quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Fragmentos 1

Meu caminho

Todas as pessoas que tem formação tecnológica e humanística sabem que o progresso tecnológico está na raiz do desenvolvimento social e somente a partir daí ousamos imaginar uma sociedade futura.

No passado, o socialismo era a encarnação dessas duas ideias, que permaneceram em mim até pouco depois de me formar em engenharia elétrica em 1974. Minha visão do estado era o de liderança e competência como condição de arrancar o Brasil do atraso. Uma geração que assumisse cargos importantes em uma estrutura estatal poderia dar um novo rumo no desenvolvimento nacional. Entrei para o serviço público e fui me desencantando. O que encontrei pela frente está parcialmente registrado nestes Fragmentos. Minha desilusão foi gradativa, naquilo que Nietzsche uma vez chamou de transvaloração.

Com um certo pendor para a irridência minha cura foi portanto rápida e bem antes dos 30 anos. Descobri que no serviço público brasileiro havia coisas que não estavam nem nos livros nem nas salas de aula, e que era preciso investigar mais detalhadamente em nossa literatura e em nossas ciências sociais: ou seja, o núcleo da brasilidade está no modelo de estado. No estado perene, ou melhor dizendo, no fascismo benevolente está a verdadeira nacionalidade brasileira. Mas essa conclusão não veio de fontes acadêmicas. Trata-se de uma descoberta pessoal que surge aos estalos e que é provocada pela vivência com outros povos. Na literatura encontrei muita coisa, mas nas ciências sociais quase nada. Embora muitos críticos acuradamente conseguiam perceber as relações entre burocracia e estatismo, desperdício suntuoso e pobreza endêmica, autocracia e liberdade relativa, havia muitas coisas que estavam ocultas, maltratadas teoricamente, e dessa impotência foi que comecei a vasculhar o mundo em busca de explicações que logo depois se tornaram uma obsessão constante: criar minha própria teoria já que a experiência dizia que tudo o que se escrevia era insuficiente.

O grande problema quando se estuda os regimes totalitários como o estalinismo ou o nazismo são as centenas de páginas que os autores dedicam às crueldades e quase nada a funcionalidade dos respectivos sistemas. Para mim, um tipo de decisão, a execução de uma ordem operacional, a resposta a um acontecimento mais ou menos grave na vida do país, as leis e regulamentos sobre trabalho, proteção social, direitos, desigualdades funcionais, o acesso à saúde e educação, as providências para resolver um problema, eram mais importante do que a repetição do mesmo ciclo de agressões à dignidade humana tão exemplificados na literatura sobre o totalitarismo.

Era, portanto, o interesse do escritor e não do acadêmico. Nos anos de chumbo da ditadura, nessas raras ocasiões eu podia levantar os olhos dos livros, mirar a parede e dizer: aqui é exatamente igual, embora ninguém daria a mínima importância a estas descobertas. Esta é a razão para os primeiros Fragmentos: querer chamar a atenção para um regime misto, um tipo de governo que contém elementos de socialismo e democracia, misturados no estatismo e ambos em conflito e com as forças políticas se alternando ora para um lado e outro dos regimes capitalistas do século XX, porém, mantendo a mesma consistência de seu estado.

Quando viajei para os EUA em 1982, tinha a sensação de ter me libertado de um pesadelo semelhante aos sentimentos dos que fugiam da cortina de ferro. Na minha bagagem estavam diversos livros em português, dicionários e meus cadernos.

Na verdade, desde 1975 comecei a viajar pela América Latina para não só conhecer, como comprar livros. Meu interesse durante a segunda metade dos anos 70 foi a literatura e a poesia, e não a política ou a sociologia. Nosso mundo editorial era muito medíocre nos anos 70. Para dar ao leitor uma ideia do que era colecionar livros nessa época, para montar a coleção de Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust, tive que percorrer sebos de Buenos Aires e São Paulo, até comprar o último exemplar que me faltava de uma edição russa em francês.

Minhas viagens foram as mais variadas. No México, em 1977, assinei a Revista Vuelta dirigida por Octavio Paz, o maior poeta vivo do mundo na época, e mantive a assinatura até 1987.
Ainda guardo os exemplares de uma das revistas mais importantes do ponto de vista intelectual, pois na Vuelta não se discutia apenas poesia e literatura, porque Octavio Paz tinha o cuidado de publicar artigos de todo o mundo sobre a conjuntura internacional e as opiniões mais importantes dos intelectuais no debate político do momento. Por isso, conheci os principais articulistas norte-americanos e europeus através de Vuelta.

Ainda recordo com ternura alguns ensaios de Paz e as crônicas barrocas de Cabrera Infante sobre a tragédia cubana.

Minha rotina era sair do emprego às 17 horas, ir para casa, e enfrentar 4 horas de leituras todas as noites. Este período me valeu muita experiência intelectual, mas quase nada anotei dos autores latino-americanos que li. Quando frequentei a Aliança Francesa em 1977, comecei a escrever as anotações das aulas na mesma agenda de leituras. No ano seguinte passei para o Cultural Americano (eu já vinha estudando inglês desde o tempo da faculdade), e comecei a misturar minhas leituras com os exercícios de aulas de tal sorte que se tornou um hábito fazer algumas anotações.

Em Michigan, onde morei, na periferia afastada de Detroit, frequentei a biblioteca da Universidade de Michigan em Ann Arbor e tive a oportunidade de “lavar a alma” com os autores que não conseguia encontrar no Brasil e estudar os assuntos que julgava relevantes para minhas pesquisas sociais: a questão da decadência. Era a minha preocupação na época, pois à primeira vista, o Brasil – se comparado com os EUA – tinha de ser visto por esse ângulo de incapacidade de assumir seu potencial natural, e sua herança fascista me permitiu denominar nosso regime social pelo eufemismo de carnavalismo. Claro, Oswald e Mario de Andrade, juntamente com Lima Barreto me empurraram nesta direção. Ao mesmo tempo, a crítica literária americana tinha grande apreço pelo livro de Baktin Rabelais and his world. Era unir a fome com a vontade de comer.

Faço um parênteses para perguntar ao leitor dessas linhas: como caracterizar um regime que é comandado por uma oligarquia que tem direitos que são proibidos ao resto da sociedade (e não só na aposentadoria), como também desfruta da impunidade, da inamovibilidade e da vitaliciedade? Como não associar esse regime às mesmas características da monarquia russa tão bem satirizadas nos escritos de Gogol, Tchekhov, Dostoievsky, etc?

Dentro do campus universitário de Michigan, lá atrás nos anos 80, eu poderia ter feito um curso de uma ciência germinativa chamada Computer Science and Information System e voltar ao Brasil com um bom diploma para uma carreira iniciante. Fui tentado pela perspectiva. Mas como eu odiava o vazio de um serviço público onde perdia todo o meu dia com trivialidades, achei que era o momento de concentrar todos os esforços na formação de um pensamento próprio, particular, meu e de mais ninguém sobre o Brasil que eu tanto amo e que me decepciona diariamente. Portanto recusei: para mim qualquer estudo que desviasse minha atenção de minhas próprias obsessões intelectuais seriam um passivo e não um ativo. Para que um doutoramento em uma área sem competição alguma, como o sistema Telebras da época, onde trabalhava? Era obter diploma para conseguir algum emprego burocrático e colocar na parede. Seria um retorno ao que tinha abandonado. Se a estatização é o contrário da lógica do mercado, nunca entendi direito por que as pessoas defendem uma meritocracia de diplomas se o regime não permite a competição e portanto não é baseado em mérito? Existe mérito no estatismo? Só o de fachada, e foi lendo sobre o doutorismo em Lobato que entendi claramente o problema, mas isso me ocorreu nos primeiros anos deste século. Ademais, não há o que comentar em um sistema universitário que distribuiu mais de vinte diplomas honoris causa a um presidente com curso primário.

Aos poucos entendi porque aqueles que tem um curriculum brilhante não tem uma boa biografia. Porque a biografia é aquilo que se faz seguindo as próprias curiosidades e interesses, enquanto o curriculum é a forma como nos integramos na sociedade conciliando nossas aptidões com as exigências do sistema. Quando se estuda por conta própria, a coisa é diferente: o curriculum murcha, mas a vida intelectual se enriquece. Baseado no fato de que – no Brasil – um verdadeiro intelectual é aquele que sabe enfrentar o quarto ciclo escolar, o de nossa própria vida intelectual cotidiana fora das escolas, assim, cheguei aos 60 anos com muitas acumulações que permitiram a singularidade destas teses. Nem incrédulo nem entusiasmado. A cada ano minha vida intelectual é renovada de forma tão avassaladora que estou sempre acrescentando novas confirmações ao meu repertório de críticas à realidade brasileira nos autores que vou lendo. Espero não atormentar os leitores com coisas tão distantes de sua própria realidade. Eu não teria optado pela vida marginal se minha experiência não tivesse me tornado estranha aos meus compatriotas.

Durante muito tempo tive a expectativa de que a queda do muro de Berlim iria orientar a intelectualidade brasileira para o entendimento das ideias liberais do capitalismo avançado e sobretudo da importância do empiricismo em contraposição ao intelectualismo e que portanto, minhas opiniões não seriam muito importantes, até porque um “engenheiro” não tem muito a acrescentar no campo da sociologia.

A medida que o tempo foi passando comecei a perceber que não só eu estava errado em minha pretensão inercial dos novos tempos, como também a sociedade brasileira articulava uma enorme reação ao Renascimento tecnológico. A eleição de Lula foi o complemento a essa sensação. Lula eleito e apoiado por uma classe acadêmica significou para mim o emburrecimento total do Brasil: um atestado de burrice assinado e com firma registrada no cartório da universidade brasileira. Jamais imaginei que o despreparo e o complexo de vira-lata, fossem tão avassaladores na sociedade brasileira. A evolução da tecnologia nos últimos 30 anos deveria nos ensinar muitas coisas, mas não ensinou. Embora as ciências naturais lecionada na Universidade tenha um papel importante na modernização do país, auxiliando a mudança para a economia digital, nas ciências humanas ainda se gasta muito dinheiro com ruminações filosóficas e, pior ainda, com um retrocesso intelectual sem precedentes a partir da maturação de ideias que levaram ao ambientalismo, ao marxismo na antropologia e sociologia e à tribalização da sociedade em grupos de minorias ruidosas e ao politicamente correto, para citar alguns exemplos.

Aos poucos fui me convencendo que se lê muito mal no Brasil. De fato, as livrarias sempre me interessaram muito menos do que os sebos. Embora nosso mundo editorial tenha hoje um volume de publicações fantástico e para todos os gostos, ainda acho que somos extremamente dependentes de banalidades que acontecem lá fora; nosso mundo literário fértil, nossos ícones da crítica dos séculos XIX e XX foram esquecidos. O Brasil não tem mais a crise econômica dos anos 80, mas tem a crise intelectual do nosso pensamento acadêmico motivada pelo fenômeno petista. Considero que o atraso social não se dá apenas na parcela da sociedade marginalizada (o subcapitalismo) que não conseguiu evoluir para práticas mais avançadas de trabalho: considero que nosso atraso social está enraizado na mentalidade acadêmica do Brasil. O Brasil é mais atrasado por seus professores engajados na militância política do que por seus sem-teto, sem-terra, e sem-nada. Faço questão de observar que temos uma elite acadêmica que tem feito contribuições importantes ao pensamento nacional. Os meus leitores verão resenhas destes autores neste blog. Todos os anos surgem teses acadêmicas importantes, mas se analisadas no quantitativo, são apenas uma parcela minoritária da elite que obtém mestrado e doutorado com teses banais que só podem ser geradas em um ambiente corporativo de troca de favores. O aparecimento da Internet permitiu que aqueles que se prepararam no recôndito de seus lares tivessem uma oportunidade de expressar suas opiniões sem a necessidade de agradar a um núcleo pegajoso de convenções funambúlicas. Com isso, inicio minhas anotações dos Cadernos dos anos 80:


CADERNO NR. 1 — O SILÊNCIO

Como os antigos monarcas que diziam que seu poder derivava dos céus e só aos céus deveriam prestar contas, nossos políticos, por direito divino prestam conta aos céus. E prestar contas aos céus é emergir no silêncio.

As memórias são escritas porque na vida acumulamos experiências crescentes cuja consagração foi atingir aquilo que se pode chamar de “uma sabedoria”. São uma conversação consigo mesmo, uma indagação interior balbuciada em silêncio. Camus dizia: "permanecer em silêncio é dar a impressão que não se tem opiniões, que não se quer nada, e em certos casos ele realmente equivale em não querer nada".

O grau de corrupção de um país pode ser medido pelo seu esquecimento. O corrupto não quer nada. Ele não pretende uma vingança contra os outros. Ele deseja o esquecimento, vive o esquecimento, ele rejeita a memória até que ela possa ser substituída pela farsa que criou para si. Ele sabe que pode salvar-se com a cumplicidade dos laços de dependência que criou em seu âmbito.


O carnavalesco:
1) Vê a realidade como farsa
2) Tem na narrativa uma contínua construção alegórica, onde o texto está intertextualizado na máscara que lhe é portadora e cuja linguagem tem no arremedo debochado seu instrumento estético por excelência.
3) É a vida decadente da evitação, do diversionismo, da ambiguidade.
4) Do ponto de vista coletivo: a circularidade da falta de rumo.
5) Utiliza o background da narrativa absurda (Becket, Ionesco) na construção da farsa, isto é, o absurdo como realidade possível.
6) Literariamente está associado ao escritor .
7) O carnavalesco = perda do poder de decisão no social.
8) O carnavalesco é um sincretismo de Joyce com Lezama Lima, como o carnaval é um sincretismo de alegoria com deboche, de tentações demoníacas com êxtase afrodisíaco.
9) Existem relações autoritárias desde que em termos sociais, o autoritarismo é uma constante que circula entre os personagens.
10) Lezama adverte diversas vezes sobre o pedantismo. O carnavalismo seria quase exclusivamente pedante se não fosse snob. É preciso entender que no carnavalesco o conhecimento não tem nenhuma função além do blefe, da máscara. Portanto, o pedantismo é inerente, mas ao mesmo tempo ele não pretende ser a realidade e por isso se anula.
11) O carnavalismo entretanto difere-se do barroco porque enquanto o barroco vê a realidade na lente do maravilhoso, aquele vê a realidade como farsa, na lente do horroroso.
12) O carnavalismo é também uma combinação de correspondências dentro do texto literário (Ortega –> Lugones) utilizando-se dessas combinações como um ready-made na arte.
13) Mel Brooks – A História do Mundo. As vezes a realidade é a própria farsa. As vezes a farsa se confunde com a realidade.


Consultar:
The drugging of the Americas: Algorithmic Aesthetics – George Stiny and James Gips
Traité des dégenénerescences physiques, intelectuelles e morales de l’espece humaine – Benedict August Morel.
Mythology and Humanism – The correspondence of Thomas Man and Karl Kerényi.

“O tema da monstruosidade vem desde Bosh até Miró e é objetivado até mesmo em Kandinsky”.


Notas Tardias Sobre EL Quixote

Pg. 481 – Cervantes argumenta contra a literatura cuja função é meramente deleitar e não ensinar, dizendo que toda obra para ser apóloga precisa ensinar e deleitar simultaneamente.
Pg. 560 – Pedir cotufas en el golfo = pedir algo impossível ou inoportuno.
Pg. 565 – Fazer penitência = fórmula de convidar alguém para comer, presumindo modéstia.
Pg. 635 – Uma descrição carnavalesca de Cervantes: o raiar do dia.
Pg. 637 – “Tanto que o julgou por algum monstro, ou por homem novo, daqueles que não se usam no mundo”.
Pg. 650 – “Todos os poetas antigos escreveram na língua que mamaram no leite”.
Pg. 666 – O poeta expressa sua opinião sobre Don Quixote: “não o tirarão do atoleiro de suas loucuras quantos médicos e bons escrivães tem o mundo: ele é um entreverador louco, cheio de lúcidos intervalos”.
Pg. 720 – Nota-se a impaciência de Don Quixote para ouvir as histórias dos outros, se compararmos com o homem moderno que é não só desinteressado como até mesmo incapaz de fazê-lo.
Pg. 725 – “quem lê muito e anda muito, vê muito e sabe muito”.
Pg. 728 – “o tempo descobridor de todas as coisas não deixa nada que não tire a luz do sol, ainda que esteja escondida nos seios da terra”.
Pg. 749 – “Quem erra e se emenda, a Deus se encomenda”.
Pg. 787 – “Debaixo de capa estragada costuma haver bom bebedor”.
Pg. 843 – “Seja moderado no beber, considerando que vinho demasiado não guarda segredo, nem cumpre palavra”.
Pg. 989 – Sancho Pança: “Dez dias governei a ilha Baratária a pedir de boca e neles perdi o sossego: sai fugindo dela e aprendi a desprezar todos os governos do mundo”.
Pg. 1063 – As sombras caliginosas da ignorância.


Rollo May — The Meaning of Anxiety

Pg. 36: qualquer pessoa que esteve seriamente doente sabe que tem sérias ansiedades a menos que não melhore, e ainda assim flerteia com a perspectiva de permanecer doente; é simpático à perspectiva que mais odeia e teme (segundo Kierkegaard). [Não concordo]

Laing pg. 150 : para o psicótico a negação do ser é uma forma de preservar o ser.

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A identidade de um país é o contrário de todo casuísmo. Entende-se que a constituição da identidade nacional compõe-se de um conjunto de fatores estáveis, tais como as normas e procedimentos, as práticas, os tipos de condutas, as leis, regras e dispositivos que constituem a estabilidade de um país. É verdade que a sociedade está sempre mudando (como dizem os norte-americanos), mas estas mudanças nunca são de cima para baixo, ao contrário, são erupções subterrâneas que iniciam com minorias e vão ganhando terreno no tecido social, vivendo na égide das modificações diárias, do vai-e-vem burocrático exercido como forma de afirmação da autoridade e acumulação de poder; podemos nos caracterizar como país decadente e seus efeitos mais imediatos são a dependência, a falta do poder de decisão e a imobilização. Agregando os mitos alimentados pelas esquerdas e pela oligarquia estatal, as dificuldades aumentam.

A decadência é o período em que existe disposição, talento e “expertise” entre indivíduos que a sociedade não pode aproveitar. As aspirações pessoais são degradadas, as potencialidades humanas desperdiçadas. Não só a miséria material, mas também a miséria técnica, científica, artística, literária, profissional, empresarial, administrativa, dos serviços públicos, da política, dos esportes, etc, se justapõem. Na sociedade imobilizada a energia excedente é carnavalizada como compensação da lei de conservação da energia.

27/07/87
Como brasileiros nos reconhecemos pertencendo a uma sociedade problemática. Boa parte destes problemas são convertidos em carnavalização em todas as suas variantes. O outro lado da ansiedade é a auto-destrutividade. Esta leva a diabolização do eu destrutivo, como observa Rollo May.

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A felicidade não seria uma qualidade como a literatura e as artes, acessíveis a uns poucos? Por acaso o ser feliz não depende de inclinações naturais, propensões inatas, espírito sensível, que se encontra apenas na minoria dos seres humanos? A felicidade enfim, não é um talento?

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A onipotência leva a um severo defeito da personalidade: ela impede de ouvir. O onipotente não tem condições de balancear uma asserção, de conhecer os meandros de um raciocínio alheio porque sua atenção se interrompe quando encontra qualquer argumento que possa ser extraído um detalhe para ser desvalorizado banalmente.

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A literatura americana (de ação, aventura, movimento) é literatura integrada, ao contrário da nossa que é rebelde. Eles desfrutam por isso de imensas possibilidades junto ao público, enquanto a literatura brasileira é repelida pela massa de leitores porque vivemos uma sociedade de imitação que se interessa apenas pelo que vem de fora.

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É preciso caracterizar o energúmeno político como aquele que não escreveu. E também como o tipo que foge a toda a controvérsia, discussão, debate. O homem que vive para a agradabilidade, o ufanismo, a positivação grandiloquente dos assuntos neutros, do entusiasmo com o consentido, com a cortesia do já sabido, a amabilidade do trivial. Refratário a toda a discussão crítica, ele é um agente do status quo, um funcionário a serviço do imutável, uma sombra da evitação de tudo o que é humano, carnal, sanguíneo.

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Em Macedônio Fernandez o humor não é episódico, nem ocasional, mas constituído da própria circunstância do pensar filosófico, da superação do absurdo como contingência metafísica verdadeira e não meramente de surpresa e perplexidade.

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O carnavalismo é também acentuado em indivíduos que estão à procura do eu, cuja identidade pessoal está pouco construída, e que a necessidade de afirmação provoca uma certa incoerência ridícula na personalidade. O descentramento do ego pode levar ao energumismo, ou a personalidade clownesca, saltitante em modismos, crendices, variantes snobs do pensamento, pedantismo e tantas coisas que são toleráveis na adolescência, mas ridículas na vida adulta. Mas o homem contemporâneo vive a procura de si e nessa perda de identidade conleva o carnavalismo como fluxo da vida cotidiana.

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O estatismo completa-se com a captura da imaginação. Ele coopta todas as atenções humanas na resolução dos problemas da sociedade desde a arte, a cultura e a circulação de livros, até o complexo de ações que devem ser reformadas pelo “dever de estado”. Este construtivismo tardio, fruto da sociologia de caracterização classista da sociedade, opõe-se ao necessário desconstrutivismo, baseado não na orientação do homem, mas na crença na sua auto-orientação, não no ordenamento, mas na inexistência de regulamentos e na convicção da criatividade, não na burocracia, mas na luta contra a corrupção burocrática dos procedimentos e normas. A verdadeira imaginação deve ter em conta premissas fundamentais de liberdade, e atingi-la mais na desconstrução do que no preconceito purista do ordenamento articulado da sociedade.

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A dissimulação é intensificada quando os piores ocupam os melhores postos e no ápice do “comando” não tem preparo para exercê-lo. Não só a ignorância traça suas maiores comicidades como também a tragédia da imbecilidade e das opiniões fraudulentas se sucedem em dissimulações baseadas na ocultação e evitação.

9/8/87

Num sistema hierarquizado e solene é tão difícil encontrarmos homens que possam ser capazes, simultaneamente, de iludir os outros e pensar em profundidade, quanto seria o de procurarmos poetas numa maternidade.

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Estado: a diferenciação ideológica (quando o Estado é o fim em si) tem menos diferenças entre uma homogeneidade — em que cada um tem de lutar pelo poder individualmente num partido único —, do que se pensa. A aparente diversidade de discursos cria uma carnavalização muito maior do que se fosse um discurso único de fins pessoais. Frente ao Estado e o clientelismo e qualquer nome que se entenda a perpetuação da direção autoritária do Estado sobre a sociedade civil, todos os discursos políticos se igualam, até mesmo entre os autoiludidos que acreditam numa democratização do Estado.

Para Kant a Ilustração consiste na superação da minoridade pela qual o próprio homem é culpado. A minoridade é a incapacidade de servir-se do seu próprio entendimento, sem direção alheia. O homem é culpado por essa minoridade quando sua causa não reside numa deficiência intelectual, mas na falta de decisão e coragem de usar a razão sem a tutela de outrem. Sapere aude! Ousa servir-te de tua razão. Eis a divisa da Ilustração.

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Nossa esquerda vive para o devenir, para o egipcianismo, presa à necessidade imaginária do amanhã.

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Em ambientes onde o burocratismo impera, onde a tradição colonial consolida a cultura ornamental vis-à-vis entre as pessoas, e onde a piramidal hierarquização obriga uns a baixarem a cabeça aos outros, os de baixo a obedecerem e reverenciarem os de cima, além de sufocar toda e qualquer aspiração ao desenvolvimento do caráter independente, de conseguir o autorreconhecimento pelo desenvolvimento natural da personalidade — neste ambiente, a cultura aurática predomina como uma propagação de triunfo, como uma conquista de excelência, como o suprassumo das virtudes. A tentação intelectual ao brilhantismo é ipso-facto uma tendência ao hiper-individualismo narcisista, esse energumismo egoísta de possuir um saber cujo mérito se exerce com a aura professoral da possessão da verdade. Nada mais energumista que o desejo da infalibilidade expresso num pensamento ou opinião que não consegue relativizar-se, que está a priori marcado por uma necessidade de onipotência, muito comum na crítica subdesenvolvida com ornamentos cosmopolitas.


6/9/87

Jorge Luis Borges — Evaristo Carriego

Li tudo de Borges antes de começar minhas anotações. Até depois de sua morte, apareceu muita coisa em termos de entrevistas e anotações. Em Milão comprei um LP de um programa radiofônico de alguns de seus textos, narrados por excelente dupla de vozes. Ao longo desse blog aparecerão mais comentários.

Pg. 114: “O gaúcho e o compadre são imaginados como rebeldes; o argentino, diferindo dos americanos do Norte e de quase todos os europeus, não se identifica com o Estado. Isto pode atribuir-se ao fato genérico que o Estado é uma abstração inconcebível (*); a verdade é que o argentino é um indivíduo, não um cidadão. Aforismos como os de Hegel de que o “estado é a realidade da ideia moral” lhe parece uma broma sinistra.

E em nota ao pé da página: (*) o Estado é impessoal; o argentino só concebe uma relação pessoal. Por isto, para ele, roubar dinheiro público não é um crime. Comprovo um fato, não o justifico ou desculpo”.

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Mário de Andrade, citado por Emir Rodrigues Monegal em Mario de Andrade / Borges, a pg. 114: É bom falar que no Rio Grande do Sul nossa gente se envaidecendo de revoluções discutivelmente bonitas e muito heroicas, não tem dúvida, e de certo influenciada pela continuidade do sangue de boi correndo, está criando também um ideal valentão que me parece infantilmente frágil. Entre o heroísmo de facão e laço, e heroísmo de combater em chão de pedra mineiro ou seca nordestina, acho que como individualismo todos se equivalem. Mas socialmente falando, o heroísmo briguento é um heroísmo caloteiro. Agora não tenho forças mesmo é para perdoar esse heroísmo, quando além de caloteiro é literário...

E na pg. 117: Nossa tragédia atual consiste nisso: possuindo já uma base boa de psicologia étnica, não possuímos civilização própria. E a civilização europeia que a gente é obrigado a aceitar para ter uma, age em nós como azeite no mar, amolece a realidade.

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6/9/87
A mulher sequestra pelo sexo o sêmen que lhe permite parir o refém cujo sustento o homem deve pagar pesadamente com seu suor e sangue como resgate. Se a mulher da classe média conquista a ociosidade parindo, a mulher miserável das favelas negocia seu sustento com a piedade. Nestes casos os vivos são persuadidos a terem obrigações para com o espetáculo da vida, e não a vida a ser questionada na sua irresponsabilidade como tal. Entre os 2 extremos, nada se faz, a não ser religião.

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7/9/87
A apropriação dos recursos públicos para si pertence a um código secreto cuja origem é pré-moderna, pois estava legitimada e normalizada na sociedade feudal, onde tanto a nobreza como o clero usavam como forma de dispêndio ostensivo. A despesa ostensiva (de que Bataille analisa em sua Noção da Despesa) como um ciclo da energia na qual os homens encontram sua maior expressão nos gastos de guerra) tem uma relação com a destruição ou degradação causada pela riqueza que se opõe a moral de cidadania instituída pela modernidade. E a degradação da cidadania é o primeiro passo dado pelas ditaduras latino-americanas no fortalecimento do Estado.

Como afirmava Bergson (As duas fontes da Moral e da Religião, pag. 20): “a essência da obrigação (da cidadania) é diferente de uma exigência da razão (do individualismo)”. Ora, a razão individualista opera na base da apropriação para fins de consumo espetacular. Na pg. 43 afirma que a aspiração contém implicitamente um sentimento de progresso. A degradação tem a função de exigir o pesado resgate de uma sociedade mantida sob sequestro de uma burocracia estatal. Todas as formas de consumo apontam para o gasto suntuoso, para o desperdício. Como um organismo que tem que excretar, a despesa desempenha o papel de acumulação do Poder, e por isso ela guarda uma relação mais com a psicologia do consumo tratada por George Bataille, do que com a economia política tradicional.

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9/9/87

Nacos:
Em Macunaíma de Mario de Andrade:
Sarapantar
Molequice de arripiar
Enquizilar
Emboléus – despencaram emboléus, isto é, embolados
Pulapulavam
Sorveteu – completou
Estorcegando – contorcendo-se (de cócegas)
Gauderiar – vaguear


George Bataille – O Erotismo

Pag 80: “Aristóteles dizia que certos animais, formados espontaneamente, na terra ou na água, tinham nascido da corrupção”. Acreditava na “geração espontânea” causada pela corrupção entre espécies diferentes.

Pag. 88: Se nos interditos essenciais a recusa que opõe o ser à natureza, considerada como uma dissipação da energia viva e como uma orgia de aniquilamento, já não podemos encontrar diferença alguma entre a morte e a sexualidade. A sexualidade e a morte não são mais do que momentos agudos de uma festa que a natureza celebra com a multitude inesgotável dos seres, pois uma e outra tem o sentido do desperdício ilimitado que procede a natureza, contra o desejo de durar que é próprio de cada ser.

[O mecanismo da transgressão aparece nesse desencadeamento da violência. O carnaval é uma violência, ele tem o sentido de transgredir o interdito.]

Pg 95: Sagrado x profano.
Pg 96. “a fascinação introduz a transgressão”.

[Na transgressão permissiva estabelece-se um acordo de uma sociedade regida pelo desacordo entre os homens. O transgressor compartilha catarticamente sua intimidade com a violência que lhe faz um ser vinculado com a natureza e portanto em liberdade.]

[A brevidade do carnaval não quer dizer que não represente a dilapidação da riqueza na inserção no mundo da luxúria que a estrutura social lhe nega.]

[ O tipo mais detestável de energúmeno é a múmia. A múmia representa aquele que é escolado na arte da evitação. Ele sabe que se falar (ou estar presente) significa ter que argumentar e enfrentar todas as controvérsias, prolixidades, indelicadezas e confronto dos argumentos. Prefere evitar-se, não ter opinião, não exercê-la. A múmia vive para a energia inercial do estatismo. Obedece aos de cima, esquiva-se na horizontal, repete ordens como um autômato para os debaixo.]

[ Prefere a delicadeza do nadismo do que o encalorecimento do diálogo. Com razão a múmia é uma gente anti-moderno. Ela detesta a crítica, a revisão, a polêmica; teme se queimar ou se comprometer com quaisquer ideias. É sempre neutra para agradar a todos. É um funcionário público ou candidato a tal, ou simplesmente um dissimulador. Mas não esconde sua natureza fundamental: é sempre um pretendente de um órgão público. A múmia representa outros. Sua probidade vem da organização, não existe como pessoa.]

[Nossos intelectuais de Estado (alguns notáveis) têm se dedicado a análise da modernidade e pós-modernidade, sem mencionar a pré-modernidade que fundamenta nossas relações, pois está claro que elas tem origem no Estado, e ao mesmo tempo discutem as manifestações irracionalistas na cultura contemporânea, sem mencionarem o governo que lhes sustenta, como se este fosse a encarnação do racional. “Singular e honesta gente” como disse Lima Barreto. Um maravilhoso estofo intelectual para elidir o essencial. Que máscara mais perfeita pode existir além da omissão voluntária? É onde o privilégio intelectual esbarra na perda da independência. Ou não se sabe que nosso “irracionalismo” é patrocinado pelo governo? É racional nossa estrutura de transportes coletivos, o BNH, INPS, saúde, energia, etc? Constatar que a juventude tenha comportamentos irracionais é, no mínimo, desconhecer o quanto estamos ficando todos macunaimizados.]

[O carnaval é a expiação, o rito de purificação que a transgressão introduz como erotismo. A organização da transgressão do interdito.]

Pg 112 – Bataille – O Erotismo: “a violência, que por si só é cruel, é na transgressão, o ato de um ser que a organiza. A crueldade é uma das formas da violência organizada. Como a crueldade, o erotismo é premeditado”.

[O crescimento é a pletora, e a energia excedente uma necessidade interior de ser consumida.]

Pg. 143: “Em particular, no erotismo, o sentimento de pletora que temos não está vinculado a consciência de engendrar.

Pg. 156: “O movimento da festa recebe na orgia essa força transbordante que provoca geralmente a negação de todo limite. A festa é por si mesma negação dos limites da vida que ordena o trabalho, mas a orgia é o signo da inversão perfeita”.

Pg. 157: “ A orgia se orienta para a religião fausta, extraindo da violência fundamental um caráter majestoso, tranquilo e conciliável com a ordem profana: sua eficácia se mostra pelo lado nefasto, atrai o frenesi, a vertigem e a perda de consciência. Se trata de comprometer a totalidade do ser num deslizamento cego em direção à perda, que é o momento decisivo da religiosidade.

Pg. 159: “O trabalho determinou a oposição do mundo sagrado ao mundo profano. Também é o trabalho o próprio princípio dos interditos que opuseram a recusa do homem à natureza. Por outro lado, o limite do mundo do trabalho que os interditos apoiavam e mantinham em luta contra a natureza, determinou o mundo sagrado como seu contrário. O mundo sagrado não é, em certo sentido, mais que o mundo natural subsistente na medida em que não é inteiramente redutível à ordem instaurada pelo trabalho, quer dizer, a ordem profana. Porém, o mundo sagrado não é mais que em certo sentido, mundo natural. Supera, em outro sentido, ao mundo anterior da ação conjugada do trabalho e dos interditos. O mundo sagrado é, nesse sentido, a negação do mundo profano, mas também é determinado pelo que nega. O mundo sagrado é também o resultado do trabalho naquilo que tem, enquanto origem e razão de ser, não a existência imediata das coisas que a natureza criou, porém, o nascimento de uma nova ordem de coisas, suscitadas pela recusa da oposição da natureza ao mundo da atividade útil. O mundo sagrado está separado da natureza pelo trabalho;

Pg. 160: A origem da orgia não é o desejo de colheitas abundantes. A origem da orgia, da guerra e do sacrifício é o mesmo: se sustenta na existência de interditos que se opunham à liberdade da violência assassina ou da violência sexual.

A orgia é então, por fim, a superação de uma angústia (ver capítulo sobre a angústia). Sobre a superação cristã do daimônico: “não é absurdo em rigor postular no diabo um Dionysos Redivivus”.

Pg 255: “Suponha, a princípio, que há na humanidade um excesso irresistível que a empurra a destruir e a põe em harmonia com a ruína incessante e inevitável de tudo o que nasce, cresce e se esforça por durar. Em segundo lugar, dá a esse excesso e a essa harmonia uma significação de alguma maneira divina, ou, mais precisamente, sagrada;”

“Pois a violência é extravio, e o extravio se identifica com os furores voluptuosos que a violência nos brinda”.

[Esta frase é duvidosa.]

[O Papel do intelectual é ser um desmistificador. Isto significa ser independente de todo pensamento ideológico, e até mesmo contra ele.]

[Em que condições nossa estrutura de poder requisita seus representantes? Um poder sem capacidade de tomar decisões não pode reivindicar a presença de elementos cujas condições sejam curriculares. Os valores que a sociedade tecno-burocrática institui apenas habilitam às escolas intermediárias. Assim, a titulação universitária, o PHD numa universidade americana ou europeia são basicamente acessórios, tanto quanto a capacidade administrativa, o discernimento, etc. Um poder dependente e carnavalizado convoca seus representantes que desempenham-se muito bem na imobilidade. Para isso, a burocracia estatal privilegia qualidades tais como: a dissimulação, a ornamentação (?), o domínio das linguagens acessórias (hobbies, futebol, corridas) e um certo atrevimento. As linguagens acessórias são fundamentais. Sabemos que todo o poder imobilizado descarta sua funcionalidade interna em favor da ação burocrática impessoal, mas ao mesmo tempo requer um alto nível de relacionamento inter-pares como necessidade de resgate permanente de solidariedade. Desta forma, as linguagens periféricas (que são sempre fundamentais no relacionamento social) são as mesmas na operacionalidade cotidiana do poder.]

[Nosso estatismo é tão abundantemente dissimulador na esfera da linguagem que o exercício da opinião intrínseca dos seus atos tem uma recusa psicológica imediata dos seus dirigentes co-natural com a contestação espontânea da degradação que lhe contém. Eis aí onde a literatura fornece os melhores exemplos da brutal insensibilidade dos governantes numa época histórica (ou ao menos das pessoas ligadas ao Poder), e que a todos nós parece algo recorrente desde a Europa do século XIX ao Brasil do XX.]

[Associando-se o extremo autoritarismo vertical com a ausência de liberdades públicas (o Brasil da ditadura militar) a própria linguagem funcional se desmembra pela incessante necessidade das pessoas agradarem-se umas as outras: carnavalização do discurso, diversionismo do falar. Ao mesmo tempo que a estrutura se degrada, o dionisíaco se introjeta como um reforço da interdependência e nec plus ultra, como forma de absolvição. Muitos poucos falaram sobre a qualificação das pessoas ao poder. Refletindo o nazismo, o liberal austríaco Hayek observou que numa estrutura autoritária, são os piores que conquistam os melhores cargos. Sua argumentação é insuficiente, mas sua sensibilidade eficaz. O poder se imobiliza na hierarquização e na perda do poder de decisão. Ele não existe mais do que para seus captores (bancos, multinacionais e demais fornecedores da Casa Real). Sua linguagem ausenta-se de si, de suas funções. A degradação aumenta, os erros são horrores, a disfunção se generaliza. Todo o exercício de coesão passa a ser dissimulação carnavalesca.]

Sobre a miséria como fonte da transgressão: pg. 188.


Roberto Gomes — Crítica da Razão Tupiniquim

“A questão vem a ser esta: e se Oswald estivesse tentando inaugurar outra razão, como é fácil confirmar pela leitura de ‘A crise da filosofia messiânica’? Necessariamente diversa da europeia uma vez que, propondo outra posição, exigiria outros termos e novos critérios. Esta nova razão – não linear, não silogística, não séria – seria talvez uma tentativa de construir um discurso adequado ao que somos". Pg 72:

Embora estivesse apontando alguma realidade brasileira, Oswald o fazia de forma ‘desrespeitosa’ do ponto de vista da Razão Ornamental, contra os clássicos padrões acadêmicos – as coisas sérias. Em função disso, a piada de Oswald foi ‘esquecida’ e se transformou uma inteligência claramente brasileira em mera fazedora de anedotas. Ninguém se perguntou: um filósofo que fosse verdadeira e visceralmente brasileiro – não sugiro que Oswald tenha sido; tinha o estofo e a intuição, apenas isso – poderia deixar de ser, ao mesmo tempo, um humorista? E mais: por que, ao chamar de humorista, pretendemos sempre diminuir alguém? Onde está dito que o filósofo é ‘superior’ ou ‘mais profundo’ do que o humorista? Não representaria o humor, ao contrário, a visão do avesso das coisas, aquela consciência desperta, crítica, que o filósofo com frequência teme assumir, esquecendo-se nalguma ideologia? Não será, contrariamente, a mais alta expressão do espírito crítico?

No homem sério verificamos o triunfo da certeza – do vigente, da ordem, dos sistemas. Em termos brasileiros, é no humor que temos encontrado a forma mais genuína de assumirmos nossas incertezas, fonte de qualquer pensamento sério e criador”. (os grifos são do autor).

As exigências de probidade (que afinal desligou Mario de Andrade da orientação do Macunaíma) deve-se a vinculação do artista a uma organização que lhe exigiu representá-la. É no burocratismo estatista brasileiro onde encontramos a intelectualidade de assumir uma postura que vai da simples renúncia crítica da realidade nacional, passando pelo exercício do pensamento voltado para o exterior (sinônimo da liberdade intelectual de comentaristas da obra alheia), até o limite da postura dos dromedários da cultura nacional.

Ver Sergio Buarque de Holanda pg 50-51 e também Sylvio Romero: Doutrina contra doutrina: o evolucionismo e o positivismo no Brasil.

De Roberto Gomes, pg. 84: “o homem é uma animal enraizado na insegurança, o que faz com que nada nos fascine mais do que a certeza”.

Na pg. 90 fala porque Mario de Andrade não tenha ficado livre do espírito conciliador, afirmando que ele não conseguiu livrar-se de uma razão eclética da qual não se libertou inteiramente. Roberto Gomes esquece (ou ignora) a razão de estado, esta interdependência de quem faz carreira pública (como M. de Andrade) que implica conciliação, não mais que o compromisso com a mesma essência invertida.

A diferença entre um homem genial e um medíocre é que o primeiro desconstrói, enquanto o segundo só sabe construir. O gênio consegue relativizar seu pensamento, ele consegue entender como um enunciado pode facilmente se transformar no seu contrário, ele consegue pela complexidade escantear toda a certeza, e sua sensibilidade confere um lugar de honra para a dúvida, a reflexão e a volta atrás no raciocínio. O medíocre não tem profundidade para relativizar-se, não possui talento para atingir a grandeza da ambiguidade, e nem inclinações à especulação. O que ele aprende, o faz com uma necessidade de certeza, de crença na verdade e como uma confissão de fé. Por isso tende normalmente a uma visão sistêmica, a uma estrutura definida e funcional do pensamento que termina dando lugar a manipulação e ao construtivismo linear, hierarquizado e maniqueísta. O gênio pensa como elite do ser humano, o medíocre tem na simplicidade a grande arma para encarar as massas ignaras.


Sergio Buarque de Holanda — Raízes do Brasil

S. B. H. pgs. 5/6: “Como na filosofia tomista, nosso Estado está organizado em três ordens: na primeira hierarquia os Querubins, os Serafins e os Tronos, são equiparados aos homens que formam o entourage imediato de um monarca medieval: existe o soberano no que ele realiza por si mesmo. São os ministros e conselheiros.

"Na segunda hierarquia, as Dominações, as Potências e as Virtudes são, em relação a Deus, aquilo que para um Rei são os governadores por ele incumbidos da administração das diferentes províncias do reino. Finalmente, os da terceira hierarquia correspondem, na cidade temporal, aos agentes do Poder, os funcionários subalternos”.

Pg. 5: “A falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, um fenômeno moderno. E é por isso que erram profundamente aqueles que imaginam na volta à tradição, a certa tradição, a única defesa possível contra nossa desordem. Os mandamentos e as ordenações que elaboraram esses eruditos são, em verdade, criações engenhosas do espírito, destacadas do mundo e contrárias a ele. Nossa anarquia, nossa incapacidade de organização sólida, não representam, a seu ver, mais do que uma ausência da única ordem que lhe parece necessária e eficaz. Se a considerarmos bem, a hierarquia que exaltam é que precisa de tal anarquia para se justificar e ganhar prestígio.”

Nas pgs. 9 e 10 S. B. H. se confunde: os valores da reforma e da contrarreforma não podem ser analisadas independentemente dos poderes que geram, e por isso, o desprezo pelo trabalho, a honorabilidade do ócio não se justifica senão pela desvalorização do trabalho por um poder com capacidade para degradá-lo e esta razão se trata de um fato independente da estrutura social; ao contrário, os fatores psicológicos inerentes à mentalidade ibérica são derivados da estrutura e não o contrário. O desprezo pelo trabalho é um fator ideológico inerente ao Santo Ofício (ao Poder portanto) e não à psicologia dos homens.

Pg. 116: “Em quase todas as épocas da história portuguesa uma carta de bacharel valeu quase tanto como uma carta de recomendação nas pretensões a altos cargos públicos. No século XVII, crer no que afiança a Arte de Furtar mais de cem estudantes conseguiram colar grau na Universidade de Coimbra todos os anos, a fim de obterem empregos públicos, sem terem estado em Coimbra!“

O sucesso do positivismo no Brasil viria a ser uma reação contra o caráter vago, ambíguo e sinuoso do brasileiro. Na pg. 117 S. B. H diz: “O prestígio da frase escrita, da palavra lapidar, do pensamento inflexível, o horror ao vago, ao hesitante, ao fluido, que obrigam à colaboração, ao esforço e, por conseguinte, a certa dependência e mesmo abdicação da personalidade têm determinado assiduamente nossa formação espiritual. Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental atinado e fatigante, as ideias claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma espécie de atonia da inteligência, parecem-nos constituir a verdadeira essência da sabedoria”.

[Sobre a imobilização em meu texto denominado Carnavalismo e Literatura: Se o real nos imobiliza, o alucinatório nos coloca em movimento. A solução de Cervantes foi um testemunho genial de sua época.]

[Para Pierre Clastres a ideologia passa a ser uma mentira na medida em que, estreitando os limites da abordagem do pensamento em formulações rígidas, este mesmo pensamento passa a ser falsificado.]

[Já se falou excessivamente sobre a teoria do jeitinho no Brasil. Apenas se omitiu sua fonte ou manancial. A existência de uma estrutura onde a inversão se institucionaliza e a transgressão assume uma caráter normatizado.]

[A Política como Carnaval
Em que consiste a carnavalização da tribuna? Um jogo de efeitos? Uma tapeação aos incautos? Nada disso. Quanto mais inamovível a estrutura do Estado, maior a carga dramática do discurso, como se a eloquência fosse necessária para despertar os receptores de um sonambulismo histórico. Eis outro argumento para a razão ornamental. Nossa retórica florida do discurso político quer dizer apenas que ele brilha enquanto ilusão, mas não como poder de modificação; como na velha Ópera, o discurso político tem de causar “stupore”.]


Aretino – I Ragionamenti

pg. 301: “Os pintores e os escultores são loucos voluntários; a prova é que arrancam o sentimento deles mesmos para os transferir a um quadro, um pedaço de mármore.

Pg. 305: “Quanto mais envelhece o mundo, mais mau se torna”. O vinteneísmo, como tudo o que se refere ao século XX. O ocasionalismo, uma substituição semântica para casuísmo.

[Para um entendimento do carnavalismo:
O déficit da dignidade, a carência de recursos básicos fica reprimida a espera de uma explosão do eu em êxtase: o desejo contido na orgia de toda miséria. Por isso, o explorado não pode suportar o continuum do trabalho senão como uma maldição que reclama uma superação das dificuldades no imediatismo, isto é, no êxtase da orgia.]


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10/11/87

Uma das características da crise institucional que vivemos revela-se na defasagem entre aquilo que se informa em oposição aquilo que acontece. Tomemos um exemplo: quando lemos num jornal a notícia sobre o financiamento para aquisição de casa própria, podemos ter conhecimento até mesmo das formalidades necessárias para o interessado candidatar-se ao financiamento. Entretanto, se ele for realizá-lo, vai encontrar uma realidade que difere substancialmente da notícia. Por que ocorre esta defasagem entre o real e o noticiado? Exatamente porque a imprensa informa, cria a notícia, a partir das informações burocráticas oficiais que se distinguem totalmente da prática. O elemento deformador está pois na forma como a imprensa organiza a informação. Ela se torna porta-voz oficial da burocracia e não da situação particular do cidadão. A imprensa – que tanto apregoa independência – revela-se na verdade apenas um apêndice do Poder. E de nada adianta a crítica política, partindo do pressuposto de que a iniciativa é tão somente da política e não da estruturação do Estado como um todo. Nesse caso, ela (a imprensa) não presta nenhum serviço à sociedade, e nem mesmo aos políticos que supostamente deveriam zelar pela atividade do Estado. Numa situação de deformação generalizada, tudo aquilo que é falado, tem apenas um carimbo oficialesco, não revelando em absoluto a situação real do obstáculo burocrático. Se, por outro lado, a imprensa partisse da constatação de que o cidadão está sendo desrespeitado, de que a burocracia não lhe beneficia e fosse buscar a informação no cidadão, a notícia se inverteria, como evidência de que a burocracia inverte aquilo que deveria exercer como norma, isto é, sacrificar o cidadão as expensas de sua própria corrupção e ineficiência.

[O fermento da desconfiança atua na levedura da frustração.]

[A chamada impessoalidade do Estado é garantida pela burocracia que eliminando o indivíduo cria o seu oposto nas relações de interdependência dos burocratas entre si: a psicologia da confraternização. Esse avesso do espírito profissional tem sua dimensão voltada para o cotidiano, para as relações voltadas para a exclusão de objetivos claros, dissimulados na extrema cordialidade carregada de hilaridade, única forma do indivíduo encontrar estima entre seus pares. Pois se a lógica da burocracia não é comercial, ela não está voltada para o convencimento, porém para a aceitação.

[Especulando sobre o barbarismo nacional concluí que é impossível a consagração da justiça numa sociedade como a brasileira, pois para que haja justiça é necessário homens justos e a ausência destes cria a impossibilidade daquela.]

[A estupidez do presente é o fabuloso no futuro. A história humana, sendo passado, não é mais do que a sucessão da estupidez transformada em matéria fabulosa. Quando Xerxes, o rei de Agrigento, tendo perdido seus navios numa tempestade manda seus homens açoitarem o mar, maravilhamo-nos na perplexidade do evento fabuloso apenas porque estamos distanciados no tempo, onde a estupidez foi descartada; não é difícil imaginar um soldado açoitando o mar entre incrédulo e risonho pelo ato executado. Pudera! O homem estúpido está quase sempre obedecendo ordens.]

[A desconfiança é talvez a constatação mais cristalizada do daimônico no caráter do brasileiro. Ela tem sua consagração no estatismo. Ela quer dizer que não somos uma comunidade de opiniões independentes, mas de “agentes” com intenções diabólicas. Se em São Paulo, um orador numa assembleia é sempre suspeito de pertencer a objetivos escusos, no nordeste, onde o triunfo do Estado já é total, o indivíduo não tem sequer direito a ter opinião.]

10/12/87:[ Elementos para um eufemismo. “Deus é a biblioteca. Inalcançável como todos os livros que não poderemos ler; a soma de todos os conhecimentos e saberes que não é nosso; a memória sedimentada de todo o Universo e, finalmente, uma criação exclusivamente das faculdades humanas”.]

[O amontoado babélico da produção literária destaca-se com uma redundância tediosa. Ao escritor não interessa o volume, a quantidade, mas esteticamente, a diferença.]

[A filosofia dos últimos tempos, ao desenvolver as particularidades do saber intelectual e a eleição de “categorias”, transformou-se numa narrativa tão abstrata, tão pouco vinculada a sua função original de busca da verdade, que desandou para o esteticismo e a inverossimilhança. Filósofos como os da Escola de Frankfurt, e também alguns franceses, banalizaram a tal ponto o discurso filosófico, que transformaram-no num agregado de justaposições duvidosas e sem sentido, que poderia muito bem ter validade dentro de um enquadramento literário, mas que, como filosofia, transforma-se inapelavelmente em um neo-esoterismo. O discurso alegórico, fora de uma proposta estética, está contaminado pelo nonsense que lhe castiga a ponto de ser finalmente descartável e desvalorizado por si mesmo, a menos das corriolas acadêmicas, tão sequiosas por teoricismos inúteis.]

[Ora, uma filosofia construída sobre uma relato semionírico tem sérios riscos de deterioração ou até mesmo de servir apenas como vinheta ilustrativa de alguns poucos fatos sem nenhum contexto unificador. Vale lembrar Russell ou Ortega, para os quais profundidade é clareza.]

[A degradação representa a transferência de um produto que circula livremente no mercado para as mãos de agentes intermediários que são seus “concessionários” no aparelho de Estado. Assim, um telefone não se compra no balcão da empresa de telecomunicações, mas inicialmente na rede de favores obrigatórios da “sociedade relacional” que passa pelo mundo político, e, finalmente, a degradação cria sua rede de intermediários regularizada por sua inevitável burocracia. A degradação tem sempre um ponto de partida: a inexistência do indivíduo livre, do cidadão com direitos iguais. Ela é inerente à pré-modernidade em que, em última análise, o poder político é também um poder pessoal e tanto maior quanto menor o espaço do mercado reservado a participação de todos. Em última análise, a degradação pressupõe finalmente a existência da miséria – essa condição de imobilidade absoluta em que todos os recursos estão concentrados nas mãos de uns poucos que detém toda a mobilidade na sociedade (e sobretudo a posse do aparelho de estado como propriedade privada) em detrimento de uma maioria imobilizada pela depauperização que fundamenta a desigualdade.]

[A insistência na questão do Estado como agente inversor na sociedade está baseada nos seguintes fundamentos:

1) O Estado como estrutura inversora da Economia Política. A economia estatal distingue-se da “tradicional” pois sua ação não se baseia na acumulação, porém no consumo. Se toda economia está fundada na produção de bens e na acumulação de capital, o Estado inverte esta relação, baseando-se no consumo de bens e na apropriação pacífica da riqueza gerada por outros.
2) Um inversão da propriedade pública em privada, é portanto uma inversão ética.]

16/08/89
[Não podemos entender a realidade brasileira sem o concurso do diabólico no sentido atribuído por Rollo May. Logo, a demonoanálise deveria ser um ciência brasileira que se propõe a investigar cada fenômeno à luz de suas causas de interesse privado, travestido em antagonismos mistificadores.]

[A acumulação de poder (poder primário) sobre as outras pessoas produzida pela degradação, surge do fato da degradação criar necessidades para as pessoas que não são solucionáveis senão através da negociação com o mesmo poder que as degradou. Imobilizados, os indivíduos, a classe social, ou os cidadãos, têm de sujeitarem-se às regras ditadas pelo poder monopolista a menos que se relacionem dentro de esquemas preferenciais que a sociedade cria em regime de privilégio. Mas são exatamente esses sistemas preferenciais que permitem a subordinação da parcela mais dinâmica da sociedade à estrutura monopolista degradadora, apoiando-a como forma de acesso ao serviço e garantindo sua perpetuação. A degradação tem também outra função. Ela coloca em circulação procedimentos que igualam estruturas monopolistas e diabolicamente criam linguagens comuns não articuladas como forma de reconhecimento: é o caso da corrupção que se transforma em sistema, reconhecendo-se reciprocamente sem nunca ser assumida como tal].

01/11/88?
[Uma burguesia que não pode assumir-se enquanto liderança do processo produtivo, e tem de dissimular que não passa de uma oligarquia comandada pelo estado; uma classe média composta majoritariamente por funcionários públicos (e similares) que na sua inutilidade, ociosidade, vacuidade, improdutividade, tem um comportamento plasmado pelo não-ser; cria em suas relações de convívio social os falsos valores da sofisticação, do chic, da noblesse oblige, como forma de pavoneio daquilo que não é.]

01/12/88 [O energumismo – em termos genéricos – pode ser definido como a ausência de um sistema de sanção sobre o indivíduo. Se o exercício da liberdade implica em educação e treinamento para o exercício de uma função, e também o mútuo respeito, além da normatização da vida cotidiana, podemos dizer que ela só é conquistada através de um amplo programa de coerção sobre os indivíduos, na colocação em prática da racionalização em todos os setores da vida urbana. Porém, a coerção está ligada a coesão, isto é, as formas de exercício consentido da cidadania. O energumismo contraria a ordem serena, impondo-se como uma situação criada pela degradação institucional compartilhada, onde o Poder é exercido em permanente crise de autoridade. Autoridade aqui em termos de governo significa a imposição de uma vontade que é superior à sua estabilidade.]

[Assim, o autoritarismo, paradoxalmente, significa a crise de autoridade, o poder exercido como uma articulação do Estado com o capital – o capitalismo de Estado – assentado sobre um sistema no qual o indivíduo não tem canais de participação, e que ao negá-lo não só cria uma ordem de inversões com uma pseudo-liberdade que se expressa através do energumismo, isto é, da ação de indivíduos contra indivíduos, em desconfiança de toda cooperação. Assim, na impunidade generalizada, o exercício da liberdade é devastador, porque ela não se limita as regras impostas pelo conjunto sobre o uno ou da sociedade sobre o indivíduo.]

A economia carnavalista corresponde a economia voltada para a despesa. Ao contrário do capitalismo clássico, cuja função principal de produção é a acumulação de capital, o capitalismo de Estado tem suas estatais voltadas para a realização da despesa. Infelizmente, apenas Bataille se interessou pela economia enquanto realização de despesa. O movimento do Capital para o consumo só pode estar apoiado no monopólio, única condição de sobrevivência. Monopólio instalado, a estatal tem no seu corporativismo a perda do poder de decisão e coerção. Seus funcionários não são mais homens sujeitos a instabilidade necessária à cooperação, porém homens em permanente certeza do desperdício que justifica os fins. Não podendo realizar suas tarefas próprias, as estatais usam a contratação de empresas privadas para realizar aquilo que ela por si só se declara impotente, conciliando a incapacidade coercitiva com a necessidade de realizar a despesa, condição para a proliferação orgânica da corrupção. Para poder dinamizar-se, precisa contrair grandes dívidas e, portanto, seus ingressos são dimensionados em função dos compromissos assumidos com o setor pretensamente externo (mas que na verdade é estatal), única condição de movimentá-la em alguma direção.

Na cultura carnavalesca, o Estado é o tabu da brasilidade. O Estatismo, através da disputa das mais diferentes ideologias, todas elas construtivistas, faz com que o Estado ocupe o imaginário do brasileiro. Ele representa para a direita a condição da brasilidade e para a esquerda cristã ou marxista, a nacionalidade mais a pureza moral. Não podendo imaginar a nacionalidade sem o Estado, ele representa o nosso mito, e a identificação com as Estatais está para o brasileiro como uma manifestação cívica. Para a maioria, os slogans do tipo “Varig, a nossa Varig”, ou “O Petróleo é Nosso” tem a função de tabus.]

12/12/88
[A grande dúvida sobre o sentimento de culpa do indivíduo é saber se ele não é culpado mesmo.]

13/12/88
[A consciência carnavalesca tem uma geração espontânea indetível: o boato, o disque-disque, o telefone bambu. O boato quer mostrar que numa estrutura sem finalidade (sem forças coercitivas) a conversação supera o trabalho rotineiro.]

[A proposta de analisar o carnavalesco deve passar pela arguta observação de todas as variantes do não-sério. Se definirmos o exercício do poder como a ocupação do espaço social com signos pessoais ou organizacionais, então no nordeste brasileiro o pobre é um ser poderoso: seus porcos, anonimamente passeando pelas ruas de São Luís, estão pelo espaço público com um sinal incontestável de sua permissividade na ordem social do século XX.]

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[Aviso aos leitores: O livro (Outros Carnavais), pensado em cada frase quase com a cadência da mastigação, constitui-se numa surpresa post scriptum para o autor. É que ele descobriu, como engenheiro de múltiplas experiência e leitor de obras variadas, que todo o livro tem a função póstuma de responder a uma pergunta que – por ser uma permanente indagação inconsciente do autor – atormentava suas preocupações mais íntimas: responder por que o Brasil não é uma potência. Ou o mesmo que tentar demonstrar as causas de nossa impotência à luz de explicações ainda não dadas pelo seleto círculo de nossos dómines mais elogiados.]

[A economia como carnaval:

  • A despesa como fim;
  • O empreendimento para esquentar dinheiro;
  • O empréstimo de bancos governamentais que não se paga;
  • A anistia fiscal;
  • O lançamento de ações para bobos;
  • Falências programadas

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A essência do clientelismo está na degradação. A condição para que muitos se submetam a uns poucos, reside no fato desses muitos estarem necessitando de algo. E para os poucos, a condição de mandar reside na pauperização da maioria. No limite, se todos os poderes estão degradados, aquele que detém o poder absoluto reina absolutamente e todas as diferenças políticas se acabam no ato de pedir e no ato de conceder.]

[Conclusão de releitura em 2011: neste caso, as forças do atraso são poderosas e todo o governo que implementar o retrocesso estará criando necessitados e ao mesmo tempo uma grande base eleitoral]

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[A canalhocracia tem na impotência intelectual um comportamento comum: ela não é capaz de criar empresários, como no modelo japonês porque suas propostas não são levadas a sério; não tem capacidade para tomar um item de importação de bens tecnológicos e encomendar ao empresário sua substituição e competição no mercado internacional, ação essa que caracterizaria uma força de coesão social existente apenas nas potências emergentes. Simplesmente não tem iniciativa porque lhe falta discernimento intelectual, porque somente uma sub-raça dissimuladora e calhorda pode chegar à posição de comando e aí sobreviver se colocando na posição mascarada de quem manda, mas na verdade sendo comandada desde o exterior. E se esse exterior é contrário a sua rapinagem (vide Sarney) bem, aí resta o velho discurso nacionalista da soberania nacional.]

[Mede-se a canalhocracia pelo apreço conseguido por alguém que sendo denunciado como ladrão pelos jornais, é rapidamente homenageado pelas instituições da sociedade civil. O canalha em apreço dá uma festa e é amplamente noticiado nas colunas sociais.]

[O discurso da canalhocracia é um discurso moral quando voltado para a comunidade, mas imoral quando voltado para os ricos a quem supõe partícipes de seus delitos.]

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[Não ter identidade significa o privilégio de não viver o próprio tempo, pois é a identidade que representa a integração do indivíduo com sua época. Mas o gênio da “raça” em uma época é aquele que não segue o estereótipo de seu povo. Ver a observação de Borges em Conferências (5 visões pessoais) sobre o tipo representativo de um país (Shakespeare, Goethe, etc), que não são o típico inglês, alemão, etc.]

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[A canalhocracia não sobrevive ao capitalismo clássico. Seu alimento é o Estado. Ela sabe e conhece sua impotência para gerir qualquer sistema competitivo, por isso sempre recorrerá às forças políticas mais identificadas com o Estado, seja à direita ou à esquerda formais.]

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[Como uma empresa privada pode ser igual a uma empresa pública?! O seu proprietário desconhece seu lugar na organização. Por sentir-se dono de tudo, pode muito bem dar opiniões e mandar onde bem entende, sem suspeitar que ignora as particularidades daquilo que ordena e provoca pelo mandonismo o riso alheio derivado da ignorância. Mais uma relação pré-moderna e um ponto onde a empresa penetra no terreno do não-sério.]

[A comprovação de que a classe empresarial está carnavalizada verifica-se na sua impotência para competir com os estrangeiros. Frente as grandes empresas multinacionais, o empresariado não é fraco por falta de capital, porém, por falta de organização, cujos métodos calcados no mandonismo e elitismo não permitem que seja triunfador perante a concorrência externa.]

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[Tanto quanto o ultra-conservador namora a pornografia que condena, tanto quanto o neurótico vacila irresistivelmente sob suas aversões, o político carrega o desejo de apoderar-se daquilo que critica, de fazer exatamente aquilo que combate. O cenário é o Estado, a proteção jurídica é a imunidade parlamentar.]

16/03/91

[Na exegese do processo, o político tem que falar em termos gerais para agir em termos pessoais. Esta é a origem do nosso apego a razão genérica interpretativa.]

10/04/91

[O judiciário corresponde ao nosso comunismo. Ele foi construído sob o ideal de pureza. Quando a corrupção grassa por toda a parte, o sensato é supor que a justiça não é imune a ela. Porém, quando um cidadão anuncia a suspeita de corrupção de um juiz, logo é alvejado com todo o poder da corporação. Enquanto nos países desenvolvidos a justiça criou mecanismos de purgação de seus vícios, no Brasil ela desfruta da impunidade semelhante aos burocratas dos PCs. Nos regimes comunistas, aquele que acusa um membro do Partido está condenado a cadeia, mesmo que esteja cercado de provas e razões.]

29/04/91

[Sobre o funcionário público como bobo (homus bobus): e afinal, o tipo psíquico que se adapta ao ritmo é aquele que não tem capacidade de pensar grande, de ver o exercício de uma pequena ação dentro da esfera de um conjunto. Quando no intramundo humano temos um ser incapacitado para conjugar suas tarefas com uma ação global, um desinteressado pelo seu cotidiano com o resto da coletividade ao qual pertence, temos o talento para o funcionário público – aquele perfeitamente condicionado para a trivialidade e que está cagando e andando para o resto: é o homem que não tem dotes para dirigente e sabe disso.]

28/9/91

[O daimônico tecnológico tem uma só direção: produzir o novo, inventar o diferente, modificar o atual de todas as formas possíveis. Se alguma ideia tem uma possibilidade de aplicação e se revela mais eficiente do que o atualmente em uso, então ela será posta em prática mais cedo ou mais tarde. Para não perder a competição, a indústria de vanguarda tem que manter olheiros por toda a parte].

[Meu último pensamento lançado na agenda antes de comprar um computador:]

13/02/92:

[O grande defeito da democracia é a falta de critério na escolha dos eleitores. Ainda chegará um dia em que será eliminada a obrigatoriedade do voto, depois o voto dos analfabetos, por fim o voto dos menos cultos, até que, por progresso natural, a máquina dos votantes se restringiria aqueles que adquiriram alguns méritos. Selecionando ainda mais, posso supor que o supremo criador terá mais votos que seus pares, e nesse caso, como sou o único fundador de uma nova ciência – a demonoanálise – ainda serei um dia o único eleitor desse país. Rompem-se as trevas, faça-se a luz. Com que felicidade depositarei meu voto em urna indevassável para que os outros a abram depois para conferir, de modo solene e tradicional, para que lado vão os destinos deste país!]

[Nota 27 anos depois: meu desejo de ser ditador não foi atendido. Devo ter falhado em algum item essencial.]


CADERNOS DE MICHIGAN 2

Bobagens de Aristóteles – em Ensaios Céticos – Bertrand Russell, pg. 64-65
1) As crianças devem ser concebidas no inverno, quando o vento é Norte, e as pessoas que casam muito cedo, geram uma criança que será fêmea;
2) O sangue das fêmeas é mais escuro que o dos machos;
3) O porco é o único animal relacionável ao sarampo;
4) O elefante sofrendo de insônia deve ter seus ombros esfregados com sal, óleo de oliva e água quente;
5) As mulheres tem menos dentes que os homens.

Bobagens de Platão:
Os homens que não possuem sabedoria em suas vidas nascerão novamente como mulheres.

Bobagens de Lao-Tsé
1) Pontes, estradas e barcos são anti-naturais, por isso foi viver entre os bárbaros do oeste.


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12/10/84

Aubrey F. G. Bell — Four Plays of Gil Vicente

Introdução – pg. XVII:

A corte portuguesa dobrou em menos de um século. Se em 1502 ou 1503 tinha 5 mil moradores, nos dias do rei Duarte o número era de 3000 (1433-8). Garcia de Resende era de opinião que não havia rival na Europa.

Pg XXXV: Nesta época Vicente “sentiu os bons velhos tempos, contentamento com danças rústicas e canções, desaparecidas desde 1510: De vinte annos a ca / Não há ni gaita nem gaiteiro. Ninguém está contente: ninguém se contenta de maneira que sohia. Tudo bem se vai ao fundo. Ele deplorava especialmente a nova confusão entre as classes. Pastores, pagens e padres todos desejam servir ao Rei, isto é, tornar-se um oficial preguiçoso (idle) por um salário fixo, enquanto a terra permanecia sem ser arada. Os camponeses não sabem o que querem e murmuram sem entender. Há negligência em todas as partes (todos somos negligentes). Portugal sofria de uma crise similar aquela de 4 séculos mais tarde, e os homens foram inclinados a deixar suas profissões em troca de teorizar ou na esperança de enriquecerem rapidamente ou por sorte, em vez de por trabalho intenso e contínuo; e o resultado foi um período de revoltas e descontentamentos.

Pg XXXVII – Franco Sacchetti falando da corrupção, luxúria e dissolução da vida do clero: “hanno meno discrezione che gli animali irrazionali”.

Juan de Encina: “No hay cosa que no esté dicha”.

Lazarillo de Tormes – Pg. 78:
Havia pragas e fomes no país. A descoberta de uma rota direta para o Leste e a sua aparentemente inexaurível riqueza não trouxe prosperidade para as províncias portuguesas. Nelas o efeito principal foi produzir descontentamento com suas terras e despachar os trabalhadores mais humildes para procurarem seus destinos e frequentemente encontrar a morte ou uma pobreza muito menos independente.

Provérbios:
14) Amor louco, eu por ti e tu por outro;
15) Cada louco com sua teima;
16) Bem passa de guloso o que come o que não tem;
17) É melhor ir só do que mal acompanhado;
18) Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube;
19) Parede cayada papel de locos;
20) Quem bem renega bem vê;
21) Quem chora ou canta, más fadas espanta;
22) Quem espera padece; 23) Quem muito pede muito fede;
24) Quem não faz mal não merece pena;
25) Quem não mente não vem de boa gente;
26) Sob mau pano está o bom bebedor. Confronte Cervantes: "embaixo de uma capa rasgada sempre se esconde um bom bebedor".
27) Vilão forte, pé dormente.


Ernst Cassirer — The Myth of The State

O mito é o elemento épico na vida religiosa primitiva, enquanto o rito é o elemento dramático.

Pg. 41: Na descrição da função do mito na vida social do homem, Cassirer nota que o comportamento dionisíaco é um profundo desejo do indivíduo livrar-se dos grilhões da individualidade para imergir na corrente da vida universal, perder sua identidade e ser absorvido na totalidade da natureza, o mesmo desejo expresso nos versos do poeta persa MUALANA Salaluddin Rumi: “aquele que conhece o poder da dança vive em Deus”. O poder da dança é para o místico o verdadeiro caminho para Deus. No delirante redemoinho da dança e dos ritos orgiásticos nosso finito e limitado EU desaparece. O EU, o “obscuro déspota” como chamou Rumi morre: o Deus nasce.

Pg. 43: o mito não pode ser expresso como uma emoção despida porque ele é a expressão de uma emoção. A expressão de um sentimento não é o sentimento em si – é a emoção transformada em imagem.

Pg. 47; “Momentum aere perennius”. É a condensação das emoções quando transformadas em trabalhos, quando adquirem uma expressão simbólica persistente e durável. Pg. 60: “Afim de sobrepujar o poder do mito devemos encontrar e desenvolver o novo positivo poder de “auto-conhecimento”. Precisamos ver a totalidade da natureza humana numa maneira ética, em vez de sob a luz mítica. O mito pode ensinar ao homem muitas coisas; mas não responde a única questão a qual, de acordo com Sócrates é realmente relevante: a questão do bem e do mal. Somente o “Logos” socrático, somente o método do auto-exame introduzido por Sócrates pode levar a solução a esse problema fundamental e essencial.”

Parte I

II) O que é Mito?
III) Mito e Linguagem
IV) Mito e Psicologia das Emoções
V) A função do Mito na Vida Social do Homem

Parte II — A batalha contra o Mito na história da Teoria Política

V – ‘Logos’ e ‘Mythos” na Antiga Filosofia Grega
VI – A República de Platão
VII – A religião e a Base Metafísica da Teoria Medieval do Estado
VIII – A Teoria do Estado Legal na Filosofia Medieval
IXI – Natureza e Graça na Filosofia Medieval
X – A Nova Ciência Política de Machiavel
XI – O Triunfo do Machiavelismo e suas Consequências
XII – Implicações da Nova Teoria do Estado
XIII – O Renascimento do Estoicismo e o “Direito Natural” das teorias do Estado
XIV – A filosofia do Iluminismo e seus Críticos Românticos

Parte III — O Mito do Século XX

XV – A preparação: Carlyle
XVI – Do Culto do Herói ao Culto da Raça
XVII – Hegel
XVIII – A técnica dos Modernos Mitos Políticos.

Para Platão, filho de família ateniense aristocrática que havia declinado da luta política, a alma humana está ligada com a natureza inseparavelmente. Vida pública e privada são interdependentes. Se essa última é perversa e corrupta, a primeira não pode atingir o seu fim.

Ler a República de Platão para ver as suas análises sob a corrupção e perigos de um estado corrupto.

Para Platão o Estado era o administrador da Justiça. Não da justiça no senso corrente, mas justiça entendida como ordem, regularidade, unidade e legalidade.

Reductio ad absurdum.

Pg. 75-76: A filosofia de Platão provem de duas fontes diferentes, e essas duas fontes fluem juntas para formar um único feixe de pensamento. Ele começou como discípulo de Sócrates. Ele aceitou a teoria socrática em que “felicidade” é o mais alto objetivo da alma humana. Por outro lado insistiu que, como Sócrates, a ‘conquista da felicidade’ não é a conquista de prazer. As duas coisas são diametralmente opostas. O termo grego para felicidade é ‘eudaimonia’ – e eudaimonia significa possuir um ‘bom demônio’. [Nota: O mesmo conceito retomado por Rollo May em Amor e Vontade]. A essa definição socrática Platão adicionou um novo comportamento. No final do seu ‘República’ ele fornece sua famosa descrição da escolha da alma para sua futura vida. Aqui também um motivo místico é transformado no seu justo contrário. No pensamento místico o homem é dominado por um demônio bom ou mau; na teoria de Platão o homem escolhe o seu demônio. Esta escolha determina sua vida e seus futuro destino. O Homem cessa de ser nos grilhões das forças sobre-humanas, divinas ou demoníacas. Ele é um agente livre que tem que exercer responsabilidade completa. ‘A culpa é daquele que escolhe. Deus é inculpável’. Para Platão, eudaimonia significa liberdade interior – a liberdade que não depende das circunstâncias acidentais ou externas. Depende da harmonia, a ‘proporção correta’ do próprio ser humano. Razão (phronésis) é a condição de sobriedade e moderação (sophrosyné) – e essa moderação fornece a correta têmpera da personalidade humana e de todas as suas ações.

Tudo isso é estritamente socrático, mas ao mesmo tempo vai bem além de toda a ética das concepções de Sócrates. O ideal socrático foi transferido por Platão a uma nova esfera, aquela da vida política. De acordo com um paralelo feito por Platão entre a alma individual e a alma do estado, é claro que a do estado está também sobre a mesma obrigação. Em vez de aceitar o seu destino, o estado deve criá-lo. Dirigir os outros primeiro requer dirigir a si mesmo. Mas esse é um fim ético que não pode ser conseguido por uma mera ostentação de força física. Foi o erro radical dos líderes atenienses que falhou por completo em ver esse ponto. Eles identificavam o bem-estar do Estado com sua saúde física. Mesmo as maiores e mais nobres pessoas, homens como Miltíades e Péricles estavam conectados a esse erro.

Eles não estavam capacitados para a real tarefa do estatismo e liderança política; eles perderam o objetivo porque nunca conseguiram ‘fazer as almas dos cidadãos melhores’. Não somente o cidadão, mas também o Estado deve escolher seu demônio. Este é o grande e revolucionário princípio da República de Platão. Somente escolhendo um ‘bom demônio’ pode o estado garantir sua eudaimonia, sua felicidade real. Não podemos deixar a conquista desse mais alto objetivo ao mero acaso, nem podemos esperar encontrá-lo por um mero golpe de felicidade. Na vida social bem como na individual, o pensamento (phronésis) deve tomar a liderança. Ele deve mostrar-nos o caminho e iluminar-nos do começo ao último degrau.

A saúde do Estado não é o seu crescimento em força física. O desejo de ter ‘mais e mais’ é tão desastroso na vida do Estado como na vida individual. Se o Estado rende-se a esse desejo, é o começo do seu fim. O alargamento do seu território, a superioridade sobre os vizinhos, o avanço em poderio militar e econômico, tudo não pode evitar a ruína do Estado, mas antes apressá-la. A auto-preservação do estado não pode ser assegurada por sua prosperidade material nem pode ser garantida pela manutenção de certas leis constitucionais. Escrever constituições ou atos legais (institucionais) não possuem força de união real, se eles não forem a expressão da constituição escrita nas mentes dos cidadãos. Sem esse suporte moral, a verdadeira força do estado transforma-se no seu perigo inerente’.

O pensamento medieval apresenta diversas diferenças do pensamento grego: o monoteísmo religioso já não é mais o monoteísmo filosófico grego. Santo Agostinho conserva ainda diversas características do pensamento platônico, mas seu próprio objetivo é o conhecimento de Deus, não o auto-conhecimento. Ao contrário do intelectualismo grego que era movido pelo desejo ético de conhecer a verdade, a religião se caracteriza por um resoluto voluntarismo.

Pg. 114: O Estado origina-se de um instinto social do homem. É desse instinto que provém a vida familiar, e daí por um contínuo desenvolvimento, para todas as outras altas formas de comunidade. Não é necessário nem possível conectar a origem do Estado com um evento sobrenatural. O instinto social é comum aos homens e animais; mas no homem ele assume uma nova forma. Ele não é somente um produto natural, mas racional, dependendo de sua livre atividade consciente.

Certamente Deus permanece, em certa medida, a causa do Estado; mas aqui como no mundo físico ele funciona apenas como causa remota ou causa impulsiva.

Pg. 176: Citando Rosseau; ‘Eu compreendi que tudo era radicalmente conectado com política, e que, de qualquer forma que se proceda, ninguém pode ser outro além da natureza que o seu governo lhe fez’.

Pg. 183: ‘No sistema dos filósofos românticos, o mito tornou-se não somente o sujeito do mais elevado interesse intelectual, como também sujeito a reverência e veneração’.

Pg. 191-193: Indubitavelmente Carlyle desenvolve nas suas conferências a ideia de ‘liderança’ nas suas mais radicais consequências. Ele identificou na totalidade da vida histórica a vida dos grandes homens. Sem eles não haveria história; haveria estagnação, e estagnação significa morte. Uma mera consequência de eventos não constitui a história. Consiste apenas em ações e realizações, e não há façanhas sem autor, sem um grande, imediato, impulso pessoal. ‘O Culto do Herói’, exclamava Carlyle, ‘profundamente sentido, prostra admiração, submissão, ardor, infinitude, para a mais divina forma do homem – não é o germe próprio do Cristianismo?’

Substituição do culto de Deus pelo culto do homem.

Pg. 203: ‘Idleness que é comumente denunciado como vício, é de fato, uma das mais altas virtudes. É a chave da concepção política do universo, o meio para toda a vida imaginativa’. Carlyle chamava-se a si mesmo místico, mas seu misticismo nunca levou-o ao quietismo.

Nacos:
Adamantino – como o diamante. Íntegro, inatacável: caráter adamantino.
Doxa – em grego a opinião certa.
Episteme – conhecimento

Do mito do herói evoluiu para o mito da raça. Com Gobineau a decadência da raça humana é antes de mais nada a sua decadência pessoal como aristocrata sobrevivido na sociedade burguesa.

Pg. 258: Kant: O princípio fundamental que dirige todo o meu idealismo é este. Toda cognição de coisas do puro Entendimento e Razão não é nada mais que mera ilusão e somente na experiência existe a verdade.

Pg. 263: Para Hegel o estado não é somente uma parte, mas a essência, o núcleo verdadeiro da vida histórica, a produção da história como tal. Ele se define mais em termos de história do que de natureza, a encarnação do ‘espírito do mundo’. Enquanto Santo Agostinho considerava a Civitas Terrena como uma distorção e desfiguramento da Civitas Divina, Hegel viu na Civitas Terrena a ‘Ideia Divina tal qual existe na terra’. Ninguém enunciou isto antes dele. É um novo tipo de absolutismo.

Relacionado com Rosseau que via o estado como um contrato civil, como limite de certas restrições legais e morais, Hegel mudou a ideia de moralidade que prevaleceu durante séculos.

Pg. 273: ‘Nenhum outro sistema filosófico fez tanto para a preparação do fascismo e imperialismo como a doutrina do Estado de Hegel – esta ‘divina ideia que existe na terra!'

Pg. 282: ‘Mitos podem ser fabricados no mesmo senso e de acordo com os mesmos métodos de qualquer arma moderna – como metralhadoras e aeroplanos’.

‘Natura non vincitur nisi parendo’ – A vitória sobre a natureza só pode ser ganha por obediência. Frase de Bacon.

Pgs. 287 – 288: A liberdade é um dos mais obscuros e ambíguos termos não só da linguagem filosófica, mas também da política. Assim que começamos especular sobre a liberdade da vontade, nos encontramos envolvidos num inextricável labirinto de questões metafísicas e antinomias. Tanto quanto a liberdade política sabemos ser um dos mais usados e abusados slogans. Todos partidos políticos nos asseguram que eles são os verdadeiros guardiões da liberdade. Mas eles sempre definiram o termo em seu próprio senso e usaram em seus próprios interesses. A liberdade ética é, no fundo algo muito simples. Está livre dessas ambiguidades que parecem ser inevitáveis tanto em política como em metafísica. Os homens agem como agentes livres não porque possuem um liberum arbitrium indifferentiae. Não é a ausência de motivo, mas o caráter dos motivos que marca uma ação livre. No senso ético um homem é um agente livre se estes motivos dependem do seu próprio julgamento e própria convicção do que é uma obrigação moral. De acordo com Kant liberdade é equivalente a autonomia. Não significa ‘indeterminismo’, mas preferivelmente um tipo especial de determinação. Significa que a lei que nós obedecemos nas nossas ações não são impostas do nada, mas que o sujeito moral dê essa lei a si mesmo.

Na exposição de sua teoria Kant sempre advertiu-nos contra um equívoco fundamental. Liberdade ética, declara, não é um fato, mas um postulado. Não é gegeben mas aufgegeben. Não é um presente que a natureza humana é dotada; é antes uma tarefa, e a mais árdua tarefa que o homem pode impor-se. Não é um datum (fato), mas uma demanda; um imperativo ético. Realizar essa demanda torna-se especialmente difícil nos tempos de uma crise social severa e perigosa, quando a quebra de toda vida pública parece iminente. Nessas épocas o indivíduo começa a sentir uma profunda desconfiança nos seus próprios poderes. Liberdade não é uma herança natural do homem. Para possuí-la devemos criá-la. Se o homem simplesmente seguir seus instintos naturais ele não lutará por liberdade; ele provavelmente escolherá a dependência. Obviamente é muito mais fácil depender dos outros que pensar, julgar, e decidir por si mesmo. Isso vale pelo fato de que tanto na vida individual e política a liberdade é frequentemente vista muito mais como um fardo do que um privilégio. Em condições extremamente difíceis o homem tenta abandonar este fardo. Aqui o estado totalitário e os mitos políticos prometem, no mínimo, escapar desse dilema. Eles suprimem e destroem a essência verdadeira da liberdade: mas ao mesmo tempo, eles aliviam os homens de toda a responsabilidade social”.


Robert Nozick — Anarchy, State and Utopia

Pa 11: Proudhon no seu Ideia Geral da Revolução no século XIX:
‘Ser governado é ser olhado, inspecionado, espiado, dirigido, compelido por lei, numerado, listado, doutrinado, rogado, controlado, checado, estimado, valorizado, censurado, comandado por criaturas que não tem nem o direito nem a sabedoria nem a virtude de fazer isso. Ser governado é estar em cada operação, em cada transação notado, registrado, contado, taxado, selado, medido, numerado, tributado, licenciado, autorizado, administrado, prevenido, proibido, reformado, corrigido, punido. É, no pretexto da utilidade pública, e no nome do interesse geral, ser sobretaxado, infestado, explorado, monopolizado, exortado, apertado, logrado, roubado; então, a menor resistência, à primeira palavra de reclamação, se reprimido, multado, vilificado, embaraçado, abatido, abusado, caceteado, desarmado, amarrado, chocado, aprisionado, julgado, condenado, fuzilado, enganado, ultrajado, desonrado. Isto é governo, isto é justiça, isto é moralidade.


Albert Jay Nock — Our Eeney, The State

Pgs. 27-28: .... o professor Chinor, em seu admirável estudo biográfico de John Adams, chamou a atenção para a observação de Chevalier que o povo americano tem ‘a moral de um exército em marcha’. Quanto mais se pensa nisso, mais claro se vê como é pequena o que os nossos publicistas costumam chamar de ‘psicologia americana’. Um exército em marcha não tem filosofia; ele se vê a si mesmo como uma criatura do momento. Não racionaliza sua conduta, exceto em termos de seu fim imediato. Como Tennynson observou, há um restrito entendimento oficial contra fazê-lo [está mal traduzido e não tem mais conserto sem o original], ‘eles não tem razão do por que’. Emocionalizar a conduta é outra coisa, e quanto mais melhor; ela é encorajada por uma total parafernália elaborada em etiqueta de shows, bandeiras, música, uniformes, decorações, e um cuidadoso cultivo de um tipo especial de camaradagem. Em cada relação com ‘a razão da coisa’ entretanto – na habilidade e esperteza como disse Platão de ‘ver as coisas como elas são’ – a mentalidade de um exército em marcha é meramente uma adolescência retardada; ele permanece persistentemente, incorrigivelmente e notoriamente infantil.’

'...veja o continente subdividido, veja o espalhamento de nossa indústria e comércio, nossas ferrovias, jornais, companhias financeiras, escolas, universidades, o que se quiser. Bem, se tudo isso foi feito sem filosofia, se crescemos nessa grandeza sem rival sem atenção a uma teoria das coisas, isso não prova que a filosofia e a teoria das coisas são tudo devaneios, e sem valor para considerações práticas às pessoas? A moral de um exército em marcha é o suficiente para nós, e estamos orgulhosos disso’.

Pag 60: De 1847 a 1858 – 2.486.463 imigrantes passaram pelo porto de Nova York. Essa competição tendeu a constranger a economia escravista e suplantá-la pela economia assalariada.

Pg. 62: Quando Freud comenta a chocante disparidade entre a ética do Estado e a Ética privada – e sua observação neste ponto são mais profundas e indagadoras – o método histórico as vezes fornece as razões pelas quais esta disparidade precisa ser investigada.
[Observação minha: o Estado sempre sente-se impune para enganar os cidadãos em suas promessas (BNH, etc.) enquanto que num contrato privado a parte faltante sempre seria vista como caloteira e possivelmente destituída judicialmente de seus atos. Quando a corrupção do Estado avoluma-se, os próprios indivíduos são encorajados a imitá-lo.
[Outra observação minha: a acumulação de riquezas na sociedade favorece a atividade predatória do Estado muito mais que o desenvolvimento da sociedade como tal. Não se pode dizer que uma sociedade é atrasada apenas por falta de recursos. A apropriação predatória dos recursos também mantém essa sociedade atrasada.]

Pg. 146: É comum afirmar-se que a persistência de uma instituição é devida somente à mentalidade que prevalece nela, o conjunto de termos que os homens habitualmente pensam dela. Tanto quanto estes termos sejam favoráveis, a instituição vive e mantém o seu poder; e quando por qualquer razão os homens cessam de pensar nesses termos, ela enfraquece e torna-se inerte. Certa vez, um conjunto de termos relacionados com o lugar do homem na natureza deu à cristandade organizada o vasto poder de controlar as consciências humanas e dirigir suas condutas; e esse poder declinou ao ponto de desaparecer, por não outra razão que a dos homens pararem de pensar naqueles termos.

A persistência do nosso instável e inquieto sistema econômico não é devido ao poder acumulado do capital, a força da propaganda, ou qualquer outra força ou combinação de forças comumente alegadas como sua causa. É devido somente a certo conjunto de termos nos quais os homens pensam na oportunidade de trabalho; eles consideram esta oportunidade como algo a ser dado.

Pg. 149: Em vez de ver a absorção progressiva do poder social do Estado com a repugnância e ressentimento que naturalmente sente para com uma organização de criminosos profissionais, as massas tendem ao contrário, a encorajá-lo e glorificá-lo, na crença que estão de alguma forma identificadas com o Estado, e portanto, consentindo no seu indefinido engrandecimento, consentem em alguma coisa que possuem um bocado – e são, portanto, engrandecedoras de si mesmos.

[Nota minha: mesmo ponto desenvolvido por Ortega.]
Pg. 181-182: Deixando a incidência da exploração mostrar sua primeira impressão de mudança, ouviremos logo de uma fonte de ‘interessado clamor e sofisma’, que a ‘democracia’ está em perigo, e que as inigualáveis excelências da nossa civilização somente realizaram-se através de uma política de ‘severo individualismo’, levado nos termos de ‘competição livre’, enquanto de outras fontes ouvimos que as enormidades do laissez-faire aprisionaram os pobres, e obstruíram sua entrada numa Vida Mais Abundante.

Nota ao pé da página 182: De todos os termos impostores no nosso vocabulário político, estes são talvez o mais flagrante e impudente, e seu emprego talvez o mais infame. Vimos que nada remotamente parecendo-se com democracia jamais existiu aqui; nem nada ainda parecendo-se com a livre competição, porque o exercício da livre competição é incompatível com qualquer meio político, mesmo o mais frágil. Pela mesma razão, nenhuma política de grosseiro individualismo alguma vez existiu; o mais que o grosseiro individualismo fez para distinguir-se foi candidatar-se para o Estado como forma de vantagem econômica.

Pg. 183: o Estado não é, como se tivesse que ser, uma instituição social administrada de uma forma anti-social. Ele é uma instituição anti-social administrada na única forma que uma instituição anti-social pode ser administrada, e pelo tipo de pessoa que, na natureza das coisas, é melhor adaptada para esse serviço.

A moribunda decência do Estado.


22/10/84

Thomas Painde – Common Sense – The call to independence

Pg. 23: ‘a national debt is a national bond’.

‘Ele disse que estava perplexo para saber se ele foi feito para os tempos, ou se os tempos para ele’.

Pg 49: A sociedade é produzida por nossos desejos, e o governo por nossa perversidade. A primeira promove nossa felicidade positivamente unindo nossas forças, o segundo negativamente limitando nossos vícios. Quando a perversidade do governo passa para a sociedade, os homens começam a esconder-se (referindo-se à reconciliação com a Inglaterra): reconciliação e ruína estão relacionadas proximamente.

23/10 – O Comandante dos Marines chamou os mortos de Beirut de ‘sons of God’.


Herbert Spencer – The Man versus the State

Pg 33: ‘Bons corpos como boas mentes são indispensáveis para fazer bons cidadãos’. Sobre isso podemos dizer que no Brasil, pela extensão das doenças entre a pobreza, as doenças derivadas da catastrófica situação da saúde pública, o cidadão pobre é excluído pelo pior fascismo existente: o de ser mantido convalescente para não ser nada.

Analisando a desastrosa política habitacional dos governos municipais socialistas de 1880, Spencer diz no seu artigo Os Pecados dos Legisladores (que aumentaram as taxas de importação de madeira e materiais de construção frustrando as demandas) que na Guiana (citando fontes antropológicas) quando um doente invoca os poderes de um fetiche, e se o fetiche não lhe auxilia na recuperação, ele estrangula o fetiche. Com o Estado, onde supõe-se que os erros sejam reparados com o julgamento dos responsáveis, tudo fica como antes, porque o fetiche político funciona para mistificar as irresponsabilidades dos párias do Estado.

“Um departamento do governo é um filtro inverso: manda as coisas em cômputos claros e elas retornam enlameadas”.

Pg. 95: continuamente ocorre casos mostrando a resistência oficial para melhoramentos: para o Estado Maior da Armada quando foi proposto o uso do telégrafo a resposta foi: mas nós temos um bom sistema de sinalizadores.

[Conclusão minha: O Estado torna-se uma Igreja e pretende secularizar-se nos mesmos hábitos pela manutenção da inércia de sua burocracia].

Pg. 96: Em Edimburgo não houve casos de febre tifoide nas partes não drenadas da cidade, enquanto a febre foi fatal nas partes que o governo drenou. E em Windsor 87 viúvas e crianças morreram pelos mesmos socorros do governo.

[Observação minha: A miséria das massas, a fome e falta de condição das favelas, o atraso e superstição da pobreza não é resultado da ‘perversidade’ nem dos erros e fracassos do Estado, ao contrário, é o resultado de sua benevolência ambivalente junto com sua usurpação].

Pg. 113 – 114: ‘o pobre merecedor está entre aqueles que são taxados para suportar o pobre indigno. E como, sob a antiga Lei da Pobreza, o trabalhador diligente e previdente tinha que pagar para que o bem-pelo-nada não sofra, até que frequentemente vergue sobre este fardo extra e busque refúgio num asilo, como, no presente, os tributos sujeitos a impostos nas grandes cidades para todos os fins públicos alcançaram tal altura que ‘não podem ser excedidos sem infligir grandes danos nos pequenos comerciantes e artesãos, que já encontram dificuldades o suficiente para ficarem livres da infecção da pobreza’, de tal forma que em todos os casos, a política é tal que intensifica as dores daqueles que mais merecem comiseração. Os homens que são tão bondosos que não podem deixar a luta pela existência trazer aos desfavorecidos os sofrimentos consequentes de sua incapacidade ou inabilidade, são tão bondosos que podem, deliberadamente, fazer a luta pela existência pior para os merecedores, e infligi-los a si e suas crianças danos muito maiores que os danos materiais que devem suportar.

A citação entre parênteses do parágrafo anterior é de J. Chamberlain.

Pg. 114 : Os governos nascidos da agressão e por agressão, sempre continuam a trair sua natureza original com sua agressividade.

Pg. 125: negligenciando os meritórios e promovendo incapazes.

Pg. 127: se definirmos a primeira missão do Estado com a de defender cada indivíduo dos outros, então todas as outras ações do Estado provém da definição de proteger cada indivíduo dele mesmo – contra sua própria estupidez, sua própria indolência, precipitação ou defeito – sua própria incapacidade para fazer alguma coisa que deve ser feita.

Pg. 129: os homens públicos e funcionários gostam dos seus vizinhos mais do que deles mesmos! A filantropia dos funcionários estatais é mais forte que o egoísmo dos cidadãos!

Pg. 133: Em comum com as massas não educadas elas habitualmente veem cada fenômeno como envolvendo não mais que um antecedente e um consequente. Elas não se dão conta que cada fenômeno é um elo de uma infinita série – é o resultado de miríades de fenômenos precedentes, e terão uma participação na produção de miríades de fenômenos sucessórios. Por isso fazem vista grossa para o fato de que, perturbando cada cadeia natural da sequência, estão não somente modificando o resultado próximo da sucessão, mas todos os futuros resultados no qual este entra como causa parcial. A gênese serial de fenômenos e sua interação com cada série sobre outras séries produz uma complexidade totalmente além do alcance humano. Mesmo em casos simples isso acontece.

Pg. 138: um jovem mal-educado para qualquer profissão torna-se um bom oficial do exército. O ‘bobo da família’ facilmente encontra um lugar na Igreja, se ‘a família’ tiver boas relações.

Pg. 139: e assim também, um homem de capacidade frequentemente acha que, nos escritórios governamentais, a superioridade é um estorvo – que seus chefes odeiam ser incomodados com propostas de melhoramentos, e são ofendidos por suas críticas implícitas.

Outra característica do oficialismo é sua extravagância. Nos seus principais departamentos Exército, Marinha e Igreja, emprega muito mais oficiais que o necessitado, e paga para os inúteis exorbitantemente. Onde há governo há vilania, era o ditado de então.

Pg. 142: nas organizações estatais a corrupção é inevitável. Nas organizações comerciais, ela raramente aparece, e quando o faz, o instinto de auto-preservação logo providencia o remédio.

Que bons funcionários apareçam não surpreende: eles fazem parte das raridades possíveis das contingências humanas, e até podem eventualmente serem competentes, da mesma forma como o despotismo pode ter suas vantagens se tiver a sorte de possuir um bom déspota.

Pg. 153: A vida social como intensificação de desejos, isto é, como agregado deles que agilizam as ações individuais numa determinada direção.

Minha observação: a falácia do Estado pode ser descrita e entendida pelos argumentos alheios. Qualquer chefete da CRT é capaz de traçar longas exposições sobre o crescimento da empresa em termos de equipamentos. Esquecem, todavia, que esse ‘crescimento’ foi feito através da usurpação dos assinantes, e muito mais grave, exatamente pelo crescimento apregoado é que não se criou nenhuma indústria nacional de telecomunicações. Postular por uma indústria nacional, quase sempre encontra a resistência dos chefes num virar de cara, simplesmente porque para eles não se pode exigir algo que não são capazes. O desprezo dos burocratas pela indústria nacional remonta os anos 30, e só se explica por exercerem uma autoridade caudilhista totalmente incapacitada para a atividade industrial tecnológica. O mesmo se passa com componentes eletrônicos. Qualquer energúmeno executivo ou testa-de-ferro dos interesses multinacionais repete até a exaustão o argumento que o Brasil não tem mercado para a produção de componentes de alta qualidade. É outro tipo de mistificação, e no mais das vezes, procura encobrir a importação de componentes 3 a 5 vezes mais caros que o mercado internacional como forma de remessa de lucros. Se um país com as nossas dimensões, com uma taxa de natalidade como a nossa e com riquezas que acenam um horizonte de prosperidade para um modelo nacionalista não vale a pena fabricar componentes para suas necessidades e até para a competição no mercado internacional, como apregoam setores do sistema, então tudo não passa de mais uma mistificação para encobrir interesses imediatos, os mesmos que mais dia menos dia levarão à ruína as próprias multinacionais pelo excesso de ambição. O Estado tolhe toda a vida social, a sua espontaneidade criativa por uma cadeia sucessiva de legislação intrometida, casuísmos absolutistas de um Executivo ignorante, senão francamente incompetente.

[Escrevi isso em 1984, quando a Coreia, Taiwan e China eram não mais que bebês recém nascidos que sequer sabiam engatinhar neste mercado].

Pg. 174: A grande superstição política do passado foi a divindade dos reis. A grande superstição política do presente é o direito divino dos Parlamentos.

Pg. 186: O povo soberano reúne-se para apontar representantes, e assim cria um governo; o governo assim criado cria os direitos; e então, tendo criado os direitos, ele confere os direitos a membros separados do povo soberano pelo qual ele mesmo foi criado. Aqui temos uma maravilhosa peça de escamoteação política.

Pg. 209: A função do liberalismo no passado foi por um limite nos poderes do rei. A função do liberalismo no futuro será colocar um limite nos poderes do Parlamento.


Baron de Montesquieu — The Spirit of Laws

Principais enfoques de Montesquieu para a questão do poder e da força:
1) Não há uma solução universalmente aplicável. Só existem tipos de soluções. A reconciliação entre força e direito deve ser alcançada diferentemente em diferentes culturas.
2) A solução depende da configuração do espaço, tempo e tradição em cada país específico. Não é nem arbitrária nem acidental.
3) Mesmo a solução não é ideal. No melhor dos casos é uma aproximação.
4) A solução, apesar disso, não é permanente. Ela está sujeita a mudanças tanto por correção como por corrupção.
5) A solução deve ser derivada de uma análise científica dos fatos à nossa disposição. Tipos ideais: República – virtude; monarquia – honra; aristocracia – moderação; despotismo – medo.

Uma nação na escravidão trabalha mais para preservar do que para adquirir; uma nação livre mais para adquirir do que para preservar.

Não são as nações que não necessitam nada que perdem no comércio; são as que necessitam tudo. Não são os povos que tem suficiência mas os que estão mais necessitados que encontrarão vantagens em interromper todo o fluxo comercial”.

Pg. 149: Não há palavra que admite mais significações e causou mais variadas impressões na mente humana que a liberdade. Alguns consideram-na como os meios para depor uma pessoa que conferiram uma autoridade tirânica; outros para escolher um superior a quem estão obrigados a obedecer; outros ao direito de pegar em armas, e de serem por isso mesmo capazes de usar a violência; outros, enfim, pelo privilégio de serem governados por um de seus nativos e por suas próprias leis. Uma certa nação durante um longo tempo pensava que a liberdade consistia no privilégio de usar um longo bigode.
E cita no pé da página: os russos não podiam usá-lo sem que o Czar Pedro mandasse-os cortar.

Pg. 160: Para impedir que o poder executivo seja capaz de oprimir, é necessário que o exército que lhe incumbe seja constituído de pessoas do povo, e tenha o mesmo espírito do povo, como foi o caso de Roma até a época de Marius. Para obter esse fim, só há duas maneiras, a primeira que as pessoas empregadas no exército tenham suficiente propriedade para responder por suas condutas aos seus membros, e a segunda que sejam alistados somente por um ano, como era o costume em Roma, ou se for um exército regular, o poder legislativo deve ter o direito de desmantelá-lo tão logo lhe agrade; os soldados devem viver como o resto do povo; e nenhum campo separado, barracas ou fortalezas devem ser erigidos.

Pg. 221 – Livro XIV: O povo é mais vigoroso nos climas frios.... Esta superioridade de força deve produzir vários efeitos, a princípio uma grande audácia, isto é, mais coragem; um grande senso de superioridade, isto é, menos desejo de vingança; uma grande opinião de segurança, isto é, mais franqueza, menos suspeita, diplomacia e clareza (precisão). Em resumo, isso deve ser o produto de muitas têmperas diferentes. Coloque um homem num local fechado e morno e pelas razões acima ele sentirá um grande desvanecimento. Se nessas circunstâncias você propor um audacioso empreendimento a ele, acredito que o encontrarás muito pouco disposto a fazê-lo. Sua presente fraqueza lhe prostrará em desânimo; ele ficará temeroso de tudo, ficando num estado de incapacidade total. Os habitantes de climas quentes são como os homens velhos, timoratos. Se refletirmos nas últimas guerras (a da sucessão da monarquia na Espanha), que são mais recentes em nossa memória, e nas quais podemos distinguir alguns efeitos particulares que nos escapam numa grande distância do tempo, encontraremos que o povo do norte, transplantado para as regiões do sul, não consegue a mesma performance que os locais, os quais, lutando no seu próprio clima, possuem seu vigor e coragem totais.

[Segue detalhes sobre a observação da língua dos carneiros e suas pupilas enormes. Depois sobre a contração e relação das fibras nervosas, que aguçam mais ou menos a sensibilidade. Confessa que esteve na Ópera na Itália e Inglaterra, e enquanto na primeira sentia + elevada e viva, na segunda sentia a Ópera mais fria e fleumática. A mesma coisa em relação à dor, dizendo que é preciso esfolar um moscovita vivo para que ele sinta dor. E observa sobre o sexo: “nos climas do norte raramente a parte sexual de um animal tem poder de sentir-se. Nos climas temperados, o sexo, atendido por mil acessórios, dotado para agradar por coisas que tem a aparência em primeiro lugar, embora não a realidade desta paixão. Em climas quente é mais ou menos igual pelo seu próprio fim, ele é a única causa da felicidade, e é a vida em si mesma”].

Pg. 224: Se viajamos para o Norte, encontramos pessoas com poucos vícios, muitas virtudes, e um grande compartilhamento da franqueza e sinceridade. Se nos dirigirmos perto do Sul, nos sentimos inteiramente removidos da margem de moralidade; ali as mais fortes paixões produzem todos os tipos de crimes, cada homem empenhado, deixemos os meios serem o que querem, indulgir seus desordenados desejos. Em climas temperados encontramos habitantes inconstantes em suas maneiras, bem como em seus vícios e virtudes; o clima não tem uma qualidade determinada para fixá-los.

O calor do clima pode ser tão excessivo a ponto de privar o corpo de todo vigor e força. Então o desvanecimento é comunicado à mente; não há curiosidade, nem iniciativa, nem generosidade de sentimentos; as inclinações são todas passivas; a indolência constitui a mais alta felicidade; escassamente uma punição é tão severa como um emprego que exija esforço mental; e a escravidão é mais suportável que a força e o vigor da mente necessários à conduta humana.

Pg. 227: ... nações preguiçosas são geralmente orgulhosas. Agora o efeito volta-se contra a causa, e a preguiça é destruída pelo orgulho.

DAS BOBAGENS DE MONTESQUIEU. Pg. 238: “É difícil acreditar que Deus, que é um Ser sensato, colocaria uma alma, especialmente uma boa alma, num tipo de corpo tão negro e feio”. E antes comenta: “essas criaturas são todas pretas, e com um nariz tão chato que elas escassamente podem ser objetos de compaixão”. E na página 239: “É impossível para nós supor que aquelas criaturas sejam homens, porque, admitindo que o sejam, surge a suspeita de que nós mesmos não somos Cristãos.”

Um caso interessante de deboche na pg. 242: Se um patrão (senhor) debocha do escravo de sua esposa, o escravo e sua esposa terão suas liberdades restauradas. (Entre os Lombardos).

Pg. 264 – Livro XVII: em seu diferença entre as Nações no quesito da coragem, observa que “grande calor enerva a força e coragem dos homens, e que em clima frio, eles tem um certo vigor de corpo e mente, o qual fornece-os paciência e intrepidez, e os qualifica para árduos empreendimentos. Assim no norte da China o povo é mais corajoso que o do sul, e no sul da Coreia, o povo é menos bravo que o do norte segundo o relato dos viajantes.

Pg. 272: Os países não são cultivados na proporção de sua fertilidade, mas na proporção de suas liberdades.

[Minha observação – 8/11: No meio das organizações estatais, o esporte funciona como única iniciativa organizacional em que os membros e participantes chegam ao fim em si, a completa realização dos fins propostos. É por isso talvez que toda organização estatal esmera-se em atividades esportivas].


Petr A. Kropotkin – Selected Writings on Anarchism and Revolution

Pg. 23: Muito triste seria o futuro da revolução se ela só puder triunfar pelo terror.

Pg. 212: os socialistas alemães advogaram que o Estado deveria tomar posse de toda a riqueza acumulada e dá-la a associações de trabalhadores e, posteriormente, deveriam organizar a produção e a troca, e genericamente observar a vida e as atividades da sociedade. Para eles, os socialistas da raça latina, fortes em experiências revolucionárias, replicaram que seria um milagre se este estado existisse, e se de fato existir, seria seguramente a pior das tiranias. Este ideal do todo poderoso e beneficente estado é meramente uma cópia do passado, disseram; e confrontaram com um novo ideal: an-arquia, isto é, a total abolição do Estado, e a organização social do simples ao complexo por meio de uma federação livre de grupos populares de produtores e consumidores (A Comuna de Paris – 1880)

Pg. 127: Mas em 1871, o povo parisiense que derrubou tantos governos, estava somente fazendo suas primeiras tentativas de revoltar-se contra o próprio sistema governamental; consequentemente, eles deixaram-se levar pelo fetiche de governo e estabelecer o seu próprio.

O resultado é assunto histórico. Paris mandou seus filhos devotos à Prefeitura. Lá, protegidos no meio de pilhas de papel velho, obrigados a governar quando seus instintos favoreciam a estar e agir no meio do povo, obrigados a discutir quando era necessária a ação, comprometer-se quando o não-compromisso era a melhor política, e finalmente, perder a inspiração que somente procede do contínuo contato com as massas, eles encontraram-se reduzidos a impotência. Ficando paralisados pela separação do povo – o centro revolucionário de luz e calor – eles mesmos paralisaram a iniciativa popular.


Michael Bakunin – Selected Writings

Você quer evitar que os homens oprimam os outros para sempre? Arranje as coisas de tal forma que eles nunca terá a oportunidade. Você quer que eles respeitem a liberdade, direitos e caracteres humanos de seus semelhantes? Arranje as coisas de tal forma que eles sejam compelidos a respeitá-las – compelidos não pela vontade ou opressão de outros homens, não pela repressão do Estado e legislação, as quais são necessariamente representadas e implementadas pelos homens, mas pela real organização do ambiente social, assim constituído tal que, enquanto deixando cada homem desfrutando a mais alta liberdade possível, não dá a ninguém o poder de colocar-se acima dos outros ou de dominá-los, exceto através da influência natural de suas próprias qualidades intelectuais e morais, a qual nunca deve ser permitida a ponto de converter-se num direito ou ser resguardada por qualquer tipo de instituição política.

A mesma tendência subjaz em todas as instituições políticas, mesmo naquelas que são mais democráticas, são fundadas sobre a mais ampla aplicação do sufrágio universal, e começam, como frequentemente ocorre no princípio, dando o poder ao mais valoroso, mais liberal dos homens, aqueles mais dedicados ao bem comum e mais capazes de servi-lo. Precisamente por causa de seu inevitável efeito de transformar o natural e, por isso, legitimar a influência desses homens num direito, seu resultado final é produzir uma desmoralização e um mal duplos.

Primeiro, seu efeito imediato e direto é transformar os homens realmente livres no alegado livre-cidadão que poderá continuar a manter a ilusão que são todos homens iguais, mas os quais estão de fato compelidos a obedecer os representantes da lei de agora em diante – de obedecer homens. E mesmo que esses homens sejam realmente seus iguais do ponto de vista econômico e social, não obstante em termos políticos eles são líderes, e sobre pretexto do bem estar público e da vontade popular, expressada não apenas por aclamação unânime, mas pelo voto da maioria, todos os cidadãos devem a ele obediência passiva, entre os limites determinados pela lei, para ser certos, ainda que a experiência diária mostra o quanto elástico são esses limites para o homem no comando, e quão rígido para o cidadão que deseja reivindicar o direito de desobediência legal.

Meu ponto de vista pessoal é que tanto quanto os cidadãos obedecem oficiais representativos da lei e os líderes impostos sobre eles pelo Estado, mesmo quando esses líderes podem estar sancionados pelo sufrágio universal, eles são escravos.

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O que é a liberdade? O que é a escravidão? A liberdade humana consiste em rebelião contra todas as leis? Não, tanto quanto elas são leis naturais econômicas e leis sociais não impostas de cima, mas inerentes as coisas, relações e situações que expressam natural crescimento. Sim, tanto quanto elas são leis políticas e jurídicas, impostas por homens sobre homens, seja por direito ou força superior, violentamente, ou nome de alguma doutrina religiosa ou metafísica, hipocritamente, ou pela virtude desta ficção mentirosa democrática chamada sufrágio universal.

É impossível para o homem rebelar-se contra as leis da natureza, pela simples razão que ele mesmo é um produto da natureza e existe somente em virtude dessas leis. Rebelião será entretanto um ato de absurdidade de sua própria parte, uma rebelião contra si mesmo, um verdadeiro suicídio. E mesmo quando os homens mascaram suas mentes para destruir-se, e mesmo quando carregam sua decisão, eles estão ainda agindo de acordo com aquelas leis naturais das quais nada podem separá-lo – nem pensamento ou vontade, desespero ou outra paixão, nem mesmo a vida ou a morte. Eles mesmos são nada, exceto natureza; seus sentimentos mais sublimes ou monstruosos, os mais pervertidos, egoístas ou heroicos resolvem sua vontade, a mais abstrata, teológica ou lunática de seus pensamentos, todos são nada mais ou menos que sua natureza. A natureza encobre-os e satura-os; ela constitui sua inteira existência. Como poderia livrar-se da natureza?

É notável que eles pudessem ter concebido a idéia de livrar-se da natureza. Desde que esta separação é totalmente impossível, como pode o homem até mesmo sonhá-la? Onde esse monstruoso sonho se originou? Onde senão na Teologia, a ciência do Nada, e mais tarde na Metafísica, a ciência da impossível reconciliação do Nada com a realidade.

A Teologia não deve ser confundida com a religião, ou o espírito teológico com sentimentos religiosos. A religião nasce da vida animal. É a expressão direta da absoluta dependência envolvendo todas as criaturas deste mundo com o Grande Todo, a Natureza, a infinita Totalidade das coisas e criaturas reais.


Kropotkin – Revolutionary Pamphets

O príncipe Kropotkin foi uma figura lendária do anarquismo. Talvez o anarquista mais evangelista do final do século XIX. Achava que o fim último do anarquismo seria o comunismo a partir da abolição do estado, por isso foi considerado o fundador do anarcocoumunismo. A revolução russa matou suas esperanças e liquidou com sua própria vida.

Pg. 20 – O conflito entre Marxistas e Bakunistas não foi um assunto pessoal. Foi o conflito necessário entre os princípios do federalismo e o da centralização, da comuna livre e o do domínio paternalista do estado, a ação livre das massas de cidadãos e o melhoramento das condições de existência capitalistas através da legislação, um conflito entre o espírito latino e o geist Alemão, o qual depois da derrota da França no campo de batalha reivindicou a supremacia na ciência, política, filosofia e socialismo também, representando sua própria concepção de socialismo como científico, enquanto as outras interpretações são descritas como “utópicas”.

Pg. 109: A condição da manutenção da vida é sua expansão.

Pg. 130: Não há mais dúvidas sobre a possibilidade de riqueza na sociedade comunista relativamente à nossa presente situação em maquinarias e equipamentos. Dúvidas somente aparecem quando a questão em debate é se a sociedade pode existir com as ações dos homens sendo sujeitas ao controle do Estado; ou então, para alcançar bem-estar não é importante para as comunidades europeias sacrificar a pequena liberdade pessoal que elas reconquistaram ao custo de tantos sacrifícios neste século? Uma parte dos socialistas acredita que é impossível obter este resultado sem sacrificar a liberdade pessoal no altar do Estado. Outra parte, a qual pertencemos, acredita, ao contrário, que é somente pela abolição do Estado, pela conquista da perfeita liberdade pelo indivíduo, por livre concordância, associação, e absoluta federação livre que podemos alcançar o comunismo – a posse em comum de toda nossa herança social, e a produção em comum de todas as riquezas.

Esta é a questão que sobrepesa todas as outras no presente, e o socialismo deve resolvê-la, sob pena de ver todos os seus esforços ameaçados e todo seu ulterior desenvolvimento paralisado.

Pg. 167: O maior obstáculo para a manutenção de um certo nível moral em nossas presentes sociedades assenta-se na ausência de igualdade social. Sem igualdade real, o senso de justiça não pode ser universalmente desenvolvido, porque justiça implica no reconhecimento da igualdade.

Pg. 189: Durante uma revolução novas formas de vida sempre germinarão das ruínas das velhas formas, mas nenhum governo será capaz de encontrar sua expressão tão logo estas formas não tomam a modelagem definitiva durante o trabalho inerente de reconstrução, as quais devem ocorrer em milhares de fatos ao mesmo tempo. É impossível legislar para o futuro. Tudo o que podemos fazer é adivinhar vagamente suas tendências essenciais e limpar o caminho para elas.

Pg. 187: A missão da Igreja foi a de manter o povo em escravidão intelectual. A missão do Estado foi a de mantê-lo, meio faminto, em escravidão econômica.


A History of Cynicism – From Diogenes to the 6th Century AD. – Donald R. Dudley 1967

Hipobatus – Sosicrates – Pamphila
Cucullus non facit monachum – O hábito não faz o monge.

Antisthenes – “Eu acho cavalheiros, que a pobreza e a riqueza humana não deve ser buscada nas suas propriedades, mas nas suas almas”.

Meu:
O que foi inaugurado pela televisão de novo no universo? A Idade da Besteira e o desvanecimento da produção cômica e artística pela sua substituição total. Imagine-se vendo a maioria dos video-tapes de hoje daqui a 200, 300 anos! O quanto a futura geração não vai rolar com a ignorância dos presentes! A humanidade sequer desconfia que todos os seus modos de pensar não são mais do que uma institucionalização de farsas que lentamente a história vai descartando, e o que descarta, converte o lixo em riso. Certamente a grande comédia do futuro será o besteirol do presente. [Nota final: falando em comédia lembrei da chanchada com pornô e sem pornô, totalmente enterrada]

Minha em 3/1/85:
Quando o falar em honestidade se transforma em assunto de ingênuos, já pode-se deduzir os rumos que o Estado vai tomando.
Não há mau humorado que não esconde uma impostura.


C.G. Jung – The Undiscovery Self

Pg. 103 O Estado das massas não tem intenção de promover o entendimento mútuo e o relacionamento de homem para homem, ele luta, de preferência para a atomização e isolamento psíquico do indivíduo. Quanto menos relacionados estão os indivíduos, mais consolidado se torna o Estado e vice-versa.

Pg. 104-105: O perfeito (indivíduo) não necessita dos outros, mas o fraco sim, porque procura apoio e não confronta seu companheiro com qualquer coisa que possa forçá-lo a uma posição inferior e mesmo humilhá-lo. Esta humilhação pode ocorrer facilmente onde o idealismo tem uma ação predominante.


François Châtelet — Da Anarquia – Texto em Revista Vuelta nr. 98, pg. 55 – janeiro de 1985

É lugar comum do pensamento político, raivoso ou banal, afirmar que toda coletividade mais ou menos numerosa requer para sobreviver, para preservar sua segurança e aumentar sua fortuna, um chefe (ou um governo) do qual emanem as decisões, e um conjunto de enunciados necessários – as leis – que garantem a correta ordem social. Seja que se reclame da Razão dos filósofos ou de alguma Revelação divina, ou então se fundamente na experiência cotidiana ou no cálculo das Ciências experimentais, se toma como evidente que é necessário um princípio que tenha poder para unificar a multiplicidade. Esta ideia está tão arraigada em nós que, no mais das vezes, os discursos políticos mais profundos dedicam toda a sua energia em debater questões tais como a de saber quem deveria ocupar o comando e quais deveriam ser as leis mais adequadas para garantir a paz no interior e o equilíbrio de forças no exterior. Hoje em dia, a política dos políticos nos apresenta como essencial o debate que acomete a eleição entre dois regimes – um que se pretende liberal e o outro que se pretende socialista, quando tanto um como o outro estão submetidos ao mesmo axioma da produtividade do Capital – e nos apresenta como fundamental a escolha entre dois modelos, o norte-americano e o soviético, quanto um e outro se encarnam em dois Estados que, com meios diferentes, se afanam em quadricular o espaço mundial em uma rede de fortificações militares, de satélites de comunicação, de instituições tecnocráticas e de polícia em todas os âmbitos.

Não é o momento aqui e agora de reavivar uma tradição muito antiga – em nossa civilização se remonta, conforme os documentos que nos sobraram, aos cínicos e aos sofistas gregos – que questionam os fundamentos deste princípio unificante. Que se necessite de alguma unidade em uma coletividade não deixa dúvida alguma. Mas por que sustentar que esta (unidade) deva provir necessariamente de um princípio exterior e superior? Por que não convir, a título contratual e, por conseguinte provisório, que tais indivíduos, tais microgrupos, que mantém de fato relações de interesse, de costume, de desejo ou vontade, decidam simplesmente formalizar estas relações em alianças diversas que permitam intercâmbios (de bens, de serviços ou de ideias) e que não alienem de modo algum a liberdade das partes contratantes por aquilo que não é o objeto do contrato?

Por que remeter a decisão à um homem (ou a um governo) — ainda que seja por um espaço de tempo limitado —, quando existem múltiplas decisões para tomar e que, para cada uma delas é possível conceber uma instituição precária encarregada de tomá-la e aplicá-la e logo desaparecer? Por que não desacelerar até o extremo no espaço e no tempo este insubstituível descobrimento do pensamento democrático que é a pluralidade de poderes? Por que sufocar a sociedade com enunciados necessários quando, a maior parte das vezes, sendo respeitada a igualdade de todos diante da instância que julga publicamente, o importante é poder promulgar regras flexíveis que permitam levar em conta a singularidade de cada caso?

Em poucas palavras, por que não pensar seriamente em colocar em questão este princípio, armadilha, herança da teologia, da sacralidade do Estado? O poder do Estado está hoje em dia inchado por uma lógica tanto mais espantosa quanto detém a sua disposição meios científicos de coerção e incitação. E o sentido original da an-arquia não diz outra coisa que isto: tentemos conceber a organização social de outro modo e imaginar esta organização com produto sempre cambiante, sempre provisório, dos desejos e das vontades daqueles que constituem a fonte de todo poder: os indivíduos, diferentes todos e tão semelhantes.


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