente mais benigno eles se voltam para formas naturais e uma empatia com a natureza, e produzem ‘auto-deleite objetivo’.

Pg. 73:O recuo da consciência segue o colapso da crença central da nossa era, a crença no progresso infinito. Mas não podemos recuar para valores e crenças tradicionais, para tempos que exalam dissensão e decadência. Devemos inventar novos deuses e levantar novos templos. Pg. 85: Há numerosos testemunhos em antropologia para indicar que em muitas culturas tradicionais e primitivas existem crenças que restringem a taxa de mudança cultural e procedendo assim protegem o relacionamento da cultura com o meio ambiente. Os aborígenes australianos, por exemplo, que definiam um passado mítico e usavam como referência para determinar as mudanças que na cultura viva poderiam ser toleradas. O efeito era minimizar mudanças e maximizar a estabilidade. As crenças animistas tinham influências de controle similar. Quando os espíritos acreditaram-se habitar os rios, montanhas, plantas e animais, a resposta do meio-ambiente será diferente daquela do moderno construtor de casas. [Bobagem negativista.]

Pg. 98: Sócrates argumenta se é melhor ser um porco feliz do que um homem infeliz. Pg. 100: Se nós pensamos sobre a nossa auto-imagem como pensamos ser, e de nossa auto-imagem-refletida como nós pensamos que os outros pensam quem somos, nós podemos medir a necessidade de mudança de personalidade como a tensão entre as duas.

Pg 102-103: Jean Paul Sartre diz que a diferença entre o mentiroso e o auto-impostor é que o mentiroso é capaz de ficar distinto do objeto da mentira, e assim permanecer consciente de sua falsidade. Durante o auto-engano, uma conspiração entre o ‘Eu’ e o ‘Outro’, age e a distinção Eu-Outro entra em colapso. O Eu aprende a pretender que ele não pode reconhecer o que o Eu refletido espera dele....

O resultado da conspiração do auto-engano é um rebaixamento da consciência – até da parte desmembrada da personalidade – e sua redução a uma coisa que não pode fazer suas inexoráveis demandas sobre nossa probidade. Quando um indivíduo ‘se entrega’ a uma causa, por outro lado, ele reduz sua consciência da mesma forma.

O processo de auto-engano, como Sartre aponta na Psicanálise Existencial e Kierkegaard ilustra no ensaio Shadowgraphs (Either/Or) não é uma coisa estática. É um contínuo jogo de esconde-e-procura, um regresso sem fim de encarar e iludir o que se vê. Isto significa que o ‘inconsciente’, como ordinariamente entendemos o termo, para descrever o que não estamos cientes e por isso não responsáveis por, é em si mesmo auto-enganador. Pois, como Sartre insiste, um censor psicológico deve saber o que censurar se ele é capaz de censurar. O auto-engano é sempre algo mais perverso, algo mais deliberado, como uma mentira, uma conspiração contra o Eu, contra a consciência – um pecado contra o Espírito Santo, como os teologistas dizem, por sua própria natureza imperdoável.

Pg. 104: Sabendo de sua derrota por Charles XII da Suécia na batalha de Narva, Pedro o Grande mandou estrangular o mensageiro. Durante o final da II Guerra Mundial, Hitler acolhia as más notícias de forma similar, como fazia Stalin. Todas as organizações (lembrem-se da Union Carbide) enfrenta o mesmo problema de comunicar más notícias. Quando somente boas notícias são bem-vindas, os subordinados rapidamente se ajustam para serem sicofantas, e enquanto o líder orgulha-se de si mesmo, as disparidades entre o que ele pensa e o que os outros pensam podem crescer para proporções explosivas.

Em certo grau, todos nós tempos problemas em face de fatos desagradáveis, e podemos desenvolver perigosas ilusões para evitar a dor de assim proceder.

Pg. 105: É possível todo um povo enganar-se a si mesmo, esconder-se atrás da opinião pública, procurando segurança em números. A intolerância que se mascara como ‘fina tradição antiga’ no sul dos EUA, tradição que não são finas nem velhas, é um exemplo.

Pg. 128-129-130-131: Wallace indica que os movimentos de revitalização movem-se através de fases distintas. Um período inicial no qual prevalece uma estabilidade relativa; uma segunda fase na qual o stress se desenvolve; uma terceira na qual o stress coletivo atinge níveis intoleráveis e uma quarta no qual aparecem os oradores de uma nova ordem, um novo equilíbrio social ou condição estacionária. Como uma ou outra ‘solução’ é selecionada e ganha aceitação, a vida social novamente passa para as regras de formas institucionais e a necessidade de outros messias declina.

O primeiro estágio é a condição de equilíbrio dinâmico entre a cultura e seu ambiente. A cultura encontra as necessidades do povo; o stress é limitado e a tensão tolerável. Deus está no céu, os pregadores em seus altares, os celeiros estão cheios e as mesas são servidas com abundância. As coisas cotidianas da vida estão bem a mão.

O acréscimo de stress dentro da cultura, o segundo estágio do processo, aparece imperceptivelmente. Pouco a pouco, a malha entre as partes institucionais da cultura piora e a cultura torna-se menos confiável em analogia com o ambiente externo. Seus valores preditivos e capacidade adaptativa começam a declinar. Há um crescente nível de conflito moral no sistema quando a diferença entre o que as pessoas fazem e o que professam aumenta. O elo entre o comportamento mais frequente e o comportamento mais desejável se distancia. Um dos sinais errados que aparecem, em outras palavras, é a hipocrisia social.

A terceira fase do processo é o que Wallace chama um período de ‘distorção cultural’. É uma versão exacerbada da segunda fase. A cultura cada vez mais falha em satisfazer as necessidades básicas. Um elevado nível de ansiedade pública desenvolve-se e expressa-se num amplo conjunto de respostas, semelhantes aquela do indivíduo psiquiatricamente perturbado. Interpretações romantizadas dos ‘velhos bons tempos’ podem aparecer junto com o mais rançoso cinismo – Adolf Hitler proclamando ‘quando ouço Wagner, me parece que ouço ritmos de um mundo passado’, mesmo quando projeta a mais covarde carnificina.... Poderão haver francos esforços de difundir pronunciamentos políticos banais como ‘Mein Kampf’ ou o livro vermelho de Mao, como força mística e grande significância. Resposta do tipo bodes expiatórios são também frequentes, dirigidas, conforme o caso, para judeus, capitalistas, revisionistas ou anarquistas. Subversivos são visto despontando por trás de qualquer macega. Uma variedade de respostas retraídas podem ocorrer, políticas exteriores isolacionistas, ou movimentos boêmios baseados em interpretações meio-cozidas do pensamento asiático. Em outras palavras, a era é marcada por selvagem oscilação na disposição pública e sentidos e por comportamentos de perseguição compulsivos.

Manias seguem manias, cultos deslocam movimentos, movimentos se revertem em coqueluches. O período é caracterizado por dúvidas, dúvidas representando, como apontou Pierce tão bem, não hábitos, mas ‘privação de hábitos’. A decadência das velhas formas desnuda os indivíduos de guias sociais e os expõe aos azares dos valores solitários.

Grandes acontecimentos podem trazer problemas nessa época. Mudanças climáticas básicas podem afetar a agricultura e os meios de subsistência. Métodos agrícolas podem exaurir o solo, forçando o conjunto do sistema ao desequilíbrio e declínio. Isso parece ter acontecido no declínio das grandes culturas Mayas da Península do Yucatán. Ou populações podem crescer e aumentar a pressão no fornecimento de alimentos. A fome pode colocar a mão de cada homem contra seu semelhante numa primitiva batalha para a sobrevivência diária. Ou epidemias podem varrer a terra, ou o desemprego em massa. Derrotas militares podem causar o colapso do regime político e liquidar com o timão das instituições públicas. Ou mudanças tecnológicas – por exemplo a industrialização – podem desmoronar as relações de classes; descobertas científicas podem botar no esgoto as amarras dos valores religiosos. O resultado pode ser uma série de ondas de choque, colisões, guerra civil.

Durante este período, frequentemente há um excedente de ‘soluções’ disponíveis, e é durante este tempo que toda espécie de líder auto-eleito, messias, charlatão e Grande Homem pode aparecer com sua solução para o problema.

Um notável aspecto dos períodos de intensa difusão cultural, durante o período de distorção cultural, como Wallace o chama, é que os longos caminhos institucionais do hábito tendem a enfraquecer ou rebentar, de tal forma que o sistema se acomoda nos modos de ação, passando de coletivos para mais individualistas. Pequenos e mais flexíveis grupos sociais tornam-se assim a sementeira para os messias e por isso é que os messias primeiro aparecem como líderes de gangues e grupos formados ao redor de experiências pessoais de simples indivíduos, muitos dos quais podem ter uma natureza alucinatória.

Pg. 132: Como Sartre apontou; gênio não é um ‘dom, mas uma maneira que se inventa em casos desesperados’.


Arnold Toymbee – Surviving the Future – Oxford University Press – 1971

Pg. 7: A vida do ser humano é uma constante luta entre o lado racional e o irracional da natureza humana. Nós estamos sempre tentando conquistar um pouco mais da nossa natureza para a razão da emoção cega, e estamos frequentemente perdendo terreno, quando então o irracional ganha do racional. No meu ponto de vista, o conjunto da vida humana é uma luta para tornar a razão predominante.

Pg. 57: O motivo da curiosidade intelectual não é utilitário, mas é desinteressado. Por isso, penso que não é sem propósito. A curiosidade sem propósito é desorientada e insensata. O propósito que inspira a curiosidade pode não estar continuamente presente na mente do inquiridor, e algumas cabeças talvez nunca estejam conscientes deste propósito.

O propósito básico da curiosidade, sendo consciente no momento ou não, é a aquisição do conhecimento e entendimento para o propósito da ação: e ação que é o objetivo último da curiosidade humana é, creio, ação para ganhar um contato íntimo com a presença espiritual além do universo, em ordem de entrarmos em comunhão com ele e levar nossos seres efêmeros em grande harmonia com ele.

Pg. 61: O homem é parte integral da natureza, embora ele é um pouco mais. A natureza humana e a natureza não-humana tem uma relação idêntica com a presença espiritual além do universo. Para ambas, o significado e valor da existência deve ser encontrado em entrar em harmonia com a presença espiritual que é a última realidade... Seres não-humanos, certamente fazem isso inconsciente e instintivamente; seres humanos pretendem fazer isso consciente e deliberadamente.

O homem primitivo não teve dificuldade em sentir respeito pela natureza. Aliás, ele esteve em admiração da natureza, porque estava à mercê da natureza. O culto da natureza era assim a mais antiga forma de religião humana.

Pg. 65: Falando sobre o rápido declínio do Império Prussiano: ‘Aqui, a deificação do poder humano requer a devoção do estado deificado em sacrifício de suas vidas, e talvez sua honra também para o benefício desse ídolo.

Pg. 79-80: UTOPIA
Uma das formas das tentativas de beneficiar-se das lições da experiência algumas vezes se revela na imaginação de Sociedades Utópicas. Isto começou na Grécia Antiga, e deve ser notado que os gregos começaram a escrever relatos de sociedades ideais e imaginárias depois de sentirem que o pico de sua civilização tinha passado. Antigas utopias gregas formam cópias de projetos para parar e inverter o declínio da civilização, relevando-a ao nível de seu zênite passado. Um pouco por isso, as utopias gregas foram projetadas para prender a civilização no seu presente nível, na esperança de salvá-la de afundar ainda mais. As utopias gregas eram de um semblante atrasado, conservadoras e reacionárias. Isto é verdade especialmente no filósofo ateniense Platão. O mais famoso de seus diálogos, no qual esboça uma sociedade imaginária é A República, mas em idade avançada escreveu um outro diálogo mais longo chamado As Leis. A sociedade imaginária descrita nas Leis é mais na terra que a sociedade no A República, e é também mais reacionária, social e politicamente. É de fato, uma sociedade fascista, ou pode-se dizer uma sociedade cristã medieval, na qual os heréticos são postos a morrer se eles recusarem confessar e renegar os seus erros.

... A palavra utopia não foi inventada pelos gregos; era desconhecida deles, embora seja uma palavra grega artificial. ‘U’ significa ‘não’, ‘topos’ significa ‘lugar’. Utopia significa ‘não-lugar’, ‘um lugar que não existe’, um local imaginário.

Pg. 97: Foi uma grande decepção para a unidade do mundo ocidental que o latim cessou de ser a linguagem internacional do Ocidente.

Pgs. 97-98: As línguas artificiais (Esperanto) são paralíticas por duas razões. Elas não tem uma literatura e não tem associações emocionais.....

O hebreu foi, por séculos, usado somente como língua litúrgica. A língua franca da diáspora judaica tornou-se o Yiddish (um dialeto germânico escrito em alfabeto hebreu).

... O incentivo (para a criação das línguas Irlandesa, Norueguesa e Hebraica) foi o sentimento nacional, e no caso judaico foi reforçado por sentimentos religiosos, desde que para os Judeus, nacionalidade e religião são inseparáveis.

Desde 1920 e poucos, os turcos passaram a usar a língua árabe escrita com caracteres latinos e no Vietnã, o vietnamita substituiu seus ideogramas chineses pela escrita com caracteres latinos.

Pg. 107: Nós também esperávamos que o progresso da ciência e da tecnologia fizesse a humanidade mais rica, e que o aumento da riqueza gradualmente passasse de uma minoria para uma maioria.

Em 1971 O mundo é muito menos humano do que em 1913. Nós temos que encarar a possibilidade do mundo se tornar ainda mais inumano no final do presente século. Pelo ano de 1700 no mundo Ocidental, a guerra tornou-se uma disputa entre exércitos profissionais. Foi uma disputa de governos e não mais uma luta entre os povos.

Esta condição de aumento de anarquia social me parece ser incompatível com as demandas da tecnologia, porque a tecnologia requer uma crescente arregimentação da vida, um crescente grau de ordem e regularidade.

Pg. 116: as multidões que foram induzidas ou compelidas a drenar e irrigar os pântanos e florestas do antigo Iraque e Egito, que formam os berços das duas principais civilizações, devem ter sido previamente condicionadas. Eu acho que a religião (o que chamamos de ‘baixa’ religião do nacionalismo) é também o primeiro condicionante que permite ao ‘establishment’ transformar homens em soldados e treiná-los para matar seus semelhantes sem animosidade pessoal e sem compunção.

Pg. 136: Sobre a questão do programa de exploração espacial ser bom ou ruim, importante no momento ou postergável: ‘Decisões sobre prioridades são sempre decisões éticas: o que deve vir corretamente em primeiro ou por último do ponto de vista do que é bom e justo para a humanidade?’

Pg. 138: Não é o programa espacial moralmente ofensivo na sua presente alta prioridade como as construções das Pirâmides e a construção do Palácio de Versalhes? Eu sinto que o programa espacial é moralmente indefensável, não em si mesmo, mas porque ele tem recebido prioridade sobre alimentação, vestuário e habitação para a maioria pobre da raça humana. Sinto que essa gritante necessidade deve ter o primeiro apelo nos recursos humanos, energia e habilidade. Também suspeito que o governo dos Estados Unidos e União Soviética não deveriam gastar nos programas espaciais os enormes recursos que realmente gastam se não tivessem que competir entre si para a ascendência política e militar do planeta. Considero a competição infantilismo em si mesma, é imoral numa época em que a maioria da humanidade é pobre, e criminosa numa época em que as grandes potências competidoras estão armadas de armas atômicas.

[Comentário de 2011: um historiador que não entendeu que as forças da competição é que mudaram a nossa época só pode ser um turista inglês passeando pela história, como dizia Ortega de Toymbee]


Lewis Mumford — The Myth of the Machine – Harcourt Brace Janovich, Inc. New York, 1970

Pg. 4: Nossos predecessores enganadamente vincularam o seu modo particular de progresso mecânico com um injustificado senso de superioridade moral.

Pg. 9: Tekhne caracteristicamente não tinha diferença entre a produção industrial e a arte “bela” ou simbólica; em grande parte da história humana esses aspectos foram inseparáveis, um lado respeitando as condições objetivas e funções, e o outro respondendo a necessidades subjetivas.

Pg. 10: Quando comparado com outros antropoides, pode se inferir sem ironia a superioridade irracional do homem. Certamente o desenvolvimento humano exibe uma crônica inclinação para o erro, maldade, fantasia desordenada, alucinação, ‘pecado original’, e mesmo a socialmente organizada e santificada má conduta, como a prática do sacrifício humano e a tortura legalizada.

Pg. 13: É esta associação de poder desordenado e produtividade com igualmente desordenada violência e destruição puramente acidental?

Pg. 31: Pensamento científico é essencialmente pensamento de Poder – a espécie de pensamento cujo propósito consciente ou inconsciente é dar poder ao seu possuidor, segundo Bertrand Russell.

Kakotopia como oposição a utopia (kako = mau)

Pg. 112: A necessidade sempre foi a mais relutante mãe da invenção: Bacon entendeu que ambição e curiosidade foram bem + férteis parentes, e as invenções promovidas por ela tornaram-se a mãe de novas necessidades.

Pgs. 172-173: O homem tem somente uma super-importante missão na vida: conquistar a natureza.... Deste princípio geral uma série de corolários são derivados: há somente uma velocidade eficiente: rápido; somente uma destinação atrativa, a mais distante; somente um tamanho desejável, o maior, somente um objetivo racional quantitativo, mais.

Nestas considerações o objeto da vida humana, e todo o mecanismo produtivo, é remover limites, apressar o passo da mudança, nivelar os ritmos sazonais e reduzir os contrastes – enfim, promover novidade mecânica e destruir a continuidade orgânica.

Pg. 183: Tanto o antigo e o contemporâneo sistema de controle são baseados, essencialmente em comunicação one-way, centralmente organizada....
Hoje o crescente número de protestos de massa, mobilizações e motins – atos físicos em vez de palavras – podem ser interpretados como tentativas de romper o isolamento da megamáquina, com sua tendência de encobrir seus próprios erros, de recusar mensagens desagradáveis, ou bloquear transmissão de informação que prejudique o sistema. Janelas rebentadas, vidros quebrados, edifícios incendiados, cabeças quebradas são meios de humanamente fazer importantes mensagens tomar posse do desmemoriado meio e recuperar, embora na forma mais crua, comunicação de 2 vias e intercurso recíproco.
Assim que o controle automático é instalado, não se pode recusar de aceitar suas instruções, ou inserir novas, pois que teoricamente a máquina não pode permitir ninguém desviar-se dos seus padrões perfeitos. E isso nos leva uma vez mais ao mais radical defeito de qualquer sistema automático; para sua operação homogênea este sistema sub-dimensional requer igualmente homens sub-dimensionados, cujos valores são aqueles necessários para a operação e continuação da expansão do sistema em si. As mentes são tão condicionadas que são incapazes de imaginar qualquer alternativa.

Pg. 186: Pode-se sem exagero falar de compulsividade tecnológica: uma condição na qual a sociedade docilmente se submete a cada nova demanda e as utiliza sem questionar os novos produtos, sejam eles um melhoramento real ou não, desde que esta dispensa constitua a única prova requerida pelo seu valor. É um impulso irresistível.

A soma das potencialidades humanas numa comunidade é infinitamente Mais rica que o limitado número que pode ser instalado num sistema fechado – e todos os sistemas automáticos são fechados e limitados – mesmo aqueles computadores que são capazes de aprender através de uso posterior do material fornecido.

Pg. 200: Imaginar que a burocracia é uma instituição recente é ignorar os anais da história antiga. Os primeiros documentos que atestam a existência da burocracia pertencem a Época da Pirâmide. Numa descrição em um cenotáfio de Abides, um oficial de carreira sob Pepi I, na Sexta Dinastia, cerca de 2375 AC., reportou “sua majestade no comando deste exército, considerando os convidados, considerando as autoridades do Rei do Baixo Egito, considerando os acompanhantes do Palácio, considerando os monarcas (governadores) e prefeitos do Alto e Baixo Egito, e os Chefes Burocratas que foram na frente da tropa do Alto e Baixo Egito, ou nas cidades e vilas que eles governam”.

Não meramente este texto estabelece a burocracia, mas como Petrie evidencia na citação anterior, mostra que a divisão do trabalho e especialização de funções necessárias à eficiência de operações mecânicas já tinha ocorrido.

Este desenvolvimento começou no mínimo três dinastias anteriores; não por acidente com a construção da grande pirâmide de pedra de Djoser (Zober) em Sakkara. John Wilson observa, na “Cidade Invencível” que creditamos a Djoser, não somente o começo da arquitetura monumental em pedra no Egito, mas também o início de um novo monstro, a burocracia”. Isso não foi mera coincidência. A. F. Albright, comentando isso, apontou que “o grande número de títulos encontrados em carimbos da Primeira Dinastia ... certamente pressupõe um elaborado funcionalismo dessa espécie”.

Pg. 201: A burocracia era, de fato, um terceiro tipo de “máquina invisível” – pode-se chamar uma máquina de comunicação coexistindo com a máquina militar e de trabalho, e uma parte integral da estrutura totalitária integral”.

Pg. 203: Foi a Inquisição, com suas engenhosa imaginação mecânica em minuciosa tortura gradativa, um sinal de progresso? Tecnicamente, sim, humanamente, não.... Sem dúvida fere o orgulho do homem moderno se dar conta que culturas antigas, com muito mais simples dispositivos técnicos, poder ter sido superiores às suas próprias em termos de valores humanos, e que o genuíno progresso envolve continuidade e conservação, sobretudo antecipação consciente e seleção racional – a anti-tese da nossa presente caleidoscópica multiplicação de novidades aleatórias.

Observação sobre o Admirável Mundo Novo de Huxley: “Foram tão insistentes e rápidas as transformações tecnológicas nos últimos 40 anos que logo o livro deixou de causar impacto como sátira. A aparentemente grosseira caracterização de Huxley tornou-se realidade. A norma contrastante quase desapareceu”. Isto é: a sátira perde sua força – sua existência – quando deixa de contrastar com a realidade.

Pg. 211: Se todas as vantagens emergentes desses empreendimentos de larga escala tivessem sido apreciadas e as altas funções da vida urbana tivessem sido mais amplamente distribuídas, a maior parte das primeiras falhas da megamáquina teriam sido corrigidas em tempo, e mesmo suas compulsões incidentes poderiam ter sido iluminadas e eventualmente obliteradas. Mas infelizmente os deuses ficaram loucos. As deidades responsáveis por esses avanços exibiram falhas que apagaram os ganhos genuínos: cevados em sacrifícios humanos, e enquanto isso inventando a guerra como a prova última do “poder soberano” e a suprema arte da “civilização”. Enquanto a máquina do trabalho contou principalmente para o crescimento da “civilização”, sua contraparte, a máquina militar, foi basicamente responsável para os repetidos ciclos de extermínio, destruição e auto-extinção.

Pg. 212: Idealmente, as pessoas da megamáquina consistiam de celibatários, afastados das responsabilidades familiares, instituições comunitárias e as afeições humanas ordinárias: esse celibatismo diário, que atualmente encontramos em exércitos, monastérios e prisões com outro nome para a divisão do trabalho, quando alcança o ponto de confinamento solitário como uma simples tarefa para toda a vida, é o desmembramento do homem.

Pg. 219: Nossa própria época mostra como é difícil conseguir equilíbrio numa economia de abundância.

Pg. 222 (sublinhado): Uma disposição compulsiva de ordenação foi o sucesso central da megamáquina negativa.

Pg. 225: A inerente enfermidade do sistema de poder total fica exposta pelo fato que os reis, exaltados mais que qualquer homem, eram constantemente enganados, adulados, e alimentados com desinformação – zelosamente protegidas de qualquer ‘feedback’ contrabalanceado. Assim, os reis nunca aprenderam por sua própria história o fato de que o poder desqualificado é inimigo da vida, que seus métodos foram de auto-derrota, que suas vitórias militares foram efêmeras, e suas reivindicações exaltadas eram fraudulentas e absurdas.

Pg. 226: Psicologicamente, pessoas sadias não tem necessidade de indulgenciar-se em fantasias de poder absoluto, nem elas precisam justificar a realidade infringindo-se automutilação e prematuramente cortejar a morte. Mas a definição crítica de uma superestimada estrutura institucional – e quase por definição a “civilização” foi superestimada desde o começo – é que não tende a produzir psicologicamente pessoas sadias. A rígida divisão do trabalho e a segregação de castas produzem caracteres desequilibrados, enquanto a rotina mecânica normaliza e premia essas personalidades compulsivas que são temerosas de relacionarem-se com as embaraçantes riquezas da vida.

Pg.228: Seria consolador acreditar que os lados construtivos e destrutivos da megamáquina cancelam-se a si mesmos, e dão lugar a um propósito humano mais central, baseado em conquistas prévias, em domesticação e humanização.

Pg. 282: Até hoje, nenhuma estrutura política única, nenhuma ideologia única, nenhuma tecnologia única, nenhum tipo único de personalidade prevaleceu sobre todo o planeta. O homem ainda não foi homogenizado.

A sociedade necessita ter intercurso em suas partes como os seres humanos. Mas e a burocracia? A única forma de uma organização aspirar uma plena função social é não possuir nenhum secretismo, é por lei ser aberta a qualquer investigação, a qualquer hora, de qualquer grupo ou organização social que queira qualquer tipo de informação. À monolítica parede do estado deve ser aberta janelas uma a uma até que a estrutura seja um reticulado completo.

As contas devem ser publicadas diariamente em locais de acesso público; todas as despesas devem ser mencionadas, e não apenas despistes burocráticos como receitas e despesas ou nomes que escondem a verdadeira destinação do dinheiro. Arquitetura de pavilhão aberto. O fim do secretismo é o fim do Estado. E ele só pode acabar com regulamentação, com o final de todo escamoteio.

Pg. 294: A queima de livros na China em 213 B.C. pelo último imperador da dinastia Ch’in repete-se em intervalos como a ‘solução final’ quando censura e proibição legal que ainda prevalece em países totalitários falha. [Opinião acadêmica tradicional de ver a história por seus desastres. Em A Insondável Matéria do Esquecimento falo sobre o assunto com a abordagem do papel utópico, idealista e profético dos intelectuais conforme a moderna crítica.]

Pg. 296: Uma vez que a unificação técnica é estabelecida, a solidariedade humana seguirá, conforme acreditam as mentes ‘progressistas’. No decorrer de 2 séculos, estas esperanças têm sido desacreditadas. Assim que as vantagens técnicas foram consolidadas, as rupturas morais, antagonismos e massacres coletivos tornaram-se mais flagrantes, não em conflitos somente, mas em escala global.

Pg. 326: Infelizmente o princípio de compulsividade permanece escrito no sistema, e é a condição fixa de receber seus benefícios. Em vez da obrigação de trabalhar, agora temos a obrigação de consumir: em vez de ser admoestado de praticar economia, agora somos persuadidos – não, incessantemente urgidos – a praticar desperdício e extravagante destruição. Ao mesmo tempo, uma parte ainda maior da população encontra-se na situação de vadiagem, desobrigada e fisicamente mimada mas cada vez mais em uma vida de vácuo.

[biocídio]

Pg. 395: Se quisermos evitar a megatécnica dos posteriores controles e deformações de todos os aspectos da cultura humana, necessitamos ser capazes de fazê-lo com a ajuda de um modelo radicalmente diferente, não das máquinas, mas dos organismos vivos e complexos orgânicos (ecossistemas). O que pode ser conhecido da vida somente através de um processo vivo – por isso é parte da experiência do mais humilde dos organismos – deve ser adicionado a todos as outras espécimes que podem ser observadas, abstraídas e medidas.

Este novo modelo em tempo substituirá a megatécnica com a biotécnica; e este é o primeiro passo para a passagem do poder à plenitude. Considerando que o panorama do mundo orgânico está em ascensão, o objetivo viável da economia de plenitude será, não alimentar mais funções humanas na máquina, mas desenvolver as posteriores incalculáveis potencialidades do homem de auto-realização e auto-transcendência, voltando a ele deliberadamente muitas das atividades que tão supinamente rendeu (entregou) ao sistema mecânico.

Pg. 396: Aforisma de Blake: ‘More! More! Is the cry of a mistaken soul; less than All Will not satisfy Man’.

Pg. 410: Quando um eminente engenheiro britânico, sir Alfred Ewing, sugeriu em 1933 que deveria haver uma moratória na invenção, afim de assimilar e integrar a massa existente de invenções e avaliar as propostas decorrentes, ele foi vaiado como um excêntrico, demandando um sacrifício impossível e tolo.

Pg. 418: A existência no homem de um mundo interno dinâmico, cuja natureza essencial não pode ser medida por nenhum instrumento, e pode ser conhecido somente onde encontra expressão em gestos e símbolos, e atividades construtivas, é um mistério tão profundo como as forças que unem os componentes do átomo e são responsáveis pelo caráter e comportamento dos seus elementos. No homem este mistério pode ser vivido, mas não descrito, e muito menos explicado: porque a mente não pode espelhar-se por dentro – somente saindo para fora ela se torna consciente de sua interioridade.

Pg. 427/428: O que trouxe à baila esses colapsos habitualmente resultam ser devido a uma falha radical em realimentação, uma inabilidade de reconhecer erros, uma relutância em corrigi-los, uma resistência em introduzir novas ideias e métodos que propiciem os meios para uma transformação humana construtiva.


Arnold Toymbee, Skinner e outros — On the Future of Art

É a cultura que produz o grande artista. Se a sociedade acredita na validade da obra de arte, então ela deve promovê-la investindo, pois assim estará criando as condições favoráveis para que dentre os artistas apareça o gênio. Gênios isolados são improváveis, assim como um bom jogador de xadrez ou futebol aparece em meios onde o esporte é jogado intensamente.

Para Skinner talvez seja o filistinismo da sociedade que investindo e promovendo a arte poderá produzir grandes artistas, já que ela não pode controlar a atividade criadora.


Nicolas Jequier — Appropriate Technology

Development Centre of the Organization for Economic Cooperation and Development.

Meu: Toda a ação hierárquica do Estado está encoberta por uma conspiração de silêncio, por um comprometimento tão poderoso com os interesses de cima que desenvolve-se uma linguagem negativa, uma espécie de hermenêutica daquilo que se deve calar, para não falar de toda uma tecnologia de despiste. A consequência são individualidades extravagantes senão dissolutas, personalidades torpes desintelectualizadas.

Pg. 26; A ideia que todas as sociedades podem e devem ‘desenvolver-se’ é pelos padrões históricos muito nova. O conceito de ‘progresso humano’ que fundamenta as grandes religiões não é muito recente, mas é primariamente uma noção moral, e somente recentemente o progresso identificou-se com uma elevação permanente no bem-estar material, em vez de com melhoramentos morais. O desenvolvimento, ou nesse aspecto, o ‘progresso humano’, está intimamente associado com a percepção do tempo pela sociedade e com sua imagem do lugar do homem na natureza. Em muitas sociedades tradicionais, o tempo exemplificado pela recorrência das estações, tende a ser percebido como um fenômeno cíclico: o presente é uma repetição do passado, o futuro será o mesmo que o presente e o homem não terá controle sobre o tempo. O progresso, ou desta maneira o desenvolvimento, implica que o futuro será diferente ou melhor que o passado; o tempo é visto de uma forma linear, como um processo irreversível, e não um ciclo recorrente. Estas diferenças na percepção do tempo estão ligadas em sua maior parte a tradições religiosas e levam um grande tempo para mudar.

Pg. 27: Entretanto, a ênfase em racionalidade e organização não deve obnubilar o fato que no processo inovativo, algumas das ideias criativas provém precisamente da desordem, sorte e o uso de informação aparentemente irrelevante. A racionalidade é necessária, mas também há virtude em duplicações, ignorância e acaso’.

Meu: A ignorância numa sociedade vale mais como filosofia do que como falta de educação. O ignorante – o oligarca no alto do seu poder de mando – pensa como qualquer um, exceto que desclassifica os desvios dos seus pensamentos por achá-los anormais no sistema que representa. E, com isso, não consegue sair da estagnação do sistema que cria para si, e tem de mantê-lo a qualquer preço, pois não é capaz de inovações. No oligarca a inteligência é sempre exceção, e também sempre desperdiçada.


30/4/85:

É possível que o pensamento retrógrado de nossas elites se alojem num instinto verdadeiro, que lhes diz que o poder do Estado é onímodo em relação à sociedade, e por isso imperecível. É esta superstição que garante toda a má-fé e a política depredatória até o limite do Estado acabar com toda a criatividade social e reduzir contingentes inteiros à pobreza, sempre saindo da crise por cima, sempre sobrevivendo aos piores vandalismos incólume, imóvel, mas nunca dizimado pela sociedade.

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3/5/85:

Talvez a malandragem e certas espécies de latrocínio (roubar livros, etc.), se apoiem numa base psicológica correta: a de que o homem não nasceu para o trabalho, a de que o homem vive num meio de privilegiados sem nenhuma legitimidade moral para eles, e como consequência favorece-os num instinto desapropriador dos bens sociais e particulares. O malandro pode em situações extremas ser um revolucionário da desordem e também um estimulador do sistema de regulação burocrático da sociedade. [Isto é niilismo puro].


John Stuart Mill — Man & The State — On Liberty

Pg. 233: É uma crença que Deus não somente abomina os atos dos descrentes, mas que não nos deixará sem culpa se o deixarmos imolestável.
Sobre a burocracia e o Estado: pg. 256-7-8-9 Encontrei traduzido em domínio público. Deixei para anotar a tradução e achei tão confusa que decidi poupar o leitor do suplício de tentar entender o ininteligível.


Henry David Thoreau — Civil Disobedience

Um libelo contra o escravagismo, a guerra do México e os impostos. Pg. 313: ... Mas o homem rico – para não fazer uma comparação invejosa – é sempre vendido à instituição que lhe fez rico. Falando absolutamente, quando mais dinheiro, menos virtude.

[ Meu: O marxismo latino-americano como uma sociologia de compensação e racionalidade baseada no ressentimento.]

[ Instinto x Intelecto: No Estado, o instinto prevalece sobre o intelecto. Todo caudilho faz política baseado no instinto, não no intelecto. E são políticos poderosos porque no ser humano o instinto é superior ao intelecto. Como o Estado despreza os intelectuais, ele tem grandes caudilhos e porta-vozes, quase sempre mistificadores, mas não tem intelectuais, a não ser como aspones.

Estado: o ufanismo conservador brasileiro parece ver o Estado como um poder acima da sociedade como se em suas profundezas psíquicas, além da racionalidade, medra a superstição do Estado como órgão de uma função dupla e ambígua: rapacidade pessoal e paternalismo protetor, apropriação rapinatória e filantropismo, depredação e concessão solene, uma mistura de elitismo oligárquico e socialismo ‘real’. O Estado é assim o promotor, cultivador e educador da qualidade humana chamada disfarce e bifrontismo.]


Hegel — Philosophical History

Pg. 429 – O Estado - pgs seguintes sublinhadas.

Pg. 441: O que faz os homens moralmente descontentes (descontentes a propósito daquilo que se orgulham), é que eles não encontram o presente adaptado a sua realização de objetivos que eles sustentam ser certo e justo.... etc.

Hegel parte de um princípio correto para levantar premissas equivocadas. Se é certo que o homem em primeiro lugar tem na ideia da liberdade seu objetivo absoluto e final, logo Hegel forçadamente atribui a liberdade coletiva à missão do Estado; ‘Reconhecemos o Estado como a Totalidade moral e a realidade da Liberdade, e consequentemente como uma unidade objetiva destes 2 elementos’. Ver o Estado como Liberdade não só é semear o fascismo, como também seu parente espúrio: o comunismo de Estado. Mas essa concepção equivocada é apenas a porta por onde vão escorrer todos os outros erros, isto é, de que a história é uma sucessão evolutiva: ‘as mutações que a história apresenta tem sido por muito tempo caracterizadas em geral, como um avanço para algo melhor, mais perfeito’. Essa concepção foi emprestada ao marxismo e no Ocidente é a chave da Ideologia do Progresso.

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[Não é verdade que no Estado não existem pesquisadores ou ‘cientistas’. Ocorre que eles são uma minoria inconformista como qualquer outro segmento humano na sociedade. Inconformistas porque suas atividades e iniciativas são feitas também contra a indolência paralisante do próprio Estado. Mas ao mesmo tempo eles não desempenham nenhuma função de importância social. Não que suas descobertas e estudos sejam irrelevantes. Ao contrário, existem técnicos importantes. Ocorre que o Estado cativo não pode traduzi-las em técnicas de uso comum. Ele tem de referendar aquilo que é alienígena, que está sacramentado pelas multinacionais no exterior que são a alavanca da inovação. E quem quer que leia revistas de divulgação científicas como a do CNPQ e outras verá que até se distribuem prêmios, para logo depois esquecê-los, porque seus esforços nunca cheguem à sociedade.]


Bertrand Russell : Mysticism and Logic

Pg. 55: Em relação com cada forma de atividade humana é necessário que a questão seja perguntada de tempos em tempos. Qual é o seu propósito e ideal? No que ela contribui com a beleza da existência humana?

31/5/85
[O Estado é a hierarquia da desobediência, e por ela todas as variáveis humanas desfilam, dos crimes estalinistas as mais horrorosas intrigas e atentados que chocam a opinião pública diariamente. Nada disso aconteceria se os homens não devessem obediência como necessidade de preservação deles mesmo e cega reverência a autoridade dos líderes.]

10/6/85
[As relações entre as análises sobre ansiedade em Rollo May (Freud, Rank, Jung, Adler, Sullivan) e o Estado. Parece que o Estado não possui medo, apenas ansiedade, no sentido de que o primeiro está relacionado a um objeto e a segunda é difusa.]

19/6/85
[No fundo da cultura brasileira, o Estado existe como órgão para ser capturado pelo indivíduo ou grupo em benefício pessoal. É um órgão público no sentido de que a infraestrutura da sua aparelhagem é fornecida com os recursos públicos e os benefícios econômicos e vantagens que são desfrutadas pelo grupo que lhe capturou.]

23/6/85
[ A corrupção é também um teste para o Poder mantido pela autoridade que lhe usa. Principalmente quando na sociedade alguns jornais comentam escândalos; uma medida de Poder é o corrupto saber que está sendo criticado e permanecer no cargo como se fosse um desafio para si mesmo e uma medida de sua influência pela garantia do silêncio dos círculos alheios, isto é, uma medida de regulação no sistema de inversão adotado.]

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[O servidor público é aquele sujeito que encontramos num bar a recitar poemas, a falar dos gregos, a comentar interminavelmente futebol, ou que num churrasco nos surpreende com habilidades que nunca imaginávamos possuir. Seus atributos secundários são imensos, mas todos eles frustrados porque o estado os engole e suprime em troca da coerção burocrática. Basta conversarmos com funcionários públicos para verificarmos que um Estado forte é uma sociedade que não se realiza a si mesma. O funcionário público é uma pessoa sem ser uma personalidade. No estado cativo, nem mesmo os diretores são figuras de importância e destaque porque sabem que administram a perda da independência nacional. A personalidade que o funcionário público perdeu, foi consumida pela relação social que desfrutava simplesmente porque a sociedade passa a viver para o Estado e não o contrário. O funcionário público é um homem amputado de suas reais potencialidades em troca das ‘exigências’ invisíveis de anular-se no emprego.]

[A incompetência planejada é também uma das formas do Estado garantir privilégios. Existem setores dos serviços públicos que subitamente entram em declínio na eficiência da realização de suas funções como uma complicação burocrática que se manifesta em grandes incomodações e dispêndio de energia da população que dele deveria se beneficiar. Quando as reclamações populares atingem o máximo de intranquilidade e os protestos se repetem frequentemente, logo os burocratas do Estado tiram da manga da camisa uma solução para o problema com a implantação de uma nova rotina para resolver o dilema, quase sempre preparada para assegurar os privilégios que buscavam pela incompetência do serviço prestado. É a autonomia dos burocratas do Estado em tiranizar a população em benefício próprio.]

[Outro caso de incompetência planejada é a de tecnicamente sabotar certas iniciativas para não permitir uma eficiente realização dos objetivos do adversário.]

[Se a adulação é uma característica do Estado, sobre ela Adler não se cansa de falar em seu Social Interest, A Chalenge to Mankind, por exemplo, as pessoas que foram negadas afetos durante a infância, são as que mais gostam de serem adulados.]

Pg. 147: Os 3 grandes problemas que cada um tem que resolver, e resolver na sua própria característica – os problemas de sociedade, trabalho e amor – podem ser realizados numa forma aproximadamente correta somente naqueles em quem a luta pela comunidade significa algo concreto. Inquestionavelmente não há dúvida e incertezas quando novos problemas aparecem, mas somente a existência da vontade de cooperação pode ser salvaguarda contra erros grosseiros.

[O Estado é o inventor único e indestrutível de uma instituição invisível que lhe segue os passos como uma máfia: o jogo do bicho. É a loteria federal que lhe dá o suporte e a razão de ser de entes que emulam o governo e ao mesmo tempo utilizam seus resultados como atestado de idoneidade do sorteio que – segundo consta na tradição – são zelosamente cumpridos.]

[Vuelta nr. 103: Fernand Braudel diz que certos acontecimentos na história de um país são consequência de um passado remoto. Vale como reforço da tese de que a ditadura militar recriou o colonialismo monárquico centralizado em Brasília. O governo Figueiredo foi na verdade um revival do nosso período colonial.]

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[O complexo de múmia: o fato do Estado não dar certo como organismo capaz de estimular a iniciativa dos indivíduos e, ao contrário, ser um agente inibidor, pode mostrar como é nocivo à sociedade. Se a maior parte dos cidadãos são por si só convalescentes de espírito de iniciativa, então a sociedade vive um complexo de múmia e somente merecem privilégios aqueles que são os mais ativos.]

[Outra boa demonstração de como as coisas são organizadas pelo Estado é o carnaval de rua do Portinho. Gente que é incapaz de, na vida comum, ficar num bar um minuto depois da meia-noite, é incapaz de organizar o desfile em horários decentes. Em vez de começar as dez da noite, o carnaval da Avenida Perimetral começou as 4 da manhã. É carnaval, não de boêmios, mas em horário de padres, porque naturalmente se sucede pela manhã. E os jornais não dizem nada, porque não tem liberdade de criticarem um festa estatista que a priori devem elogiar.]

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[A farsa como tapeação. E a tapeação como administração pública.]

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29/08/85

[Não permitindo que cada profissional aflore como personalidade na atividade que desenvolve, o Estado despersonaliza os funcionários. Sendo não mais que nada, a relação entre os funcionários passa a ser burocrática. Em vez de colaboração, assentimento e responsabilidades, o funcionário não pode assumir a palavra porque suas relações não são baseadas no entendimento mútuo. Fica constrangido as cartas, memorandos, arquivos, atas, etc. A redundância dos mesmos procedimentos vai lhe roubando ainda mais a personalidade, duplicando suas funções por outras pessoas que com o passar do tempo lhe criam total invisibilidade. Ao fim a burocracia é a afirmação mais categórica da despersonalização do indivíduo no Estado, da impossibilidade de viver uma Missão.]

[Não sendo ninguém, o funcionário público tem de ser alguma coisa: é um prisioneiro do Estado cativo. Vive o privilégio da liberdade condicional numa sentença que cobre o tempo de serviço até a aposentadoria.]

[Oprimido no exercício profissional, o funcionário público é um dissimulador. Suas palavras são ditas para esconder seu pensamento, não para mostrá-lo. Em crise, só pode falar coisas obscuras. O obscurantismo é uma atividade mental cujas causas escaparam a Ortega y Gasset. O homem que manifesta-se através do obscuro na profissão ou na vida cotidiana é um reprimido. Alguém que não conseguindo manifestar-se com espontaneidade, ao fim perde a integridade porque não consegue separar o racional do irracional dentro de si.]

4/9/85

[Freud coloca a questão do indivíduo frente à necessidade como o desenvolvimento de 2 impulsos. O primeiro na direção da felicidade, chamado usualmente de ‘egoístico’, e outro na direção do convívio com os outros, chamado de ‘altruístico’ (Civilization and its Discontents – pg. 87).]

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[A sociedade precisa regular a si própria sem a mediação dos políticos. Quanto mas adiantada a institucionalização dos direitos civis, menor é a importância dos políticos.]

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9/3/86 (Já de volta ao Bananal):

[Fala-se em fraudes no INAMPS como o supra-sumo da corrupção. O INAMPS não é defraudado por razões de enriquecimento ilícito e canalhices, como a classe média se esmera em alardear. A fraude provém da miséria de pagamentos do INAMPS aos médicos e hospitais. Quando o Estado não tem poder de sanção, de separar o trabalho correto do trabalho fraudado, ele termina desvalorizando todo o trabalho e empobrecendo os beneficiários, reacendendo automaticamente a chama da corrupção como uma autodefesa contra a degradação imposta. A corrupção não é apenas uma deficiência (ou pobreza) moral. Ela é a condição de toda a política alicerçada na pobreza material. Se o INAMPS pagasse condignamente os médicos e hospitais, grande parte deles não estariam defraudando-o. Mas é a exploração, a supressão da dignidade do trabalho profissional que avilta toda uma sociedade e prolifera a corrupção como um vírus pernicioso, nada mais do que auto-defesa e aproveitamento oportunista de quem defendem juradamente o Estado, para roubá-lo (ou quem sabe resgatar o seu próprio roubo) com a linguagem do compromisso a ele.]

[Comentário 25 anos depois: nesta fase eu quase entendia a questão, raspava perto da verdade, mas não a atingia. O problema da questão anterior se resolve com a autoridade privada, que alicerçada em um contrato, pode demitir e sanear qualquer instituição, desde que não esteja sob a tutela do Estado].

9/3/86

[Tenho ido ao Detran sucessivamente sem conseguir emplacar o Voyage [que comprei em Santa Catarina]. Subitamente me dou conta que o Estado no Brasil me parece o exército de ocupação germânico que vi nos filmes sobre a 2ª Guerra Mundial, onde a população não deixava de relacionar-se, mas não podia exigir seus direitos. É um monstro a nos ameaçar, e onde quer que andamos a suplicar que nos atendam, temos que manter o mesmo sorriso complacente, a boa linguagem da camaradagem, a correta tonalidade do 'faz favor', 'seria possível?', 'dá prá dá um jeitinho'. 'Como é mesmo?' , 'quem sabe isso '..., 'tá legal'...., a emerdação, a simulação permanente, o jogo de esconde- esconde que já penetrou nos poros da nacionalidade e faz desse país simultaneamente um conjunto carnavalesco e uma raça sem garra, um povo docilizado pela falta de direitos civis, e ao mesmo tempo impotente para traçar seu próprio destino, uma massa cordata e estúpida com um alto grau de divertimento coletivo.]

Holderlin: ‘O que faz do Estado um verdadeiro inferno foram precisamente as tentativas de transformá-lo num paraíso’.

Hayek: O Nacional-socialismo alemão foi baseado nas ideias de 2 ingleses: Carlyle e Chamberlain, enquanto o conceito de liberdade inglês amadurecido em J.S. Mill veio de 2 alemães; Goethe e Humboldt.

Hilarie Beloc (em torno de 1920): o efeito da doutrina socialista na sociedade capitalista será a de produzir uma terceira coisa diferente de ambos os seus procriadores, a saber: o Estado servil”.

O Caminhão da Servidão – Hayek, pg. 37: Não é meramente o liberalismo dos séculos XVIII e XIX, mas o individualismo básico que herdamos de Erasmo e Montaigne, de Cícero e Tácito, de Péricels e Tucídites, o que estamos progressivamente abandonando.

26/8/91

Os bancos tornaram-se consortes da degradação estatal. Enquanto na década de 80 os bancos amargavam prejuízos numa economia como a norte-americana, no Brasil construíram fortunas incalculáveis. Nos últimos anos os bancos tornaram-se por isso o símbolo de um capitalismo irritante, como irritante é todo o capitalismo paraestatal. A degradação se transforma no modelo bancário par excellence.: se existe uma desordem tributária com uma avassaladora cobrança de taxas, os bancos ganham: se existe uma inflação causada pelo déficit público, os bancos ganham. Se existe uma emissão desenfreada de títulos estaduais, os bancos ganham.

A natureza de nossas operações bancárias não depende dos depósitos dos clientes (as filas que o digam), porém da compulsoriedade da poupança frente à inflação.

30/9/91:

Poema incompleto

Pensar
na serena insolência
e ocultar-se na vergonha
De ser
Sorrindo o ódio contido
no coração gelado

Interromper
cada amargura descabida
outra ressaca desmedida
Para outra vez fugir
Do mesmo convite
De nova celebração
Da mais notável promessa


10/01/1978
Para quem chega indiferente no restaurante da esquina é uma agradável surpresa encontrar-se alguém que não se vê há dez anos. Os olhos dão um cotovelaço na memória no segundo olhar e nos perguntamos automaticamente – mas então é ele – ali na minha frente o DR em pessoa, como se estivesse me esperando esse tempo todo, como o mesmo sorriso que a prisão, as torturas, os meses na sombra do cativeiro foi incapaz de apagar e sequer mudar um culhonésimo da sua voz tremida, dos seus gestos vagos, do seu otimismo político.

De início a conversa começa calma, como se estivéssemos nos medindo em sinceridade, ou a permanência de algum resíduo de afeto, até que se cria a atmosfera do passado para então perguntar-se onde é que está fulano e sicrano, como se em cada pessoa sangrasse um pouco o passado trágico. E muitas estão veladas nas masmorras da Escuridão Oficial, outras desaparecidas, e outras, por um contraste inconsolável, respeitáveis pais de família.

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O Perfil Perfeito
(Tu que ao falar não reténs sequer dez segundos de atenção não sabes o bem que me faz ao sentir este murmúrio tão necessário ao meu mergulho na solidão. Não sabes o que significa para mim as tuas palavras inócuas, os teus gestos inúteis quando automaticamente adormeço na tua vulgaridade e passo a sonhar as coisas mais lindas entre evasivas, concordar com um sim, sim, ou com perguntas genéricas entre um e outro respirar. Não sabes o bem que me faz os seus conselhos todos os dias repetidos e iguais. Me permitem serenamente odiá-la e penetrar na névoa inconstante do sonho e até lamentar que nesse momento a tua sombra na parede é tão Linda que vale muito mais do que tu...)

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ALEXANDRIA

Revirar o mofo dos séculos. Recolher a cinza eterna. Recompor os fragmentos do passado perdido. Reverter o irreversível. Inútil caminhar por estas ruas de muros brancos, de olhares neutros, de indiferença glacial. Há crimes que não se condenam, porque não existem sentenças que justifiquem o delito. Mas não há pior ditadura que a que se perpetua como um vazio impreenchível na alma de todas as gerações quando as vítimas são os homens de todos os tempos que tem nos livros a fonte mais substancial de sua existência. Queimaram a biblioteca. Arrancaram as almas de milhões de homens e nestas ruas, nestas praças desfilam os fantasmas brancos, as sombras difusas do tempo morto.

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Morreu DR a quem eu encontrara no dia 10/01/78 num restaurante por acaso. Pode-se supor que eu esperava este encontro por 10 anos e de todas as formas que o imaginei ele se realizou diferente. Com espontaneidade, como se o tempo não tivesse passado ele abriu os braços enlaçando-me com um sorriso imutável com sua voz tremida, entrecortada das respirações como lhe era característico.

Quando eu pensava que iria recomeçar a vivência dos outros tempos, eis que ao abrir o jornal na manhã deste domingo, movido não sei por que impulsos desconhecidos resolvo ler a página policial – o que nunca faço – em que narrava a colisão de um Chevette com um caminhão na estrada Porto Alegre-Viamão. Fiquei estarrecido como se não admitisse a ocorrência, porque não poderia ser possível que uma pessoa que passasse por todas as humilhações e dificuldades na prisão, e depois de 10 anos continuasse tão igual, agora evaporasse tragicamente para sempre.

No jornal dizia que viajavam 6 pessoas no carro sinistrado, sendo identificado até o momento apenas ele e um radialista de Passo Fundo.

A pessoa que lhe conduziu ao hospital distante 22 km do acidente disse que o colocou em seu carro ainda com vida, sentado no banco ao seu lado. E como ele ainda falasse um pouco ela pediu-lhe que não parasse para ter certeza de que conseguiria salvá-lo. Mas poucos minutos depois ele talvez já estranhasse que estava morrendo vítima de uma questão mais de probabilidade que de discutível cautela; mesmo assim a moça ao que parece não parou de correr.

Então os flashbacks me perseguem como uma obsessão brutal. Me vêm a memória os meus 18 anos e sucessivamente eu me perguntando o que seria daqui há 10 anos. Neste pequeno silêncio eu sempre concluía por um dar de ombros com um categórico – não interessa, sem, no entanto, poder evitar um tremor na espinha e a alma a cair dentro de um poço. E se não tivesse lido o jornal, não teria tomado conhecimento e talvez diria para tantos quantos me perguntassem que mesmo com todos os equívocos, a gente sempre termina reencontrando e revivendo as pessoas que um dia estiveram conosco. E sairia de Porto Alegre com mais um amigo deixado para as eternas recordações.

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Os jornais dizem que DR não morreu: ele era apenas o dono do automóvel, que, na falta de identificação dos demais, tomou-se por acidentado. É a nossa imprensa dita responsável.

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[33 anos depois: Coloquei o nome dele no Google e descubro que está vivo. É professor na UFRGS e beneficiado na lista dos indenizados pela ditadura. Que cretino!]

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17/3/78

[Mudando de assunto:] Ainda lembro muito bem o dia que partistes. Conversávamos assuntos vagos para que o tempo nos dispensasse e não havia nenhuma importância naquilo que falávamos. É sempre assim quando se está por partir.

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Preciso te confessar que possuo um arquivo. Há anos que organizo um imenso catálogo de imagens sem índice, dispostas na memória segundo um código complexo e não muito conhecido.
Bastam algumas sensações que possam sugerir um certo tipo de emoção que se localiza num tempo e numa situação geográfico-espacial e lá vem a imagem do fundo da memória, brotando clara e cristalina como no dia em que te vi. E fico a explorar suas cores pálidas, a buscar mais luz nos seus pontos escuros ou recompor os fragmentos das partes perdidas para que se confirme a verdade configurada nos traços da face, das mãos ou membros da pessoa analisada.

E como não posso concluir em veredito, arquivo esta foto-imagem, retiro outra, analiso novamente, e começo a fazer combinações comparadas. (Realmente) nunca me dou por satisfeito em minhas conclusões, fecho o arquivo-memória a espera de que algum dia novas imagens da pessoa possam dirimir todas as dúvidas que a busca da verdade – esta qualidade misteriosa do ser humano – destrua toda as apreensões e incertezas.

Poderíamos falar das imagens-momentos quando caminhamos na chuva com os pés molhados pela rua da República com a embriaguez preguiçosa do amanhecer, ou da discussão pausada e doce sobre as mulheres-meteoros que gravitam em nossa existência apanhadas como frutos dadivosos nas selvas espessas do relacionamento.

Mas proponho uma imagem fixa e irredutível: o teu aceno de mão de dentro do táxi no caminho do aeroporto. A composição é a seguinte: há uma fileira de carros estacionados em cada lado da rua que são retas paralelas que se aproximam de mim. Ao lado estão as casas e edifícios, sendo que na direita há muita luz e na esquerda muita sombra e para esta composição a clareza das formas se dissolve. O importante é que o táxi está aproximadamente uns vinte metros quando tu acenas do interior. A cor laranja do táxi é viva porque o sol ilumina toda a parte posterior. Por isso, no retângulo do vidro traseiro forma-se um escuro oliva natural ao tipo de incidência de luz. Como tua mão avança na direção do vidro, mais que a face que simplesmente girou para a esquerda, gravando em minha mente a imagem perfeitamente iluminada, enquanto tua face estava a meia-luz. Procuro analisar os traços da tua postura: é impossível compreender.

Penso que conhecemos uma pessoa por um somatório de palavras-expressões. Por exemplo, o contato íntimo com alguém permite dissecar lentamente certos esforços musculares associados a certos assuntos que são desenvolvidos no diálogo. Um amigo meu sempre saberá através do seu pulsômetro as maiores ou menores variações do meu estado emocional, provavelmente por uma associação da altura dos tons da voz com a movimentação de certos músculos faciais. Mas, no limite, existem estados de incertezas relativas a certos momentos da vida cotidiana. E é sobre a incerteza que procuro te falar. Temos, em nossas relações, momentos em que a dubiedade nos constringe a olharmos nos olhos......
[Creio que adormeci com tanto vinho ...]


De minha viagem de 6 meses à Europa, resolvi transcrever apenas o dia 3 de outubro de 1978. Por que não transcrevo tudo? Porque me parece inútil toda a tentativa de lembrar o passado 36 anos depois. Fiz anotações sobre cidades, museus, lugares, vinhos, insônias, mulheres. Esqueci tudo, ou quase tudo, e acho que viajaria de novo somente para rever o que minha memória apagou por ter abandonado por tanto tempo estas anotações. Se eu as lesse episodicamente, ainda lembraria de um gosto, um momento, uma noite. Mas tudo sumiu pelo abandono. E quem abandona a si mesmo tem que descartar seu entulho de anos.

ROMA (3/10/1978)

Não chegou o dinheiro enviado pela Vera. Começo a me preocupar. Chuva intensa todo o dia. Pés molhados. Um dia excelente para ler ou para escrever. Não fiz nada, ou melhor, assisti Morte em Veneza de Visconti. Li o livro alguns meses atrás. O filme é fiel. O tema de Thomas Man é perfeitamente encenado pela riqueza exuberante de Visconti. Como no Inoccenti, Visconti trabalha nos pequenos detalhes, conseguindo dar força à solidão de Aschenbach. A Beleza é propriedade exclusiva da solidão. Sei, porque me identifico, que a incomunicabilidade oral é o resultado mais angustiante daquele que penetra nos labirintos da sensibilidade ao Belo.

Agenda de 1986-1987

A Fulana não chamava atenção pelas suas ideias, mas pelo balanço de seus brincos. Ela achava que era admirada pelos outros, sem desconfiar que seu jeito de falar era catalizador da atenção pelo refestelar dos brincos nas orelhas.

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O carnaval é o informe: a exuberância, o erótico e ao mesmo tempo é um espectro. Ele mostra todas as possibilidades morfológicas da extensão do gênero humano.

Sua necessidade é a comemoração dionisíaca da força da vida enquanto extravagância. Tem duas realidades opostas: aquela que se esconde e a que se desvela. Esta é a função da fantasia. De um lado a fantasia esconde; de outro desnuda. Enquanto morfologia a fantasia cria a complexidade de um prolongamento, e esconde; de outro, revela todo o erotismo do nu diferenciado por sutilezas. Por isso, é um infuso.

Na confusão de formas, o carnaval quer mostrar que o signo tem lógica, e ao mesmo tempo que ele não tem fim. Tudo é insinuação, até mesmo as cores. A dança é o contrário da ordem. O carnaval é o antimilitarismo por excelência. Enquanto o militarismo cultiva o mito do herói, a dança carnavalesca funde a individualidade num todo coletivo onde o eu não existe. Nada pode ser mais diferente do carnaval que um desfile militar. Mas para que o eu despareça se impõe uma certa disciplina. Elas são as alas, os figurinistas, os porta-bandeiras, a bateria e os carros alegóricos.

A essência do carnaval é a transgressão: é ela que atuando nas profundezas psíquicas quer dar outra morfologia a vida humana, quer fazer do corpo humano simultaneamente duas coisas: desnudá-lo e metamorfoseá-lo. Mostrá-lo em toda sua sensualidade transgredindo o normal e fazê-lo outra coisa, um apelo à libido e uma exceção morfológica na natureza.

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1) Concorrência e livre iniciativa são praticadas por qualquer pequeno comerciante da esquina e apregoadas nos discursos daqueles que a defendem ardorosamente nas tribunas para roubarem do monopólio do estado, que nem admite concorrentes e nem pratica a livre iniciativa.

2) Chega de Kanfkanizar a polícia que já estamos todos cheios de tantas enrolações. A polícia existe para se apoderar do produto do roubo e não para prender os ladrões. Que hajam tantos tiroteios e mortes, tantos espancamentos e violências, é apenas para que o roubo troque de mãos e que a renda se canalize da sociedade civil para os agentes do estado.

O carnaval é também a explosão dos instintos reprimidos. É a atividade estatal, o estatismo que, impedindo o desenvolvimento da personalidade individual, conduz os indivíduos à banalidade burocrática internalizando instintos agressivos que necessitam serem exteriorizados em qualquer objeto. E a festa carnavalesca permite o movimento de grande extroversão, de cura de todos as frustrações. O carnavalista é sobretudo um indivíduo cuja subjetividade é permanentemente sacudida por um desejo de ser outra coisa do que é.

Variações metafóricas:
O assanhado cheio de varizes
Meteu-lhe a calabresa.
Há que se persignar em frente à ideia e a palavra.
Quem de si faz alarde, cedo o rabo lhe arde – provérbio mineiro?

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O carnavalismo é um gênero difuso e sua estética engloba quase todos os particulares. Pode ser o kitsh como pode ser as sofisticadas estruturas verbais do barroco. Sobretudo quando consideramos o kitsh é de estarrecer que Milionário e Zé Rico tenham vendido 17 milhões de discos editando apenas 15 discos. Esse kitsh carnavalesco demonstra perfeitamente como o carnavalismo é um gênero heteróclito que vai de Mário de Andrade a Lima Barreto, às construções barrocas de Coelho Neto (exemplos de formidável erudição), até a cultura de massas do pós-modernismo. Na música popular brasileira é onde o carnaval tem profundas raízes (por exemplo, Tico da Costa) e grande penetração popular. Em Mario de Andrade, o longo poema Paulicéia Desvairada é um exemplo genial onde o picaresco, a ironia e o satírico são os elementos condutores do próprio texto, que em si mesmo é comandado por eles. Mas é um caso raro. Em geral o poema não é um gênero literário emotivo, e sim a prosa. Por isso que os concretistas e Cabral de Melo Neto insistem na natureza cerebral, fisiológica ou de engenharia do poema*. Octavio Paz, Neruda e talvez Huidobro são alguns poucos poetas que produziram poemas sensuais. A sensualidade é sobretudo prosa e o carnavalismo nesse caso é o contrário do concretismo. Um texto que seja um êxtase, e isto só pode ser um barroco que ri**.

Assim como o barroco não é um gênero único, mas um gênero que se sedimenta no trabalho do autor: o barroco de Gôngora, o barroco de Lezama Lima, etc. O carnavalismo também é um gênero que se expressa diferentemente para cada autor.

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* Emoção! Por que negá-la? Até onde vai? Até onde não vai? O pós-modernismo não seria um momento histórico da saturação da capacidade emotiva humana? Uma insensibilidade decorrente de um esgotamento da nossa capacidade reativa?
** Uma prosa sem emoção seria uma prosa sem personagem. Uma coisa meramente experimental.

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Não esqueçamos o binômio dionisíaco x energumismo. O RS e o Rio vivem mais radicalmente esta experiência porque a psicologia carnavalesca é fortemente alimentada pela mentalidade burocrática, pela irracionalidade burocrática diríamos melhor, e por isso por um forte sentimento recalcado de transgressão. A transgressão não só se apresenta como acumulação necessária a expansão carnavalesca, como é, em última análise, no meio irracional, as oferendas do Poder que em sua constituição vai se ordenando na escada dos privilégios. E pela luta do poder e a conquista de suas fatias é que o indivíduo vai obtendo os benefícios (privilégios) da permissividade transgressiva. O poder é o privilégio, a legalização cartorial da transgressão e o cargo, a posição arlequiniesca na escada burocrática.

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Lezama Lima: Oppiano Licario, pg. 99 – Hacía tiempo que mi risa no estaba com tal abertura mandibular, es lo que ustedes llaman el triunfo del Verbo, jamás me habían hecho reir las palabras.....

28-4-86: Qual a psicologia que se assenta na brasilidade carnavalista? O que enfim nos distingue dos demais?
O carnavalismo é a expressão de setores sociais importantes e vão do lupem à oligarquia, passando evidentemente pela burocracia. Sua psicologia implica em estar permanentemente voltado para o histriônico, para a desconsideração com a importância do argumento, para com a consideração a priori airosa de qualquer assunto, e para com uma aversão a toda análise feita com rigor. É o inverso do espírito acadêmico e científico, e também, nas classes desprivilegiadas, um mecanismo de autodefesa contra o saber-poder e aliviante da tensão do complexo de inferioridade.

A classe política brasileira expressa perfeitamente esse carnavalismo quando não leva nada a sério e se comporta como se o único importante fosse a posição em que se encontra e descarta toda a controvérsia que implica num pensamento rigoroso de busca da verdade. [Hoje em que digito estas notas, 17/2/14, não acho que esteja correta esta análise].

Assim, a psicologia carnavalesca implica em um repertório de piadas e também numa criatividade para produzir versões hilariantes, onde o obsceno se introduza com o ridículo e passa a ser comentado nos foros da permissividade social.

Desvalorizada a postura natural de busca da verdade e incentivando o deboche na psicologia humana, no final de contas o carnavalismo nada mais é do que a tentativa de convívio harmonioso quando o próprio falar sério já não é mais possível porque se transforma no oposto do hilariante: é o palco do desentendimento humano.

Pois se o falar sério já está contaminado pela intolerância e perda de docilidade e respeito, então a via neurótica é a inconsciente convicção de que nenhum argumento é importante, ou mais atenuadamente, de que tudo é farsa e representação.

Mario de Andrade ( O Banquete) afirmava, surpreendentemente, que o Brasil não era um país latino: acertou em cheio. Mas com seu Paulicéia Desvairada e Prefácio Interessantíssimo não penetra na questão do carnavalismo: ainda era cedo.

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Em lugar da cultura de Café que preza a troca de ideias num ambiente de cordialidade, o carnavalismo é uma cultura de rua que desenvolve um diálogo frouxo, dispersos pelo movimento, quebrado pela desatenção: é uma cultura essencialmente tropical. Ele tem o movimento corporal dos trópicos.

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Do livro Barroco de Severo Sarduy, pg. 24, cita Heráclito: ...”da reunião do diferente resulta uma bela harmonia, uma reunião divergente, como a harmonia do arco e a lira”, “só a enfermidade torna a saúde agradável, o mal o bem, a fome a abundância, a fadiga o repouso”.

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O papel do riso: aquilo que se diz hoje será tomado como sério amanhã (do ponto de vista das ideias) e aquilo que hoje é sério (em política) amanhã cubrirá a humanidade de risos.

Nacos:
Chasquear ―
Palafréns ―

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O que forma o instinto? Entre outras coisas, o interesse. E quando a sociedade estatista dispensa o saber, pela hierarquização burocrática, as pessoas perdem o interesse pelas ideias, pois não as necessitam para sua sobrevivência. Sem necessidade de pensar, o burocrata trabalha seu instinto para o alegórico e hilariante. Tem mais sucesso como piadista do que como sujeito sensato.

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Ideias para a constituição de segmentos de um livro. Um intelectual não consegue audiência para suas ideias e inventa um nome fictício de um professor francês da Escola de Altos Estudos e cita seus pensamentos como fossem dele.

Nacos:
Um bafo de paixão – Lawrence, pg. 164
peganhento – pg. 260
ébis
Um culhonésimo
p. 268 – Quanto mais o homem envelhece, mais se torna carnal e mortal. Só a mocidade dá valor à imortalidade.
Resserenasse.

A cultura carnavalista encontra forte sustentação na estupidez burocrática. É ela, responsável pelo absurdo na vida cotidiana, condição necessária para aumentar a tensão psíquica para a busca do alívio no riso ou na transgressão de ambos.

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Era um escritor medíocre e trabalhava febrilmente, mesmo depois de saber que sofria de uma doença incurável.

― Mas por que trabalhas tanto? ― disse fulano que lhe conhecia de longos anos e sabia da média qualidade de seus trabalhos.
― Porque a Inquisição vem aí ― disse o escritor medíocre ― de qualquer forma os gênios estarão condenados. Tenho trabalhado ardentemente para sobrar como um imortal.

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Poema incompleto:
amor amortecido
amor tecido
em doces dotes
amor ora amor (agora)
sem sentido
sem ter sido.

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Vejo as velhas da Vila brigarem por problemas irrisórios. Esta indetível mania de se tratarem aos pataços é um sintoma claro de decadência: a inexistência de uma exigência moral de conduta. Mil vezes a hipocrisia dos homens que a língua de velhas rabugentas dispostas a se xingarem umas às outras.

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Corrupção:
Os mutuários do BNH descobriram uma cláusula pela qual poderiam quitar suas prestações em caso de invalidez. Desde então, 12 mil casos de invalidez ocorreram causando um prejuízo de 800 milhões de cruzados.

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"Não tenho o menor respeito à obsessão pelo igualitarismo, que não me parece ser mais nada que a sublimação da inveja”.
Oliver Wandell Holmes, Jr.


Hayek – Direito, Legislação e Liberdade

Pg. 30
“Sempre que um tipo de situação evoca um indivíduo, uma disposição para determinado padrão de resposta, está presente a relação básica chamada de “abstrata”.

“Nunca agimos e nunca poderemos agir levando em conta todos os fatos de uma situação específica, e sim destacando sempre, como relevantes, apenas alguns de seus aspectos; não por escolha consciente ou seleção deliberada, mas por um mecanismo sobre o qual não exercemos controle voluntário”.

"Talvez tenha ficado claro agora que, ao enfatizarmos constantemente o caráter não racional de muitas de nossas ações, visamos não a menosprezar ou a criticar essa maneira de agir, mas, ao contrário, a salientar uma das razões pelas quais ela produz bons resultados; não a sugerir que deveríamos procurar compreender plenamente por que fazemos o que fazemos, mas a frisar que isso é impossível; e que somos capazes de utilizar tanta experiência não porque a possuamos, mas porque, sem o sabermos, ela se incorporou aos esquemas de pensamento que nos orientam".

pg. 32: “A razão é somente uma disciplina, uma apreensão das limitações das possibilidades da ação eficaz, que muitas vezes nos dirá apenas o que não fazer. Essa disciplina é necessária precisamente porque nosso intelecto não é capaz de apreender a realidade em toda a sua complexidade. Embora o uso da abstração amplie o âmbito dos fenômenos que podemos dominar intelectualmente, ele o faz limitando também a certos traços gerais o grau em que podemos moldar o mundo ― nossa vontade. Por isso, o liberalismo restringe o controle intencional da ordem global da sociedade à aplicação daquelas normais gerais que são necessárias à formação de uma ordem espontânea, cujos detalhes não podemos prever.

É insensato aplicar os padrões de comportamento consciente àquelas consequências impremeditadas da ação individual, expressas por tudo que é autenticamente social, exceto eliminando-se o impremeditado ― o que significa eliminar tudo aquilo que chamamos de cultura”.

pg. 11: Ao contrário do que em geral se pensa hoje, a ciência não consiste no conhecimento de fatos particulares, e, em casos de fenômenos muito complexos, seus poderes são também limitados pela impossibilidade prática de se averiguarem todos os fatos particulares que precisaríamos conhecer para que as teorias científicas pudessem conferir-nos o poder de prever eventos específicos. O estudo dos fenômenos relativamente simples do mundo físico ― onde a ciência demonstrou ser possível enunciar as relações determinantes como funções de algumas variáveis facilmente constatáveis, em casos específicos, onde, por conseguinte, tornou-se possível o progresso estarrecedor das disciplinas que delas tratam ― criou a ilusão de que, brevemente, o mesmo será verdade no que diz respeito a fenômenos mais complexos. Mas nem a ciência nem qualquer técnica conhecida nos permite superar o fato de que mente alguma, e portanto, nenhuma ação deliberadamente orientada, pode levar em conta todos os fatos específicos conhecidos por algum homem, mas não conhecidos, em sua totalidade, por ninguém em particular.

De fato, em seu empenho por explicar e prever eventos específicos, o que faz com tanto êxito no caso de fenômenos relativamente simples (ou nos casos em que pode, pelos menos aproximadamente isolar 'sistemas fechados' de relativa simplicidade), a ciência defronta-se com a mesma barreira de ignorância factual quando se trata de aplicar suas teorias a fenômenos muito complexos.

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“Ubi non est lex ibi no est trangressio” ― onde não há lei não há transgressão. pg. 199 – Fundamentos da Liberdade

O certo seria: onde não há lei.... que é o corolário de 'nulla poena sine lege' (pg.198), como prova de que a transgressão da lei está onde o excesso burocrático (de leis) instiga a transgressão.

Citado por Samuel Johnson (1787). Reproduz o discurso de Mr Campblell no debate sobre a lei do trigo, na Câmara dos Comuns, em 26 de 11 de 1740.

A. de Tocqueville, Recollections (Londres, 1896) citado por Hayek, pg 223, sobre a CENTRALIZAÇÃO.

“Quando, portanto, as pessoas afirmam que nada escapa às revoluções, eu lhes retruco que estão erradas, pois a centralização do poder sobrevive às revoluções. Na França, só não conseguimos instituir uma coisa: o governo condizente com a sociedade livre; e só não conseguimos destruir uma coisa: a centralização. Como pôr fim a isso? Os inimigos do governo adoram-na, e aqueles que governam a veneram. Verdade é que estes últimos, de tempos em tempos, se dão conta de que com isto acabam por se expor a repentinas e irremediáveis desastres, mas isso não os indispões contra a centralização. O prazer que lhes proporciona o poder de interferir na esfera de cada cidadão e de deter o controle de tudo compensa os perigos”.

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Carnavalismo: Hayek diz que não pode haver Estado de Direito se o próprio Estado dedica-se a atividade monopolista.

Tocqueville, pg. 305: o Estado Previdenciário mantém os homens em perpétua infância. “As maiores ameaças à liberdade ocultam-se na intromissão insidiosa de homens zelosos, bem intencionados, mas desprovidos de discernimento”. L . Brandeis – juiz americano.

Nacos:
Toda a atividade política pode ser reduzida a um aforismo: entorpecer pela esperança.

Edmund Burke: Thoughts and Details on Scarcity, Works, VII, 390-391, citado por Hayek, pg. 368: “Sempre que um homem nada pode reivindicar com base nas normas do mercado e nos princípios da Justiça, deve abandonar esse departamento para ingressar no da misericórdia”.

K. E. BOULDING: Economic Analysis and Agricultural Policys – Canadian Journal of Economics and Poltical Science, vol XIII (1947). Citado por Hayek em os Fundamentos da Liberdade, pg. 437:
“A chamada 'revolução industrial' não foi gerada por poucas e insignificantes transformações na técnica da indústria têxtil; foi filha direta da revolução agrícola, baseada no cultivo do nabo e do trevo, na rotatividade das lavouras e na melhoria na criação de animais, que se desenvolveram na primeira metade do século XVIII. O nabo, e não a máquina de fiar de múltiplos usos, gerou a sociedade industrial”.

[Trinta anos depois: ah ah ah ah]

Nacos:
Epicédio – Composição poética ou sinfônica, ou discurso em memória de alguém.
Trocadilho = calembur, triquestroques.


Stendhal — A Cartuxa de Parma

Balzac tinha um certo horror à simplicidade americana. Ver a Introdução à Cartuxa de Parma de Stendhal, na pg. 23.

“Nada mais espirituoso do que a iniciação de Fabrício nos seus futuros destinos. Os dois amantes expõem a Fabrício as probabilidades de sua vida. Fabrício, rapaz admirável de espírito, compreende tudo e entrevê a tiara. O conde não pretende fazer dele um padre como se veem tantos na Itália. Fabrício é grão-senhor, pode conservar-se ignorante se tal é o seu desejo, isso não o impedirá de chegar a arcebispo. Fabrício recusa-se a levar a vida de café, tem horror à pobreza e compreende que não pode ser militar. Quando fala de ir fazer-se cidadão americano (estamos em 1817), explicam-lhe a vida triste da América, sem elegância, sem música, sem amores, sem guerra, o culto do deus Dólar e o respeito devido aos artesãos, à massa que por seus votos decide tudo. Fabrício tem horror à canalhocracia”.

Não se passa da canalhocracia à democracia por meios pacíficos, sem antes instalar uma carnavocracia equilibrista.

“Os grandes políticos, afinal de contas não são mais do que equilibristas que, por falta de atenção, veem esboroarem-se seus mais belos edifícios”, diz Balzac na pg 24 da Cartuxa de Parma.

“As pessoas de espírito que nascem sobre o trono, ou ao lado, perdem de todo, em breve a finura do tato; proscrevem em torno delas a liberdade de conversação, que lhes parece grosseria; não querem ver senão máscaras e pretendem julgar da beleza da cútis. O engraçado é que julgam ter tato” pg 26.

Balzac citando Stendhal e na pg. 38 citanto Tácito a propósito dos crimes de Tibério; “sou propenso a crer que a felicidade imoral que encontram em vingar-se, na Itália, é devido à força da imaginação daquele povo: os outros não perdoam, esquecem". Na pg. 46 do Cartuxa de Parma.

“O sentimento é igual ao talento. Sentir é o rival de compreender, como agir é o antagonismo de pensar. O amigo de um homem de gênio pode erguer-se até ele pela afeição, pela compreensão. No terreno da afetividade, um homem medíocre pode vencer o maior artista. Nisto está a justificação das mulheres que amam um imbecil”.

“De sorte Stendhal não é um cortesão, tem o mais profundo horror pelos jornais”. pg. 49.

Nacos:
Poética: nutro o negro projeto.
Semitolos
Noli me tangere.
Enfarado nos feriados
Escanifrado – muito magro, desengonçado
De gustibus non est disputandum
Veritas odium parit
Apostolado positivista; resingos e respingos; o demônio em seus domínios; ásperas diásporas. Mentiu das 2 h 35 min e 13 seg às 2 h 52 min e 45 seg.
Roma: broma macabra que não acaba.


Carlos U Pozzobon — Anotações Críticas sobre o Estado Carnavalesco

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[O energumismo nas eleições de São Paulo: a linguagem da ameaça, essa triste herdeira da religião e sua consumação de pavores, essa organização simétrica do terror de que falou Raul Pompeia, ocupa o tom da campanha eleitoral com a retórica da segurança como instigadora do medo. A terrível hipocrisia e cinismo da direita naftalina destoa solitária na campanha. A reverberação de tons ameaçadores tem entretanto seu efeito preciso: apavora os indivíduos fracos, aqueles a quem as dificuldades são o apanágio da insegurança, e que para livrar-se do terror precisam a condescendência submissa do voto naqueles candidatos como se negocia o medo do sobrenatural na docilidade à Igreja. É inimaginável que os profissionais da intriga fossem buscar tão rapidamente os recursos para uma prática democrática nos remordimentos da memória passada em seminários, em colégios de padres, na terrorificação dos púlpitos. E que possam impunemente se dar a liberdade do energumismo mais desabrido com o silêncio quase unânime da maior parte dos intelectuais da nossa sociedade. Subitamente parece que se desconhece o bom senso, o equilíbrio e a moderação, e a política passa a ser um território de vale tudo onde se permitem as mais abomináveis grosserias e libertinagem ― eis aí a outra máscara do carnaval.]

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O costume brasileiro de não obedecer as leis (ao conjunto impune) vem de longa data. Lima Barreto, em A NUMA E A NINFA (1915) satiriza nas Memórias do Dr. Bogoloff a mania burocrática de se fazer leis no Brasil[.

Quando Bogoloff visita o ministro da Agricultura chamado de Xandu, é recebido no tom burocrático escrachado:

― “Ora Doutor! Desculpe-me! Desculpe-me! Não sabe como ando atarefado. Hoje já assinei 1.597 decretos... sobretudo! Sobre tudo! Neste país tudo está por fazer! Tudo! Em três meses, tenho feito mais que todos os governos deste país. Já assinei 2.725.832 decretos, 78.345 regulamentos, 1.725.384.671 avisos. Um trabalho insano!”
Numa e a Ninfa – Grafica Editora Brasileira Ltda, s/d pg. 236.

O doutor Bogoloff tem uma segunda audiência com o ministro, e novamente a fobia de decretos vem à tona:
… ― “Hoje, por exemplo, tenho de assinar 2.069 decretos e levo do Presidente 400 regulamentos entre os quais um sobre a postura de galinhas que vai lhe agradar muito” (pg. 246).

30-10-1986
Acredito que nas relações sociais nós brasileiros discordamos muito uns dos outros porque somos um povo com uma identidade muito pequena no terreno das ideias e muito forte no campo dos costumes. O indivíduo polêmico em geral vive em conflito. Daí porque meu enfoque sobre o carnavalismo tenha a antipatia de uns e a simpatia de outros. Se tivéssemos um consenso sobre as questões da cultura e sociedade, não estaríamos em crise e também não discordaríamos tanto uns dos outros. O Brasil não é só um país de diferenças sociais, mas sobretudo de grandes diferenças entre grupos de opinião. Aqueles que são entusiastas das diferenças podem sentir em certos momentos grande fascinação pelas coisas brasileiras, e subitamente grandes frustrações. São oscilações naturais de nossa busca de identidade.

A importância da política ser tratada num ensaio sobre o carnavalismo deve-se ao fato dela ser uma tentação ao diabólico.

Logo após a publicação de Pauliceia Desvairada, Mario de Andrade retirou o conceito de desvairismo, porque provavelmente sentiu uma enorme tensão entre a carnavalização instintiva e a exigência de probidade da profissão de poeta e escritor; enfim, não quis ser um maldito.

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“Duvido que o homem possa suportar simultaneamente uma completa independência religiosa e uma inteira liberdade política; cheguei a crer que, senão tem fé, é preciso que sirva, e se é livre, que creia”. Tocqueville.

A sociedade omnitecnológica.

Afectus dilectionis (sentimento de profundo afeto de uma pessoa por outra falada pelos teólogos [Hugo de San Victo no século XI] como do afeto de Adão por Eva).

Soteriologia – parte da teologia que trata da salvação do homem.

Sobre o diabólico. A suspeita de que a origem da AIDS seja de ordem bacteriológica elaborada em laboratório.

Alexandre Zinoviev em El Viejo Topo nr 44
“Para que exista relações políticas deve haver interlocutores independentes. O estado soviético não possui relações políticas internamente porque não tem independência”! Este ponto é essencial para a análise do Estado. Título: A sátira como lógica enfurecida.
Sobre o riso ver artigo de Ivan Illich em El Viejo Topo extra 14.
Sobre a Teoria da Crise – Fernando Savater. El Viejo Topo nr. 49
Sobre Sade ― Idem nr. 49.
Sobre a Inteligência ― idem nr. 48
Sobre o deslocamento da política – Jean Baudrillard – idem nr. 48
Sobre o amor e o poder; entrevista com Denis de Rougemont ― idem nr. 48
Crise da razão ética e crise da razão de estado. ― idem nr. 47

Nacos:
Quiproquó – confusão de uma coisa com outra. Situação cômica resultante de equívoco.
Quiprocó de triquetroque.
Eróiticas -
Aceite as minhas prolfaças (parabéns).
Agarrar pelas repas – aproveitar a ocasião, pegar pelos cabelos.

Ezra Pound – A Arte da Poesia ― pg. 121

“Ironista é aquele que sugere ao leitor que pense, e, não sendo este processo natural à maioria da humanidade, o caminho do ironista está coberto de ciladas e espinheiros”.

Pavel Kohout ― White Book ― The woman from Prague....
Marcel Swchob ― O Rei da Máscara de ouro.
Ambos em El viejo Topo 43.
Lumpen, Marginalização e Geringonça de Alfonso Sastre, El V. T. 42
Entrevista com Milan Kundera, El V. T. 42
Érica Jong – Isadora empreende el Vuelo ― considerada obra pornográfica e obscena em El V.T. Nr 42 e nr 15.
Sobre a busca de sentido e se ainda é necessária a hipótese de Deus. El V. T. 40
André Pierre de Mandiargues ― diversos livros ― El V. T. Nr 40
Consultar a lista de 50 títulos dos melhores livros da década de 70 de El V. T. nr. Extra8. pg. 62
O Bom Selvagem e o Mau Anarquista ― de Fernando Savater
David Hayman ― Entrevista sobre a literatura americana ― El V.T. Nr 37 pg. 49
Jean Pierre Faye ― El V. T. 44, pg 29
Eric Fromm ― Gustave Flaubert ― Duchamp ― Verlaine. nr. 44
Lou Andrés Salomé – nr. 27
Francis Bacon ― Juan Marse ― Vila ― Matos ― pret-à-penser ― sobre o slogn ― idem
Miguel Delibes – O disputado voto do senhor Cayo ― idem.
Raymond Roussel – Impressões da África e Locus Solis – El V. T. 19
Lautreamont – idem

“Que tempos estes nos quais é necessário lutar pelo que é evidente” F. Dürrenmatt.
Eisestein ― surrealismo ― sobre a dúvida ― Nietzsche ― Beat Generation ― Gaetano Tumiati ― El Corsé de Yeso ― El V. T. 18
Italo Calvino – sobre a dissidência soviética ― Robert Musil – Byron.
Weltanschauung – multividência
Auri sacra fames – avidez de ouro. Em O Protestantismo e o Espírito do Capitalismo de Max Weber.
Se a vida pública pode prescindir da moralidade, ela então é a encarnação do carnaval.


[Numa sociedade estatista, um partido político tende a se constituir num grupo de funcionários públicos que lideram um grupo muito grande de representantes civis: os primeiros conseguiram tal posição pela inata capacidade de simular, enquanto os demais são os zeladores da doutrina e tenaz pressionadores para que seus dirigentes não sejam iguais aos seus adversários, também funcionários públicos.]

[Ora, a política numa sociedade pressupõe a existência de interlocutores independentes. Para que os dirigentes deixem de simulação e ambiguidades, devem renunciar obrigatoriamente (isto é, por lei) à vitaliciedade do cargo, isto é, não serem reelegíveis, apesar de ocuparem-no por um tempo relativamente longo. Com isso, corrige-se não só o caudilhismo, o espírito de funcionalismo público, como também a função primordial do cargo político, de ser acessível ao máximo possível à sociedade.]

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[A diferença da crítica com os outros gêneros é que ela pode ser a favor ou contra, deve sempre ser fortemente marcada pela opinião pessoal do autor ― e com isso podemos concordar ou discordar ― , e distingue-se pela exclusividade das ideias traçadas. O contrário disso são os comentários travestidos em críticas feitos para agradar o leitor, onde não se reconhece traços de pessoalidade e não se encontram rastros de ideias próprias, mas opiniões que circulam em consenso.]

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[A autoilusão do político é tão eficaz quanto as vantagens materiais do Poder. Mas, ao mesmo tempo, a autoilusão é a pior máscara. O instinto de sobrevivência constitui a pior enfermidade da política; a erosão gradativa da integridade, a supremacia do trivial sobre o original, a necessidade de agradar. Somente a limitação antecipada do mandato parlamentar sob a ética de que o político deve ser substituído para assegurar o máximo de rotatividade nos Congressos e Assembleias é que criará os interlocutores políticos independentes e a política sairá do marasmo dos interesses para germinar no terreno das ideias. Este é o sentido da epígrafe de Lima Barreto no capítulo A Política Como Carnaval.]

[As bases de um partido político não estão ligadas por funções hierárquicas. Nelas a discussão é mais espontânea, aberta, direta, franca e questionadora. Elas realmente mantém o sentido original de fazer política. Na cúpula dirigente, a necessidade de sobrevivência se torna dissimulação: ação carnavalizadora do instinto para a cortesia neutralizante do discurso: ênfase na camaradagem, na polidez, na diplomacia e na redundância. Fortemente hierarquizada, a cúpula estatizada dos partidos políticos perde a independência e aplaina o discurso na adulação e no elogio, na neutralidade e equilíbrio. Latu senso, deixa de ser política, porque os interlocutores dependem de relações verticais. Insisto que o político profissional é tão carnavalesco quanto maior sua intenção de permanência na política, quanto maior sua convivência com o Estado. A cúpula, quanto mais velha, mais representa o Estado (partidocracia) enquanto a base, quanto mais independente, mais representa a sociedade civil].

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O carnavalismo tem íntima relação com o decadentismo, onde os interlocutores falam uma linguagem entre si e outra para os outros.

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A subordinação é uma psicologia que privilegia a repetição sobre a criação, onde a adulação corrompe a cordialidade.

Quando uma sociedade não tem interlocutores independentes (caso da política de Estados fortes e poderosíssimos), os vínculos políticos perdem a individualidade para se articularem com a redundância e a repetição. Machado de Assis compreendeu este fenômeno quando escreveu recomendações de pai para filho para que tivesse sucesso. “Meu filho, não diga nada original. Isto só lhe trará dissabores. Repita tudo o que os outros já disseram. É a condição do sucesso”.

Nos regimes total/autoritários, a fidelidade é mais importante que as ideias, pois a necessidade rotineira destes regimes de conseguir legitimação, obriga a repetitiva afirmação e elogio das pessoas hierarquicamente acima do interlocutor. Por isso a carnavalização, o ventriloquismo da política. Os satiristas poloneses ― antes do golpe de Jaruselsky ― elaboraram um catálogo de expressões redundantes que serviam para qualquer uso, e que reproduzo abaixo, como ilustração.

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Costumava consultar o catálogo telefônico em todas as cidades que chegava em viagem de férias e sempre se surpreendia ao descobrir que, sem saber, já morava naquela cidade.

Excentricidades:
Bravuconadas
Era do ponto de vista sexual, um inadimplente.

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O poder estatal (no estatismo) estabelece uma inter-subordinação que destitui qualquer um da decisão e ao mesmo tempo confere a todos a capacidade de julgamento. Ameaçando desagradar a cadeia transjulgadora com as asperezas (do dever, da obrigação, da responsabilidade), ele se desvia para o Nadismo, subvertendo sua responsabilidade com o desvirtuamento da linguagem funcional para o privilégio à trivialidade do bafafá efusivista. Se ninguém decide nada, então ninguém deve falar sério, e a linguagem deve bloquear a responsabilidade e o questionamento. Por isso, o estatismo dispensa toda a capacidade intelectual em detrimento do Nadismo da anulação da linguagem enquanto objeto de conhecimento e indagação. Neste momento, a figura do Renunciador obtém uma posição de destaque na rede burocrática. Não pretendendo ser nada, nem ninguém com títulos substantivos, o Renunciador é o mais adaptado à estrutura estatal. Ele se acomoda à degradação porque elimina a necessidade de eficiência e discernimento individual: sua atenção é a repetição, a ventriloquia das hierarquias políticas superiores.

O estatismo como gerador do Renunciador, realizou na brasilidade aquilo que Mario de Andrade com inequívoca sensibilidade entendeu ao dizer que “o brasileiro quer ser funcionário público”. O único estranhamento à nossa estrutura social, veio pela parte da imigração que aqui chegando sempre lutou para se tornar constituída por produtores independentes, obtendo relativo sucesso frente a uma sociedade onde a iniciativa pessoal sempre foi frustrada (e menosprezada) pela cultura estatal.

Que ninguém pense que a alta cúpula dos partidos é um laboratório de ideias políticas. Ao contrário, ali encontram-se os indivíduos néscios, os menos criativos e os mais torpes, quase todos eles trânsfugos de usar a pena a serviço da exposição de suas próprias ideias. (A adulação produz mais pontos na estima dos predicados à ascensão hierárquica que o mais obsessivo dos esforços individuais na dedicação às tarefas do cargo). Com exceção do político que tem forte apoio das bases e não pretende a adulação dos caciques, podendo dissentir e expressar suas opiniões, as cúpulas são tão viciadas pelo espírito estatista como qualquer outro órgão público.

Já as bases são constituídas por interlocutores independentes e que se manifestam com espontaneidade nos assuntos públicos, exercendo pressões sobre a cúpula cuja tendência é sempre o amortecimento, o mesmismo carnavalesco, da qual a Nova República tem sido o mais contundente testemunho.

Citar Bertrand Russell sobre a adulação. Continua: ― com todo o oba-oba da burocracia, dos meios de comunicação, aos chefes estéreis, aos candidatos à estátua, aos dirigentes do nosso subdesenvolvimento endêmico, ninguém desconfia que são homens em que a história lhes reserva uma sonora gargalhada!

Assim, no bafafá das cortesias diplomáticas, o ignorante se igual ao sábio, o especialista ao picareta, o estudioso ao banal. Na alta cúpula de um poder dependente, toda a genialidade consiste num Nada de espírito, numa ausência de personalidade que faria Balzac chorar a cada vez que tivesse de ouvir as delicadezas e o refinamento do espírito das declarações dos governantes pelos meios de comunicação: o que não elimina a autoilusão, desde que, nunca tiveram interlocutores com o mesmo acesso à palavra que eles, o que por si só explica o Poder. Mas julgarem-se afortunadas e importantes é talvez a completa insensibilidade as coisas humanas; nem poderia ser diferente: a autoilusão é a pior máscara.


Digamos que o poder não duvida, se há alguém que não duvida, esse alguém é a gente do governo, os que tem o poder nas mãos. Ora, a dúvida faz sofrer, a certeza nos leva a fazer os outros sofrerem.

Dupla personalidade:
Quando uma sociedade não absorve os indivíduos naquilo que eles são, suas tendências inclinam-se em reservar sua própria personalidade para os amigos e uma outra para a instituição de trabalho: jogo de máscaras que promove a insatisfação e a falsidade, mas que, por outro lado, garante a sobrevivência do indivíduo no meio social e sua integridade preservada na vida privada. A dupla personalidade é o fim da inocência, e a resistência à cooptação, uma tentativa desesperada do indivíduo em manter suas convicções longe do fazer cotidiano. Somente a política consegue superar esta dicotomia, situando-se no centro dionisíaco, na esfera do equilíbrio.

A dupla personalidade é aquela em que o indivíduo não se cobra coerência e integridade; ele assume a postura do meio. Tal qual o executivo que é uma coisa na Avenida Paulista e outra quando tira a gravata e põe o chinelo na praia, também o intelectual que nos bares da noite posa de revolucionário para no dia seguinte ser o porta-voz do capitalismo brasileiro, convive com identidades tais que diz respeito ao meio ambiente tal qual o cidadão que sendo liberal entre amigos torna-se reacionário e conservador dentro de casa como apontou Roberto da Matta.

O daimônico ou diabólico (no sentido de Rollo May) faz parte da ineficiência planejada. A ineficiência planejada é a conciliação de interesses privados com os assuntos públicos.

Nacos:
Inglês: cantankerons – rabujento, birrento, mau, perverso, ruim.
Femme fatale.
A função do interpretante. Elisão do fundamental face as obviedades. Interpretar as leis em função da transgressão possível.
Varicolores.

O interpretante necessita do estereótipo porque o discurso não vale por si. No demoníaco generalizado, o emissor nunca é aquilo que diz, mas o que representa. Se lemos um editorial de um jornal queremos saber como aquelas ideias se vinculam a imagem estereotipada que temos do órgão de informação e não o valor das ideias como tal, pois elas podem querer dizer outras coisas que nos compete interpretar já que a ideologia se confunde com a mentira (Pierre Clastres) [Francamente não é uma citação de Clastres, porém uma citação de um artigo dele, provavelmente da revista Vuelta].

Nacos:
Osvald é um metaforizador
Assassinato de massas – massassinato
Melgarejo – nome de 1 ditador boliviano do século XIX.
Inglês ― cagey = matreiro.

Ainda temos o incoerente: é um tipo de personalidade carnavalesca de indivíduos que não estão muito preocupados com a exatidão de suas palavras. O incoerente gosta de blefar, de exagerar os assuntos, de aumentar o que é seu; seu pedantismo está sempre a descoberto, mas não parece importar-lhe. Como o governo, cujo discurso é cheio de inversões, o incoerente é o transgressor de si próprio frente aos outros. Mais do que um hipócrita, é um super individualista, aferrado nos próprios desejos materiais e no hedonismo delirante. É também um mau-caráter.

O número de mercenários contra o Brasil é significativo. São os espalhadores de mitos, fofocas, disque-disque. Estão condicionados ao autoritarismo estatal, ao elitismo.


A literatura americana é desinteressante porque pratica o taylorismo literário. Não cria, produz. Não estetitiza, vulgariza. Não tem tempo para uma grande criação: 'time is money'. O escritor americano tem no desejo de riqueza precedência sobre o desejo de perfeição. Não acredita na virtude, mas no pragmatismo. Não deseja alcançar o inalcançável. Apenas quer fazer as coisas bem feitas. Sua audiência é sempre o homem médio, nunca o homem culto. É uma literatura de mercado, não de minorias ou elites. Os escritores são consagrados pelo grande público, não por estudiosos. Não se trata de um erudito, mas de um popular.

Na diversidade de enfoques possíveis de serem tomados para a análise literária (tensão, drama, linguagem, etc) os americanos não incluem na literatura aquilo que poderia defini-la: o estudo das formas de expressão. Não são barrocos, tampouco carnavalescos à Joyce, muito menos acadêmicos. Sua genialidade implica em encontrar a própria voz interior, esse caráter americano prático, simples e bonachão. Nos Estados Unidos, os livros são como esses vinhos novos que não obstante bebermos nunca nos apaixonam.

Aqueles que falam com ceticismo da falta de qualidade da literatura atual dos povos desenvolvidos em face da grande inovação produzida por escritores sob regimes de opressão, deveriam lembrar-se que nem só da infelicidade se criam grandes obras. A beleza também nasce de uma poderosa necessidade de expressão, não só como revolta, mas também como pesquisa.

Os americanos que se lixam para as massas, escrevem para elas. Os intelectuais europeus e latino-americanos que vivem para as massas, são elitistas.


O carnaval é a organização do prazer quando a sociedade é incapaz de organizar o trabalho.

Qualquer sociedade onde a vida humana está voltada para a atividade produtiva, tende a liberar o lazer. Ou o organiza, segundo a lei da oferta e da procura de sua riqueza circulante e dos seus interesses sazonais. Quando o poder existe para não fazer, e as iniciativas criadoras, produtivas, empreendedoras, para paralisar-se na restrição dos privilégios, na necessária redenção da riqueza nas mãos de poucos, as inversões, os preconceitos, a falsificação, torna-se moeda corrente. Sem oportunidades, a vida pressiona as estruturas em todas as formas, a ponto de criar a legitimação do hedonismo. O poder demoníaco recebe outra resposta demoníaca, só que o poder é energumista, e a resposta, dionisíaca.

Recebendo os favores do poder, o dionisíaco vai se organizando para ocupar um espaço que a produtividade não fornece. Eis aí a legitimização do carnaval, sem crescimento como instituição produtiva.
Por isso, o carnaval só pode existir com a contravenção, a impunidade, o roubo, a inversão.


Ressalva:
Toda a falta de seriedade se resolve na solenidade. A falta de conteúdo reclama a presença do espírito pomposo.

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Se ditadura e democracia são intercambiáveis, uma está contida na outra. Então alguma coisa é falsa, ou a chamada ditadura, ou a chamada democracia.

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24/3/87
O que admiramos nos esportes e que pode ser particularizado para o futebol, é que sobre o infuso aleatório da natureza podemos encontrar situações geométricas próprias. O gozo estético (o chamado futebol arte), é sobretudo uma ordenação da natureza geométrica precisa sobre o estado entrópico natural de uma bola que pode ocupar indistintamente todos os pontos de um espaço relativamente indiferentes do ponto de vista da tensão das traves (que só existe nas cercanias do gol). Quando a geometria de intenções se completa, a fruição aumenta na medida em que se aproxima o espaço de tensão. (É claro que isto só é válido para o sistema de valores posto em ação, como por exemplo a rivalidade ou força técnica dos times. Se não existir a competitividade previamente esta análise não serve).
Por isso, se o futebol é criação geométrica, guarda relação com as análises de Kandinsky sobre a sofisticação das formas geométricas sobre o aleatório das linhas.

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25/3/87
A política é mais um jogo de prudência e omissão combinadas com o destaque de chamar a atenção. A prudência e omissão em assuntos onde a natureza exige opiniões bem pensadas e de chamar a atenção onde não é necessário pensamento algum. Atua ao contrário da coragem, esta qualidade humana que só aparece em poucos em situações difíceis. Como o covarde que usa da prudência para escapar-se, mas que na verdade pratica a covardia, o político usa da omissão para não comprometer-se.

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8/4/87: Nacos
Para exercer o mal é preciso praticar o bem inúmeras vezes. Cachinada ― gargalhada zombeteira, escarnecimento.

26/4/87:
A glutoneria estimula desejos que comprometem a moralidade.

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29/4/87
A carnavalização se define quando o “ser social” não desempenha o papel que representa. O guarda corrupto, o burocrata, o político, nenhum deles está em função da sociedade, embora todos proclamem defensores do interesse público. O método carnavalesco é verificar (identificar) as falsificações.

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Nacos:
Signulifica que.... houve uma linguação (ligação) entre

Em Vuelta nr 122, janeiro/87, à pg. 17, num artigo sobre arqueologia Nigel Davies fala da hipótese de Karl A. Witivogel de ecologia cultural chamada de “estado hidráulico”, em que trata de explicar o 'surgimento das culturas a partir da ecologia cultural, em particular do fornecimento d'água”.

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Alejandro Rossi – Manual del Distraído – Vuelta 125, pg. 53
É lamentável cair no desespero porque não entregamos um papel, ou porque um senhor ainda não assinou um ofício. É imperdoável que essas misérias produzam angústias, e as vezes, desgraças. É metafisicamente escandaloso que causas insignificantes tenham tanta importância em nossas vidas.

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Por que tanta gente abostada? Porque depois dos trinta todos nós começamos a disfarçar. De minha parte, retiro minhas experiências de uma idade em que não é preciso mistificar com a lucidez da idade em que todos a perderam por se autoenganarem.

Não se pode dizer que uma língua é melhor do que outra. Os elogios que se faz à língua inglesa não passa de servilismo, o primeiro sinal por onde escorre o caráter pouco elogiável de certos intelectuais.

Naco:
Drawl – fala arrastada do sulista americano (texano?)

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O capitalismo selvagem implica uma série de relações selvagens e não apenas algumas empresas selvagens: por trás das relações de produção existem políticos selvagens, uma burocracia selvagem [um sindicalismo selvagem], um estado selvagem, um povo embrutecido e, naturalmente, intelectuais paleolíticos. O chamado capitalismo selvagem não é outra coisa que a legitimação do diabolismo ao nível de sistema possível, desde que o sistema político se mostre incapaz de mudá-lo.

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QUANTO MAIOR A IMOBILIDADE, MAIOR A SOLENIDADE
Quem conhece os americanos sabe como eles executam as obras públicas. Mas no Brasil, a inauguração de obras públicas tem a solenidade do feudalismo. A ação por si mesma suspende todas as veleidades.


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