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quarta-feira, 29 de março de 2023

Fragmentos 43

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

GASTÃO TOJEIRO – 3 PEÇAS TEATRAIS

Depois de mais de dez anos de tocaia nos sebos, por indicação de Wilson Martins, consegui três exemplares do teatro de Gastão Tojeiro: “Minha Sogra é da Polícia”, “A Tal que Entrou no Escuro” e “Onde Canta o Sabiá”. Para Martins, a melhor obra de Tojeiro é “O Simpático Jeremias”, impossível de ser adquirida porque o único exemplar aparecido recentemente é oferecido por mil reais. Mas o tempo passa e a caravana anda...

Atuando da metade dos anos 20 à metade dos anos 50 (ou mais: não existe uma biografia de Tojeiro na Wikipedia), o teatro de revista competia com o cinema na preferência popular, especialmente a comédia de costumes, que retratava o cotidiano das famílias brasileiras e suas atribulações para a sobrevivência. Gastão Tojeiro escreveu cerca de 100 peças e isto deveria ser objeto de um conhecimento e culto mais referenciado, não fosse o Brasil invadido culturalmente pelo que pior tem no mundo em termos de literatura, música e cinema, enquanto o teatro sobrevive na precariedade de seus poucos espectadores.

Nas 3 peças se repete a presença de uma figura típica no panorama social urbano: o desocupado, naquela época motivo de gozação, e hoje institucionalizado na cultura do “não estuda nem trabalha”.

“Minha Sogra é da Polícia” é a peça mais hilariante: no lar da família, o genro, um desocupado, vive às turras com a sogra que resolve criar uma agência misteriosa de investigação que ninguém sabe do que se trata. Depois de montado o roteiro das relações familiares e amigáveis, descobre-se que a agência tem a finalidade de investigar denúncias de infidelidade sexual de maridos e mulheres, sob requisição dos traídos. E, naturalmente, o genro acaba envolvido em um episódio de traição conjugal que evolui para o clímax da peça.

“A Tal que Entrou no Escuro” trata também de uma família comandada por um aposentado do serviço público muito zeloso com a vida particular das filhas que, em uma noite de temporal, depois do corte de energia elétrica, sentiu alguém sentar em seu colo – em plena sala de estar onde se reunia a família –, que tinha contornos volumetricamente diferentes da esposa, e em rápida e escandalosa confusão, descobriu tratar-se de uma desconhecida que errou o caminho de casa na escuridão da rua, entrou no portão errado, e apareceu de repente para se prontificar ao papel de empregada doméstica não obstante ser posta para fora inúmeras vezes por suspeitas das mais variadas e insinuantes.

Já na peça “Onde Canta o Sabiá”, de 1924-25, percebe-se que Tojeiro ainda não estava totalmente amadurecido em sua veia satírica de dramaturgo e comediante. Mas tem um tema culturalmente recorrente na literatura brasileira: o sentimento de decepção com o Brasil – e a vontade de ir embora para Paris – que assomava parte das elites com os rumos do país. Hoje em dia, Paris foi substituída por países estrangeiros variados (Ver A Diáspora Brasileira na Wikipedia), e o sentimento continua maior do que antigamente pelos dados oficiais de emigração.

Na peça, assistimos o diálogo entre Fabrino e Elvidio expressando a fascinação por Paris:

Fabrino (Que apanhou uma cadeira e sentou-se próximo – É verdade… (Reparando) O meu inseparável companheiro Elvidio!… Como estás bem disposto, forte…. Corado.
Elvidio – São os ares sadios da Europa… Ou antes: de Paris. Lá desfruta-se um belo clima e um bem-estar que não tem aqui, onde tudo é mau e insuportável.
Fabrino – Que é isso, Elvidio? Voltaste assim tão feroz com a tua terra?
Elvidio – Certamente. Só pode gostar disto quem não conhece a Europa com toda a sua requintada civilização.
Fabrino – Mesmo depois da guerra? [A Primeira GM]
Elvidio – Ora, a guerra!… A guerra já se foi há muito e Paris, a nossa incomparável Paris, já retomou seu aspecto habitual. Creia, meu amigo, só na Europa se vive. Aqui, vegeta-se. Mais do que isso: estiola-se o físico e o espírito. Isto aqui não vale o pior lugarejo da Europa.
Fabrino – Eu penso justamente ao contrário.
Elvidio – Pudera!… Nunca saíste desta joça.
Fabrino – Que diabo! Se detestas tanto assim a tua terra, para que voltaste?
Elvidio – Estás enganado: não voltei. Vim apenas de fugida vender umas propriedades que aqui possuo e raspo-me enquanto antes. E agora, asseguro-te, não ponho mais os meus pés no Brasil.
Fabrino – Que mau brasileiro és tu!
Elvidio – Que! Ainda és desse tempo? Ora, deixe-se de patriotices. Não sejas retrógrado! Paris é tudo: o resto é paisagem, como dizia Eça de Queiroz.”

Elvidio inicia um romance com a jovem Nair, filha do dono da casa e irmã de Fabrino, a quem propõe casamento, e a peça evolui com o ritmo burlesco das contradições familiares, até que Elvidio promete à amada fazer a lua de mel em Paris.


Viana Moog – um descontente com o Brasil que viveu algumas décadas no exterior como representante brasileiro na OEA e depois na ONU – em seu Bandeirantes e Pioneiros nos deixou uma análise social de uma categoria que também esquecemos: a da mazombo, a figura nostálgica por excelência, primeiro de Portugal, nos idos coloniais, e depois de Paris, no pós-independência.

“E em que consistia esse mazombismo brasileiro? Tal como nos primeiros tempos coloniais, consistia essencialmente nisto: na ausência de determinação e satisfação de ser brasileiro, na ausência de gosto por qualquer tipo de atividade orgânica, na carência de iniciativa e inventividade, na falta de crença na possibilidade de aperfeiçoamento moral do homem, em descaso por tudo quanto não fosse fortuna rápida e, sobretudo, na falta de um ideal coletivo, na quase total ausência de sentimento de pertencer o individuo ao lugar e à comunidade em que vivia. O belonging dos americanos não existia no mazombo.

...“Desligado do que lhe ia em derredor para viver imaginativamente do outro lado do Atlântico, se lhe dissessem que as populações sul-americanas em geral e as brasileiras em particular eram das mais mal alimentadas do mundo, ou que já sofriam de fome crônica, ou que os índices de mortalidade infantil no Brasil só podiam ser comparados com os da Índia, isso não lhe daria o mais mínimo abalo. Para vê-lo comovido seria preciso algo mais: seria preciso falar, em começos do século atual, na fome que passaram as crianças europeias na primeira guerra. Pobres das crianças belgas! Pobres das crianças francesas! E Vive Paris! E Vive la France! O, lá France, la France éternelle!

Cultura só a França a tinha, e sabedoria; e patriotismo, e finesse e savoir-faire. No mundo, a Europa; na Europa, a França; na França, Paris; em Paris, Montmartre. Decididamente, sem uma viagem a Paris não se completava nenhuma formação cultural digna desse nome.”

Evidentemente que a exportação de cérebros e mão-de-obra para o exterior, hoje em dia, não tem esta conotação indolente.


Gastão Tojeiro escreveu algumas peças com diferentes pseudônimos, e talvez seja mais um motivo para não aparecer em nenhum nome de rua, praça ou monumento público. Nos deixou um legado do modo de ser e se comportar do brasileiro que representa uma importante contribuição aos estudos de nossa identidade.