sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Fragmentos 17

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Richard Dawkins — O Capelão do Diabo

I. Ciência e sensibilidade

De um modo mais geral, o estudo da diversidade humana é uma das pouquíssimas áreas em que há bons argumentos (embora, na minha opinião, eles não sejam esmagadores) contra a busca puramente desinteressada de conhecimento: uma das pouquíssimas áreas em que talvez fosse melhor que permanecêssemos ignorantes.

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[…] ver o livro de Paul Gross e Norman Levitt, Higher superstition: the academic left and its quarrels with science [Alta superstição: a esquerda acadêmica e suas querelas com a ciência].

O artigo de Sokal [resumo neste blog] deve ter sido visto como um presente por esses editores, pois se tratava de um físico fazendo todas as afirmações em voga que eles desejavam ouvir, atacando a “hegemonia pós-iluminista” e outras ideias pouco bacanas como a existência do mundo real.

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[…] um eficiente programa de computador criado por Andrew Bulhak, de Melbourne: o gerador pós-modernista. Toda vez que o visitarmos no endereço ele espontaneamente gerará para nós, empregando princípios gramaticais irrepreensíveis, um novo e formidável discurso pós-moderno, totalmente inédito.

II. A luz será lançada

A variação entre as raças constitui um pequeníssimo fragmento acrescentado à variação no interior das raças, comparativamente muito maior. É por essa razão que muitos geneticistas advogam o completo abandono do conceito de raça.

Minha generosidade foi recompensada de uma maneira que toda pessoa familiarizada com as táticas fundamentalistas seria capaz de prever.

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Por mais patético que isso possa soar, a viagem toda desde a Austrália parece ter tido como propósito filmar um evolucionista malogrando em respondê-la.

Se os quatro números que apresentamos são assumidamente valores aproximados, a extrapolação da linha reta para o ano 2050 é ainda mais especulativa. Mas, por analogia com a Lei de Moore, e em especial se a filha da Lei de Moore de fato deve algo a sua genitora, essa linha reta provavelmente representa um prognóstico passível de ser defendido. Vamos ao menos seguir essa linha para observar aonde nos levará. Ela sugere que no ano 2050 seremos capazes de sequenciar um genoma humano individual completo por cem libras, em valores de hoje (aproximadamente 160 dólares). Em vez de haver um único Projeto Genoma Humano, cada indivíduo será capaz de custear o projeto de seu próprio genoma pessoal. Geneticistas de populações terão a seu dispor a última palavra em matéria de dados sobre a diversidade humana. Será possível elaborar árvores genealógicas estabelecendo a relação de qualquer pessoa no mundo com quem quer que seja. Para os historiadores, será a realização do mais fantástico dos sonhos. Eles usarão a distribuição geográfica dos genes para reconstruir as grandes migrações e invasões ocorridas durante séculos, para rastrear as viagens das embarcações vikings, para seguir, tomando por base os genes, a trilha das tribos americanas desde o Alasca até a Terra do Fogo e a dos saxões pela Grã-Bretanha, documentar a diáspora dos judeus e até mesmo identificar os descendentes modernos dos guerreiros saqueadores como Gêngis Khan.

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[…] mas nosso texto pessoal irá também predizer, com uma precisão alarmante, nosso fim natural. Será que desejamos tanto conhecimento? Mesmo que o desejemos, será que vamos querer que nosso texto do DNA seja lido pelos atuários das seguradoras, pelos advogados dos processos de reconhecimento de paternidade e pelo governo? Mesmo numa democracia bem-intencionada, nem todos ficariam felizes com essa perspectiva. De que maneira algum futuro Hitler poderia vir a fazer mau uso desse conhecimento é algo em que precisamos pensar.

III. A mente infectada

Descrever as religiões como vírus da mente é algo entendido às vezes como um sinal de desdém ou mesmo de hostilidade. As duas coisas são verdade. Frequentemente me perguntam por que me oponho tanto à “religião organizada”. Minha primeira resposta é que também não sou exatamente simpático à religião desorganizada. Como um amante da verdade, suspeito das crenças firmemente defendidas que não encontram sustentação em nenhum tipo de evidência: fadas, unicórnios, lobisomens e todo outro elemento do conjunto infinito de crenças possíveis e irrefutáveis de que fala Bertrand Russell com sua imagem de um hipotético bule de porcelana chinesa girando em torno do Sol (ver “A grande convergência”, p. 258). A razão pela qual a religião organizada merece franca hostilidade é que, diferentemente da crença no bule de Russell, ela é poderosa, influente, isenta de impostos e, além disso, sistematicamente transmitida à crianças que não têm idade suficiente para se defender.

Os vírus dos computadores não ficam limitados às mídias eletrônicas tais como os discos e as linhas de transmissão de dados. Em seu percurso de um computador a outro, um vírus pode se propagar passando pela tinta de impressão, pelos raios de luz no cristalino do olho humano, pelos impulsos do nervo ótico e pelas contrações dos músculos do dedo. [Que bobagem extraordinária. Perdeu os freios!].

E agora, vamos ao ponto. Seria possível pensar que algumas religiões são preferidas, não apesar de serem ridículas, mas precisamente porque são ridículas? Qualquer religioso iniciante poderia acreditar que o pão representa simbolicamente o corpo de Cristo, mas é preciso ser um católico verdadeiro, um católico até a raiz dos cabelos, para acreditar em algo tão bizarro como a transubstanciação.

Retornemos à nossa lista dos sintomas que as pessoas atingidas pelo vírus mental da fé, e sua gangue de infecções secundárias, podem experimentar.

Ainda não descobri um livro sobre feminismo quântico, administração financeira quântica ou teoria afro-quântica, mas deve ser uma questão de tempo. Esse comércio insano é habilidosamente desmascarado pelo físico Victor Stenger em seu livro The unconscious quantum [O quantum inconsciente].

Se eu quiser que alguém respeite meus pontos de vista sobre política, ciência ou arte, terei que conquistar esse respeito por meio da argumentação, da justificação, da eloquência ou do conhecimento relevante. Terei que resistir a contra-argumentos. Mas se eu sustentar uma visão que é inerente à minha religião, os críticos respeitosamente sairão nas pontas dos pés ou então terão que enfrentar a indignação de boa parte da sociedade. Por que não há limites para as opiniões religiosas? Por que nós temos que respeitá-las pela simples razão de que elas são religiosas?

A sociedade, por razões que eu não compreendo, aceita que os pais tenham o direito automático de criar seus filhos segundo visões religiosas particulares e que possam retirá-los, por exemplo, das aulas de biologia em que se ensina a evolução. No entanto, ficaríamos escandalizados se as crianças fossem retiradas das aulas de história da arte em que discorresse sobre os méritos dos artistas que não fossem do gosto de seus pais.

O psiquismo humano padece de duas grandes enfermidades: a necessidade de se vingar por gerações a fio e a inclinação a rotular as pessoas com base nos grupos a que pertencem em vez de enxergá-las como indivíduos. A religião monoteísta se mistura às duas de maneira explosiva e as sanciona fortemente.

IV. Disseram-me, Heráclito

Quando o patologista já leu as runas, quando os oráculos do raio X, da tomografia computadorizada e da biópsia já deram o seu veredicto de que a esperança é mínima, quando o cirurgião entra no quarto acompanhado por “um homem alto [...] de aparência constrangida [...] vestindo uma longa túnica e um capuz e carregando no ombro uma foice”, é então que os abutres das terapias “alternativas” ou “complementares” começam a voar em volta. Essa é a hora deles. É aí que eles encontram seu lugar, pois a esperança é um produto vendável: quanto mais desesperadamente se necessitar de esperança, mais rica será a colheita.

V. Mesmo os exércitos da Toscana

Reforçam o meu sentimento de que o jornalismo científico é importante demais para ser deixado nas mãos dos jornalistas e encorajam minha esperança de que, de todo modo, os verdadeiros cientistas talvez se saiam melhor nessa tarefa.

Essas pessoas não têm a expectativa de convencer cientistas respeitáveis com seus argumentos ridículos. Em vez disso, o que elas buscam é o oxigênio da respeitabilidade. Nós lhes fornecemos esse oxigênio pelo mero gesto de nos ENVOLVERMOS com elas de alguma maneira. Elas não se importam de serem derrotadas em sua argumentação. O que desejam é o reconhecimento que lhes damos pelo simples fato de debatermos com elas em público.

VI. Oração para minha filha

Será que foi isso o que aconteceu com as religiões? A crença de que há um deus ou deuses, a crença no paraíso, a crença de que Maria nunca morreu, a crença de que Jesus nunca teve um pai humano, a crença de que as preces são respondidas, a crença de que o vinho se transforma em sangue — nenhuma dessas crenças é sustentada por nenhum tipo de evidência satisfatória. E, no entanto, milhões de pessoas acreditam nelas. Talvez seja porque se disse a essas pessoas que deveriam acreditar nessas coisas quando elas ainda eram tão jovens que acreditavam em qualquer coisa.

[…] pois as diferentes religiões afirmam que coisas opostas são verdade. Maria não pode estar viva na Irlanda católica ao mesmo tempo que está morta na Irlanda do Norte protestante.

Notas:
89. A tese dos “magistérios separados” foi fomentada por S. J. Gould, um ateísta cujos esforços vão muito além do dever ou do bom senso, em Rocks of ages : science and religion in the fullness of life (Nova York, Ballantine, 1999). 90.


Alexis de Tocqueville — O Antigo Regime e a Revolução

Pois a Revolução teve duas fases bem distintas: a primeira, durante a qual os franceses parecem querer abolir tudo do passado; a segunda, em que vão retomar nele uma parte do que haviam deixado e não hesito em afirmar que o nível geral dos corações e dos espíritos nunca cessará de rebaixar-se enquanto a igualdade e o despotismo estiverem juntos.

LIVRO I

Burke, cujo espírito foi abrasado pelo ódio que já desde o início a Revolução lhe inspirou, o próprio Burke por alguns momentos fica incerto ao vê-la. O que ele pressagia inicialmente é que a França ficará desfibrada e como que aniquilada. “ É de crer” , diz, “que por longo tempo as faculdades guerreiras da França estão extintas; pode até mesmo ser que o estejam para sempre e que os homens da geração que vem a seguir possam dizer, como aquele antigo: Gallos quoque in bellis floruisse audivimus – ouvimos dizer que os próprios gauleses outrora haviam brilhado pelas armas.”

Enquanto isso a Revolução segue seu curso. À medida que a cabeça do monstro vai surgindo, que sua fisionomia singular e terrível se revela; que depois de destruir as instituições políticas ela abole as instituições civis e depois das leis muda os costumes, os usos e até a língua; quando, após deitar em ruínas o edifício do governo ela abala os alicerces da sociedade e por fim parece querer atacar o próprio Deus; quando em pouco tempo essa mesma Revolução transborda para fora, com procedimentos até então desconhecidos, uma tática nova, lemas mortíferos, opiniões armadas, como dizia Pitt, uma força inaudita que derruba as barreiras dos impérios, destroça as coroas, pisoteia os povos e, coisa estranha!, ao mesmo tempo conquista-os para sua causa; à medida que todas essas coisas vão eclodindo, o ponto de vista muda.

Burke, retomando sua ideia, brada: “ Privada de seu antigo governo, ou melhor, de qualquer governo, parecia que a França fosse um objeto de insulto e de compaixão, em vez de dever ser o flagelo e o terror do gênero humano. Mas do túmulo dessa monarquia assassinada saiu um ente informe, imenso, mais terrível que qualquer um dos que já atormentaram e subjugaram a imaginação dos homens. Esse ente horrendo e estranho marcha diretamente para seu objetivo, sem ser atemorizado pelo perigo ou detido pelo remorso; detrator de todos os preceitos correntes e de todos os meios comuns, vai derrubando por terra aqueles que não conseguem sequer compreender como ele existe.” O evento é efetivamente tão extraordinário como pareceu outrora aos contemporâneos? Tão inaudito, tão profundamente perturbador e renovador como eles supunham? Qual foi o verdadeiro sentido, qual foi o verdadeiro caráter, quais são os efeitos permanentes dessa revolução estranha e terrível? Ela destruiu precisamente o quê? Criou o quê?

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Na outra parte de suas doutrinas, os filósofos do século XVIII voltaram-se com uma espécie de fúria contra a Igreja; atacaram-lhe o clero, a hierarquia, as instituições, os dogmas, e para melhor derrubá-los quiseram arrancar os próprios fundamentos do cristianismo. Mas essa parte da filosofia do século XVIII, tendo nascido dos fatos que a própria revolução suprimia, devia pouco a pouco desaparecer com eles e ver-se como que sepultada em seu triunfo. Acrescentarei aqui apenas algumas palavras para fazer-me entender, pois pretendo retomar mais adiante esse grande assunto: era bem menos como doutrina religiosa do que como instituição política que o cristianismo havia acendido esses ódios furiosos; não porque os sacerdotes pretendessem regulamentar as coisas do outro mundo, mas porque eram proprietários, senhores, dizimeiros, administradores neste; não porque a Igreja não pudesse ocupar um lugar na sociedade nova que se ia fundar, mas porque ocupava então o lugar mais privilegiado e mais forte naquela velha sociedade que se tratava de reduzir a pó.

[Confirma minha crítica à ausência imperdoável em Burke do entendimento da natureza da igreja na França.]

E não julgueis que esse cenário seja uma particularidade da França; praticamente não há na Europa igreja cristã que não tenha se reavivado depois da Revolução Francesa.

Acreditar que as sociedades democráticas sejam naturalmente hostis à religião é cometer um grande erro: nada no cristianismo, nem mesmo no catolicismo, é absolutamente contrário ao espírito dessas sociedades, e várias coisas lhe são muito favoráveis. Aliás, a experiência de todos os séculos mostrou que a raiz mais vivaz do instinto religioso sempre esteve plantada no coração do povo. Todas as religiões que pereceram encontraram ali seu derradeiro asilo, e seria muito estranho que as instituições que tendem a fazer prevalecer as ideias e as paixões do povo tivessem como efeito necessário e permanente impelir o espírito humano para a impiedade.

Como seu objetivo não foi apenas mudar um governo antigo, e sim abolir a forma antiga da sociedade, a Revolução Francesa teve de atacar simultaneamente todos os poderes estabelecidos, demolir todas as influências reconhecidas, apagar as tradições, renovar os costumes e os usos e, por assim dizer, esvaziar o espírito humano de todas as ideias nas quais se haviam fundamentado até então o respeito e a obediência. Daí seu caráter tão singularmente anárquico.

Todas as revoluções civis e políticas tiveram uma pátria e nela se confinaram. A Revolução Francesa não teve território próprio; mais ainda, de certa forma, seu efeito foi apagar do mapa todas as antigas fronteiras. Vimo-la aproximar ou dividir os homens a despeito das leis, das tradições, das características, das línguas, às vezes transformando inimigos em compatriotas e irmãos em estrangeiros; ou melhor, ela formou, acima de todas as nacionalidades particulares, uma pátria intelectual comum da qual os homens de todas as nações puderam tornar-se cidadãos.

Esquadrinhai todos os anais da História, não encontrareis uma única revolução política que tivesse esse mesmo caráter: só o encontrareis em certas revoluções religiosas. Por isso é com revoluções religiosas que devemos comparar a Revolução Francesa, se quisermos fazer-nos entender por meio da analogia.

A Revolução Francesa é portanto uma revolução política que operou à maneira e em certo sentido assumiu o aspecto de uma revolução religiosa. Vede quais traços particulares e característicos completam sua semelhança com estas: não apenas se espalha para longe, como elas; também penetra pela pregação e pela propaganda. Uma revolução política que inspira o proselitismo; que os franceses pregam tão ardorosamente para os estrangeiros quanto realizam com paixão em seu próprio país; observai como é novo o cenário! De todas as coisas desconhecidas que a Revolução Francesa mostrou ao mundo, esta é seguramente a mais nova.

A Revolução Francesa operou, com relação a este mundo, precisamente do mesmo modo que as revoluções religiosas agem com vistas ao outro; considerou o cidadão de um modo abstrato, apartado de todas as sociedades particulares, assim como as religiões consideram o homem em geral, independentemente do país e da época.

Foi reportando-se sempre assim ao que havia de menos particular e, digamos, de mais natural em termos de estado social e de governo que ela pôde tornar-se compreensível para todos e imitável em cem lugares ao mesmo tempo

[Esta peculiaridade é ignorada pelos burkistas].

Como parecia tender para a regeneração do gênero humano mais ainda que para a reforma da França, acendeu uma paixão que até então as revoluções políticas mais violentas nunca conseguiram produzir.

Inspirou o proselitismo e fez nascer a propaganda. Desse modo, por fim, pôde assumir aquele aspecto de revolução religiosa que tanto apavorou os contemporâneos; ou melhor, ela mesma tornou-se uma espécie de religião nova – religião imperfeita, é verdade, sem Deus, sem culto e sem outra vida, mas que ainda assim, como o islamismo, inundou toda a Terra com seus soldados, apóstolos e mártires.

Há épocas em que os homens são tão diferentes uns dos outros que a ideia de uma mesma lei aplicável a todos lhes é quase incompreensível. Há outras em que basta mostrar-lhes de longe e confusamente a imagem de uma lei dessas para que prontamente a reconheçam e corram para ela.

O mais extraordinário não é que a Revolução Francesa tenha empregado os processos que a vimos pôr em prática e concebido as ideias que produziu: a grande novidade é que tantos povos tivessem chegado ao ponto em que tais processos puderam ser eficazmente empregados e tais máximas ser facilmente aceitas.

Essa decadência gradual das instituições próprias da Idade Média pode ser acompanhada em seus arquivos. Sabe-se que cada senhoria possuía cadastros denominados terriers, nos quais, de século em século, eram indicados os limites dos feudos e das propriedades censitárias, os encargos, os serviços a prestar, os usos locais. Vi terriers do século XIV que são obras-primas de método, clareza, ordem e inteligência. À medida que ficam mais recentes, vão se tornando obscuros, indigestos, incompletos e confusos, apesar do avanço geral das luzes. Parece que a sociedade política cai em barbárie no mesmo momento em que a sociedade civil consegue ilustrar-se.

Onde as assembleias provinciais conservaram, sem nada mudar, sua antiga constituição, elas detêm o progresso da civilização mais do que o auxiliam; pareceria que são alheias e como que impenetráveis ao novo espírito dos tempos.

A Revolução não foi feita, como se acreditou, para anular a soberania das crenças religiosas; apesar das aparências, foi essencialmente uma revolução social e política; e, no círculo das instituições dessa espécie, não tendeu a perpetuar a desordem, a torná-la como que estável, a metodizar a anarquia (como dizia um de seus principais adversários) e sim a aumentar a força e os direitos da autoridade pública.

[Indiretamente se refere a Burke].

Quando a separamos de todos os acidentes que momentaneamente lhe mudaram a fisionomia em diferentes épocas e em diversos países e a consideramos apenas em si mesma, vemos claramente que essa revolução teve como único efeito abolir aquelas instituições políticas que, durante vários séculos, haviam reinado soberanas sobre a maioria dos povos europeus e que habitualmente são chamadas de instituições feudais, para substituí-las por uma ordem social e política mais uniforme e mais simples que tinha como base a igualdade de condições.

“Queríeis corrigir os abusos de vosso governo, diz o mesmo Burke aos franceses, “ mas por que fazer algo novo? Por que não vos apegastes a vossas antigas tradições? Por que não vos limitastes a retomar vossas antigas franquias? Ou, se vos era impossível recuperar a fisionomia indistinta da constituição de vossos pais, por que não olhastes para nosso lado? Teríeis encontrado então a antiga lei comum da Europa.” Burke não percebe que tem ante os olhos a revolução que precisamente deve abolir essa antiga lei comum da Europa; não percebe que é exatamente disso que se trata e não de outra coisa.

[Essa crítica de Tocqueville serve como um divisor de águas entre os conservadores e liberais]

LIVRO II

Uma coisa surpreende de imediato: a Revolução, cujo objetivo próprio era abolir em toda parte o restante das instituições medievais, não eclodiu nos países em que essas instituições, mais bem conservadas, mais impunham ao povo seu peso e seu rigor, e sim, ao contrário, nos países em que elas menos se faziam sentir; de tal forma que seu jugo pareceu mais insuportável justamente onde na realidade era menos pesado.

Em 1788, na maioria dos Estados da Alemanha o camponês não podia deixar a senhoria; se a deixar, é perseguido onde quer que esteja e levado de volta à força. Está subordinado à justiça dominial, que fiscaliza sua vida privada e pune a intemperança e a preguiça. Não pode melhorar sua situação, mudar de profissão nem casar se não for do agrado do senhor. Grande parte de seu tempo deve ser dedicada ao serviço dele. Vários anos de sua juventude decorrem na domesticidade do castelo. A corveia senhorial está em plena atividade e em alguns lugares pode chegar a três dias por semana. É o camponês que repara e mantém em bom estado as propriedades do senhor, leva seus gêneros alimentícios ao mercado, transporta sua pessoa e é encarregado de levar suas mensagens. Entretanto o servo pode tornar-se proprietário de terra; mas tal propriedade nunca é plena. É obrigado a cultivar seu campo de uma certa maneira, sob o olhar do senhor; não pode aliená-lo nem hipotecá-lo por vontade própria. Em alguns casos forçam-no a vender seus produtos, em outros impedem-no de vendê-los...

[A odiosa realidade humana do feudalismo].

Portanto, acreditar que na França a divisão da propriedade rural data da Revolução é seguir um erro comum; o fato é muito mais antigo que ela. A Revolução realmente vendeu todas as terras do clero e grande parte das terras dos nobres; mas quem consultar diretamente as atas dessas vendas, como por vezes tive a paciência de fazer, verá que a maioria das terras foi comprada por pessoas que já possuíam outras; de forma que, se a propriedade mudou de mãos, o número de proprietários aumentou muito menos do que se pensa. Já havia na França uma “ imensidade ” deles, de acordo com a expressão temerária – mas correta neste caso – de Necker.

Por fim, em toda a extensão do território a terra está sobrecarregada de censos, de rendas fundiárias e de prestações em dinheiro ou em produtos que são devidas ao senhor pelo proprietário e das quais este não pode se libertar. Através de todas essas diversidades observa-se uma característica em comum: todos esses direitos relacionam-se menos ou mais com o solo ou com seus produtos; todos atingem aquele que o cultiva. Sabe-se que os senhores eclesiásticos gozavam das mesmas vantagens; pois a Igreja, que diferia da feudalidade quanto à origem, destinação e natureza, mesmo assim acabara mesclando-se intimamente a ela e, embora nunca tivesse se incorporado totalmente a essa substância distinta, penetrara tão profundamente nela que ali permanecia como que incrustada. Assim, em virtude de suas funções eclesiásticas, bispos, cônegos, abades possuíam feudos ou propriedades censitárias; geralmente o convento tinha a senhoria da aldeia em cujo território se situava. Tinha servos na única parte da França onde ainda existiam; empregava a corveia, cobrava direitos sobre as feiras e os mercados, tinha seu forno, seu moinho, seu lagar, seu touro banal. Ademais, na França como em todo o mundo cristão, o clero gozava do direito de dízimo.

Nos tempos feudais, considerava-se a nobreza mais ou menos com os mesmos olhos com que hoje se considera o governo: os encargos que ela impunha eram tolerados em vista das garantias que proporcionava. Os nobres tinham privilégios incômodos, possuíam direitos onerosos; mas garantiam a ordem pública, distribuíam justiça, faziam executar a lei, vinham em socorro do fraco, conduziam os assuntos de interesse comum. À medida que a nobreza deixa de fazer essas coisas, o peso de seus privilégios vai parecendo maior e finalmente mesmo sua existência já não é compreendida. Peço que imagineis o camponês francês do século XVIII, ou melhor, esse que conheceis, pois é sempre o mesmo: sua condição mudou, mas não sua índole.

[Daqui em diante mostra as consequências do sentimento de exploração].

[…] e, quando finalmente se livra deles, outros se apresentam, vestidos de preto, que lhe tomam a maior parte da colheita. Imaginai a situação, as necessidades, o caráter, as paixões desse homem e calculai, se puderdes, os tesouros de ódio e de inveja que se acumularam em seu coração. A feudalidade continuava a ser a maior de todas nossas instituições civis e deixara de ser uma instituição política. Assim reduzida, excitava muito mais ódios ainda; e pode-se dizer com razão que abolir uma parte das instituições da Idade Média tornara cem vezes mais odioso o que delas restava.

Lembro-me de que, quando estava pesquisando pela primeira vez, nos arquivos de uma intendência, o que era uma paróquia do Antigo Regime, fiquei surpreso ao encontrar, naquela comunidade tão pobre e tão subjugada, várias das características que me haviam impressionado outrora nas comunas rurais da América e que eu então erroneamente julgara que fossem uma singularidade específica do Novo Mundo.

Sob o Antigo Regime, como em nossos dias, não havia na França cidade, burgo, aldeia ou lugarejo, por menor que fosse, nem estabelecimento assistencial, fábrica, convento ou colégio que pudesse ter uma vontade independente em seus assuntos particulares ou administrar seus próprios bens como quisesse. Portanto, então como hoje, a administração mantinha todos os franceses sob tutela; e, se a insolência da palavra ainda não havia se manifestado, pelo menos já se tinha a coisa.

Em matéria de direito administrativo, os legistas modernos asseguram-nos que foi feito um grande progresso a partir da Revolução: “ Anteriormente os poderes judiciários e administrativos estavam confundidos ”, dizem eles; “depois dela separamo-los e recolocamos cada um deles em seu lugar.”

[…] pois a intervenção da justiça na administração prejudica apenas os negócios, ao passo que a intervenção da administração na justiça deprava os homens e tende a torná-los simultaneamente revolucionários e servis.

Entre as nove ou dez constituições perpétuas que foram elaboradas na França nos últimos sessenta anos, há uma que diz expressamente que nenhum agente da administração pode ser processado perante os tribunais comuns sem que a ação judicial tenha sido previamente autorizada. O artigo pareceu tão bem imaginado que, ao derrubar a constituição do qual fazia parte, cuidou-se de tirá-lo do meio das ruínas e desde então mantê-lo zelosamente a salvo das revoluções. Os administradores ainda costumam classificar como uma das grandes conquistas de 1789 o privilégio que esse artigo lhes concede; mas nisso se enganam igualmente, pois sob a antiga monarquia o governo não tinha menos cuidado que hoje em poupar os funcionários do dissabor de terem de confiar-se à justiça como simples cidadãos. A única diferença essencial entre as duas épocas é esta: antes da Revolução, o governo só podia acobertar seus agentes recorrendo a medidas ilegais e arbitrárias, ao passo que depois ele pôde legalmente deixá-los violar as leis.

[Confere com o Foro privilegiado].

Os primeiros esforços da Revolução haviam destruído a grande instituição da monarquia; ela foi restaurada em 1800. Diferentemente do que se disse tantas vezes, em matéria de administração não foram os princípios de 1789 que triunfaram nessa época e depois: muito ao contrário, os do Antigo Regime é que foram todos postos novamente em vigor e permaneceram.

[Importante observação para criticar os seguidores de Burke].

Se me perguntarem como essa parte do Antigo Regime pôde ser transportada assim inteiramente para a sociedade nova e incorporar-se a ela, responderei que, se a centralização não pereceu na Revolução, foi porque ela própria era o começo dessa revolução e seu sinal; e acrescentarei que um povo que houver destruído em seu seio a aristocracia corre rumo à centralização como que por conta própria. Então é preciso muito menos esforço para precipitá-lo nesse declive do que para retê-lo. Nela todos os poderes tendem naturalmente para a unidade e só com muita arte é possível mantê-los divididos.

Não se poderia ler a correspondência de um intendente do Antigo Regime com seus superiores e seus subordinados sem admirar como a similitude das instituições tornava os administradores daquela época semelhantes aos nossos. Eles parecem dar-se as mãos através do abismo da Revolução que os separa.

Para conseguir tudo dirigir de Paris e ali tomar conhecimento de tudo, foi preciso inventar mil meios de controle. O volume da correspondência já é enorme e a lentidão dos trâmites administrativos é tão grande que nunca vi alguma paróquia demorar menos de um ano para conseguir autorização para reconstruir seu campanário ou consertar seu presbitério; quase sempre dois ou três anos se passam antes que o pedido seja atendido.

Os funcionários administrativos, quase todos burgueses, formam já uma classe que tem seu espírito particular, suas tradições, suas virtudes, sua honra, seu orgulho próprio. É a aristocracia da sociedade nova, que já está formada e viva: espera apenas que a Revolução lhe desocupe lugar.

O que já caracteriza a administração na França é o ódio violento que lhe inspiram indistintamente todos aqueles, nobres ou burgueses, que queiram ocupar-se de assuntos públicos sem ela. O menor corpo independente que pareça pretender formar-se sem seu concurso amedronta-a; a menor associação livre, qualquer que seja o objetivo, importuna-a; deixa subsistirem apenas as que compôs arbitrariamente e que preside. Mesmo as grandes companhias industriais pouco lhe agradam; resumindo, não pretende que os cidadãos se intrometam de nenhum modo que seja no exame de seus próprios assuntos; prefere a esterilidade à concorrência. Mas, como é preciso sempre deixar aos franceses a doçura de um pouco de licença a fim de consolá-los de sua servidão, o governo permite que se discuta muito livremente toda espécie de teorias gerais e abstratas em matéria de religião, filosofia, moral e mesmo política. Admite de bom grado que ataquem os princípios fundamentais em que se assenta então a sociedade e que discutam até mesmo Deus, contanto que não falem mal nem sequer de seus menores agentes. Acha que isso não lhes diz respeito.

[Aqui temos um ponto de vista explorado intensamente por Gustave Le Bon. O espírito latino cria a centralização cujo corpo de funcionários tolera quaisquer ideias, menos sua dispensa como aspiração racional da política. Tocqueville está falando do antigo regime e de sua permanência].

O Antigo Regime aí está por inteiro: uma regra rígida, uma prática frouxa; assim é seu caráter.

Encontro, datada de 1757, uma declaração do rei condenando à morte todos os que compuserem ou imprimirem textos contrários à religião ou à ordem estabelecida. O livreiro que os comercializar, o vendedor que os transportar devem sofrer a mesma pena.

Frequentemente se reclama que os franceses menosprezam a lei; que remédio! Quando poderiam ter aprendido a respeitá-la?

Nada demonstra melhor isso do que os escritos de seus próprios detratores. Quando o longo mal-estar que precede a Revolução começa a manifestar-se, vê-se eclodir toda espécie de sistemas novos em matéria de sociedade e de governo. Os fins que se propõem esses reformadores são diversos, mas seu meio é sempre o mesmo. Querem tomar emprestada a mão do poder central e empregá-la para quebrar tudo e tudo refazer de acordo com um novo plano que conceberam pessoalmente; apenas ele lhes parece capaz de realizar uma tarefa como essa. O poder do Estado deve ser ilimitado como seu direito, dizem; trata-se apenas de persuadi-lo a utilizá-lo adequadamente. Mirabeau pai — esse fidalgo tão aferrado aos direitos da nobreza que chama cruamente os intendentes de intrusos e declara que, se a escolha dos magistrados ficasse a cargo unicamente do governo, as cortes de justiça em breve seriam apenas bandos de comissários —, o próprio Mirabeau só confia na ação do poder central para realizar suas quimeras.

Essas ideias não se restringem aos livros; invadem todas as mentes, entremeiam-se nos costumes, entram nos hábitos e infiltram-se de todos os lados, até na vivência diária.

[Aqui a superioridade de Tocqueville sobre Burke é total. Novamente vê-se a fonte da argumentação de Gustave Le Bon.]

Ninguém imagina que possa levar a bom termo um assunto importante se o Estado não se imiscuir.

[…] ninguém parece suspeitar que sob o protetor possa esconder-se o amo.

Tendo o governo tomado assim o lugar da Providência, é natural que cada qual o invoque em suas urgências particulares.

O célebre viajante Arthur Young deixa Paris pouco depois da reunião dos estados gerais e poucos dias antes da tomada da Bastilha; o contraste que percebe entre o que acaba de ver na cidade e o que encontra fora dela surpreende-o. Em Paris, tudo era atividade e alarde; cada momento produzia um panfleto político: chegou-se a publicar noventa e dois por semana. Nunca vi uma movimentação de publicidade como essa, nem mesmo em Londres, diz ele. Fora de Paris, tudo lhe parece inércia e silêncio; imprimem-se poucas brochuras e nenhum jornal. As províncias, no entanto, estão excitadas e prontas para pôr-se em movimento, mas imóveis; se os cidadãos às vezes se reúnem, é para saber das notícias que esperam de Paris. Em cada cidade, Young pergunta aos habitantes o que vão fazer. “Em toda parte a resposta é a mesma”, diz ele. “Somos apenas uma cidade de província; é preciso ver o que farão em Paris.” E acrescenta: “Essas pessoas não ousam sequer ter uma opinião antes de saberem o que se pensa em Paris.” Causa espanto a facilidade com que a assembleia constituinte pôde eliminar de um só golpe todas as antigas províncias da França, muitas das quais eram mais antigas que a monarquia, e dividir metodicamente o reino em oitenta e três partes distintas, como se fosse o solo virgem do Novo Mundo. Nada surpreendeu tanto e mesmo apavorou o restante da Europa, que não estava preparada para um espetáculo como esse. É a primeira vez” , dizia Burke, “ que vemos homens retalhar sua pátria de um modo tão bárbaro.” Realmente, parecia que estavam dilacerando corpos vivos: estavam apenas esquartejando mortos.

Os nobres franceses ainda tinham as substituições (Burke chega a observar que em sua época elas eram mais frequentes e mais obrigatórias na França que na Inglaterra), o direito de primogenitura, as rendas fundiárias e perpétuas e todos os chamados direitos úteis; haviam escapado da obrigação tão onerosa de fazer a guerra às próprias expensas e entretanto lhes haviam conservado, aumentando-a muito, a imunidade tributária;

Em toda parte onde se estabeleceu no continente europeu, o sistema feudal levou à casta; apenas na Inglaterra ele se voltou para a aristocracia.

Sempre me surpreendeu que um fato que tanto singulariza a Inglaterra entre todas as nações modernas, e que por si só já pode explicar as particularidades de suas leis, de seu espírito e de sua história, não tenha chamado a atenção dos filósofos e dos estadistas mais ainda do que o fez, e que o hábito tenha acabado por torná-lo como que invisível para os próprios ingleses. Muitas vezes ele foi entrevisto, parcialmente descrito; nunca, parece-me, foi enxergado de modo completo e claro. Montesquieu, visitando a Grã-Bretanha em 1739, escreve acertadamente: “Estou aqui em um país que pouco se parece com o restante da Europa”; porém não acrescenta mais nada.

A Inglaterra era o único país em que se havia não alterado mas efetivamente eliminado o sistema de castas.

Quereis saber se a casta e as ideias, os hábitos, as barreiras que ela criou em um certo povo estão definitivamente anulados? Considerai seus casamentos. Apenas aí encontrareis o indício decisivo que vos falta. Na França, mesmo em nossos dias, após sessenta anos de democracia, geralmente o procurareis em vão. As famílias antigas e as novas, que parecem confundidas em todas as coisas, ainda evitam ao máximo misturar-se.

Cada um desses privilégios, uma vez obtido, adere ao sangue, fica inseparável dele. Quanto mais essa nobreza deixa de ser uma aristocracia, mais parece tornar-se uma casta.

Quando a talha era o único imposto do plebeu, a isenção do nobre era pouco visível; mas, quando os impostos dessa espécie se multiplicaram sob mil nomes e mil formas, quando à talha foram assimiladas quatro outras taxas, quando encargos desconhecidos na Idade Média – tais como a corveia régia aplicada a todas as obras e serviços públicos, a milícia etc. – foram acrescentados à talha e a seus acessórios e também desigualmente atribuídos, a isenção do fidalgo pareceu imensa. A desigualdade, apesar de grande, era na verdade mais aparente ainda do que real, pois com frequência o nobre era atingido em seu arrendatário pelo imposto do qual escapava pessoalmente; mas nessa matéria a desigualdade que o homem vê prejudica mais do que a desigualdade que sente.

Embora a desigualdade em matéria de impostos tivesse se estabelecido em todo o continente europeu, havia pouquíssimos países onde houvesse se tornado tão visível e tão constantemente sentida como na França.

[Agora começa a aparecer as justificativas para a revolução].

Ora, de todas as maneiras de diferenciar os homens e de marcar as classes, a desigualdade fiscal é a mais perniciosa e a mais propícia para somar o isolamento à desigualdade e para torná-los incuráveis, por assim dizer. Pois vede seus efeitos: quando o burguês e o fidalgo não estão mais obrigados a pagar a mesma taxa, todo ano a base de cálculo e o recolhimento do imposto demarcam novamente entre eles, com um traço nítido e preciso, o limite das classes. Todos os anos, cada um dos privilegiados sente um interesse atual e premente em não se deixar confundir com a massa e faz um novo esforço para colocar-se à parte.

Burke, no retrato favorecedor que pinta da antiga constituição da França, ressalta em benefício da instituição de nossa nobreza a facilidade que tinham os burgueses de obter o enobrecimento conseguindo para si algum ofício; via nisso uma analogia com a aristocracia aberta da Inglaterra. De fato, Luís XI havia multiplicado os enobrecimentos: era um meio de rebaixar a nobreza; seus sucessores os prodigalizaram para conseguir dinheiro. Necker informa-nos que em sua época o número de ofícios que conferiam nobreza elevava-se a quatro mil. Nada parecido se via em parte alguma da Europa; mas a analogia que Burke queria estabelecer entre a França e a Inglaterra era ainda mais equivocada.

[Mais uma crítica à Burke].

Portanto o sistema de enobrecimentos, em vez de diminuir o ódio do plebeu contra o fidalgo, aumentava-o desmedidamente, aguçava-o com toda a inveja que o novo nobre inspirava a seus antigos iguais. É por isso que em suas queixas o terceiro estado sempre mostra mais irritação contra os enobrecidos do que contra os nobres e, longe de pedir que se alargue a porta que pode levá-lo para fora da plebeidade, constantemente pede que ela seja estreitada.

Turgot está de acordo com todos os documentos confidenciais que tive oportunidade de consultar, quando nos diz que “a coleta da talha transforma em burgueses das cidades quase todos os proprietários plebeus dos campos”. Mencionando de passagem, essa é uma das razões que fizeram com que a França tivesse mais cidades, e sobretudo cidades pequenas, do que a maioria dos outros países da Europa. Aquartelado assim intramuros, o plebeu rico perdia rapidamente os gostos e o espírito do campo; tornava-se inteiramente alheio aos trabalhos e aos assuntos de seus iguais que lá haviam permanecido. Tinha agora praticamente um único objetivo na vida: aspirava a tornar-se um funcionário público em sua cidade adotiva. É um grande erro acreditar que a paixão por cargos que há em quase todos os franceses de nossos dias, e especialmente nos das classes intermediárias, tenha nascido a partir da Revolução: nasceu vários séculos antes e desde então não parou de crescer, graças a mil alimentos novos que se teve o cuidado de dar-lhe.

[…] se via de posse de um pequeno capital, em vez de empregá-lo nos negócios utilizava-o prontamente para comprar uma colocação. Essa lamentável ambição prejudicou mais o avanço da agricultura e do comércio na França do que as mestrias e a própria talha.

E repete: Um homem com algum estudo e certa abastança não julgava decente morrer sem ter sido funcionário público. “Cada qual, de acordo com sua situação, quer ser alguma coisa em nome do rei”, diz um contemporâneo.

Reclama-se com muita justiça do privilégio dos nobres em matéria de impostos; mas que dizer dos privilégios dos burgueses? Chegam a milhares os ofícios que os isentam da totalidade ou de parte dos encargos públicos: este, da milícia; aquele, da corveia; um outro, da talha. Qual é a paróquia, diz um texto da época, que não tem em seu meio, além dos fidalgos e dos clérigos, vários habitantes que obtiveram para si, por meio de cargos ou de comissão, alguma isenção de imposto?

Essas lamentáveis prerrogativas enchiam de inveja os que delas eram privados e do orgulho mais egoísta os que as possuíam.

Se os ingleses, a partir da Idade Média, houvessem perdido inteiramente, como nós, a liberdade política e todas as franquias locais que sem ela não podem existir por muito tempo, é muito provável que cada uma das diferentes classes que compõem sua aristocracia tivesse se isolado, como ocorreu na França e em maior ou menor grau...

Considerai, peço-vos, para onde princípios políticos diferentes podem conduzir povos tão próximos! No século XVIII, na Inglaterra é o pobre que goza do privilégio tributário; na França, é o rico. Lá, a aristocracia assumiu os encargos públicos mais pesados para que lhe fosse permitido governar; aqui, até o fim ela conservou para si a imunidade tributária, para consolar-se de haver perdido o governo.

Ouso afirmar que, no dia em que a nação, cansada das longas desordens que haviam acompanhado o cativeiro do rei João e a demência de Carlos VI, permitiu que os reis estabelecessem um imposto geral sem sua participação, e em que a nobreza teve a covardia de deixar taxarem o terceiro estado contanto que ela própria fosse isentada, nesse dia foi semeado o germe de quase todos os vícios e de quase todos os abusos que desgastaram o Antigo Regime durante o resto de sua vida e acabaram por causar sua morte violenta; e admiro a rara sagacidade de Commines quando diz: “Carlos VII, que lavrou o tento de taxar a talha a seu bel-prazer, sem o consentimento dos estados, sobrecarregou fortemente sua própria alma e a de seus sucessores e abriu em seu reino uma ferida que sangrará por longo tempo.”

[Aqui ele aponta a desigualdade legal como a causa da disjunção social que conduzirá à revolução.]

Assim, todo ano a desigualdade tributária separa as classes e isola os homens mais profundamente do que estiveram isolados até então. Visto que o imposto visava a atingir não os mais capazes de pagá-lo e sim os mais incapazes de defender-se dele, seríamos levados à consequência monstruosa de poupar o rico e onerar o pobre.

Disso resultou a prodigiosa e malfazeja fecundidade do espírito financeiro que caracteriza tão singularmente a administração do dinheiro público ao longo dos três últimos séculos da monarquia.

É preciso estudar em seus detalhes a história administrativa e financeira do Antigo Regime para compreender a que práticas violentas ou desonestas a necessidade de dinheiro pode reduzir um governo brando mas sem publicidade e sem controle, quando o tempo houver consagrado seu poder e o tiver libertado do medo das revoluções, essa derradeira salvaguarda dos povos.

[A revolução é assim uma salvaguarda do povo. Será que algum liberal brasileiro entenderia isso ?]

Foi assim que Luís XIV anulou todos os títulos de nobreza adquiridos nos últimos noventa e dois anos, títulos quase todos concedidos por ele mesmo.

Cidades, comunidades, estabelecimentos assistenciais veem-se forçados a desrespeitar seus compromissos a fim de poder emprestar para o rei. Paróquias são impedidas de empreender obras úteis para evitar que, dividindo assim seus recursos, paguem menos rigorosamente a talha.

Conta-se que Orry e Trudaine, um deles inspetor-geral e o outro diretor-geral das obras públicas, haviam concebido o projeto de substituir a corveia das estradas por uma prestação em dinheiro que os habitantes de cada cantão forneceriam para a reparação de seus caminhos. A razão que fez os dois hábeis administradores desistirem de seu intento é instrutiva: como ficou dito, recearam que, uma vez constituídos os fundos, não se pudesse impedir que o tesouro público os desviasse para aplicá-los em uso próprio, de forma que em breve os contribuintes teriam de arcar ao mesmo tempo com a nova tributação e com as corveias. Não hesito em dizer que nenhum particular conseguiria evitar um mandado de prisão, caso manejasse sua fortuna pessoal do mesmo modo que o grande rei, em toda sua glória, manejava a fortuna pública.

Se encontrardes algum antigo estabelecimento da Idade Média que tenha se mantido agravando seus vícios a contrapelo do espírito da época, ou alguma novidade perniciosa, cavai até a raiz do mal: lá encontrareis um expediente financeiro que se transformou em instituição. Para pagar dívidas de um dia vereis criarem-se novos poderes que vão durar séculos. [importante pela similaridade com o Brasil].

Foi somente no início do século XVI, em pleno Renascimento, que pela primeira vez se teve a ideia de considerar o direito de trabalhar como um privilégio que o rei podia vender. Apenas então cada corporação tornou-se uma pequena aristocracia fechada e por fim foram estabelecidos aqueles monopólios tão prejudiciais ao avanço das técnicas e que tanto revoltaram nossos pais. Desde Henrique III, que, se não gerou o mal, generalizou-o, até Luís XVI, que o extirpou, pode-se dizer que os abusos do sistema de jurandas nunca cessaram um só momento de crescer e ampliar-se, justamente na época em que os progressos da sociedade os tornavam mais intoleráveis e em que a razão pública mais os punha em evidência. Ano a ano novas profissões deixaram de ser livres; ano a ano os privilégios das antigas aumentaram.

Le Trosne dizia com razão em 1775: “O Estado estabeleceu as comunidades industriais tão somente para nelas buscar recursos, ora vendendo patentes, ora criando novos ofícios que as comunidades são forçadas a recomprar. O édito de 1673 veio levar às últimas consequências os princípios de Henrique III, obrigando todas as comunidades a obter cartas de confirmação mediante pagamento em dinheiro; e todos os artesãos que ainda não estavam em comunidade foram forçados a congregar-se em uma. Esse expediente lamentável produziu trezentas mil libras.”

Vimos como toda a constituição das cidades foi subvertida, não com objetivo político, mas na esperança de obter alguns recursos para o tesouro. Foi a essa mesma necessidade de dinheiro, somada à intenção de não pedi-lo aos estados, que a venalidade dos cargos deveu sua origem; e pouco a pouco foi se tornando algo tão estranho que nunca se vira no mundo nada parecido. Graças a essa instituição que o espírito fiscal gerara, durante três séculos a vaidade do terceiro estado foi mantida em alerta e direcionada unicamente para a aquisição de funções públicas, e entranhou-se na nação essa paixão universal por postos que se tornou a fonte comum das revoluções e da servidão.

À medida que as dificuldades financeiras aumentavam, iam surgindo novos empregos, todos remunerados com isenções tributárias ou com privilégios; e, como eram as necessidades do tesouro e não as da administração que decidiam, chegou-se dessa maneira a instituir um número quase inacreditável de funções inteiramente inúteis ou mesmo prejudiciais. Em 1664, por ocasião da enquete feita por Colbert, verificou-se que o capital envolvido nessa lamentável propriedade elevava-se a cerca de quinhentos milhões de libras. Richelieu eliminou cem mil ofícios, segundo se diz. Estes prontamente renasciam com outros nomes. Por um pouco de dinheiro abdicou-se do direito de dirigir, de fiscalizar e de refrear seus próprios agentes. Desse modo pouco a pouco se construiu uma máquina administrativa tão vasta, tão complicada, tão atravancada e improdutiva que foi preciso deixá-la rodar em falso e construir fora dela um instrumento de governo que fosse simples e de manejo mais fácil, por meio do qual realmente se fizesse o que todos aqueles funcionários aparentavam fazer.

[Agora parece que Tocqueville está falando do Brasil].

Pode-se afirmar que nenhuma dessas odiosas instituições poderia ter subsistido durante vinte anos se fosse permitido discuti-las. [Brasil outra vez.]

Vemos repetidamente essas assembleias apontarem como origem de todos os abusos o poder que o rei se arrogou de cobrar arbitrariamente taxas, ou, para reproduzir as expressões exatas que a linguagem enérgica do século XV utilizava, “o direito de enriquecer-se com a substância do povo sem o consentimento e a deliberação dos três estados".

Em várias ocasiões os estados pedem o abandono do sistema de jurandas; de século em século atacam com crescente veemência a venalidade dos ofícios. “ Quem vende ofício vende justiça, o que é infame ”, dizem eles.

Em todo o decurso dessa longa história, em que vemos surgirem sucessivamente tantos príncipes notáveis, vários pelo espírito, alguns pelo gênio, quase todos pela coragem, não encontramos um único que se esforce para aproximar as classes e uni-las de outro modo que não submetendo-as a uma mesma dependência.

Não é um pequeno empreendimento aproximar concidadãos que assim viveram durante séculos como estranhos ou como inimigos e ensiná-los a conduzir em comum seus próprios assuntos. Foi muito mais fácil dividi-los do que é então reuni-los. Demos ao mundo um memorável exemplo disso. Quando as diversas classes que partilhavam a sociedade da antiga França entraram novamente em contato, há sessenta anos, depois de estarem isoladas durante tanto tempo por tantas barreiras, inicialmente só se tocaram em seus pontos doloridos e só se reencontraram para se dilacerarem mutuamente. Mesmo em nossos dias suas invejas e seus ódios lhes sobrevivem.

[Nota sobre o destino da revolução].

Será preciso lamentar sempre que em vez de submeter essa nobreza ao império das leis a tenham abatido e erradicado. Ao agir assim, tiraram da nação uma parte necessária de sua substância e infligiram à liberdade um ferimento que nunca cicatrizará.

Não sei se, no final das contas e apesar dos vícios clamorosos de alguns de seus membros, já houve no mundo um clero mais notável que o clero católico da França no momento em que a Revolução o apanhou de surpresa; mais esclarecido, mais nacional, menos entrincheirado unicamente nas virtudes privadas, mais bem provido de virtudes públicas e ao mesmo tempo de mais fé: a perseguição mostrou bem isso. Comecei o estudo da antiga sociedade cheio de preconceitos contra ele; terminei-o cheio de respeito. Na verdade, tinha apenas os defeitos que são inerentes a todas as corporações, tanto as políticas como as religiosas, quando estão fortemente unidas e bem constituídas: tendência para invadir, humor pouco tolerante, apego instintivo e às vezes cego aos direitos particulares da classe.

Portanto estaríamos muito errados em acreditar que o Antigo Regime foi um tempo de servilismo e de dependência. Reinava nele muito mais liberdade que em nossos dias; mas era uma espécie de liberdade irregular e intermitente, sempre recolhida no limite das classes, sempre ligada à ideia de exceção e de privilégio, que permitia desafiar quase tanto a lei como a arbitrariedade e quase nunca chegava a fornecer a todos os cidadãos as garantias mais naturais e mais necessárias. Assim reduzida e deformada, a liberdade era ainda fecunda. É ela que, no mesmo momento que a centralização se empenhava cada vez mais em nivelar, amolecer e embaçar todos os caracteres, conservou em um grande número de pessoas particulares a originalidade nativa, o colorido e o relevo, alimentou-lhes no coração o orgulho de si e frequentemente fez predominar sobre todos seus gostos o gosto pela glória.

Mas se essa espécie de liberdade desregrada e malsã preparava os franceses para derrubar o despotismo, tornava-os menos adequados que qualquer outro povo, talvez, para fundar em seu lugar o império pacífico e livre das leis.

Na verdade, o único homem bem-educado ou, como dizem os ingleses, o único gentleman que residia de modo permanente no meio dos camponeses e se mantinha em contato contínuo com eles era o pároco; por isso, a despeito de Voltaire, o pároco teria se tornado o senhor das populações rurais se ele próprio não estivesse ligado de um modo tão estreito e tão visível à hierarquia política; possuindo vários dos privilégios desta, inspirava em parte o ódio que ela gerava.

Encontro, em uma carta confidencial que em 1772 o inspetor-geral escreve pessoalmente aos intendentes, esta descrição da talha, que é uma pequena obra-prima de exatidão e concisão. “A talha” , diz aquele ministro, “arbitrária em sua distribuição, solidária na percepção, pessoal e não real, na maior parte da França, está sujeita a variações contínuas em decorrência de todas as mudanças que acontecem a cada ano na fortuna dos contribuintes.” Tudo está aí, em três frases; não se poderia descrever com mais arte o mal do qual se tira proveito.

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Entretanto esse infeliz estava armado de um arbítrio imenso; era quase tão tirano quanto mártir. Durante esse exercício no qual ele próprio se arruinava, tinha nas mãos a ruína de todo o mundo. “A preferência pelos parentes” , é ainda a assembleia provincial que fala, “pelos amigos e vizinhos, o ódio, a vingança contra os inimigos, a necessidade de um protetor, o medo de desagradar um cidadão abastado que proporciona trabalho remunerado combatem em seu coração os sentimentos de justiça.” O terror frequentemente torna o coletor impiedoso; há paróquias em que ele só anda acompanhado de beleguins e de oficiais de justiça. “Quando anda sem oficiais de justiça” , diz um intendente ao ministro em 1764, “os que devem pagar a talha se recusam .” – “Apenas na circunscrição de Villefranche” , diz-nos ainda a assembleia provincial de Guyenne,“ contam-se cento e dez entregadores de intimações e outros auxiliares judiciais sempre a caminho .

Para escapar dessa taxação violenta e arbitrária, o camponês francês, em pleno século XVIII, age como o judeu da Idade Média. Mostra-se miserável na aparência, quando por acaso não o é na realidade; sua abastança causa-lhe medo, com razão.

De fato, nesse sistema de imposto cada contribuinte tinha um interesse direto e permanente em espionar os vizinhos e denunciar ao coletor os avanços de sua prosperidade; todos eles iam sendo adestrados para a delação e o ódio, e rivalizavam entre si nisso. Não seria de pensar que tais coisas se passam nos domínios de um rajá do Industão?

Nada poderia mostrar melhor a triste sorte do povo dos campos: os progressos da sociedade, que enriquecem todas as outras classes, desesperam-no; a civilização volta-se contra ele apenas.

Esse governo do Antigo Regime, que era, como mencionei, tão brando e às vezes tão tímido, tão amigo das formalidades, da lentidão e da deferência quando se tratava de homens posicionados acima do povo, é frequentemente rude e sempre célere quando procede contra as classes baixas, sobretudo contra os camponeses.

“A imensa distância que existe entre o povo e todas as outras classes” , escreve Necker em 1785, “ajuda a desviar os olhos da maneira como se pode manejar a autoridade para com todas as pessoas perdidas na multidão. Sem a brandura e a humanidade que caracterizam os franceses e o espírito do século, esse seria um constante motivo de tristeza para os que sabem compadecer-se perante o jugo do qual estão isentos.”

A nobreza francesa obstina-se em permanecer apartada das outras classes; os fidalgos conseguem isentar-se da maioria dos encargos públicos que pesam sobre elas; imaginam que conservarão sua grandeza furtando-se a esses encargos, e de início parece ser assim. Mas logo uma doença interna parece ter-se aferrado à sua condição, que se reduz pouco a pouco sem que ninguém os toque; vão empobrecendo à medida que suas imunidades aumentam. Inversamente, a burguesia, com a qual tanto temeram misturar-se, vai se tornando mais rica e mais esclarecida ao lado deles, sem eles e contra eles; não quiseram ter os burgueses como associados nem como concidadãos, vão tê-los como rivais, em breve como inimigos e por fim como senhores.

LIVRO III

Não foi por acaso que os filósofos do século XVIII conceberam generalizadamente noções tão opostas às que ainda serviam de base para a sociedade de seu tempo; essas ideias foram-lhes sugeridas naturalmente, pela visão dessa mesma sociedade que todos tinham diante de si. O espetáculo de tantos privilégios abusivos ou absurdos, cujo peso se fazia sentir cada vez mais e cuja causa era compreendida cada vez menos, impelia ou antes precipitava simultaneamente o espírito de cada um deles para a ideia da igualdade natural de condições. Vendo tantas instituições irregulares e bizarras, filhas de outros tempos, que ninguém tentara harmonizar entre si nem adaptar às necessidades novas e que pareciam dever eternizar sua existência depois de terem perdido a eficácia, eles facilmente tomavam aversão pelas coisas antigas e pela tradição, e eram naturalmente levados a querer reconstruir a sociedade de sua época de acordo com um plano inteiramente novo, que cada um traçava unicamente à luz de sua própria razão.

[Aqui Tocqueville aborda o mesmo assunto de Burke com uma interpretação diferente].

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Todos os que a prática diária da legislação entravava apaixonaram-se de pronto por essa política literária. O gosto por ela invadiu até mesmo aqueles que a natureza ou a condição mais afastava naturalmente das especulações abstratas. Não houve contribuinte lesado pela desigualdade no rateio das talhas que não se inflamasse à ideia de que todos os homens devem ser iguais; não houve pequeno proprietário devastado pelos coelhos do fidalgo seu vizinho que não se comprouvesse em ouvir dizer que todos os privilégios indistintamente eram condenados pela razão. Cada paixão pública disfarçou-se assim como filosofia; a vida política foi violentamente rechaçada para a literatura, e os escritores, tomando nas mãos o comando da opinião, viram-se ocupando por um momento o lugar que os chefes de partido ocupam habitualmente nos países livres.

[Foi o que Burke não percebeu. A falta de percepção dos críticos brasileiros da Revolução Francesa de que o sentimento de igualdade pudesse ser originário das diferenças discriminatórias de tributos talvez seja o ponto mais vulnerável na análise do verdadeiro sentido de igualdade na proclamação revolucionária].

Uma aristocracia vigorosa não apenas conduz os assuntos públicos; dirige também as opiniões, dá o tom aos escritores e autoridade às ideias. No século XVIII, a nobreza francesa havia perdido inteiramente essa parte de seu império; seu crédito havia seguido o destino de seu poder: o lugar que ela ocupara no governo dos espíritos estava vago e os escritores podiam invadi-lo à vontade e preenchê-lo sozinhos.

Por sua vez, o infortunado Luís XVI, um momento antes de perecer no desenfreamento da democracia — Burke observa-o com razão —, continuava a ver na aristocracia a principal rival do poder régio, desconfiava dela como se ainda estivessem na época da Fronda. A burguesia e o povo, ao contrário, pareciam-lhe, como a seus antepassados, o apoio mais seguro do trono.

Leio atentamente os cadernos que as três ordens redigiram antes de se reunirem em 1789; digo as três ordens, as da nobreza e do clero tanto quanto a terceira. Vejo que aqui se pede a mudança de uma lei, ali de um uso, e tomo nota. Vou prosseguindo esse imenso trabalho até o final e, quando termino de reunir todos esses desejos particulares, percebo com uma espécie de terror que o que se exige é a abolição simultânea e sistemática de todas as leis e de todos os usos em curso no país; vejo prontamente que se tratará de uma das mais vastas e mais perigosas revoluções que jamais terão surgido no mundo. Os que amanhã serão suas vítimas nada sabem dela; acreditam que a transformação total e súbita de uma sociedade tão complicada e tão velha pode operar-se sem convulsões, por meio da razão e apenas por sua eficácia. Que infelizes! Esqueceram até aquela máxima que quatrocentos anos antes seus pais haviam assim expressado, no francês simples e enérgico daquela época: “Por exigir franquia desmedida e liberdades, o homem cai em servidão desmedida.”

Uma nação fatigada de longos debates concorda facilmente em ser enganada, contanto que a deixem repousar; e a História ensina que então para contentá-la basta coletar por todo o país um certo número de homens obscuros ou dependentes e fazê-los desempenhar diante dela o papel de uma assembleia política, mediante salário. Houve vários exemplos disso. Mas no início de uma revolução tais empreendimentos sempre fracassam e nunca fazem mais que inflamar o povo sem contentá-lo. O menor cidadão de um país livre sabe disso; Turgot, grande administrador que era, ignorava-o.

Acima da sociedade real, cuja constituição era ainda tradicional, confusa e irregular, onde as leis continuavam diversas e contraditórias, as posições sociais nitidamente demarcadas, as condições fixas e os encargos desiguais, construía-se assim pouco a pouco uma sociedade imaginária na qual tudo parecia simples e coordenado, uniforme, equitativo e conforme com a razão. Gradualmente, a imaginação da multidão desertou a primeira para recolher-se à segunda. Desinteressaram-se do que era e puseram-se a pensar no que podia ser, e por fim viveram pelo espírito naquela cidade ideal que os escritores haviam construído.

Quando se estuda a história de nossa revolução, vê-se que foi feita precisamente com o mesmo espírito que gerou tantos livros abstratos sobre o governo. A mesma atração pelas teorias gerais, pelos sistemas completos de legislação e pela exata simetria nas leis; o mesmo desdém pelos fatos existentes; a mesma confiança na teoria; o mesmo gosto pelo original, pelo engenhoso e pelo novo nas instituições; o mesmo desejo de refazer de uma só vez a constituição inteira, seguindo as regras da lógica e de acordo com um plano único, em vez de procurar melhorá-la em suas partes. Espetáculo assustador! Pois o que é qualidade no escritor às vezes é vício no estadista e as mesmas coisas que frequentemente levaram a escrever belos livros podem levar a grandes revoluções.

Bem antes da Revolução, os éditos de Luís XVI frequentemente falam da lei natural e dos direitos do homem.

Essas qualidades novas incorporaram-se tão bem ao antigo fundo do caráter francês que frequentemente se atribuiu à nossa índole o que provinha tão somente dessa educação singular. Ouvi afirmar que o gosto ou antes a paixão que temos mostrado há sessenta anos pelas ideias gerais, pelos sistemas e pelas expressões solenes em matéria política se devia a não sei qual atributo específico de nossa raça, ao qual chamavam um tanto enfaticamente de o espírito francês — como se esse suposto atributo pudesse ter aparecido subitamente em fins do século passado, depois de ficar oculto durante todo o restante de nossa História.

Como a irreligiosidade pôde tornar-se uma paixão geral e dominante entre os franceses do século XVIII e que espécie de influência isso teve sobre o caráter da Revolução.

O mesmo espírito que, na época de Lutero, tirara de uma só vez do catolicismo vários milhões de católicos, todo ano impelia isoladamente alguns cristãos para fora do próprio cristianismo: à heresia sucedera a incredulidade.

Pode-se dizer de modo geral que no século XVIII o cristianismo perdera em todo o continente europeu uma grande parte de sua força; mas na maioria dos países ele era mais abandonado do que violentamente combatido; mesmo os que o abandonavam deixavam-no como que a contragosto. A irreligião estava difundida entre os príncipes e os espíritos refinados; ainda quase não penetrava no seio das classes intermediárias e do povo; continuava a ser um capricho de certos espíritos, não uma opinião comum. “É um preconceito geral na Alemanha” , diz Mirabeau em 1787, “ que as províncias prussianas estariam repletas de ateus. A verdade é que, embora se encontrem nelas alguns livre-pensadores, seu povo é tão apegado à religião quanto nas regiões mais devotas, e até mesmo existe ali um grande número de fanáticos.” Acrescenta que é muito lamentável que Frederico II não autorize o casamento dos padres católicos e sobretudo se recuse a deixar aos que se casam os rendimentos de seu benefício eclesiástico, “medida que ousaríamos julgar digna desse grande homem”, diz. Em lugar nenhum a irreligião já se tornara uma paixão geral, ardente, intolerante ou opressiva, a não ser na França.

Mesmo as religiões falsas e detestáveis da Antiguidade só tiveram adversários numerosos e apaixonados quando o cristianismo surgiu para suplantá-las; até então se extinguiam mansamente e sem alarde na dúvida e na indiferença: é a morte senil das religiões. Na França, atacaram com uma espécie de furor a religião cristã, sem sequer tentarem colocar outra religião em seu lugar. Trabalharam ardorosa e continuamente em tirar das almas a fé que as enchera e deixaram-nas vazias. Uma multidão de homens inflamou-se nesse ingente empreendimento. A incredulidade absoluta em matéria de religião, que é tão contrária aos instintos naturais do homem e coloca sua alma em uma posição tão dolorosa, pareceu atraente para a multidão. O que até então produzira apenas uma espécie de langor doentio dessa vez engendrou o fanatismo e o espírito de propaganda.

A confluência de vários grandes escritores dispostos a negar as verdades da religião cristã não parece suficiente para explicar um acontecimento tão extraordinário; pois por que todos os escritores, todos, direcionaram a mente para esse lado e não para outro? Por que entre eles não se viu um único que tenha pensado em escolher a tese contrária? E finalmente, por que encontraram, mais que todos seus predecessores, o ouvido da multidão totalmente receptivo para ouvi-los e seu espírito tão propenso a dar-lhes crédito? Apenas causas muito particulares ao tempo e ao país desses escritores podem explicar tanto seu empreendimento como sobretudo seu êxito. O espírito de Voltaire estava há muito tempo no mundo; mas o próprio Voltaire só podia imperar de fato no século XVIII e na França.

[Arrasa com o olavismo na medida em que mostra que Voltaire é mais um espírito da época que uma personalidade individual].

Devemos primeiro reconhecer que a Igreja nada tinha de mais censurável entre nós do que em outros lugares; ao contrário, os vícios e os abusos que lhe haviam introduzido eram bem menores que na maioria dos países católicos; ela era infinitamente mais tolerante do que fora até então e do que era ainda entre outros povos. Por isso é muito menos no estado da religião que no da sociedade que devemos procurar as causas particulares do fenômeno. Para compreendê-lo é preciso nunca perder de vista o que mencionei no capítulo anterior, ou seja: que todo o espírito de oposição política que os vícios do governo faziam surgir, não podendo manifestar-se nos assuntos públicos, refugiara-se na literatura, e que os escritores haviam se tornado os verdadeiros chefes do grande partido que tendia a derrubar todas as instituições sociais e políticas do país.

Além disso, a própria Igreja era então o primeiro entre os poderes políticos e o mais detestado de todos, embora não fosse o mais opressor; pois viera misturar-se a eles sem ser levada a isso por sua vocação ou por sua natureza, frequentemente consagrava neles vícios que reprovava em outras partes, cobria-os com sua inviolabilidade sagrada e parecia querer torná-los imortais como ela mesma. Atacando-a, tinha-se antes de tudo certeza de entrar na paixão do público.

Ademais, de todo o vasto edifício que atacavam, a Igreja parecia-lhes ser – e efetivamente era – o lado mais exposto e menos defendido. Sua força se debilitara ao mesmo tempo que o poder dos príncipes temporais se consolidava. Após ter sido sua superiora e em seguida sua igual, ela se reduzira a tornar-se sua cliente; estabelecera-se uma espécie de intercâmbio: eles lhe emprestavam sua força material, ela lhes emprestava sua autoridade moral; eles faziam os preceitos da Igreja serem obedecidos, ela fazia a vontade dos príncipes ser respeitada. Comércio perigoso quando tempos de revolução se aproximam, e sempre desvantajoso para uma potência que não se fundamenta na coerção e sim na crença.

Detenho o primeiro americano que encontro, seja em seu país ou em outro, e pergunto-lhe se considera a religião útil para a estabilidade das leis e para a boa ordem da sociedade; ele me responde sem hesitar que uma sociedade civilizada, mas sobretudo uma sociedade livre, não pode subsistir sem religião. O respeito à religião é, a seu ver, a maior garantia da estabilidade do Estado e da segurança dos particulares. Os menos versados na ciência de governar sabem pelo menos isso. Entretanto não há no mundo país em que as mais ousadas doutrinas dos filósofos do século XVIII, em matéria de política, sejam mais aplicadas que na América; apenas suas doutrinas antirreligiosas nunca puderam manifestar-se ali, mesmo com o favor da liberdade ilimitada da imprensa....

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Os americanos podem ser considerados os aplicadores dos princípios da França revolucionária a favor da liberdade ilimitada da imprensa.

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A experiência incompleta que adquirimos nos últimos sessenta anos de vida pública bastou para desgostar-nos dessa literatura perigosa. Podeis ver como o respeito à religião reassumiu gradualmente seu domínio nas diversas classes da nação, à medida que cada uma delas adquiria essa experiência na dura escola das revoluções. A antiga nobreza, que era a classe mais irreligiosa antes de 1789, tornou-se a mais fervorosa depois de 1793; primeira a ser atingida, foi a primeira a converter-se. Quando a própria burguesia se sentiu atacada em seu triunfo, vimo-la por sua vez reaproximar-se das crenças. Pouco a pouco o respeito pela religião penetrou em toda parte onde os homens tinham algo a perder na desordem popular, e a descrença desapareceu, ou pelo menos escondeu-se, à medida que o medo das revoluções se manifestava.

[Aqui cabe uma observação sobre a ameaça islâmica que paira sobre a Europa sendo capaz de resgatar a indiferença com o cristianismo tão típica de nossa era tecnológica.]

O descrédito universal em que caíram todas as crenças religiosas no final do século passado exerceu indiscutivelmente a maior influência sobre toda nossa Revolução; marcou-lhe o caráter. Nada contribuiu mais para dar à sua fisionomia a expressão terrível que mostrou.

Se os franceses que fizeram a Revolução eram mais incrédulos que nós em matéria de religião, restava-lhes pelo menos uma crença admirável que nos falta: acreditavam em si mesmos. Não duvidavam da perfectibilidade, do poder do homem; apaixonavam-se facilmente por sua glória, tinham fé em sua virtude. Depositavam em suas próprias forças essa confiança orgulhosa que muitas vezes leva ao erro, mas sem a qual um povo só é capaz de servir; não duvidavam absolutamente que estivessem destinados a transformar a sociedade e a regenerar nossa espécie. Esses sentimentos e paixões haviam se tornado para eles como uma espécie de religião nova que, produzindo alguns dos grandes efeitos que se viu as religiões produzirem, arrancava-os do egoísmo individual, impelindo-os para o heroísmo e o devotamento, e frequentemente tornava-os como que insensíveis a todos esses pequenos bens que nos possuem.

Mas na Revolução Francesa, como as leis religiosas haviam sido abolidas ao mesmo tempo em que as leis civis eram derrubadas, o espírito humano perdeu por completo sua estabilidade; não soube mais a que se agarrar nem onde se deter; e viu-se aparecerem revolucionários de uma espécie desconhecida, que levaram a audácia até a loucura, que nenhuma novidade pôde surpreender, nenhum escrúpulo pôde moderar e que nunca hesitaram ante a execução de um desígnio. E não se deve acreditar que esses seres novos tenham sido a criação isolada e efêmera de um momento, destinada a passar com ele; formaram desde então uma linhagem que se perpetuou e se espalhou em todas as partes civilizadas da Terra, que em toda parte conservou a mesma fisionomia, as mesmas paixões, o mesmo caráter. Encontramo-la no mundo ao nascermos; ainda está ante nossos olhos.

[Excelente conclusão.]

Mais ainda, já se reconhece em seus livros esse temperamento revolucionário e democrático que conhecemos tão bem.

Vale assinalar: revolucionário e democrático, algo que hoje não se associa mais. … eles não apenas têm ódio a certos privilégios, a própria diversidade lhes é odiosa: adorariam a igualdade até na servidão. O que os atrapalha em seus desígnios só serve para ser destruído. Os contratos inspiram-lhes pouco respeito; os direitos privados, nenhuma consideração; ou melhor, a seu ver já não há, a bem dizer, direitos privados, mas somente uma utilidade pública. Entretanto, em geral são homens de hábitos amenos e pacíficos, pessoas de bem, magistrados honestos, administradores competentes; mas o gênio específico de sua obra os arrasta.

Eles já conceberam a ideia de todas as reformas sociais e administrativas que a Revolução fez, antes que a ideia das instituições livres tenha começado a surgir-lhes na mente. São, é verdade, muito favoráveis à livre troca de mercadorias, ao laissez-faire ou ao laissez-passer no comércio e na indústria; mas, quanto às liberdades políticas propriamente ditas, não pensam absolutamente nelas e, mesmo quando por acaso se apresentam à sua imaginação, rejeitam-nas de imediato. A maioria começa por mostrar-se muito contrária às assembleias deliberativas, aos poderes locais e secundários e em geral a todos esses contrapesos que em diferentes épocas foram estabelecidos por todos os povos livres a fim de contrabalançar o poder central.

Demonstra que não é bem a democracia que almejam.

“O sistema de contra-forças em um governo é uma ideia funesta”, diz Quesnay. “As especulações a partir das quais se imaginou o sistema de contrapesos são quiméricas”, diz um amigo de Quesnay. A única garantia que imaginam contra o abuso do poder é a educação pública; pois, como diz ainda Quesnay, “o despotismo é impossível se a nação for esclarecida”. “Atingidos pelos males que os abusos da autoridade provocam” , diz outro discípulo seu, “os homens inventaram mil meios totalmente inúteis e negligenciaram o único realmente eficaz, que é o ensino público geral e contínuo da justiça em sua essência e da ordem natural". É com essa pequena algaravia literária que pretendem suprir todas as garantias políticas.

Para ele, como para a maioria dos economistas, a primeira garantia política é uma certa instrução pública dada pelo Estado, de acordo com certos processos e dentro de um certo espírito. A confiança que demonstra nesse tipo de medicação intelectual — ou, como diz um de seus contemporâneos, no “mecanismo de uma educação conforme com os princípios” — é sem limites.

[O mesmo sentimento existe no Brasil. A educação como redenção].

O Estado, segundo os economistas, não tem unicamente de comandar a nação, tem também de moldá-la de uma certa maneira; cabe a ele formar o espírito dos cidadãos de acordo com um determinado modelo que estabeleceu previamente; seu dever é prover-lhes a mente de certas ideias e fornecer-lhes ao coração certos sentimentos que julgar necessários. Na realidade, não há limites para seus direitos nem fronteiras para o que pode fazer; não apenas reforma os homens, transforma-os; possivelmente estaria unicamente em suas mãos fazer outros!“ O Estado faz dos homens tudo o que quiser”, diz Bodeau. Essas palavras resumem todas as teorias deles.

[Um proto-socialismo avant la lettre]

[...] não se denomina mais “o rei” e sim “o Estado”

[...] não é a herança de uma família; é o produto e o representante de todos e deve fazer com que o direito de cada um se curve ante a vontade de todos. Essa forma particular de tirania denominada despotismo democrático, de que a Idade Média não tivera ideia, já lhes é familiar.

Acredita-se que as teorias destrutivas que em nossos dias são designadas pelo nome de socialismo sejam de origem recente; é um erro:

[...] essas teorias são contemporâneas dos primeiros economistas. Enquanto esses empregavam o governo todo-poderoso com que sonhavam para mudar as formas da sociedade, os outros apossavam-se em imaginação do mesmo poder para demolir-lhe as bases.

Lede o Code de la Nature , de Morelly, e nele encontrareis, juntamente com todas as doutrinas dos economistas sobre a onipotência do Estado e sobre seus direitos ilimitados, várias das teorias políticas que mais aterrorizaram a França nestes últimos tempos e que supúnhamos que vimos nascerem: o caráter comunitário dos bens, o direito ao trabalho, a igualdade absoluta, a uniformidade em todas as coisas, a regularidade mecânica em todos os movimentos dos indivíduos, a tirania regulamentar e a absorção completa da personalidade dos cidadãos no corpo social.

[Socialismo intuitivo e baseado na moral do bem comum].

“Nada na sociedade pertencerá singularmente nem como propriedade a ninguém” , diz o artigo 1o desse Código. “A propriedade é odiosa e quem tentar restabelecê-la ficará aprisionado por toda a vida, como louco furioso e inimigo da humanidade. Cada cidadão será alimentado, cuidado e ocupado às expensas do Estado”, diz o artigo 2. “Todas as produções serão armazenadas em lojas públicas, para serem distribuídas a todos os cidadãos e atenderem às necessidades de sua vida. As cidades serão construídas seguindo a mesma planta; todos os edifícios para uso dos particulares serão iguais. Aos cinco anos, todas as crianças serão retiradas da família e educadas em conjunto, às custas do Estado, de um modo uniforme.” Esse livro que vos parece escrito ontem tem cem anos; foi publicado em 1755, no momento em que Quesnay fundava sua escola — tanto é verdade que a centralização e o socialismo são produtos do mesmo solo; são um para com o outro o que o fruto cultivado é para com a arvorezinha selvagem.

Quando o estado entra na imaginação, não importa se estamos em Esparta ou no século XVIII. As providências serão as mesmas em todos os recantos da imaginação.

Cerca de trinta ou quarenta anos antes de a Revolução eclodir, o cenário começa a mudar; julgamos discernir então em todas as partes do corpo social uma espécie de estremecimento interior que ainda não se havia observado. Inicialmente apenas um exame muito atento pode detectá-lo; mas pouco a pouco se torna mais característico e mais distinto. Cada ano esse movimento amplia-se e acelera-se: por fim a nação inteira movimenta-se e parece renascer. Mas atenção! Não é sua antiga vida que se reanima; o espírito que move esse grande corpo é um espírito novo; reaviva-o por um momento tão somente para desagregá-lo.

Inversamente, em parte alguma o Antigo Regime conservara-se melhor do que ao longo do Loire, perto de sua foz, nos pântanos de Poitou e nas charnecas da Bretagne. Foi precisamente aí que se acendeu e se avivou o fogo da guerra civil e que se resistiu mais violentamente e por mais tempo à Revolução; de tal forma que se diria que os franceses consideraram sua posição tanto mais intolerável quanto melhor ela se tornava.

Nem sempre é indo de mal a pior que se acaba caindo em revolução. Acontece muito frequentemente que um povo que suportou sem reclamar, e como se não as sentisse, as leis mais opressivas repele-as violentamente assim que seu peso fica mais leve.

O feudalismo em toda sua força não havia inspirado aos franceses tanto ódio quanto no momento em que ia desaparecer. Os menores golpes da arbitrariedade de Luís XVI pareciam mais difíceis de suportar do que todo o despotismo de Luís XIV.

Ninguém mais afirma, em 1780, que a França está em decadência; diriam, ao contrário, que nesse momento não há mais limites para seus avanços. É então que nasce a teoria da perfectibilidade contínua e indefinida do homem. [Rousseau].

Como, tentando ajudar o povo, amotinaram-no.

"O governo, com suas medidas errôneas, arrisca-se a fazer o pobre morrer de fome”, diz esse parlamento. “A ambição do parlamento e a avidez dos ricos causam a aflição pública”, replica o rei. Os dois lados trabalham assim para introduzir no espírito do povo a ideia de que é sempre aos superiores que ele deve culpar por seus males.

Deve-se reconhecer que na França as classes superiores da sociedade começaram a preocupar-se com a sorte do povo antes de começarem a temê-lo; interessaram-se por ele num período em que ainda não acreditavam que seus males pudessem causar-lhes a ruína. Isso se torna evidente sobretudo durante os dez anos que precedem 1789: então frequentemente se compadecem dos camponeses e falam deles a todo momento; indagam por quais procedimentos poderiam ajudá-los; ressaltam os principais abusos de que padecem e criticam as leis fiscais que os prejudicam particularmente; mas em geral são tão imprevidentes na expressão dessa simpatia nova quanto o foram durante muito tempo na insensibilidade.

[A mesma gênese do petismo e da febre do populismo.]

Entre as reformas que havia feito pessoalmente, algumas mudaram, bruscamente e sem preparativos suficientes, hábitos antigos e respeitados e por vezes violentaram direitos adquiridos. Assim elas prepararam a Revolução bem menos derrubando o que a atrapalhava do que mostrando ao povo como podia proceder para fazê-la. O que aumentou o mal foi precisamente a intenção pura e desinteressada que impulsionava o rei e seus ministros; pois não há exemplo mais perigoso que o da violência exercida para o bem e por pessoas de bem.

Muito tempo antes, Luís XIV ensinara publicamente em seus éditos a teoria de que originariamente todas as terras do reino haviam sido concedidas condicionalmente pelo Estado, que se tornava assim o único proprietário verdadeiro, enquanto todos os outros não passavam de posseiros com título contestável e direito imperfeito. Essa doutrina tivera origem na legislação feudal, mas só foi professada na França na época em que o feudalismo estava morrendo, e os tribunais nunca a admitiram. É a ideia-mãe do socialismo moderno. É curioso vê-la criar raízes primeiramente no despotismo régio.

Quando, na segunda metade do século XVIII, o gosto pelas obras públicas e especialmente pelas estradas começou a difundir-se, o governo não hesitou em apossar-se de todas as terras de que precisava para seus empreendimentos e em derrubar as casas que o atrapalhavam. O departamento de obras públicas ficou tão apaixonado pelas belezas geométricas da linha reta quanto se mostrou desde então; evitava com grande cuidado seguir os caminhos existentes, se acaso lhe parecessem um pouco sinuosos, e, ao invés de fazer um pequeno desvio, cortava através de mil propriedades. Os bens assim devastados ou destruídos eram sempre arbitrária e tardiamente pagos, e muitas vezes não o eram em absoluto.

Cada um deles aprendera por experiência própria o pouco respeito que o direito do indivíduo merece quando o interesse público requer sua violação — doutrina que cuidou de não esquecer quando se tratou de aplicá-la a outros em proveito próprio.

Haviam existido outrora, em um grande número de paróquias, fundações de caridade que, na intenção de seus criadores, tinham como objetivo socorrer os habitantes em certos casos e de uma certa maneira que o testamento indicava. Nos últimos tempos da monarquia a maioria dessas fundações foi abolida ou desviada de seu propósito primitivo por simples decretos do conselho, ou seja, puramente por arbítrio do governo. Geralmente esses fundos concedidos às aldeias foram confiscados em proveito de hospitais e asilos vizinhos. Por sua vez, mais ou menos na mesma época a propriedade desses hospitais e asilos foi alterada com desígnios que o fundador não tivera e que sem dúvida não teria adotado. Um édito de 1780 autorizou todos esses estabelecimentos a vender os bens que lhes haviam sido deixados em qualquer momento, com a condição de terem seu usufruto perpétuo, e permitiu que repassassem o valor recebido para o Estado, que lhes pagaria os rendimentos correspondentes. Dizia-se que isso era fazer da caridade dos antepassados um uso melhor do que eles mesmos haviam feito. Esquecia-se que o melhor meio de ensinar os homens a violar os direitos individuais dos vivos é não dar a menor importância à vontade dos mortos. O menosprezo que a administração do Antigo Regime lhes atestava não foi superado por nenhum dos poderes que a sucederam. Acima de tudo ela nunca demonstrou um mínimo desse escrúpulo um tanto meticuloso que leva os ingleses a emprestar a cada cidadão toda a força do corpo social para ajudá-lo a manter o efeito de suas derradeiras disposições e que os faz testemunhar mais respeito ainda à sua memória do que a ele mesmo.

As requisições, a venda obrigatória de víveres, a limitação do preço máximo são medidas governamentais que tiveram precedentes sob o Antigo Regime. Vi, em períodos de escassez, administradores fixarem previamente o preço dos gêneros que os camponeses iam colocar à venda, e quando estes, para não se submeterem, não se apresentavam no mercado, emitirem ordens para obrigá-los sob pena de multa.

Mais ainda, todos os camponeses que se afastavam de suas paróquias sem estar munidos de uma declaração assinada pelo pároco e pelo síndico deviam ser perseguidos, detidos e julgados prebostemente – sem apelação – por vadiagem.

[Comprovando que a Igreja agia como um órgão de vigilância ao estilo comunista.]

Ousarei dizer, porque tenho em mãos os fatos, que um grande número de procedimentos empregados pelo governo revolucionário teve precedentes e exemplos nas medidas adotadas para com o povo humilde durante os últimos dois séculos da monarquia. O Antigo Regime forneceu à Revolução várias de suas formas; ela lhes acrescentou apenas a atrocidade de seu gênio.

[Isto prova duas coisas: 1) Que todas as revoluções copiaram os métodos que juraram abolir, e 2) que se combate na revolução o que ela copiava do passado como se tivesse inventado.]

Já mencionei que, nos pays d’élection , ou seja, em cerca de três quartos da França, toda a administração da généralité estava entregue a um único homem, o intendente, que agia não apenas sem fiscalização como sem conselho. Em 1787, foi instalada ao lado desse intendente uma assembleia provincial que se tornou o verdadeiro administrador da região. Em cada aldeia, um corpo municipal eleito assumiu igualmente o lugar das antigas assembleias paroquiais e, na maioria dos casos, do síndico.

Nos locais onde a administração estava confiada a um único homem, este agia sem o concurso de nenhuma assembleia. Onde existiam assembleias, como nos pays d’états ou nas cidades, o poder executivo não estava confiado a ninguém em particular; a assembleia não apenas governava e fiscalizava a administração como administrava por si mesma ou por meio de comissões temporárias que nomeava.

É bastante estranho que, em uma sociedade tão esclarecida e em que a administração pública desempenhava já há muito tempo um papel tão grande, nunca se tenha pensado em reunir os dois sistemas e em distinguir, sem desagregá-los, o poder que deve executar e o poder que deve fiscalizar e prescrever. Essa ideia que parece tão simples não surgiu; só foi achada neste século.

É, por assim dizer, a única grande descoberta propriamente nossa em matéria de administração pública.

De fato, em lugar algum a distinção de impostos era mais visível que nos campos; em parte alguma a população estava mais dividida em grupos diferentes e muitas vezes inimigos uns dos outros. Para conseguir dar às aldeias uma administração coletiva e um pequeno governo livre, teria sido preciso primeiro sujeitar todo mundo aos mesmos impostos e diminuir a distância que separava as classes.

Não foi assim que se procedeu quando por fim se empreendeu essa reforma, em 1787. No interior da paróquia, manteve-se a antiga separação das ordens e a desigualdade em matéria de impostos, que era sua marca principal, e mesmo assim entregou-se toda a administração a corpos eletivos. Isso levou imediatamente às mais singulares consequências.

Por outro lado, veem-se habitantes importantes da paróquia, e mesmo fidalgos, de repente se aproximarem dos camponeses quando estes se tornam um poder. Nas redondezas de Paris o senhor responsável pela alta justiça queixa-se de que o édito o impede de participar, mesmo como simples habitante, das atividades da assembleia paroquial. Outros concordam, “por devotamento ao bem público, em cumprir mesmo as funções de síndico”, dizem eles. Era tarde demais. À medida que os homens das classes ricas se aproximam assim do povo dos campos e procuram misturar-se com ele, este se refugia no isolamento que lhe haviam imposto e ali se defende. Há assembleias municipais de paróquias que se recusam a receber em seu meio o senhor; outras opõem toda espécie de chicanas antes de admitir até mesmo os plebeus, quando são ricos. “Estamos a par”, diz a assembleia provincial da baixa.

Essa renovação súbita e imensa de todas as regras e de todos os hábitos administrativos, que na França precedeu a revolução política e de que hoje quase não se fala, já era entretanto uma das maiores turbulências que jamais ocorreram na história de um grande povo.

A primeira revolução da Inglaterra, que subverteu toda a constituição política daquele país e aboliu até sua realeza, só tocou muito superficialmente nas leis secundárias e mudou quase nada nos costumes e nos usos. A justiça e a administração conservaram suas formas e seguiram as mesmas rotinas que no passado. No auge da guerra civil os doze juízes da Inglaterra, segundo se diz, continuaram a fazer duas vezes por ano a ronda dos tribunais criminais. Portanto nem tudo foi agitado ao mesmo tempo. A revolução viu-se circunscrita em seus efeitos e a sociedade inglesa, embora sacudida no topo, permaneceu firme na base.

[Cap. VII — Como a Revolução surgiu naturalmente do que precede]

“Ora essa!” brada Burke em um de seus eloquentes panfletos. “Não se vê um só homem que possa responder pelo menor distrito; mais ainda, não se vê um único homem que possa responder por outro. Cada qual fica trancado em sua casa, sem resistência, quer se trate de monarquismo, de moderantismo ou de qualquer outra coisa.” Burke não sabia em que condições essa monarquia pela qual ele lamentava nos deixara para nossos novos senhores. A administração do Antigo Regime tirara antecipadamente dos franceses a possibilidade e o desejo de se ajudarem mutuamente. Quando a Revolução sobreveio, em vão se procuraria na maior parte da França por dez homens que tivessem o hábito de agir em comum de um modo regular e de zelar pessoalmente por sua própria defesa; o poder central devia encarregar-se disso, de tal modo que o poder central, tendo caído das mãos da administração régia para as mãos de uma assembleia irresponsável e soberana, e que passara de cordata a terrível, nada encontrou diante de si que pudesse detê-lo ou sequer retardá-lo por um momento.

[Mais uma crítica à Burke].

Os que, lendo este livro, estudaram atentamente a França no século XVIII, puderam ver nascer e desenvolver-se em seu seio duas paixões principais, que não foram contemporâneas e nem sempre tenderam para o mesmo objetivo. Uma, mais profunda e vinda de mais longe, é o ódio violento e inextinguível pela desigualdade. Ele nascera e alimentara-se da visão dessa mesma desigualdade e desde muito tempo impelia os franceses, com uma força contínua e irresistível, a querer destruir até as bases tudo o que restava das instituições medievais e, esvaziado o terreno, construir nele uma sociedade em que os homens fossem tão semelhantes e as condições tão iguais quanto a humanidade comporta. A outra, mais recente e menos enraizada, levava-os a desejar viver não apenas iguais, mas livres. Por volta do final do Antigo Regime essas duas paixões são tão sinceras e parecem tão vivas uma quanto a outra. Às portas da Revolução elas se encontram; então se misturam e se confundem por um momento, aquecem-se mutuamente no contato e por fim incendeiam ao mesmo tempo todo o coração da França. É 1789, tempo de inexperiência realmente, mas de generosidade, entusiasmo, virilidade e grandeza, tempo de imortal memória, para o qual se voltarão com admiração e respeito os olhares dos homens, quando aqueles que o viram e nós mesmos tivermos desaparecido há muito. Então os franceses ficaram suficientemente orgulhosos de sua causa e de si mesmos para acreditar que podiam ser iguais na liberdade. Assim, no meio das instituições democráticas colocaram em toda parte instituições livres. Não apenas reduziram a pó aquela legislação antiquada que dividia os homens em castas, em corporações, em classes e tornava seus direitos mais desiguais ainda que suas condições, como também destruíram de um só golpe aquelas outras leis, obras mais recentes do poder régio, que haviam tirado da nação a livre disposição de si mesma e colocado ao lado de cada francês o governo, para ser seu preceptor, seu tutor e, se necessário, seu opressor. Com o governo absoluto a centralização caiu.

A Revolução Francesa não será mais que trevas para aqueles que quiserem olhar apenas para ela; é nos tempos que a precedem que se deve procurar a única luz que pode aclará-la. Sem uma visão nítida da antiga sociedade, de suas leis, de seus vícios, preconceitos, misérias, de sua grandeza, jamais se compreenderá o que os franceses fizeram no decurso dos sessenta anos seguintes à sua queda; mas essa visão ainda não bastaria a quem não se aprofundasse até a própria índole de nossa nação.

[Esta abordagem histórica, baseada na sociedade precedente, nos costumes centenários, na evolução das ideias, na convergência de opiniões e na insubordinação própria daquele tempo, faz com que Tocqueville e Acton se diferenciem tanto quanto duas correntes contrárias na própria revolução que ambos analisam. (Ver fragmentos 12). Atento aos fatos, Acton quase nada tem a dizer sobre o passado. É um historiador clássico, um observador focado na documentação, enquanto Tocqueville tem na revolução o olho literário que penetra no coração do homem, na síntese dos hábitos cognatos. Eles se complementam admiravelmente e esta é a razão para um resumo tão longo de ambas as obras.]


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