com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo
1921
91) No congresso em julho do ano anterior, a Internacional Comunista fez sua escolha, articulada em 21 teses peremptórias como pregos cravados no caixão da unidade proletária: para poder permanecer na Internacional, os italianos precisam mudar o nome do partido e repudiar como contrarrevolucionários todos os companheiros de luta que acreditam no socialismo, mas não na revolução. O problema é que na Itália, após o fracasso da ocupação das fábricas, Bombacci e seus companheiros, a essa altura, são os únicos que acreditam na revolução.
92) Na manhã do dia 16, toma a palavra Christo Kabakčiev, delegado da Internacional. Após ajeitar a gravata-borboleta e os óculos redondos de míope, o comunista búlgaro berrou seu ultimato: não há mais tempo a perder, a situação é revolucionária, portanto, qualquer um que a atrapalhe ao lado de reformistas fracos é um traidor. Por isso, a Comintern de Moscou expulsará quem votar a moção unitária dos maximalistas. Bombacci e os comunistas o aplaudiram enquanto, em todos os outros setores do teatro, explodiam gritos sarcásticos: “Grande excomunhão! Viva o Papa! Viva o Papachieff! Não somos servos, não queremos legados papais!” Enfim, um circo equestre. Com três picadeiros.
Durante todo o dia 17, a polêmica prosseguiu em um clima turbulento entre reformistas e revolucionários, unitários e divisionistas, intransigentes de direita e de esquerda, políticos e sindicalistas.
93) No dia anterior, enquanto Giacomo Matteotti era perseguido pelos fascistas nas ruas de Ferrara, no Teatro Manzoni de Livorno o líder comunista Amadeo Bordiga subia ao palco do congresso e, com o costumeiro tom gélido, desdenhoso, ao estilo de toda a sua batalha, ordenava que os delegados da fração comunista abandonassem a sala.
Os comunistas, segundo os relatos, saíram entoando “A Internacional” e foram para um segundo teatro, o San Marco, a poucas centenas de metros, onde fundaram o Partido Comunista da Itália.
94) A expedição punitiva que parte de Ferrara em 23 de janeiro rumo aos povoados rurais e às aldeias da comarca é a primeira concebida com métodos militares. O encontro é marcado por dezenas de homens, todos bem armados e organizados para atingir ao mesmo tempo inúmeros objetivos. A fim de destruir as ligas camponesas de San Martino, Aguscello, Cona, Fossanova San Biagio, Denore e Fossanova San Marco, contam com a determinação da violência premeditada, com técnicas de ataque surpresa e com caminhões postos à disposição pela Agrária. Por isso, devem ser muitos. Os “vermelhos” provavelmente os esperam, e a subjugação não deve deixar margem alguma à incerteza no confronto.
95) D’Annunzio se recolheu em Cargnacco, no lago de Garda, em uma cômoda villa, embalsamado nos confortos e luxos, onde jura querer voltar a se dedicar à única ocupação que já conheceu: si mesmo [depois do fim da anexação de Fiume]. Seus amigos o descrevem como cansado, subitamente envelhecido, desiludido, cego, derrotado, mas é imprescindível de qualquer forma chegar a um acordo para evitar que ele atrapalhe. Será preciso facilitar seu principesco desejo de isolamento, ajudá-lo a se tornar de novo o decorador de interiores que sempre foi, a se enterrar vivo na sua pirâmide à beira do lago junto aos seus fiéis, aos seus ourives, aos seus louros, aos seus canhões, aos seus cavalos, às suas velhas e novas amiguinhas, às suas manias, aos seus amados cães. Bastarão apenas alguns meses de agonia no lago e o Comandante se tornará, como nos versos da sua última poesia, o cão do seu nada.
96) Benito Mussolini, Il Popolo d’Italia, 1o de março de 1921:
É triste, visto de um ponto de vista humano, tudo o que está acontecendo, mas é inevitável. É por meio dessa crise interna que a nação reencontrará seu equilíbrio. Os fascistas estão decididos a não recuar um passo: tornarão cada vez mais inteligente sua violência, mas dela não abrirão mão até que, do campo adversário, seja levantada, e com sinceridade, a bandeira branca da rendição. Os fascistas se mantêm coesos e prontos para todos os acontecimentos [...].
97) “Na calada da noite, enquanto os homens de bem estão em casa dormindo, chegam os caminhões dos fascistas nas aldeias, nos campos, nos povoados com poucas centenas de habitantes; chegam, naturalmente, acompanhados dos chefes da Agrária local, sempre por eles guiados, ou não seria possível reconhecer na escuridão em meio aos campos isolados o casebre do chefe da liga camponesa ou a miserável central de empregos.
“Apresentam-se diante de uma casinha e a ordem é ouvida: cerquem a casa. São vinte, são cem pessoas armadas com fuzis e revólveres. O chefe da liga camponesa é chamado e intimado a descer. Caso não acate, dizem: se não vier, queimamos sua casa, sua esposa, seus filhinhos. O chefe da liga desce, abre a porta, eles o pegam, amarram, levam para o caminhão, aplicam as torturas mais inenarráveis, fingindo matá-lo, afogá-lo, e o abandonam no meio do campo, nu, amarrado a uma árvore!
“Se o chefe da liga camponesa é um homem corajoso e não abre e recorre às armas para se defender, então é o assassinato imediato que se consuma na calada da noite, cem contra um. Esse é o sistema no Polesine.”
98) Em Salara, um desafortunado operário ouve baterem à sua porta à noite. Quem é? Pergunta. Amigos!, respondem. Abre e, através da fresta, vinte tiros de fuzil o transformam em um cadáver. Em Pettorazza, o chefe da liga camponesa ouve baterem à porta de casa à noite, sempre à noite... Em Pincara, um pequeno povoado no meio do campo, à meia-noite, chega um caminhão e para na frente da central de empregos, um casebre miserável, um quartinho... Em Adria, vão à meia-noite à casa do secretário da seção socialista, que é pego, amarrado, levado até o Ádige, mergulhado e abandonado amarrado a um poste telegráfico... Em Loreo... em Ariano... em Lendinara... E assim continua a história; mas ninguém intervém, ninguém é descoberto, ninguém sabe quem são os delinquentes. Noite após noite, dia após dia, é assim que incêndios e assassinatos são cometidos. Nos miseráveis campos do Polesine, todos já sabem que, quando batem à porta de casa à noite e dizem que é a força pública, os moradores estão condenados à morte.
99) “Agora trata-se de um ataque, de uma organização de bandidos. Não é mais luta política; é barbárie; é medieval.”
100) “Digo aos socialistas uma palavra leal e serena: vocês querem que essa situação vergonhosa, intolerável, indigna de um país civilizado cesse? Para fazer isso, para construir a paz, não basta apenas condenar a violência dos outros e encontrar atenuantes para a própria violência, mesmo quando a desaprovamos.”
101) Agora Giolitti [primeiro-ministro] pôs na cabeça que vai desarmar os fascistas. Mandou um novo governador para a província de Bolonha, Cesare Mori, que já se destacou pela dura repressão à bandidagem na Sicília e às agitações dannunzianas em Roma. Mori, em seu primeiro ato, proibiu a circulação de caminhões na província de sábado à tarde até domingo à noite, o período em que as expedições saem. Tanto que, para a expedição a Pieve di Cento, o motivo para a recente prisão de Arpinati, eles tiveram de estacionar os caminhões nos pátios das fazendas e pegar os rapazes em campo aberto.
Não é assim que Mori vai detê-los. Não é com proibições de circulação que aqueles velhos políticos mumificados, sem sangue nas veias, destruirão seu ímpeto. Claro, de vez em quando algo dá errado. Em Pieve, uma pobre coitada, uma operária — dizem que se chama Angelina — foi atingida por engano, bem na cara, por um tiro de revólver enquanto fechava uma janela.
Mas Leandro Arpinati não estava em Pieve di Cento, e a reação do Fascio di Combattimento bolonhês à prisão do seu chefe foi impulsiva. Além disso, muitos partidos que os apoiam expressaram solidariedade a Leandro Arpinati, o homem que deteve os bolcheviques em Bolonha. A Confederação do Comércio e da Indústria até ameaçou o fechamento de lojas em protesto contra a sua prisão.
Arpinati é solto pela quinta vez em 17 de março à noite. No Il Resto del Carlino, principal jornal da cidade, lê-se que, no seu retorno a Bolonha, um “mar de gente” o acolheu como herói e o levou até a Piazza Nettuno. O relatório do chefe de polícia fala de um cortejo com cerca de 3 mil pessoas. Nos tempos atuais, as coisas avançam rapidamente: hoje se é preso, amanhã se sai triunfante.
102) Benito Mussolini, Milão, 23-27 de março de 1921
São 23h. Para os burgueses bem-comportados e trabalhadores de Milão, é quase hora de ir dormir. Este ano, a Páscoa cai cedo, no último domingo de março, mas amanhã é somente quinta-feira, ainda se trabalha.
No seu edifício no Corso Venezia, após um jantar leve, Margherita Sarfatti está tomando chá de erva-doce, hibisco e valeriana na companhia de alguns amigos. Erva-doce é recomendada para ajudar na digestão; a valeriana, para o sono; as propriedades benéficas do hibisco ninguém se lembra mais.
De repente, a xícara de porcelana do conjunto de chá chinês treme sobre o pires; a massa vitrificada de granulação finíssima racha. Após uma fração de segundo, o estrondo segue o deslocamento de ar: os vidros das grandes portas-balcão que dão para a rua reverberam, parece que o edifício vai se partir desde os alicerces.
Todos correm para a janela; porém, lá fora, está tudo deserto, em silêncio. Mais dois minutos e a rua é tomada por uma multidão em fuga. Fogem pelo Corso Venezia rumo ao Centro.
De vez em quando, alguém se vira, mas sem interromper a corrida, e gesticula para trás, no vazio, na direção do horror de onde partiu. Mas ninguém grita, nem uma voz sequer: qualquer que seja a causa, o horror deles é mudo. Uma turba de fantasmas afônicos e ensandecidos irrompe na noite de Milão.
O espetáculo no Kursaal Diana começara com grande atraso por causa da demissão de um músico da orquestra, que foi readmitido devido ao protesto dos colegas. Seria a décima quinta e última apresentação de Mazurka azul de Franz Lehár.
O público burguês adora a opereta, sua tramas simples e inverossímeis, seu gosto pela paródia, suas cenas suntuosas, a vivacidade da música, o prazer imediato e, sobretudo, adora a onipresença quase maníaca das danças em coreografias de dez, doze, às vezes dezesseis bailarinos, que reevocam a alegria despreocupada de histórias sentimentais ambientadas na boa sociedade do fim do século. “Meu amigo, vista-se alinhado, fique elegante, caiu a noite caprichosa...” Senhoras e senhores, eis aqui os prazeres da vida antes da guerra mundial.
O populacho também lota de bom grado a sala do círculo recreativo, lúdico e artístico do Kursaal Diana. Esta noite, porém, estava em cena a mazurca — amadíssima pelos pobres —, aquela dança com volteios de compasso ternário dos camponeses poloneses, muito semelhante à valsa vienense, mas com um ritmo mais moderado e movimentos muito mais secos, acentuados por uma batida com o salto; aquela dança desenfreada e graciosa a ser bailada por casais dispostos em um círculo, o círculo mágico das antigas danças primitivas, o símbolo da união e da força de pequenas, corajosas comunidades de mulheres e homens que, à margem da floresta escura, dançam em uma minúscula poça de luz circundada pelas trevas infinitas.
Dizem que a bomba explodiu no fim do primeiro ato.
Deve ter sido colocada perto da entrada dos artistas, no lado da Via Mascagni, porque, naquele ponto, a rua está enterrada debaixo de destroços e, através do que restou das estruturas das janelas, avista-se o palco coberto de cadáveres mutilados dos músicos da orquestra. As patrulhas da guarda real estão desocupando a rua até a altura da Via Melzo.
Diante da entrada, em parte fechada pelas portas abaixadas, um pequeno grupo de bersaglieri, enviado pela chefatura de polícia, prepara um bloqueio posicionando-se em arco. O toque das cornetas dos bombeiros ressoa em toda a área enquanto uma equipe de cerca de trinta homens apaga as chamas com o caminhão dos bombeiros. A cada vez que um grupo de maqueiros surge dos escombros, a multidão, que correu para a rua vinda do Corso Buenos Aires, acompanha com um murmúrio de angústia a aparição do corpo mutilado.
O ambulatório de Porta Venezia, ali perto, já está repleto de mortos ou de feridos graves. Os outros são enviados em ambulâncias dos bombeiros para locais de atendimento médico mais distantes, muitos são medicados nas casas dos moradores do bairro, que, comovidos pela tragédia, os recebem. Na entrada do que resta do teatro, os parentes sobreviventes uivam de dor como lobos na noite de Milão, os jornalistas anotam minuciosamente o estado dilacerado dos corpos para os jornais da manhã: pouco depois do último degrau, perto do camarote no 8, jaz um pedaço de calota craniana coberto de longos cabelos femininos; no camarote no 10, entre entulhos, fragmentos de vidro e ossos, um fino braço feminino ainda oculto pela manga de uma camisa de seda; entre o camarote no 13 e o camarote de boca, o tronco nu de uma menina.
Os anarquistas. Não há dúvida, isso é obra deles. Errico Malatesta, seu velho chefe histórico, encarcerado em Milão, protesta há dias fazendo greve de fome contra sua prisão sem motivo e há dias dispositivos de pequeno calibre explodem por toda parte. Um dos sobreviventes afirma que viu um anarquista atirar a bomba no camarote. É quase certamente uma bobagem, mas, certamente também, essa é uma obra deles.
Benito Mussolini conhece os anarquistas. E também conhece muito bem aquele lugar: esteve lá várias vezes para encontrar o chefe de polícia Gasti, que mora em um apartamento em cima do hotel Diana Majestic, ao lado do teatro. É provável que fosse ele quem os perpetradores do atentado queriam atingir.
Um grupo de fascistas atraídos até ali pela explosão avista o Chefe na multidão. Reúnem-se à sua volta manifestando intenções imediatas de vingança. Competem em audácia vingativa: a sede do Avanti!; a sede da União Sindical; a sede do Umanità Nova, a folha anarquista dirigida por Malatesta. Os objetivos são sempre os mesmos, o ódio quase sempre é desprovido de criatividade.
103) O fascismo não é uma igreja, é uma academia de ginástica; não é um partido, é um movimento; não é um programa, é uma paixão. O fascismo é a nova força. Trata-se, agora, de dirigir o olhar até o fundo do abismo, de destacar a qualidade certa da luz no espectro óptico da violência. Uma coisa deve mostrar-se óbvia para o olho que se alinha à mira da arma, e Benito Mussolini, o Fundador, escreve claramente no seu jornal: os fascistas surram, atiram, incendeiam, mas não colocam bombas em teatros. Os fascistas lutam em campo aberto contra os socialistas, mas nunca fariam mal ao público da opereta, às pessoas de bem e indefesas que proporcionam a si mesmas uma noite de lazer com a Mazurka azul; os fascistas são guerreiros, não perpetradores de massacre. Os massacres são a violência tenebrosa dos outros, dos anarquistas, dos comunistas. A violência fascista é luz, seu comprimento de onda vibra na faixa do amarelo, do laranja, do vermelho, não no ponto cego do preto; seu fenômeno de guerra é a antítese do terrorismo. Mais do que isso: a guerra do fascismo é a guerra contra o terrorismo. O artigo do dia seguinte já está pronto. E também o de dois dias depois. A partir de amanhã, nos candidatamos a governar a nação.
104) A junta socialista de Milão logo se ofereceu para providenciar os funerais a expensa da prefeitura, mas as delegações de muitas associações da cidade opuseram-se à participação dos socialistas, considerados apoiadores dos culpados. As investigações, como previsto, logo identificaram os responsáveis entre os militantes anarquistas da extrema esquerda. Além disso, em Turim e Milão, a facção comunista não condenou com clareza o massacre. Por isso, após longas negociações, o nó foi desatado por Roma: por meio do governador da província, foi decretado que fossem funerais de Estado. Somente a bandeira tricolor tremulará, enlutada. Nenhuma outra.
Os mortos são vinte; os feridos, oitenta; pelo menos trinta em estado grave.
105) Logo atrás dos féretros, há uma densíssima coluna de 2 mil fascistas. Entrecortados por coroas de flores, divididos em pelotões, marcham com passo cadenciado. Conforme prometido, vingaram os mortos a seu modo, atacando as sedes do Avanti! e do jornal anarquista. É a primeira vez que Milão, cidade operária, cidade “vermelha”, assiste nas próprias ruas a um desfile de camisas negras. Tudo dá a entender que não será a última. O cortejo dos fascistas desfila e é observado com respeito. Ninguém protesta.
106) Benito Mussolini segue à frente das esquadras, de camisa negra, o rosto taciturno, a cabeça erguida. Ninguém lembra que dez anos antes ele exaltara os anarquistas que lançaram bombas entre os espectadores do Teatro Colón em Buenos Aires.
107) Aquele que todos começam a chamar de “Duce” do fascismo chegou à estação de Ferrara acompanhado por dois homens que, nem dez anos antes, tinham sido chefes da incendiária e socialista Câmara do Trabalho local — Umberto Pasella e Michele Bianchi —, e que agora estão do mesmo lado do que Vico Mantovani, o reacionário chefe da Agrária contra o qual, antes da guerra, eles atiçavam os camponeses.
108) O que importa é o arranjo. O diretor do Il Popolo d’Italia escreveu claramente: a vida, para quem não quer ficar na torre de marfim de sempre, impõe certos contatos, certas transações e, digamos a terrível palavra, certos arranjos. Páginas de arranjos fazem parte da vida de todos os grandes homens, e não são páginas vergonhosas: são páginas de sabedoria. O arranjo é importante, o resto é alegria de náufragos.
109) Mussolini tem um contraplano: suscitar a desordem para mostrar que só ele pode restabelecer a ordem.
110) Os eleitores moderados, por sua vez mestres do duplipensar, com Giolitti à frente, ficam ao mesmo tempo tranquilizados e horrorizados com as violências fascistas. Não se pode culpá-los: aqueles canibais de camisas negras das colinas de Pisa mataram, em 13 de abril, a tiros de revólver, no pátio de uma escola primária, Carlo Cammeo, ativista do sindicato dos professores primários, diante dos olhos das meninas que, com o avental branco e a fita cor-de-rosa, formavam confiantes e disciplinadas uma fila dupla atrás do professor.
111) Balbo ri. Das burlas das quais é mestre, dizem que também faz parte a artimanha do óleo de rícino. Agarram um socialista indômito, enfiam um funil na sua boca, obrigam-no a beber 1 litro de laxante. Amarram-no ao capô do automóvel e circulam pela aldeia enquanto ele peida, se esgoela, caga nas calças. Um remédio barato, sem derramamento de sangue, sem ameaça de prisões. Impossível não rir.
E a tragicomédia também tem outras vantagens. Impede que a vítima se torne um mártir porque a vergonha afasta o pesar: não é possível dedicar um culto a um homem que caga nas calças.
O ridículo, por fim, tem um alto valor pedagógico. E, ainda por cima, é duradouro, influencia o caráter. A merda, mais do que o sangue, se estende sobre o futuro de uma nação. A ideia de vingança, se manchada de excrementos, é transmitida por décadas, de geração em geração. Para ser apagada, a vergonha do purgante, vista ou sofrida, exige nada menos do que um apocalipse.
112) Os dados que chegam do ministério do Interior são incontestáveis. Os socialistas perdem, mas menos do que o esperado, conservando-se como o primeiro partido com 25% dos votos, e boa parte do que perdem está sendo ganho pelos comunistas, com 3%, ou pelos republicanos, que sobem para 2%. Os populares se mantêm em 20% e os partidos do Blocco Nazionale crescem, mas menos do que Giolitti esperava: democratas, liberais, nacionalistas e seus aliados menores, somando todos os votos, mal chegarão a 47%. Portanto, não pode haver dúvida alguma. Os vencedores dessas eleições de maio de 1921 são os fascistas.
113) A crise da democracia entra agora na sua fase mais aguda, a decadência parlamentar é irreversível, uma estrela fixa, baixa no horizonte do céu do equinócio. Na sua luz crepuscular, o jovem, pequeno, robusto Partido Fascista começará sua vida parlamentar com a XXVI legislatura, a última da decadência, preparando-se para lutar sozinho pela XXVII, que será a primeira legislatura fascista.
E há também o seu triunfo pessoal. Benito Mussolini foi o cabeça de chapa em Milão com 197 mil votos, o cabeça de chapa em Bolonha com 173 mil votos. Terceiro entre os dez mais votados em nível nacional!
114) O sucesso é tal que, assim que recebeu a notícia, em um raríssimo ímpeto de entusiasmo conjugal, o vencedor até abraçou a esposa Rachele, segurou-a contra a porta da cozinha e, encarando-a como não era seu costume fazer, advertiu-a comovido: “Rachele, lembre-se de que este será um dos períodos mais bonitos da nossa vida.” A mulher, assustada pela profecia de uma alegria estranha, sem saber como recebê-la em sua casa plebeia, abaixou o olhar para o chão de granilito ocre e preto.
Agora, porém, sozinho, Benito Mussolini se afasta da janela, deixa a estrela da noite ao seu pôr do sol e anda pelo cômodo enchendo-o com a própria euforia. Os fantasmas a serem afugentados são muitos: o fantoche do seu cadáver afogado no canal pelos 4 mil míseros votos de 1919; o traidor expulso como um cão raivoso pelos companheiros em 1914; o emigrante furioso que dorme embaixo das pontes na Suíça em 1908; o professorzinho de escola primária que percorria 1,6 quilômetro desde a aldeia, andando com os pés descalços sobre os trilhos do trem, segurando os sapatos sobre os ombros para não gastar a sola; na raríssima luminescência diurna de Vênus, reverbera até o espectro do menino que, muitos anos atrás, nos campos da Romanha, em uma manhã clara de sol, as vinhas amarelas e as dornas já prontas para a vindima, ouve soar no ar de setembro o sino de luto pela sua avó.
O “deputado” Mussolini. Sua hora se aproxima, a hora de todos, a hora da vingança. Ele venceu com o dinheiro dos proprietários rurais que esfomearam sua infância, sob a égide de Giolitti, ao lado dos inimigos da sua gente, da sua juventude. Mesmo assim, venceu. Por um instante, olha com desconfiança, com rancor, para seu novo escritório elegante. Mas a voz da Sarfatti [sua amante] está pronta para sussurrar no seu ouvido:
“É preciso ser homem, a juventude semeia, a virilidade colhe.”
Afinal, a esta altura, ele já está chegando aos 40 anos, está quase calvo, daqui a pouco não terá mais um fio sequer na cabeça, a semeadura tem seu tempo, um tempo breve. É necessário ceifar, é necessário concluir, é necessário vencer. E então voltar a vencer mais uma vez, porque o mundo não tem piedade dos vencedores.
O deputado Mussolini se entrega sem mais freios à própria alegria insolente. Tornou-se o homem que odiava quando menino.
115) Benito Mussolini, Roma, 21 de junho de 1921 – Parlamento da Itália
“Não me desagrada, caros colegas, iniciar meu discurso naquelas cadeiras da extrema direita, onde, quando a quitanda da fera socialista triunfante tinha um comércio em pleno andamento, ninguém mais ousava se sentar. Declaro logo que, no meu discurso, defenderei teses reacionárias. O meu discurso será antidemocrático e antissocialista.”
116) Seu plano para salvar o fascismo das consequências letais da sua própria violência é simples e delirante: fazer as pazes com os socialistas. O nome do plano é “pacto de pacificação”.
117) Hoje, após muitas contradições, Mussolini ameaça destruir o fascismo se o fascismo não se corrigir.
118) Ugo Dalbi, sindicalista revolucionário, Sindacato Operaio, 30 de julho de 1921:
É uma utopia. O fascismo destruirá seu Duce, e esse homem que traiu os socialistas, os intervencionistas revolucionários, os fiumanos e os fascistas mais antigos vai se lançar com a mesma desenvoltura na direção de outro partido ou agrupamento, dando origem tenazmente a uma nova agremiação contrária, oposta ao que fez até aqui.
Será que vai encontrar outros iludidos que o seguirão, ou o bom senso do povo italiano acabará por triunfar e gritará um basta?
119) O Vate [D’Annunzio], fotofóbico, recebeu-os na manhã do dia 17 na penumbra de cortinas pesadas e luzes difusas em sua villa asfixiada por dezenas de milhares de objetos e livros dispostos em um preciso e imperscrutável jogo de referências simbólicas, como um mausoléu consagrado à memória de uma múmia viva.
120) O “pacto de pacificação” que deveria decretar o fim do conflito entre “vermelhos” e “negros” foi firmado na noite de 3 de agosto no gabinete de Enrico De Nicola, presidente da Câmara, por uma delegação de representantes dos grupos parlamentares fascista e socialista e também por Baldesi, Galli e Caporali da Confederação Geral do Trabalho. A primeira assinatura da lista foi a de Benito Mussolini. Segundo o pacto, as duas partes se comprometiam a cessar de imediato qualquer tipo de violência e a perseguir os transgressores. Ao que parece, depois das assinaturas, os líderes socialistas se negaram a apertar a mão do fundador do Fascio. Talvez essa seja apenas uma maledicência, mas, em contrapartida, a recusa dos chefes do fascismo nas províncias é uma certeza clamorosa.
Os Fasci di Combattimento toscanos, vênetos e emilianos, reunidos em uma conferência, denunciaram o pacto já nas primeiras 48 horas após sua assinatura.
Mussolini respondeu com desprezo: apelidou-os de “rases”, o nome dos selvagens chefes guerreiros etíopes. Em um artigo no Il Popolo d’Italia, dirigiu-se a eles como o pai que deve “usar as varas” para corrigir o próprio filho transviado. Deplorou-os como aldeões ignorantes, presos a pequenos bairrismos, incapazes de se desligar de seus ambientes, de enxergar e até mesmo de acreditar “na existência de um mundo mais vasto, complexo e formidável”.
121) Grandi respondeu ao Duce em 6 de agosto, inaugurando a dissidência aberta com um artigo no qual afirmava que o “pai” não era Mussolini, mas D’Annunzio e que o verdadeiro fascismo, no caso, nascera em Bolonha, com a carnificina do Palazzo d’Accursio, e não em Milão. Depois foi a vez de Balbo atacar o Líder sem nenhuma diplomacia. A luta entre fascismo e socialismo — escreveu Balbo — só se resolverá com a aniquilação de um dos dois. Essa é a realidade, todo o resto são “fantasias infantis, sentimentalismos de mulherzinha”.
Mussolini, com o apoio de Cesare Rossi, rebateu que o movimento dos emilianos, subjugados aos produtores rurais, não é mais fascismo. Ameaçou expulsá-los ou, até mesmo, sair.
O plano de Mussolini, como sempre, era astuto e, como sempre, dúplice. Se tivesse êxito, prevaleceria a imagem do fascismo “respeitável”, e ele seria recebido de braços abertos pelos liberais, levaria um ministério. Se fracassasse, de todo modo ele teria o crédito de ser o único fascista razoável naquele bando de rases ferozes das províncias. Enfim, Mussolini só tinha a ganhar com tais ladainhas.
Já eles tinham tudo a perder. A pacificação, para gente como Balbo e Grandi, significa o fim certeiro e rápido, a condenação a um limbo obscuro, sem ação, sem história porque sem luz e sem luz porque sem história. Eles estão dispostos a perder a vida, mas não a entregá-la de mãos beijadas.
Essa é a situação em 16 de agosto, na reunião de Bolonha: seiscentos Fasci di Combattimento da Emília Romanha renegam o Líder proclamando que, enquanto durar aquela situação, não vão depor as armas da violência. Depois, oferecem ao Vate a direção do movimento.
Entretanto, a resposta de D’Annunzio demora. Ele deixa Balbo e Grandi mofando quase dois dias naquele limbo lacustre de pensionistas moribundos que se agarram ao último suspiro com o bridge e os tratamentos termais. No fim da manhã do dia 18, respeitado o repouso do poeta até quase meio-dia, os dois peregrinos sobem de novo até a villa de Cargnacco. D’Annunzio não os recebe. Manda seu empregado dizer que é preciso esperar mais: a noite tinha sido nebulosa, Diana não apareceu, talvez “os astros não estejam propícios”.
A Balbo e Grandi, achincalhados, furiosos, resta voltar ao ponto de partida ou, talvez, tomar a estrada para Milão. Entretanto, na aldeia, os vendedores de jornais já anunciam aos gritos a notícia do dia: Mussolini renunciou ao Comitê Central dos Fasci.
“A partida chegou ao fim. Quem foi derrotado deve ir embora. E eu saio do primeiro escalão. Continuo, e espero poder continuar, a ser um simples soldado raso do Fascio milanês”, escreveu o Duce do fascismo no Il Popolo d’Italia.
122) Se for preciso dar fortes marteladas para acelerar a ruína desse fascismo, eu me adaptarei a essa ingrata necessidade. O fascismo não é mais libertação, mas tirania; não é mais salvaguarda da nação, mas defesa de interesses privados das castas mais opacas, surdas, miseráveis que existem na Itália; o fascismo que assume essa fisionomia talvez ainda seja fascismo, mas não é mais o motivo pelo qual, nos anos tristes, alguns — poucos — de nós enfrentaram a cólera e o chumbo das massas, não é mais o fascismo como foi concebido por mim.
123) Benito Mussolini, “O berço e o resto”, Il Popolo d’Italia, 7 de agosto de 1921:
De que vale um líder que comanda apenas a si mesmo?
Para governar o ingovernável, para subjugar o caos, é preciso um partido, um organismo político que contenha a violência das esquadras, uma doutrina ecumênica que abrace todos os heréticos das outras doutrinas, um partido dos antipartidos. O Partido Nacional Fascista. É isso que decidirá a vida ou a morte do fascismo.
Mussolini propôs a transformação do movimento fascista em partido em 7 de setembro, na discussão do grupo parlamentar. A proposta foi aprovada com alguns votos contrários, mas em seguida deverá ser aprovada pelo Conselho Nacional e, depois, será necessário um congresso.
124) O socialismo, sem dúvida, está se afogando. Apenas duas semanas antes, os líderes socialistas, após terem desperdiçado nos dois anos anteriores todas as oportunidades de revolução, rejeitaram qualquer hipótese de colaboração parlamentar com o governo Bonomi em uma ação antifascista. Sua expulsão da Internacional Comunista já foi decidida em Moscou e, na Itália, cem mil militantes não renovaram a filiação após a insensata cisão em Livorno: o isolamento deles é total, agora que rechaçaram a responsabilidade de governar o país com Bonomi, velho companheiro. Mussolini, nas colunas do seu jornal, suspirou de alívio e exultou: “Declaramo-nos, então, particularmente satisfeitos. O fascismo agora tem diante de si um jogo de amplas possibilidades.”
125) A questão é simples: se o congresso não quer votar o pacto de pacificação, ele não insiste. Se, em contrapartida, fizerem questão de votar, ele se empenhará na luta até o fim. Ou se vota, ou não se vota, mas, se votarem, é necessário fazer uma contagem. Até o último homem. Como sempre, o orador dá o melhor de si dosando afagos e ameaças.
Eis que, com o costumeiro salto de acrobata, Mussolini reverteu o prognóstico. O pacto de pacificação que dividia a plateia já ficou para trás, sacrificado. Não há mais matéria de disputa, ela desapareceu. Basta que os membros das esquadras aceitem o partido, e a concórdia, como que por encanto, voltará entre os irmãos de armas.
No fim do discurso, Mussolini recebe uma segunda ovação. Acertou na mosca.
126) Nasceu o Partido Nacional Fascista.
127) O fascismo é a síntese de tudo. Absorveremos os liberais e o liberalismo porque, com o método da violência, sepultamos todos os métodos precedentes. Depois, olhando para o futuro, introduz temas novos. O fascismo completará a nacionalização dos italianos. O fascismo fará com que, dentro das fronteiras, não existam mais vênetos, romanholos, toscanos, sicilianos e sardos, mas italianos, somente italianos. No entanto, além das fronteiras o fascismo sente o mito do império. Não pode haver grandeza nacional se a própria nação não é sustentada por uma ideia de império. A Igreja romana, com seu magistério milenar e universal, entra na apologia do império. Chega de anticlericalismos tolos. Quanto ao Estado, o problema é simples: o Estado somos nós. Na economia? Liberalismo no sentido mais clássico da palavra. Depois, uma definição sobre a “conquista das massas”, tema caro a Grandi e aos sindicalistas. Dizem: é preciso conquistar as massas. Há também quem diga: a história é feita pelos indivíduos, pelos heróis. A verdade está no meio.
128) Além da nova edição de Notturno publicada pelo editor milanês Treves e autografada pelo poeta, neste fim de ano Mussolini recebe um segundo texto sobre o qual refletir. Trata-se de um projeto para a organização militar das esquadras fascistas redigido pelo general Asclepio Gandolfo e encomendado pela recém-nascida direção nacional do partido. Gandolfo concebeu o Exército das milícias fascistas a partir do modelo da legião romana, subdividindo-as em duas formações: Príncipes e Triários. As esquadras serão compostas por grupos de vinte a cinquenta homens, quatro delas formarão uma centúria; quatro centúrias, uma coorte; e de três a nove coortes, uma legião. Esta última, comandada por cônsules, terá como insígnia a águia romana, e seus alferes carregarão o Feixe Litório sob uma estrela da Itália. Todos usarão o uniforme, mas cada legião, após a devida autorização, será livre para adotar pequenos ornamentos e distintivos próprios. Todos os postos serão eletivos porque, no âmbito regional, as esquadras gozarão da máxima autonomia. O fascismo ainda é, por enquanto, uma agregação heterogênea de guerreiros que elegem seu chefe, e não de soldados submetidos a ordens. Por isso, o chefe político e o chefe guerreiro serão a mesma pessoa. O general Asclepio destaca a dificuldade de conciliar a eletividade dos postos com o princípio hierárquico, mas a estrela guia, e nisso todos estão de acordo, tem três pontas: militarização, disciplina e hierarquia. A política — e aqui também não pode haver dúvidas — é uma guerra civil contra os próprios adversários apresentados como inimigos da nação. É o que todos fazem desde o fim do primeiro conflito mundial, absolutamente todos, sejam fascistas ou socialistas, só que os outros se limitam a comícios de protesto e a uma guerra de símbolos, enquanto o fascismo vai além. É evidente que, para os fascistas, a guerra nunca acabou.
Um sopro misterioso ergue da vastidão ofuscante relevos de formas humanas e bestiais. Tenho à minha frente uma rígida parede de rocha fervente esculpida como homens e monstros. A dificuldade não está na primeira linha, mas na segunda e nas seguintes.
129) Michele Bianchi é o homem certo para a secretaria do Partido Fascista. Calabrês, filho de burgueses, Bianchi foi primeiro socialista, sindicalista revolucionário, antimilitarista, anticlerical e anti-imperialista; depois, como Mussolini, em uma noite, bandeou-se com o mesmo ardor para o intervencionismo, convicto de que a guerra mundial teria levado à revolução proletária. A despeito da posição adotada na sua vida, Michele sempre a defendeu com um fanatismo implacável, o mesmo que usa para fumar um cigarro atrás do outro. Fisicamente insignificante, politicamente perspicaz, não suporta fardas, usa a camisa preta sobre roupas à paisana e sabe ser alvo de gozações por causa do aspecto funéreo. Expectoração estriada de sangue, febrezinha constante, suores noturnos, perda de peso, o diagnóstico é patente. Tuberculoso, Michelino Bianchi carrega em si a morte. Tem apenas 32 anos, mas não lhe resta muito a viver. Todos sabem, qualquer um que o vê, até mesmo o desconhecido que, no final do corredor, ouve os acessos raivosos da sua tosse seca, entende. É esse destino de morte evidente e iminente que faz dele o secretário perfeito para o Partido Nacional Fascista. Nenhuma ambição pessoal de poder, dedicação fanática à revolução. E aquela autoridade irrefutável que apenas os estertores da necrose pulmonar podem dar.
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