terça-feira, 28 de junho de 2022

Fragmentos 39

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt — Como as Democracias Morrem

Prefácio
Introdução
1. Alianças fatídicas
2. Guardiões da América
3. A grande abdicação republicana
4. Subvertendo a democracia
5. As grades de proteção da democracia
6. As regras não escritas da política norte-americana
7. A desintegração
8. Trump contra as grades de proteção
9. Salvando a democracia


Um livro que vale a pena ler para conhecer o processo de erosão democrática de cima para baixo, a partir da tomada de poder de uma figura política polêmica e crítica contumaz da situação existente e sua capacidade de destruir os obstáculos institucionais que a rodeiam para se perpetuar no poder.

Levitsky cita um grande número de casos, seja na América Latina, seja na Europa, do nazifascismo e também os acontecimentos que tornaram os Estados Unidos vulneráveis às tentativas de subverter a ordem existente com a ascensão meteórica – e fora da tradição republicana – de Donald Trump.

O problema brasileiro, no entanto, permanece ignorado: como fazer com que um país de democracia estraçalhada pelo populismo e pelo crime organizado dentro das instituições estatais possa se regenerar?

A questão da democratização dos países que participaram da Primavera Árabe é mencionada apenas de passagem, sem uma análise mais detalhada, servindo de constatação das dificuldades que os povos enfrentam para criar instituições democráticas capazes de superar os dilemas existentes.

Mas isso é pouco: a questão democrática deve ser vista dentro da perspectiva das duas vias: a de uma democracia que se perde em autocracia, e de uma autocracia que não consegue chegar a uma democracia.

A constelação ou o repertório de degradação moral impostos a um povo por um sistema autocrático ou de democracia falseada são tais que a experiência comprova a cristalização de uma mentalidade caótica destituída dos princípios morais condutores de uma vida pública sadia, exatamente pelo processo de erosão gradativo que torna o brasileiro disposto a investir seu voto nos piores elementos do jogo político.

Este fator cultural, que mereceria estudos mais detalhados, não entra na esfera do livro. Por exemplo, ao analisar por que o povo russo ou o brasileiro tende a apoiar autocratas, precisaria desvendar os fatos psicossociais relacionados aos atavismos que a estrangulação das liberdades criaram ao longo dos séculos.

Um trabalho que ultrapassa a abordagem das fontes convencionais, exigindo experiências diagonais dentro de conhecimentos diferentes e especialmente literários bem pesados dentro do arcabouço sociológico e político.

No Brasil esta é a deficiência mais acentuada dentro do pensamento acadêmico: não há uma correlação entre nossa literatura e os estudos e pesquisa históricos, até porque nossa literatura é fracamente conhecida além do mainstream que o próprio sistema selecionou para se defender enaltecendo-a.

Quantos podem dizer que conhecem o sistema brasileiro? Todo intelectual garante conhecer de fio a pavio, mas minha experiência comprova que é preciso estar situado em uma posição social independente do estado para entender a real dimensão de nossa tragédia institucional e não social como se alega, pois esta última é consequência da primeira e não a causa. Com a inteligentsia (con)fundida com o próprio estado, não vejo como escapar da armadilha viral que esta dependência produz no conhecimento acadêmico.

Portanto, não temos soluções para a regeneração institucional.

Isto não impede que se fique alerta para o fenômeno da subversão da ordem democrática, assunto que Levistky apresenta de forma lúcida e clara.


Notas de leitura:

1 – “Baseados no trabalho de Juan Linz, – [nascido em Weimar, na Alemanha, e criado em meio à guerra civil na Espanha, Linz conheceu bem até demais os perigos de perder a democracia. Como professor em Yale, ele dedicou grande parte de sua carreira a tentar entender como e por que as democracias morrem em livro de 1978], – desenvolvemos um conjunto de quatro sinais de alerta que podem nos ajudar a reconhecer um autoritário. Nós devemos nos preocupar quando políticos: 1) rejeitam, em palavras ou ações, as regras democráticas do jogo; 2) negam a legitimidade de oponentes; 3) toleram e encorajam a violência; e 4) dão indicações de disposição para restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia”.

2 – “Eles dizem aos eleitores que o sistema não é uma democracia de verdade, mas algo que foi sequestrado, corrompido ou fraudulentamente manipulado pela elite”.

3 – "O primeiro sinal é um compromisso débil com as regras do jogo democrático. Trump caiu nesse parâmetro quando questionou a legitimidade do processo eleitoral e deixou no ar a sugestão sem precedentes de que poderia não aceitar os resultados da eleição de 2016 [O livro foi escrito antes da eleição de 2020 e da invasão do Capitólio]. Os níveis de fraude eleitoral nos Estados Unidos são muito baixos e, como as eleições são administradas por governos estaduais e locais, é efetivamente impossível coordenar fraudes eleitorais em âmbito nacional. Porém, ao longo de toda a campanha de 2016, Trump insistiu que milhões de imigrantes ilegais e de pessoas mortas nos cadastros eleitorais seriam mobilizados para votar em [Hillary] Clinton. Durante meses, seu site de campanha declarou: “Me ajudem a impedir que a desonesta da Hillary fraude essa eleição!” Em agosto, Trump disse a Sean Hannity: “É melhor nós termos cuidado, porque essa eleição vai ser fraudada … Espero que os republicanos estejam vigiando de perto, ou eles vão nos tirar a eleição.” Em outubro, ele postou no Twitter: “É claro que há fraude em larga escala no cadastramento antes e no dia da eleição!” No último debate presidencial, Trump se recusou a dizer se aceitaria ou não o resultado da eleição se fosse derrotado”.

4 – “Segundo o historiador Douglas Brinkley, nenhum candidato presidencial de peso havia lançado esse tipo de dúvida sobre o sistema democrático desde 1860. Só durante o período imediatamente anterior à Guerra Civil foi que vimos políticos de expressão”.

5 – “A segunda categoria em nossa prova dos nove é a negação da legitimidade dos oponentes. Políticos autoritários descrevem seus rivais como criminosos, subversivos, impatrióticos ou como uma ameaça à segurança nacional ou ao modo de vida existente. Trump também está em consonância com este critério”. No Brasil esta conclusão conduz à ambivalência: a política hoje está comandada por rivais criminosos, uma vez que ela se tornou um consórcio do crime organizado na estrutura do federalismo.

6 – O terceiro critério é tolerância ou encorajamento à violência. A violência sectária é com grande frequência um elemento precursor de colapsos democráticos.

7 – As tradições que sustentam as instituições democráticas americanas estão se desintegrando, abrindo um vazio desconcertante entre como nosso sistema político funciona e as expectativas há muito arraigadas de como ele deve funcionar.

8 – “Se, 25 anos atrás, alguém lhe descrevesse um país no qual candidatos ameaçam botar seus rivais na cadeia, oponentes políticos acusam o governo de fraudar resultados eleitorais ou de estabelecer uma ditadura e partidos usam suas maiorias legislativas para o impeachment de presidentes e usurpação de cadeiras da Suprema Corte, você pensaria no Equador ou na Romênia. Provavelmente, não teria pensado nos Estados Unidos”.

9 – “Considere essa descoberta extraordinária: nos anos 1960, os cientistas políticos perguntavam aos norte-americanos como eles se sentiriam se seu filho ou filha se casasse com alguém que se identificasse com outro partido político; 4% dos democratas e 5% dos republicanos disseram que ficariam “descontentes”. Em 2010, em contraste, 33% dos democratas e 49% dos republicanos responderam que ficariam “um pouco ou muito infelizes” diante da perspectiva de um casamento interpartidário. Ser democrata ou republicano se tornou não apenas uma questão de filiação partidária, mas uma identidade. Uma pesquisa de 2016 conduzida pela Pew Foundation revelou que 49% dos republicanos e 55% dos democratas dizem que o outro partido lhes “dá medo”. Entre os norte-americanos politicamente engajados, os números são ainda maiores – 70% dos democratas e 62% dos republicanos dizem que vivem com medo do outro partido”.

Bizarro. Prova que o mundo caminha para o sectarismo, aliás já apontado incansavelmente por mim no confronto do bolsonarismo com o lulopetismo.

10 – “O movimento pelos direitos civis, que culminou com a Lei dos Direitos Civis em 1964 e a Lei do Direito de Voto em 1965, deu fim a esse arranjo partidário. Não só ele finalmente democratizou o Sul, emancipando os negros e acabando com o domínio de um único partido, mas acelerou um realinhamento em longo prazo do sistema partidário cujas consequências estão se desdobrando ainda hoje. Seria a Lei dos Direitos Civis – que o presidente democrata Lyndon Johnson abraçou e o candidato republicano de 1964, Barry Goldwater, combateu – que definiria os democratas como o partido dos direitos civis e os republicanos como o partido do status quo racial”.

Vale como argumento contra a direita naftalina de que a emancipação dos negros se deve aos republicanos, devido ao passado racista dos democratas do sul.

11 – Donald Trump exibiu claros instintos autoritários durante o seu primeiro ano de mandato. No capítulo 4, apresentamos três estratégias através das quais autoritários eleitos buscam consolidar o poder: capturar os árbitros, tirar da partida importantes jogadores do time adversário e reescrever as regras para inverter a situação de jogo contra os oponentes. Trump tentou todas as três”.

12 – “Outro fator que afeta o destino da nossa democracia é a opinião pública. Se não puderem apelar aos militares nem organizar violência em larga escala, autoritários em potencial terão que descobrir outros meios de persuadir aliados a segui-los e de fazer críticos recuarem ou desistirem. O apoio público é uma ferramenta útil no que diz respeito a isso. Quando um líder eleito desfruta, digamos, uma taxa de aprovação de 70%, os críticos trocam de camisa e aderem, a cobertura de mídia se suaviza, os juízes são mais relutantes em tomar decisões contra o governo, e mesmo os políticos rivais, preocupados com a perspectiva de que fazer oposição estridente possa isolá-los, mantêm a cabeça abaixada. Em contraste, quando a taxa de aprovação é baixa, a mídia e a oposição ficam mais atrevidas, juízes têm a ousadia de enfrentar com destemor o presidente, e aliados começam a dissentir. Fujimori, Chávez e Erdoğan tinham imenso apoio popular quando lançaram seus ataques contra as instituições democráticas”.

É fato. O coletivo exerce uma influência inconsciente sobre o comportamento de rebanho.

13 – “Como os valores sociais mudam ao longo do tempo, um grau de violação presidencial de normas é inevitável – até desejável. Contudo, as violações de normas de Donald Trump em seu primeiro ano de mandato diferem de maneira fundamental daquelas de seus predecessores. Em primeiro lugar, ele foi um violador em série de normas. Nunca antes um presidente desdenhou tantas regras não escritas em tão pouco tempo”.

Uma paulada e tanto para quem conhece as ações presidenciais americanas em minúcias.

14 – Os insultos públicos do presidente Trump contra a mídia e até contra jornalistas em particular não têm precedentes na história moderna dos Estados Unidos. Ele disse que a mídia estava “entre os seres humanos mais desonestos do planeta” e acusou repetidas vezes veículos como o New York Times, o Washington Post e a CNN de mentir ou distribuir “fake news”. Trump não esteve imune a ataques pessoais. Em junho de 2017, ele foi atrás da apresentadora de televisão Mika Brzezinski e de seu coapresentador Joe Scarborough numa tempestade de tuítes singularmente cáusticos ...

Mesmo Richard Nixon, que em particular dizia que a mídia era “o inimigo”, nunca fez esse tipo de ataque. Para encontramos comportamentos semelhantes nesse hemisfério, é preciso olhar para Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela ou para Rafael Correa no Equador”.

A direita detesta esse tipo de correlação interideológica

15 – “As normas são as grades flexíveis de proteção da democracia; quando elas param de funcionar, a zona de comportamentos políticos aceitáveis se expande, dando origem a discursos e ações que podem pôr a democracia em perigo. Comportamentos que outrora foram considerados impensáveis na política norte-americana estão se tornando pensáveis. Mesmo que Donald Trump não ponha abaixo as grades de proteção da nossa democracia constitucional, ele aumentou a probabilidade de que um futuro presidente o faça”.

16 – “Este enredo cruel salienta a lição central deste livro: quando a democracia norte-americana funcionou, ela se baseou em duas normas que nós muitas vezes tomamos como naturais – tolerância mútua e reserva institucional. Tratar rivais como concorrentes legítimos e subutilizar prerrogativas institucionais próprias no espírito do jogo limpo são regras não escritas na Constituição dos Estados Unidos. Sem elas, contudo, nosso sistema de freios e contrapesos não vai operar como esperamos”.

Esta pode ser considerada a ideia central do livro. A seguir, Levitsky faz um bom resumo dos erros da oposição venezuelana:

17 – “Foi isso que aconteceu na Venezuela de Hugo Chávez. Embora os primeiros poucos anos de Chávez na presidência tenham sido democráticos, os opositores se apavoraram com seu discurso populista. Temerosos de que Chávez fosse guiar a Venezuela para um socialismo ao estilo Cuba, eles tentaram removê-lo preventivamente – e por quaisquer meios que se fizessem necessários. Em abril de 2002, os líderes da oposição apoiaram um golpe de Estado, o qual não apenas fracassou como acabou com sua imagem de democratas. Não dissuadida, a oposição lançou uma greve geral em dezembro de 2002, tentando paralisar o país até que Chávez renunciasse. A greve durou dois meses, custou à Venezuela um montante estimado em 4,5 bilhões de dólares e, no fim das contas, fracassou. As forças anti-Chávez boicotaram então as eleições legislativas de 2005, mas isso apenas permitiu que os chavistas conquistassem o controle do Congresso. Em suma, as três estratégias saíram pela culatra. Elas não só falharam em remover Chávez, mas desgastaram o apoio público da oposição, permitiram a Chávez marcar seus rivais como antidemocráticos e deram ao governo uma desculpa para expurgar o Exército, a polícia e os tribunais, prender ou exilar dissidentes e fechar espaços de mídia independentes. Enfraquecida e desacreditada, a oposição nada pôde fazer para evitar a decadência subsequente do regime rumo ao autoritarismo”.

18 – “Se comparamos nossa situação presente com crises democráticas em outras partes do mundo e em outros momentos da história, torna-se claro que os Estados Unidos não são tão diferentes de outras nações. Nosso sistema constitucional, embora mais antigo e mais robusto do que qualquer outro na história, é vulnerável às mesmas patologias que mataram a democracia em outros lugares. Em última análise, portanto, a democracia norte-americana depende de nós – os cidadãos dos Estados Unidos. Nenhum líder político isoladamente pode acabar com a democracia; nenhum líder sozinho pode resgatar uma democracia, tampouco. A democracia é um empreendimento compartilhado. Seu destino depende de todos nós”.


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