sábado, 27 de março de 2021

Fragmentos 29

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Alain Peyrefitte – O Mal Latino

Um livro que deveria ser badalado nos círculos de ciências políticas, sociais, história, sociologia e até do direito. No entanto, não fosse citado em entrevista a Meira Penna em 1999, eu mesmo não teria em mãos duas décadas depois. A vantagem de guardar recortes de jornais, quando não se persegue o livro imediatamente, aparece quando nos reencontramos no tempo da leitura. Se o recorte estava arquivado, era para ser relido algum dia, e foi o que aconteceu em janeiro de 2021, quando, agastado pelo confinamento imposto pelo coronavírus, me encontro finalmente com o livro .

Le Mal Français, traduzido para o espanhol e italiano como O Mal Latino (nenhuma editora brasileira se interessou pelo pedido de tradução feito pelo falecido embaixador Meira Penna), o livro trata da mentalidade latina que compõe as instituições francesas, especialmente o inamovível centralismo burocrático, o espírito de dependência hierárquica, a morosidade da ação governamental e as consequências para uma época em que a agilidade de decisões tem sido a força motriz do progresso e inovação.

Não se trata de um fatalismo, porém de valores constitutivos da herança romana calcada no imaginário dos povos cuja iniciativa é conduzida ao consentimento do poder em sua infinidade de procedimentos.

Trata-se, portanto de um mergulho em nossa identidade, tema que o Brasil abandonou há uns bons 50 anos, quando o progresso tecnológico desviou a atenção de nosso subdesenvolvimento mental para os benefícios da tecnologia apropriada do resto do mundo.


PRIMEIRA PARTE: SOB AS PEGADAS DE UM MAL OCULTO

1. O Mistério Francês

A presença francesa na África, em missões humanitárias de assistência hospitalar aos países pacientes de enfermidades tropicais é comentada por Schweitzer (ele próprio um alsaciano) como uma peculiaridade do caráter francês, comparado com outros povos europeus. Para ele, os franceses tem ideias preconcebidas, a realidade do lugar não os incita à investigação e não sabem (ou não querem se render) aos fatores culturais.

“Os latinos preferem as teorias”, pois é um país onde os estudantes preferem as piruetas da língua à rude disciplina das técnicas, do comércio internacional, das empresas, “assimilados por eles a um capitalismo que lhes ensinaram detestar”.

Em “Os Franceses São os Melhores” analisa a dicotomia entre a excelência da autoimagem e a frustração dos resultados.

2. Enfermo de morte (pg 38). Cita no preâmbulo Clemenceau: …” a verdade é que nosso orgulho nos instiga a rechaçar”, e insiste no fracasso francês para combater a invasão alemã em 1940. Mostra a desorganização do exército como causa principal da derrota e não da superioridade militar alemã. Pg 42. Em “o rebelde e o patriota” analisa o “espírito de negativa”, tão comum entre nós, que no transcurso dos séculos forjou o caráter francês através de cátaros, valdenses, “camisards”, sacerdotes rebeldes e desertores do recrutamento napoleônico, etc. Como poderia De Gaulle mobilizar o “espírito que nega”, nascido na Resistência, para reconstruir a França?, se pergunta.

3. A busca de um vírus. Lembra sua experiência escolar no pós-guerra na Inglaterra onde percebeu as atitudes solidárias dos ingleses baseados na confiança dos poderes públicos, raramente encontrada na França, onde os espírito de rebeldia contra as ordens administrativas estimulava a transgressão. Este tema originou outro livro de Peyrefitte, chamado A Sociedade de Confiança, que teve alguma repercussão entre os setores liberais do Brasil.

“De um lado, uma sociedade de confiança: o indivíduo em quem a sociedade deposita confiança, adquire confiança em si mesmo. Os indivíduos e os grupos são livres de empreender, de associar-se, de contratar-se. Soberano, o cidadão não delega seu poder aos chefes além de um modo parcial, temporalmente e sob seu controle: a autoridade emana dele por um ato livre e renovado. Cada qual responde por si próprio e seus atos, sem poder esconder-se atrás de biombos. O indivíduo se adapta espontaneamente, não espera que seu êxito esteja além de seus próprios esforços, toma as iniciativas que autorizam as circunstâncias, transformada de ideia inovadora em realidade.

No entanto, em uma sociedade em que parece dominar a desconfiança, o homem depende de diversas hierarquias para todos os atos de sua vida. Elas lhe ordenam, julgam, indicam o que deve fazer, porque elas veem melhor que ele sua felicidade. A autoridade se exerce de cima para baixo. Na pirâmide social, aquele que se situa acima pode, sabe, existe, sempre mais que o que está situado abaixo. Também os grupos, como os indivíduos, são desanimados de tomar iniciativas. O cidadão se sente rodeado de proibições e se agarra em atividades rotineiras. Se se liberar, é pela crítica, a agressividade, as vezes, a rebelião.

“De modo que no cume da República (IV), se encontravam os mesmos males que em todos os níveis inferiores. Este sistema era bem suportado pela nação, porque a refletia fielmente.”

“Querer fixar responsabilidade é não jogar o jogo: se todo mundo é culpável, ninguém será condenado. Na falta de poder atuar, é necessário que a inação seja coletiva. O imobilismo deve estar garantido. Obrigatório, em poucas palavras”.

Em A Aparição do Mal Oculto, cita um caso conhecido nosso: “a demora na obtenção de uma linha telefônica e as gestões contraditórias das causas leva à seguinte conclusão a respeito do colapso administrativa: o ‘Século das Luzes’, tratando de escapar do absolutismo, se persuadiu que bastaria importar da Grã-Bretanha o parlamento e a monarquia vigiada. Esta ilusão se impôs depois de meio século de convulsões trágicas; o regime político acaba por adotar a forma que desejam os filósofos. Porém, as realidades profundas se perpetuavam. A hierarquia administrativa, posta em prática por Richilieu, Mazarino e Colbert, permanecia parecida com si mesma”. E acrescenta: “Tocqueville, Lemontey e os simonianos demonstraram que por isso a revolução não tinha servido para quase nada.”

O mal oculto reside na inamovibilidade do sistema de decisões, herdados da Roma Imperial, contrário a livre iniciativa sem a tutela paternalista do estado, e da troca do espírito de diligência pelo espírito de proteção na característica de nosso espírito empreendedor.

No entanto, existe um mal visível. Cita diversos acontecimentos da política interna francesa e mostra como as coisas visíveis no campo da cultura são fáceis de serem notadas, como a restauração de fachadas e prédios, a construção de escola, etc, e como é difícil colocar em ação as exigências do espírito na cultura representada no teatro, cinema e TV.


“Finalmente, o substrato francês permanece quase intato desde quase 3 séculos. A centralização burocrática, as afirmações dogmáticas, o espírito de abstração e o sectarismo maniqueísta, o abrigo em castas hostis. A passividade do cidadão, cortada por bruscas revoltas. A incompreensão do crescimento, o maltusianismo demográfico e social… uma força massiva de inércia dissuade e dissolve as tentativas de reformas; as únicas que se consegue sem grande esforço são aquelas que inundaram nosso individualismo.”

… "Na simplificação que se impõe, os franceses já não se reconhecem. A propósito do referendo convocado por De Gaulle em 1969: “por pretender reestruturar a sociedade lançando a regionalização, a descentralização, a concertação socioprofissional, a participação, ele foi, pela primeira vez, desaprovado pelo povo, porque se atacava as raízes do mal em lugar de visar os sintomas. Os franceses estão muito dispostos a que se ponha um fim nos efeitos, não nas causas”.

No capítulo chamado Cérebros de Estado, argumenta que a investigação científica, estando centralizada em Paris, padece dos mesmos males do Estado. “como ele, está murado por tabiques: cada ministério tem seus pesquisadores que desdenham ou temem comunicar-se entre si. Como ele, está burocratizado: os pesquisadores são, frequentemente funcionários inamovíveis, e não o que deveriam ser, uns homens de aventura”.

O Caso da Comissão de Energia Atômica lhe parece representativo: “em 21 anos haviam conseguido a impressionante concentração de massa cinzenta e meios. Mas, ao mesmo tempo, tinham, de certo modo, transformado em administração. Como todo grande organismo, mostrava insensivelmente a tendência de viver um pouco menos para sua missão e um pouco mais para o seu pessoal. Os pesquisadores haviam se convertidos em funcionários. Se justificavam por sua própria existência, como Deus, conforme o argumento teológico. O fenômeno burocrático depositava suas materializações (realizações) paralisadoras em suas capacidades inventivas. Carreira garantida, reservas garantidas, situações adquiridas: não era o caso de tocar sequer um cabelo de seus cabeças, ainda que não descobrissem nada”.

Depois narra o sucesso da bomba H francesas de 1968, com a escolha de homens certos, com objetivos certos e a responsabilidade de tocar à frente o projeto.

Sobre a reforma do ensino: “uma vez mais o poder era a impotência: poder de promulgar uma reforma, impotência para aplicá-la”.

Ao longo da argumentação percebemos que o mal da França é também o mal do Brasil: “tem uma coisa que está muito bloqueada em nossa sociedade. Quando as forças virtuais da oposição e dos sindicatos ultrapassam o terço bloqueante,… o poder está bloqueado; não se pode fazer nada, salvo se a oposição emprestar o seu apoio. Um presidente eleito com uma margem relativamente débil, como será sempre entre nós, está condenado ao imobilismo, ou então a um movimento consentido pela oposição… Para que o país evolua, é necessário primeiro restabelecer um consenso”.

Como mudar a mentalidade? Não se pode querer revolucionar o todo. Deve-se mudar as partes. E para isso, não se deve falar aos franceses seus vícios nacionais. Não daria resultado. Um povo tem pudor daquilo que é.


SEGUNDA PARTE: O MAL ROMANO

Contrariando os historiadores tradicionais, relata o desmoronamento econômico da França de Luís XIV. A estatização implacável realizada por Colbert, o centralismo burocrático, criaram empresas deficitárias em todas as iniciativas de industrialização da França. Luís XIV, ao atrair para si todas as iniciativas, deixou a França petrificada. Como disse Fenelón em 1710: “já não há nem confiança, nem temor da autoridade. Cada qual não se preocupa mais do que eludir as regras”. Desde então, “a França continua arcaica, permanecendo uma sociedade rural, em que a agricultura continua sendo arcaica, mas que a terra é o meio e sinal do êxito social”.

No capítulo dedicado A Decadência das Nações Latinas, toca nos males que nos castigam. A fantástica energia de Portugal e Espanha na conquista dos mares e continentes a partir do século XV e sua paralisia produzida pela riqueza acumulada e a troca de valores com a enfatuação da riqueza, ao predomínio do clero politizado, a expulsão de talentos entre muçulmanos e judeus, e o culto da nobreza encastelada nos serviços públicos, a rejeição aos representantes do comércio e indústria até então numerosa e vibrante.

Em algumas décadas a fidalguia toma conta das mentes. Espanha e Portugal preferem importar de tudo com o entesouramento do ouro e prata da América. O desdém para o capitalismo incipiente termina na decadência.

Mas também cita Polônia e Áustria, seu esplendor e logo decadência para concluir que, como as demais nações latinas, o traço comum era a de serem “católicas romanas”. A partir daí analisa a questão da diferença de desenvolvimento das nações a partir do método weberiano da comparação de valores religiosos como força motriz do capitalismo. É o estudo mais completo que já li nesta ordem e fonte de dados importante para situar o argumento.

Analisa a seguir os fenômenos religiosos dos países mistos (catolicismo e protestantismo) na Alemanha e Áustria, mostrando como o espírito capitalista se impõe sobre o elitismo católico. Completa a análise com uma digressão sobre o centralismo na linha do pensamento de Tocqueville entre as nações católicas, e o predomínio do burocratismo consequente.

Cita uma frase de Balzac: “inventa, e morrerás perseguido como um criminoso; copia, e viverás feliz como um idiota”. Lembra Machado de Assis no conto em que o pai recomendava ao filho que não dissesse nada de sua lavra criativa, mas que se conduzisse sempre repetindo os demais.


No capítulo Tentativa de Interpretação da História, envereda pelo passado dos 4 milhões de anos de presença do homem na terra, o subdesenvolvimento como padrão constante. Fome, epidemias, escassez, carência, violência recíproca, dizimação da prole, formaram fenômenos constantes. Um ou 2 séculos de progresso e superação não representam mais que uma fração muito pequena no tempo do destino humano.

É um dos mais agradáveis capítulos do livro, interpretando a natureza humana através do instinto de superação. Ideia concebida nos EUA com o nome de Instint of Achievement” no livro homônimo de 4 schollars, uma minoria ativa entre os homens se destaca na humanidade pela ousadia de inovar, criar, superar o existente. Acrescentando a isso, Peyrefitte cita a questão cultural, que chama de “o fator imaterial”. Em uma sociedade, o terceiro fator se caracteriza por um conjunto de disposições mentais. O entorno cultural forma um manto sobre o qual determinadas plantas podem crescer, enquanto outras murcham. A famosa grama inglesa é o resultado de uma dedicação específica deste povo, assim como a culinária francesa é uma manifestação espontânea deles. Em resumo, não basta um país ter recursos naturais, é preciso a cultura de utilizá-los. O que serve de um contra-argumento para a ideologia brasileira precaucionaria de reserva para o futuro.

Outro tópico importante é sua análise das sociedades de hierarquia versus sociedade de autonomia.

Sociedades hierárquicas, ou monocêntricas, resistem a inovação de uma das partes até que o conjunto se renove, e sociedades autônomas, ou policêntricas, são as que bendizem toda a mudança para melhor.

É possível uma sociedade monocêntrica se transformar em policêntrica? Para Peyrefitte o sucesso japonês pode ser visto como uma transformação cultural, e volta atrás ao perceber que a mentalidade econômica se dissociou do protestantismo. Ele fala na época da edição do livro em 1976. O exemplo chinês, que sucedeu o Japão, Coreia e Taiwan, demonstra à larga esta observação, e não podemos negar o sucesso do agro brasileiro na esteira da globalização. O que Peyrefitte não fala, deixando uma lacuna em sua argumentação, é que transformações culturais para ocorrerem em um curto espaço de tempo exigem um traumatismo social de grandes proporções, que force uma nação a aderir aos novos valores. Foi a II Guerra Mundial, com seus estertores que criou o novo Japão democrático e antimilitarista. Foi o cerco do Japão, Coreia e Taiwan, com um desenvolvimento espetacular para os nossos parâmetros, que forçou a China a liberar sua energia criadora e agora caminhar para ser a maior potência econômica mundial.

Mais adiante traça um paralelismo entre ganância legítima e ganância ilegítima com uma excelente argumentação contra o espírito elitista manifesto nos julgamentos sobre a falta de direcionamento econômico das pesquisas científicas na França: “o rechaço da economia é o aspecto principal de um rechaço da sociedade liberal em todos os países que foram marcados pelo dogmatismo reforçado da Contrarreforma. O que se denomina “condenação do capitalismo” é, em realidade, em grande parte, o rechaço ao mundo moderno.

Com o concílio Vaticano II, a perda do poder de coação sobre a sociedade produziu o ‘aggiornamento’ da igreja católica aos tempos atuais que, segundo o autor, representa o fim de um dos bloqueios que a sociedade cristã exercia sobre a liberação das forças criativas do individualismo.

Na terceira parte Cesarismo sem César pondera sobre uma inversão essencial de nossa Era: “ontem um rei se considerava o Estado. Hoje, o estado se considera o rei”.


Em As Estruturas Sociais Enfermas menciona a irresponsabilidade como resultado final da hierarquização burocrática. Não se sobe um degrau sem consentimento, não se desce um degrau sem ser provocado. Entre os superiores e a base existe um abismo. Em consequência, os que sabem não decidem, os que decidem não sabem.

Analisa como o poder impessoal produz a aceitação do funcionário e o protege do risco de sanções. “Demasiada informação produz subinformação. Os detalhes aborrecem, o essencial passa inadvertido”.

“Com frequência o eleito localmente busca uma proteção na imobilidade. Se sente tentado pelo único poder fácil, o poder da inércia. As vezes usa e abusa. Aqui também é o sistema que difundiu a irresponsabilidade. Em outros casos, sucede o contrário. Um prefeito tem uma ideia nada habitual? Os despachos a rechaçam como ‘fora de categoria’, ou ‘fora de norma’”.


Em julho de 1949 assistiu uma conferência do desconhecido Lacan sobre o tema da felicidade, e ao término fez uma pergunta a ele se era feliz e se tornava feliz àqueles que confiavam nele: “Se enrolou em uma comprida resposta, que me resultou igualmente muito pouco inteligível. Este comportamento encontra uma justificativa teórica. Em princípio se assenta como premissa que a exploração da realidade exige a invenção de uma linguagem esotérica. Não se tem muita certeza de que os exploradores tenham chegado tão longe. Mas, antes de sabê-lo, teríamos que fazer um esforço infinito para decifrar sua relação de viagem. Racine e Molière professavam que a ‘norma suprema é a de gostar’. A estereotipação conduz ao princípio inverso: ‘o que é incompreensível é profundo, o que é compreensível é anódino’; o verdadeiro investigador se reconhece quando o público não pode segui-lo”.

Cita uma boa metáfora para a ambivalência entre querer tudo do estado e o sentimento de revolta contra tudo: “o prato do mendigo em uma mão e o coquetel molotov na outra”.

Os eleitos são mais propensos a serem advogado das causas de seus eleitores do que gestores da coisa pública: “porque o sistema centralizado debilitou o espírito de iniciativa e reforçou o espírito de reivindicação” (pg 433).


São muitos os capítulos lapidares para o conhecimento de nossa identidade. Por exemplo, em A Repulsa da Diferença conta como a mentalidade francesa orgulha-se da unidade nacional e de uma educação comum e invariável. Atribui esta mentalidade ao espírito romano de agrupar todo o mundo num só corpo homogêneo. No entanto, “a história das civilizações ensina que seu progresso se apoia nas diferenças. A monotonia é a morte. Do contraste, brotam as renovações. Se nada nos obriga a tomar iniciativas, a inteligência adormece; com ela, a atividade, o gosto de fazer. A obsessão unitária empobrece o homem. Elimina o que cada qual poderia apostar de original na obra comum”.

Examinando a questão do ponto de vista da tradição religiosa, complementa: “no entanto, o gênio particularista dos protestantes desemboca, as vezes, no delírio inverso: o da segregação”… “A mitologia do estado centralizador reforça naturalmente a obsessão pela unidade, da mesma forma que a negativa de reconhecer as diferenças”.

“Deste modo, o centralismo mantém entre nós mais que em outros lugares, por suas torpes intervenções, a desigualdade, e a torna mais intolerável que em outros lugares, devido a que se supõe a capacidade de aboli-la”.

A progressão da ideia de igualdade é pois, devida ao progresso técnico. No entanto, se a desigualdade diminuiu, a inveja social progrediu. A exposição nas mídias de uma vida luxuosa e locais paradisíacos nunca antes acessíveis ao homem comum, provoca o mal estar da exclusão social.

Em A Escala do Desespero, mostra que o pensamento dominante quer que a desigualdade, a diferença, sejam apenas produto do dinheiro. Esquecem que se radica em uma mentalidade que não resiste a uma comparação entre sociedades diferentes, com outros valores espirituais.

Na parte final analisa seu trabalho à frente dos ministérios de De Gaulle e Pompidou na hercúlea tarefa de implantar uma reforma administrativa. Não oferece os resultados porque sabidamente se tratava de algo que o própria lentidão sucederia a edição do livro.


Transcrição do capítulo XXIX, pg 329 e segts.

XXIX. A INVASÃO

O espírito de regulamento nos obsessiona, e nossos relatores não querem compreender que existe uma infinidade de temas em um grande Estado dos quais o Governo nunca deveria ocupar-se. (GRIMM, cerca de 1760)

A burocracia não se limita a substituir o poder político colocado acima dela. Tende a substituir também aos administrados situados abaixo dela. Oferece uns meios ilimitados à intolerante paixão do bem comum que anima os melhores de seus homens. “Funcionário cheio de zelos”; este elogio tradicional, com frequência justificado, leva consigo o paradoxo de seja preciso queixar-se de tal zelo.

O temperamento tecnocrático é imutável: “A autoridade era sua lei e seus profetas, seu código, seu costume, seu direito. Aplicado, trabalhador, muito detalhista, fazendo sempre o mesmo; um homem apenas visível, que fechava a boca das pessoas mediante algo seco, decisivo e imperioso”. Se trata de Voysin, intendente de Luís XIV, visto por Saint-Simon. Poderia também servir para um tal diretor, inspetor da Receita Federal ou prefeito nos dias atuais.

Nem a desaprovação da História, nem a impaciência dos cidadãos invalidam o sentimento de infalibilidade que impregna a Administração: esta convicção vertiginosa de que só os homens que se encontram no cume da hierarquia sabem o que é bom para os homens que povoam os degraus inferiores. Na Igreja tradicional, eram os sacerdotes, celibatários por vocação, os que instruíam os noivos nos mistérios da vida conjugal: em nossa sociedade, são os funcionários que sabem o que devem fazer os industriais, os exportadores, agricultores e artistas.


A irracionalidade do Estado

O estado assume umas funções que vão muito além de sua missão nacional.
Pouco a pouco substitui os poderes locais, as corporações, as famílias; intervém, mediante uma multitude de medidas, no terreno da agricultura, da indústria, do comércio, da Seguridade Social, do meio ambiente; se apropria dos serviços da Polícia, da rede de comunicações e da saúde. Como dizia Royer-Collard: “É o encarregado por delegação do soberano o que acende os lampiões das ruas”. Em que ramo de atividade os funcionários do antigo ou dos novos regimes não tentaram estender suas influências mediante a regulamentação, a proibição, a subvenção ou o favor? Hoje em dia, ainda mais que nos séculos passados, “a razão de Estado acaba por conduzir à loucura de Estado”.

O poder centralizado nunca desanima de centralizar, inclusive quando tem todas as razões de perder.
Desse modo, exercendo ele mesmo a censura cinematográfica, o Estado se converteu com frequência em odioso ou ridículo, sem outro efeito que garantir a publicidade dos filmes proibidos. Finalmente, quase renunciou a assumir esta prerrogativa, uma vez que negava-se a desprender-se dela. No entanto, uma descentralização das decisões seria mais eficaz. Deixaria aos prefeitos de uns 4.000 municípios nos quais existem cinemas, a liberdade de proibir a projeção dos filmes classificados como violentos ou pornográficos, se esta projeção coloca-se problema de ordem pública em suas circunscrições. A bem da verdade, este é o único critério que justifica a proibição de uma obra. Contudo, não tem sua aplicação em nível nacional. O espírito público não é o mesmo em Lurdes que em Saint-Tropez. O que ali parece provocativo, em outra parte suscita umas relações fastidiosas. Mas o jacobinismo da Administração não admite estas diferenças.


Por dez metros

O Estado está obrigado naturalmente a intervir em tudo. No entanto, vemos Turgot, o mais perspicaz dos altos funcionários do Estado, definir o emprego de tempo dos professores, a forma do ensino, a distribuição das disciplinas segundo os anos; explicar, de circular em circular, as recompensas que convém conceder aos camponeses caçadores de lobos….

Deste então, o controle obsessivo não cessou de estender-se. Em 1970, o ministro da Agricultura mandou publicar no Boletim Oficial um decreto regulamentando a quantia de cabras machos.

O desconhecimento das situações locais é a contrapartida do dirigismo. Os fatos não existem, se não confirmam as informações que a Administração acredita deter. Um novo intendente, ao chegar na Bretanha, escreve a Versalhes notificando que a província conta com 317.262 vacas e 271.354 ovelhas. Seu ministro lhe responde para mostrar seu assombro, não pela risível precisão das cifras, porém pelo número mais elevado de vacas que ovelhas; dado que este fato não se encontra em nenhum outro lugar, existe seguramente um erro de cálculo. Pois então! Na Bretanha, era o certo.

Em Neufmoutiers, povoado de Brie, não havia mais que uma loja comercial: o café, bar e mercearia. Certo dia, a Administração decretou seu fechamento. A dificuldade procedia da escola: entre ela e o bar havia, bem contados, cento e noventa metros. O regulamento exigia que fossem duzentos. Apesar dos dez metros que faltavam, a escola e o café tinham se ignorado mutuamente até então.

Acreditei que o assunto fosse fácil de solucionar. Dez metros mais ou menos… A Administração se manteve no seu finca pé. Quem sabe se o nojento precedente não obrigaria a reduzir para cento e noventa metros o limite da moralidade escolar? De dez metros em dez metros, onde iríamos parar? Transigimos: se fecharia uma porta do bar; seria necessário entrar pelos fundos e esta volta acrescentaria mais oito ou nove metros. Faríamos com que a conta se completasse; Neufmoutiers e a Administração estariam salvos. Mas o assunto se arrastou durante um ano. O dono da cafeteria, desanimado, tinha ido se estabelecer em outro povoado. O estabelecimento conserva fechado todas suas portas e janelas.


A Onipotência impotente

Cada serviço tende a justificar sua existência: se sente com a obrigação de proibir, se tem poder para tanto.

A Administração prefere que não se faça nada, se não se fizer o melhor, o melhor segundo suas normas, ao seu modo.

Preferem que não haja creches infantis a que se produzam brechas “na economia”! Azar das mães se não sabem onde deixar seus pimpolhos. É preferível que não haja piscinas a que existam piscinas que não sejam olímpicas ou semiolímpicas, com um pessoal que somente as cidades importantes podem sustentar.

– Um simples lago de natação a céu aberto? Nós construiremos uma piscina coberta – ofereceu o diretor de Juventude e Desportes ao prefeito de um povoado de 5 mil habitantes.

Vinte anos depois, o povoado ainda continua esperando; quando um monte de crianças teriam aprendido a nadar no lago a céu aberto.

N planície de Brie, deslizam riachos bordados de árvores. As vezes um tronco morto ou um galho grande arrancado pelo vento caem na água, formando um dique. Quando chuvas intensas aumentam o caudal do arroio, se produz uma inundação. Uma pá mecênica seria suficiente para retirar o obstáculo. Inteirada do assunto, a Administração elabora – em vários anos – um projeto grandioso. Eis que aqui o arroio foi metamorfoseado em canal de tamanho grande. Na operação, a cortina de árvores que lhe bordeava desaparece. Com tal procedimento, não haveria necessidade de alargar; uma motosserra teria bastado…

Quando o perfeccionismo se une com a ignorância se obtém a aventura do sanatório de Tampon, na ilha Reunião. O prefeito me contou quando o visitei:

– Tínhamos enviado o projeto, perfeitamente elaborado ao Ministério da Saúde. Faltava apenas o visto de aprovação. Ao cabo de um ano, nos devolveram sem o tal visto. Por que? Porque todo o sanatório deveria estar orientado ao Sul, para beneficiar-se da insolação máxima; tínhamos orientado o nosso para o Norte. O departamento que tinha levado um ano para dar esta resposta tinha se esquecido de apenas um detalhe: é que a ilha Reunião se encontra no hemisfério austral, e que, ao meio dia, o sol está ao Norte.

Como esperar que o Estado se discipline a si mesmo? Inclusive em países como os Estados Unidos e Suíça esta tendência encontra uns contrapesos: são as autoridades locais as que aplicam as medidas federadas, não os agentes de execução do poder central.

Um dirigente de uma grande empresa me dizia:

– Os responsáveis de minhas sucursais devem tratar eles mesmos seus assuntos. Consegui meu objetivo quando não assino mais que uma carta por semana.

Quantos diretores, prefeitos, são capazes de conceber um sistema semelhante? Não se sentiriam despossuídos, inúteis? Uma hierarquia não sabe delegar. Organiza sua própria obstrução.

Por força de fazer o que não deveria, não faz o que deve. O que há de mais elementar do que honrar sua assinatura, pagar os seus provedores? Os serviços do Estado não conseguem, quase nunca nos prazos que, no entanto, eles próprios fixaram. Os atrasos de vários meses são frequentes. O Estado mal pagador colocou a mais de uma empresa na iminência de quebrar.

Mostrei como as subvenções paralisavam toda coletividade local (capítulo XXVII), arrebatando-lhes a iniciativa de suas obras, que poderia efetuar com menos gastos. Pelo menos, no outro extremo, permitem ao Estado impulsionar? De modo nenhum. Rotineiramente, esta distribuição se tornou tão inútil quanto ruinosa.


A proliferação

A Administração tão só imagina salvar-se da obstrução mediante a proliferação dos homens. Não se esperou a Parkinson para formular esta lei: “Os subordinados se fazem duplicar pelos subalternos que, considerando-se demasiados respeitados para trabalhar, mandam fazer seu trabalho a outros empregados inferiores”. Isto sucedia no tempo de Luís XV.

Quanta perda de dinheiro supõe esta massa de funcionários ocupados em referendar, em controlar, em encher e mandar preencher uns formulários, em observar continuamente o espelho morto das estatísticas! E que lástima atrair para tarefas administrativas tantas inteligências brilhantes, selecionadas mediante difíceis oposições! Enquanto a França necessita tanto de homens empreendedores, para renovar-se no interior, para poder captar suas oportunidades no exterior!

Porém, estamos acostumados a hipertrofia administrativa que nos custa muito conceber que valeria mais poupar homens. A municipalidade de Provins estabeleceu uma rede de ônibus gratuitos, porque, se houvessem sido pagos, seria necessário criar uma burocracia de cobrança que teria absorvido a metade das arrecadações. Uma cidade pode ir contra um tabu. O Estado não.

Uma administração de prefeitura, em 1976, pede a sua câmara de vereadores, mediante um esmerado informe, que vote os créditos para recrutar agentes pediculares, com a finalidade de lutar contra a pediculose. Um vereador faz constar que que pediculose não figura nem no Robert em seis volumes, nem no sétimo tomo, o suplemento. A Administração replica que este termo figura no Larousse em dez volumes: designa as moléstias causadas pelos piolhos. Compreendem que a Administração reclama uns funcionários encarregados de despiolhar as crianças das escolas. Não se lhe ocorria a ideia de lançar uma campanha de informação com vistas a alertar as famílias sobre a ofensiva do piolho, e convidá-las a empregar elas mesmas as tesouras, sabão e loção.

Para resolver o problema, ia se criar um novo corpo de funcionários que logo teriam seu estatuto, seu sindicato, sua “titulação”. É preciso assinalar que a oposição “de esquerda” votou unanimemente no informe da prefeitura, que apoiava os sindicatos do pessoal docente; e que foi adotado, graças a ajuda de alguns incondicionais da Administração, apesar das reticências da maior parte dos membros da maioria?


A ditadura dos despachos da Fazenda

A onipotência administrativa tem duas escalas. A da Administração sobre tudo que o que não é ela mesma. E depois a que a Fazenda exerce sobre todo o resto da Administração. São tantas portarias que fazem tremer até eles mesmos ante os despachos da rua de Rivoli, porém eles não tremem frente a ninguém do outro lado. Entre a rua de Rivoli e o conjunto dos ministérios ou de suas dependências, se desenvolve uma guerra de desgaste que esgota os beligerantes. A diretora de uma grande escola feminina viu como lhe devolviam, sem o indispensável referendo, um pedido de produtos farmacêuticos para seu “botiquín”. Finalmente conseguiu entrar em contato telefônico com o revisor financeiro e lhe perguntou as razões para aquela negativa.

– Esta lista contém uma água de melissa que não me parece necessária.

– Acontece – protestou a diretora – que algumas alunas se encontram mal. A água de melissa as faz recobrarem os sentidos! Pelo menos se você pudesse indicar-me os motivos!

– Se eu tivesse que fundamentar minhas negativas, já não negaria nada.

Na crença geral, o Primeiro Ministro fixa as grandes linhas do orçamento governamental. E, a partir daí, cada ministro é responsável em repartir os meios econômicos que lhe são atribuídos. De modo algum: deve justificar centavo por centavo em cada medida, dentro de cada capítulo orçamentário. Não ante o Primeiro Ministro, nem ante o ministro da Fazenda, porém ante o agente especializado da diretoria do Orçamento, o qual discute, até nos detalhes mais ínfimos, o fundamento acertado de cada uma das iniciativas que deseja tomar o ministro. A resposta é com frequência negativa. Deve então ascender à arbitragem do Primeiro Ministro? Procedimento arriscado: o árbitro não pode sequer uma vez em duas tomar partido do gastador contra o poupador, e com frequência a Fazenda demonstrará uma hábil má vontade para aplicar uma decisão tomada contra sua opinião. É mais sensato arranjar-se com a rua de Rivoli, isto é, reconhecer sua soberania e mendigar sua benevolência.

O poder universal da Fazenda leva a irresponsabilidade. Se as eleições dos ministros fossem livres, suas negativas também o seriam. Responderiam por ele. Alguns não resistem a tentação de replicar a seus solicitantes, aos sindicatos e aos grupos de pressão:

– Bem que eu queria, mas a Fazenda não quer.

O Estado tem empreendido tanto que se reclama de tudo. Decepcionaria se renunciasse a isso. Luiz Napoleão Bonaparte proclama em 11 de novembro de 1849: “O maior perigo dos tempos modernos procede desta falsa opinião de que um governo pode tudo, deve responder a todas as exigências, remediar todos os males”. Convertido em centralizador, Napoleão III manteve, por sua vez, aos franceses esta “falsa opinião”.

O estado estropia sua autoridade pelo excesso de intervenções. Os observadores procedentes das democracias liberais estranham que o Estado francês possua e dirija uns museus; que presida os destinos das dançarinas e governe os teatros; e que o mais célebre destes funcione em virtude de um decreto assinado por Napoleão em Moscou.

Em um sistema assim, um governo que não faz milagres parece, em última análise, abaixo de sua missão. Aborrece e decepciona. Administrar e reformar bastaria em outros países. Os franceses adotaram o costume de exigir mais de seus homens de Estado: um poder quase mágico, que mantenha os espectadores em suspenso, tal como os napolitanos na espera da liquefação do sangue de San Genaro. A desgraça é que as proezas destes heróis, dos quais nossa história abunda, tem acabado quase sempre em um fracasso, e frequentemente em um desastre.


O Estado, único objeto de seu ressentimento

Uma vez que o Estado se apoderou de toda autoridade, os franceses o fazem responsável de tudo. Simples cidadãos, eleitos locais ou funcionários, rejeitam a culpa ao poder central ao qual estão submetidos. Muito pouco mudou, desde a época em que Vivien afirmava, no princípio do século passado: “O Governo toma uma parte tão grande em todas as coisas que os descontentes consideram sua destruição como o primeiro de todos os remédios”.

O mal latino se volta a encontrar no fundo deste paradoxo. Responsável de tudo, o governo tropeça com uma contestação global. Se encarrega de demasiados detalhes para que se saia bem fora do conjunto. Porque se ocupa diretamente das tarefas mais concretas, é perseguido pela reivindicação mais abstrata.

Madeleine Renaud, quando foi ocupado o Odeon, convocou os invasores a tomá-lo como se fosse o Folies-Bergère. Para eles, não davam o devido cuidado a uma instituição privada, por representativa que fosse da sociedade de consumo, que diziam combater. Eles replicavam, sobretudo, com o Estado, que simbolizava um teatro subvencionado.

Os franceses são revoltosos? No entanto, não se revoltam contra o Estado quando decide nos terrenos em que somente ele pode decidir: os equilíbrios fundamentais das finanças, a segurança dos cidadãos, a diplomacia e defesa, a guerra e a paz. As desvalorizações dificilmente foram protestadas. Em pleno regime de assembleia, em 1914 e em 1939, a França se comprometeu na guerra pela decisão do Governo. Em 1946, o Governo – por uma ata assinada, entre outros, por Maurice Thorez, Pierre Mendès France e François Miterrand iniciaram sem oposição as operações na Argélia. O Estado tomava as decisões que pareciam exigir as circunstâncias. Estava em seu papel legítimo. Não se protesta contra ele o direito de vida e morte sobre o povo que governa.

Em compensação, provoca o mau humor quando se extravia em uns terrenos aparentemente fúteis. Por instinto, causa irritação que perda seu tempo e sua energia. O presidente da República não foi eleito, o Governo não obteve confiança da Assembleia para governar a França nos pormenores.

Causa tanto mais irritação quando esses pormenores são os que somente interessam mais aos cidadãos que seriam mais capazes de solucionar por si mesmos. Que um particular não possa alargar uma janela sem depositar uma petição de permissão da obra; que um município não possa empreender trabalhos de canalização para por-se ao amparo das inundações causadas pelas tormentas, sem uma decisão conjuntados ministros de Infraestrutura e do Interior: isto é o que o cidadão tolera com menos facilidade. O Estado acumula sobre ele – e sobre seus mais altos magistrados – a tensão provocada por um sistema tão coercitivo.


O poder central, única escora

Uma vez que tudo dimana do poder central, o interesse que apresentam as eleições locais é sobretudo oferecer um estribo ao poder central. A luta política não tem outro sentido que o de conquistar o Estado. Maioria e oposição, a cada consulta, jogam o resto. A vida pública, ao concentrar-se, se dramatiza. Crispa a nação, inelutavelmente, em umas atitudes de guerra civil fria.

Nos países em que funciona uma verdadeira democracia local, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha Federal, na Suíça, coabitam sempre um governo central de uma tendência e uns executivos locais de outra. Essa coexistência obriga a cooperação. Cada qual faz assim a aprendizagem da paz civil. As relações entre o governo central e as autoridades locais podem suportar umas tensões. Não conduzem ao enfrentamento. Quando a fortuna eleitoral cambia, é como quando um time de futebol é vencido por outro, com o qual tem o costume de jogar.


A crise no quotidiano

A centralização apresenta grandes vantagens para uma nação em guerra ou em estado de alerta, quando a ordem não se discute. Mas implica em graves perigos para a rotina diária, e inclusive para preparar-se para o imprevisto. O excesso de responsabilidades por parte do Estado acarreta a ausência de responsabilidades por parte do cidadão. Desta ausência e deste excesso, nasceram precisamente as revoluções ou rebeliões em que é pródiga a história da França. Feita para enfrentar a crise, a centralização a sustenta. Segrega o clima dramático que, finalmente, a justifica.

Aliada com o poder absoluto – seu elemento natural –, desperta o despotismo, que acarreta, por uma inclinação natural, a aventura, a guerra ou a revolução. Unida a umas instituições livres, as perverte, fazendo delas uma escora demasiadamente cobiçada para que sua estabilidade possa manter-se durante muito tempo. De fato, desde os finais da década de 1960, as coisas mudaram um pouco, evoluindo. Os serviços administrativos se tornaram mais acessíveis a quem os utiliza. O estilo da acolhida se humaniza. Se simplificam os formulários. Mas a causa de sua complexidade permanece imutável. A separação hostil persiste em muitas mentes: para a Administração, o administrado personifica a incompetência ou a fraude: para o cidadão, o universo administrativo segue sendo uma instituição malévola.

A centralização é, na França, a debilidade comum aos diversos regimes. Se nos torna todos vulneráveis, ela mesma permanece invulnerável. O Estado é sempre o invasor.


NACOS:
Hipnose administrativa = quando os funcionários não conservam nenhuma lembrança do que decidiram. Tal como um hipnotizado que se acorda do transe, não se lembra nada em absoluto do que fez.
Dogmas opacos, glosa abstrusa.
Encasillamiento = estereotipação.


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