segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Fragmentos 9

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Intellectuals – Paul Johnson

A resenha está no blog Resumo de Livros. Clique aqui.




Antonio José Saraiva — A Inquisição e os Cristãos Novos

Saraiva descreve a organização dos processos do Santo Ofício como um sinal muito claro do que viria a ser a tradição jurídica medieval portuguesa (pg 143): “a interminável e enigmática burocracia sem sentido algum para quem penetrava nos seus corredores; a minúcia, o rigor do formulário e das regras processuais através dos quais se manifesta um arbítrio total e sem regras; a ignorância da culpa por parte do inculpado, e o sentimento de culpabilidade que o vai pouco a pouco possuindo à medida que se desenvolve a engrenagem; o encontrar-se o réu perante um vácuo insonoro (?) e ao mesmo tempo eloquentemente ameaçador, que não lhe responde a interrogação alguma mas levanta sempre novas perplexidades; a sua lenta degradação até uma abjeção de mendigo suplicante; a ignóbil execução a que finalmente se resigna.

"A mais na Inquisição haverá só o sentimento físico do cárcere, do tormento e em certos casos da fogueira. Mas este pode considerar-se secundário, ou melhor, talvez, como manifestação do outro. O essencial, num e noutro caso, é a aniquilação do indivíduo pela pergunta sem resposta; a presença enorme, a realidade destruidora desse sistema sem rosto e sem contorno, incansavel, eloquentemente falando para dizer nada: dando regras para que não haja regras; abrindo corredores que só conduzem a outros corredores. O essencial é também o sentir-se culpado o réu que não tem culpa”.

Tudo se parece como os procedimentos normais ainda hoje vigentes no estado brasileiro do ponto de vista da burocracia.

Sobre a moral medieval, Pierre Bayle escreveu: “de todas as ocupações da vida quase nenhuma é tão condenável – se observarmos segundo as regras da religião – como a mais comum, quero dizer, a das pessoas que trabalham para ganhar dinheiro quer pelo negócio quer por outros meios honestos. Os meios mais legítimos, humanamente falando, de enriquecer, são contrários não só ao espírito do evangelho, mas também às interdições literais de Jesus Cristo e de seus apóstolos”. Pg 207. Se tomarmos ao pé da letra esse quadro medieval português, podemos dizer que nossa vocação ao socialismo está dentro do aparelho religioso-jurídico da Inquisição, e que o totalitarismo está no nosso inconsciente e tem profundas implicações com o aparelho de estado como instrumento de proteção. Porém, o mais surpreendente é que Antonio Saraiva não perceba isso, mantendo um viés anticlerical como uma resposta socialista a uma diferença que existe só na forma, não no conteúdo.

Em 1621 o frade inquisidor de Lisboa dizia que eram judeus não só os que praticavam o judaísmo, mas também os que contrariavam o Santo Ofício. Esta declaração remete aos nossos tempos de ortodoxia em que se diz que são contrarrevolucionários todos os que se opõem ao governo revolucionário.

A expulsão dos cristãos-novos era contra os interesses da Inquisição porque esta se via privada da matéria-prima dos processos dos auto-de-fé: alegavam que a saída dos judaizantes privava o tribunal de testemunhas para novos processos.

[O negativismo espiritual só encontra abrigo no estatismo. Desenvolver].

Cavaleiro de Oliveira – Discours Pathétique – de 1756. Discurso sobre a insatisfação pessoal contra a religião e seus métodos, por um exilado de Portugal.

D. Luís da Cunha chama a atenção para a decadência da manufatura açucareira no Brasil em consequência da perseguição inquisitorial. Para ele, Portugal sofre de uma sangria, de um lado a Inquisição, e de outro a fradaria, a multidão de ociosos que se abriga à sombra dos conventos.

Luis Antonio Verney, ao tempo do Marquês de Pombal, manda uma carta à Roma propondo a reforma do Santo Ofício onde diz: “Cristo não mandou que se matasse alguém por delito de religião, nem durante muitos séculos, os Concílios e os Papas mandaram tal coisa. Isto é uma invenção dos séculos bárbaros e uma imitação de Mafamede [islamista] que depois adotaram os portugueses e os espanhóis nas quatro partes do mundo, matando cruel e injustamente milhões de homens, com o pretexto de fazer cristãos, mas na verdade, para rapinar-lhes os tesouros e os reinos. Estas não são coisas que se devem permitir num século iluminado”. Pg 307.

Cabral de Moncada publicou a carta completa de Verney em 1941. “Um iluminista português no século XVIII”.

Jacobeus – seita religiosa atribuída por Pombal, significando as maquinações dos denominados jesuítas.

Lúcio D'Azevedo. História dos Cristãos Novos.

O desparecimento dos cristãos-novos na fase de repressão pós-pombalina comprova que a “Inquisição era uma fábrica de judeus”.


Osvaldo Peralva – O Retrato

Narração autobiográfica de um comissário do PCB nos anos 50 em ação no Movimento Comunista Internacional através de sua atividade no Kominform, primeiro em Belgrado e depois em Bucareste.

Excelente livro de análise didática da mentalidade marxista no movimento social. Explica como esta mentalidade se desenvolve na adoração de seus ícones que usavam o aparato e a figura central do Grande Chefe Stalin louvado como um deus.

Mas esta mesma atitude se volta contra os adversários na forma de uma devastadora calúnia. Na pag 165 descreve a questão iugoslava do ponto de vista do Kremlin em palavras que correspondem exatamente ao procedimento utilizado pelo PT contra seus adversários do PSDB. Na pg 196 fala da mentalidade policial do PCB e dos comunistas orgânicos, que transcreverei no artigo sobre a mentalidade petista.

Pg 265 – o marxismo é considerado uma “doutrina completa e acabada” e transformado assim, numa coleção de dogmas, defendida pelo escolástico princípio da autoridade: magister dixit.

Evidentemente Peralva caiu fora da rede e faz o mea culpa com seu depoimento.


Ferreira de Castro – A Selva

Vol 1 das Obras completas que comprei no sebo do Messias.
Apresentado como um revolucionário pelos brasileiros da academia, Ferreira de Castro inicia sua obra com uma reminiscência altamente conservadora (pg 101) em que confronta o espírito de liberdade prometida pelas novas doutrinas europeias, com a visão do personagem Alberto dos valores tradicionais.

Importante novela sobre o ciclo da borracha, a condição de escravidão imposta aos seringueiros, a impossibilidade de fugir do meio da selva cujos rios eram vigiados permanentemente e o lento definhar daqueles homens condenados a trabalhar para pagar as contas do armazém mantido pelo coronel cujos preços das mercadorias eram arbitrários, e o preço pago pela extração do látex cada vez mais baixos devido ao mercado internacional. Um depoimento contundente do caos brasileiro no início do século XX.

Ferreira de Castro era português que veio a Belém quando adolescente e depois conheceu de perto a extração da borracha, fazendo a contabilidade de uma “plantação” para um coronel. Dedicado à literatura, tornou-se um espécie de Victor Hugo de Portugal pela narrativa de romances de comunidades pobres em busca de uma vida melhor.

Nacos:
Alvedrio – vontade própria.
Magarefe – carniceiro de matadouro; indivíduo desonesto.


Albert Camus – The Rebel – Tradução inglesa de L'Homme Revolté

Li duas vezes e não anotei o essencial, exceto uma observação sobre o niilismo. Camus é importante não só como novelista, mas também como ensaísta. Ele se situa na tradição francesa de elaborar um pensamento crítico com a sensibilidade retórica literária, algo que não se vê no mundo anglo-saxão. [Percebi isso ao comparar os escritos de Tocqueville com os de Lord Acton sobre a Revolução Francesa. Para Tocqueville, importam os sentimentos que geram as opiniões políticas, para Acton, os fatos que se movem entrelaçados].

Pg 221 - “A história do niilismo contemporâneo é nada mais do que um prolongado esforço de ordenar somente pelas forças humanas a história não mais dotada de ordem. O falso raciocínio termina pela autoidentificação com a acuidade e estratégia, enquanto espera culminar em um Império Ideológico. Que parte pode a ciência desempenhar neste conceito? Nada é menos determinante em uma conquista do que a razão humana. A história não é feita com escrúpulos científicos; estamos até mesmo condenados a não fazer história a partir do momento em que reivindicamos agir com objetividade científica. A razão não é pregadora ou se o for, não é razão. Por isso a razão histórica é uma forma irracional e romântica de pensamento que algumas vezes reivindica a lógica falsa do insano e outras vezes a afirmação mística do mundo”.

Ver Jules Monnerot – Sociologie du Communisme, Parte III.

Camus entende que o niilismo é um movimento que objetiva negar tudo aquilo que não seja ele mesmo, isto é, aquilo que ele define como verdade. Não é o que tenho percebido, razão pela qual o niilismo tem características nacionais.


Edmund Wilson — Os Anos 20

Não se trata de um romance, nem de livro de memórias, porém de um livro com anotações do autor sobre seus encontros, conversas, relacionamentos e viagens há quase cem anos atrás. Embora tenha alguns textos interessantes, percebe-se a tentativa de EW fazer o trabalho de composição fragmentada inventado por seu amigo John dos Passos. Ficou ruim. Não é livro para recomendar e sequer necessário à leitura. Registro minha opinião devido a inexplicável fama que o livro produziu no Brasil.


Ferreira de Castro — A Lã e a Neve

Novela ao estilo Victor Hugo, narrando as dificuldades na vida de um jovem que retorna do serviço militar e quer casar com a moçoila de sua aldeia, mas não quer viver a pobreza humilhante da vida de pastor de ovelhas. Decide ser operário e fazer carreira em um dos muitos lanifícios das redondezas, mas o desemprego é geral, as dificuldades imensas e seu sonho de ter uma casa e uma família vai sendo adiado.

A SELVA, um clássico da vida amazônica dos seringueiros, consegue uma descrição realista de um mundo pouco valorizado sem fins políticos e proselitismo ideológico. Em a Lã e a Neve FC se coloca na posição do intelectual do início do século XX, acalentando o sonho utópico do socialismo. O livro vale a pena ser lido para conhecimento da pobreza social como decorrência de condições históricas que ninguém consegue entender, e por isso mesmo transfere para uma religião secular anunciadora de novos tempos.


Paulo Francis — O Afeto que se Encerra

Leio uma autobiografia para entender melhor o Brasil através do depoimento do autor. PF é tão autocentrado, tão narcisista que seus livros revelam o Brasil apenas de passagem, sem adentrar em fatos e sem análise aprofundada de nenhum episódio.

O fato é que PF conta todo o seu passado de trotskista e ator de teatro junto a maior bicha louca do teatro nacional da época. Em certo momento descamba para analisar a revolução russa, uma paixão que sempre manteve nos tempos do Pasquim. Como não gosto do oba-oba de jornalistas, nunca fui apegado a PF, embora reconheça que tinha muito carisma, mas sua arrogância intelectual tinha algo particularmente carioca, onde os maiores intelectuais de sua geração liam apenas os ingleses e americanos e achavam que com isso tinham todo o mundo em suas cabeças. Millor Fernandes sequer conheceu seu homônimo argentino, Macedônio, de onde poderia ter tirado muita inspiração se não fosse a síndrome colonial da ex-capital do Brasil, e Ivan Lessa seguia a mesma cartilha.

Nacos:
Nelson Werneck de Castro – Memórias de um Soldado. [Procurar]
Derriço — 1. encontro, conversação ou contato amoroso; namoro, galanteio. 2. parceiro amoroso; namorado.
Traulitava – Cantarolava. Levar um porrete.
Senescente – Envelhecendo.


Edward Gibbon — A Queda de Império Romano

Importante estudo de Gibbon, traduzido ao português por JPPaes de um capítulo de seu monumental estudo sobre a Queda do Império Romano. As partes abaixo foram copiadas e coladas do Kindle.

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A aquisição de conhecimentos, o exercício da razão ou da imaginação e o deleitoso fluxo da conversação despreocupada podem bem ocupar os lazeres de um espírito liberal. Distrações que tais eram porém rejeitadas com aversão ou admitidas com extrema cautela pela severidade dos pais da Igreja, os quais desprezavam todo conhecimento que não fosse útil à salvação e consideravam toda leviandade de linguagem como um abuso desse dom.

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A vida severa e retirada que levavam, infensa ao luxo festivo da época, fazia-os habituarem-se à castidade, à temperança, à frugalidade e a todas as virtudes sóbrias e domésticas. Como tinham, na grande maioria, algum ofício ou profissão, cumpria-lhes, com a mais rigorosa integridade e a mais reta conduta, afastar as suspeitas que os profanos costumam nutrir contra as mostras de santidade. O desprezo do mundo os adestrava nos hábitos de humildade, mansidão e paciência.

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A primeira sensação de prazer era tida como o primeiro momento de seu abuso. Instruía-se o insensível candidato ao céu não apenas a resistir aos amavios mais grosseiros do paladar ou do olfato, mas até mesmo a fechar os ouvidos à profana harmonia de sons e a olhar com indiferença as mais elaboradas produções de arte humana. Vestuário garrido, casas luxuosas e mobiliário elegante eram considerados fonte do duplo pecado da soberba e da sensualidade;

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...convinha antes aos cristãos convictos de seus pecados e duvidosos de sua salvação uma aparência simples e mortificada. Em suas censuras ao luxo, os pais da Igreja eram extremamente minuciosos e circunstanciais; entre os diversos artigos que lhes excitavam a piedosa indignação podemos enumerar as perucas, os trajes de outra cor que não a branca, os instrumentos de música, os vasos de ouro ou prata, as almofadas macias (visto que Jacó pousava a cabeça numa pedra), o pão branco, os vinhos estrangeiros, os cumprimentos públicos, o uso de banhos quentes e o hábito de barbear-se, o qual, segundo a expressão de Tertuliano, é uma mentira contra nossos próprios rostos e uma tentativa ímpia de melhorar a obra do Criador.

Quando o cristianismo se introduziu entre os ricos e os elegantes, a observância desses singulares preceitos foi deixada, como o seria hoje, aos poucos que aspirassem à superior santidade. Mas é sempre fácil, tanto quanto agradável, para as classes inferiores da humanidade, alegar como mérito o desprezo daquela pompa e daqueles prazeres que a fortuna lhes pôs fora do alcance. A virtude dos cristãos primitivos, tal como a dos primeiros romanos, tinha a guardá-la, com muita frequência, a pobreza e a ignorância. A casta severidade dos pais da Igreja em tudo quanto respeitasse ao comércio dos dois sexos resultava do mesmo princípio — a aversão por qualquer desfrute que pudesse satisfazer a natureza sensual do homem e degradar-lhe a natureza espiritual. Sua opinião favorita era a de que, se Adão se tivesse mantido obediente ao Criador, teria vivido para sempre num estado de virginal pureza, e algum inofensivo modo de vegetação teria povoado o paraíso com uma raça de seres inocentes e imortais.

O recurso ao casamento fora consentido à sua decaída posteridade tão só como um expediente necessário à continuação da espécie humana e uma restrição, ainda que imperfeita, à natural licenciosidade do desejo. A hesitação dos casuístas ortodoxos no tocante a esse interessante tópico denuncia a perplexidade de homens relutantes em aprovar uma instituição que estavam compelidos a tolerar.

A enumeração das leis tão excêntricas, que com grande minuciosidade impunham ao leito matrimonial, faria os rapazes sorrirem e as donzelas enrubescerem. Era unânime entre eles a opinião de que um primeiro casamento bastava para atender a todas as necessidades da natureza e da sociedade. A ligação carnal se refinava num símile da união mística de Cristo com sua Igreja, sendo declarada indissolúvel quer pelo divórcio quer pela morte. A prática de segundas núpcias era estigmatizada com o labéu de adultério legal, e as pessoas inculpadas de tão escandalosa ofensa contra a pureza cristã logo se viam excluídas das honras, e mesmo dos braços, da Igreja. Como se tinha o desejo por crime e se tolerava o casamento como um defeito, não discrepava dos mesmos princípios considerar o estado de celibato o mais próximo da perfeição divina. Era com a maior das dificuldades que a Roma antiga podia suportar a instituição de seis vestais; a Igreja primitiva, todavia, contava um grande número de pessoas de ambos os sexos devotadas à profissão da perpétua castidade. Algumas, entre as quais podemos incluir o douto Orígenes, achavam mais prudente desarmar o tentador. Outras eram insensíveis e outras ainda invencíveis aos assomos da carne.

Desdenhando uma fuga ignominiosa, as virgens do cálido clima da África enfrentavam o inimigo bem de perto: consentiam que padres e diáconos lhes partilhassem o leito e se jactavam de sua imaculada pureza em meio às chamas. Mas a Natureza ofendida reivindicava por vezes seus direitos e essa nova espécie de martírio servia tão só para introduzir um novo escândalo no seio da Igreja. Entre os ascetasi cristãos (uma designação que logo adquiriram em razão de seus dolorosos exercícios) muitos, no entanto, por menos presunçosos, tiveram maior êxito.

A perda dos prazeres da carne era substituída e compensada pelo orgulho espiritual. Mesmo a multidão dos pagãos tendia a medir o mérito do sacrifício por sua dificuldade aparente, e em louvor de tais esposas de Cristo e sua castidade foi que os pais da Igreja derramaram a inquieta torrente de sua eloquência. Tais são os primeiros vestígios dos princípios e instituições monásticos que, em época subsequente, contrabalançaram todas as vantagens temporais da cristandade. Os cristãos não se mostravam menos avessos aos negócios que aos prazeres deste mundo.

Não sabiam como reconciliar a defesa de nossas pessoas e propriedades com a paciente doutrina que inculcava perdão ilimitado das injúrias passadas e convidava à repetição dos insultos recentes. A simplicidade deles se ofendia com o uso de pragas, com a pompa da magistratura e com as ativas contendas da vida pública; sua humana ignorância não podia convencer-se de que fosse lícito, em qualquer ocasião, derramar o sangue de nossos semelhantes, quer pela espada da justiça, quer pela da guerra, ainda que os atentados hostis destes pusessem em risco a ordem e a segurança de toda a comunidade.

Reconheciam os cristãos que, sob lei menos perfeita, os poderes do Estado judeu haviam sido exercidos, com a aprovação do céu, por profetas inspirados e por reis ungidos. Achavam e declaravam, por conseguinte, que instituições que tais poderiam ser necessárias ao atual sistema do mundo, e de bom grado se submetiam à autoridade de seus governantes pagãos. Mas embora inculcassem as máximas da obediência passiva, recusavam-se a tomar qualquer parte ativa na administração civil ou na defesa militar do Império. Talvez mereçam alguma indulgência as pessoas que, antes de sua conversão, já estavam empenhadas em tais ocupações violentas e sanguinárias; era todavia impossível aos cristãos, sem renunciar a um dever mais sagrado, assumir a condição de soldados, de magistrados ou de príncipes.

O descaso negligente ou até criminoso pelo bem-estar público os expunha ao desprezo e às censuras dos pagãos, que muito frequentemente perguntavam qual deveria ser a sina do Império, atacado de todos os lados pelos bárbaros, se toda a humanidade adotasse os pusilânimes sentimentos da nova seita. A essa pergunta insultante os apologistas cristãos davam respostas obscuras e ambíguas, por não terem desejo de revelar a causa secreta de sua segurança — a esperança de que, antes de completar-se a conversão da humanidade, a guerra, o governo, o Império Romano e o próprio mundo não existissem mais. Cumpre observar que, também nesse caso, a situação dos cristãos primitivos coincidia de forma muito feliz com seus escrúpulos religiosos e que sua aversão por uma vida ativa contribuía antes para isentá-los do serviço militar do que para excluí-los das honrarias do Estado e do exército.

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Como a autoridade legislativa das igrejas individuais foi sendo progressivamente substituída pelo uso de conselhos, os bispos adquiriram, por via de sua aliança, um quinhão muito maior de poder executivo e arbitrário; tão logo se vincularam pela consciência de seus interesses comuns, ficaram capacitados a atacar, com vigor conjunto, os direitos originais de seu clero e da comunidade. Os prelados do século III aos poucos foram convertendo a linguagem da exortação em linguagem de comando, espalhando as sementes de futuras usurpações e suprindo com alegorias e retórica declamatória das Escrituras suas deficiências de força e de razão.

Mas enquanto as contribuições da comunidade cristã fossem livres e voluntárias, o abuso de sua confiança não podia ser muito frequente e os fins gerais em que sua liberalidade era usada só honravam a instituição religiosa. Uma parte razoável estava reservada à manutenção do bispo e de seu clero; uma soma suficiente destinava-se às despesas do culto público, do qual as festas de amor — os agapoe, tais como eram chamados — constituíam parte muito aprazível. Todo o restante formava o sagrado patrimônio dos pobres. De acordo com o juízo do bispo, era distribuído para amparar viúvas, órfãos, aleijados, enfermos e anciãos da comunidade, para auxiliar forasteiros e peregrinos, e para aliviar os sofrimentos de prisioneiros e cativos, especialmente quando tinham sido ocasionados por sua firme lealdade à causa da religião. Um generoso intercâmbio de caridade unia as províncias mais distantes, e as congregações menores eram prazenteiramente assistidas pelas esmolas de seus confrades mais opulentos.

Uma instituição assim, que atentava menos para o mérito do que para as aflições do assistido, promovia de modo assaz material o progresso da cristandade. Os mesmos pagãos que mofavam da doutrina reconheciam a benevolência da nova seita. A perspectiva de alívio imediato e de proteção futura atraía para seu seio acolhedor muitos daqueles infelizes que o descaso do mundo teria deixado entregues aos infortúnios da carência, da enfermidade e da velhice. É de crer, igualmente, que grande número de infantes abandonados por seus pais, de acordo com o costume desumano da época, foi frequentemente salvo da morte, batizado, criado e mantido pela piedade dos cristãos e à custa do tesouro.


Roger Scruton – Como Ser um Conservador

Na pg 51 ele enfatiza a ideia de que a busca de resultados enriquecedores em uma instituição não podem ser planificados, uma vez que nascem como “subproduto” do meio. Esquisito a primeira vista, mas ele quer dizer que o conjugado de ideias e aspirações de uma comunidade + espontaneidade social geram a riqueza e não a imposição de um projeto.

No capítulo A Verdade do Nacionalismo, pg 55, ele não discute aprofundadamente a questão ligada ao mal nacionalista, como o chauvinismo e sua abordagem não tem qualquer proveito para o brasileiro cujo nacionalismo sempre foi o “lado pensante” da linha auxiliar do antiamericanismo.

Importante é A Verdade do Socialismo e sua construção sobre a caridade e justiça as pgs 81 e 82.

“A Verdade no Multiculturalismo” pg 125 é até agora o capítulo mais eloquente porque mais adequado aos nossos males, uma vez que discorre sobre a cultura do repúdio, outra denominação para o niilismo. Esta cultura está enraizada nas Universidades.

Pgs 158-159 - “Assim como as outras verdades que tenho discutido, no entanto, a verdade no ambientalismo pode ser distorcida até se transformar em uma mentira, e, assim como em outros exemplos, essa transição do verdadeiro para o falso ocorre quando o impulso religioso substitui o ímpeto político”.

Pacta sum servanda – os acordos devem ser honrados.
Não entendi muito bem o capítulo A Verdade no Conservadorismo e a importância que ele atribui à conversação. Ortega y Gasset já tratou do tema, mas também só de passagem. Questões Práticas, o último capítulo, tem passagens interessantes.


Ralf Dahrendorf — Reflexões sobre a Revolução na Europa

Livro escrito a propósito da queda do Muro de Berlim.
Pg 138 – Se o monopólio do partido for apenas substituído pela vitória das massas, tudo será perdido antes de muito tempo, uma vez que as massas não tem estrutura nem permanência.

Pg 193 … ainda assim a autodeterminação continua a ser uma das ideias mais infelizes do direito internacional. Ela atribui direitos a povos quando deviam ser direitos de pessoas. Como resultado, convida usurpadores a reivindicar esse direito para povos em cujo nome falam, enquanto, ao mesmo tempo, esmagam minorias e, às vezes, os direitos civis de todos. Ver pgs 194 e 195.

Importante análise sobre a reconstrução da Europa Oriental a partir da queda do Muro de Berlim em 1989. Como escreveu em 1990, muitos fatos novos tornam sua análise obsoleta, mas o fulcro dos ensaios se concentra na questão da transição de sociedades comunistas para sociedades abertas em todas as questões relativas a liberdade, constituição e por aí afora.


Elias Canetti – Festas sobre as Bombas

Lembranças póstumas incompletas dos anos de Londres durante a Segunda Guerra. Canetti padeceu o exílio e sobreviveu em um ambiente estranho aos seus sentimentos que explora através da descrição de diversas pessoas com quem conviveu nos círculos londrinos. Me interessou apenas B. Russell, Herbert Read, Dylan Thomas, Steiner, Eliot e uns poucos mais. Não é um livro importante embora satisfaça a curiosidade jornalística do leitor pela vida alheia.

Canetti é as vezes bastante intimista, assumindo o papel de psicanalista de seus conhecidos com uma narrativa literária. Mas erra tremendamente ao ver na luta política do velho liberalismo inglês contra o socialismo-sindical uma perda social para a Inglaterra, que os anos Tatcher depois haveriam de confirmar.


Moyses Vellinho – Letras da Província

Existem tantos críticos literários quantos professores de letras mal sucedidos na arte de ficção deste país. Por isso, ignorá-los é dever de todo o escritor que procura enriquecer seu instinto e idiossincrasia por esforço próprio.

Fugi à regra e comprei o livro do Vellinho porque era seu leitor do tempo do Caderno de Cultura do Correio do Povo desde o final dos anos 60.

Mas logo no primeiro ensaio sobre Alcides Maia já levantei o sobrolho na altura da incredulidade. Vellinho é seguidor de José Veríssimo e não de Sylvio Romero. Criticando o estilo de A Maya (pg 12) ressalta a “falta de continuidade entre o estilo e o assunto”. Nada mais antiliterarário do que esta asserção equivocada. Por aí se vê como o crítico resvala na frivolidade do jornalismo, na suposta simplicidade estilística que nada mais é do que literatura de best-seller, leitura de entretenimento, texto podado em sua mais importante constituição: o estudo das formas de expressão.

Não por acaso Vellinho chamou o seu livro de Letras da Província. Se enganou por pouco: deveria ter chamado de Crítica Provinciana.

Proclama que A Maya usa deslumbroso por deslumbrante (pg 14), cabeladura por cabeleira, mas ele mesmo usa três páginas adiante “frustrâneo” por frustrado. E sobre João Pinto da Silva, afirma que como crítico “nunca desceu ao louvor camarário” (pg 52).

A obsessão regionalista de M. V. leva-o a redundantes metáforas carcomidas da época riograndense que envelheceu como seu próprio nome e recheiam suas críticas como se fossem coisas vivas e não simples aspectos provincianos de um folclore valentão. Assim, na pg 61 temos um exemplo da recorrência constante ao heroísmo que nada mais é do que o combustível final do caudilho: “paragens ensopadas de sangue”.

Na crítica de Os Ratos de Dionélio Machado, ele afinal reconhece que conteúdo e estilo se alinham plenamente em um programa. (pg 73)

Ver a questão das gramáticas e da degradação da linguagem no parágrafo das pags 74-75. Moises Vellinho se repete em seu impressionismo de palheta empastelada, como na crítica de A Noite de Erico Veríssimo.

Nacos:
Os arrebiques do estilo.
Arrebique – enfeite ridículo ou exagerado. Afetação.
Roman fleuve – (romance rio) – Novela com diversos capítulos.
Ínvio e obscuro
Quando a crítica se confunde com a tagarelice.
Aferição beneditina


Anatoli Ribakov – Os Filhos da Rua Arbat

Propagado como o melhor romance russo de sua época (1987), a edição brasileira peca pela péssima tradução. O professor Paulo Bezerra, de teoria da Literatura da UFRJ traduziu diretamente do russo, e teve o cuidado de explicar no prefácio aos leitores que o tema tratado, a vida na Rússia nos anos 30, só ocorreu devido aos desvios da doutrina marxista após a morte de Lênin. Com esta conclusão podemos perceber 3 coisas: 1) a obtusidade intelectual em defender a pureza do marxismo está relacionada e comprovada na 2) qualidade deplorável da tradução e 3) no ensino de teoria da literatura, esta pobre arte de escrever hoje completamente vulgarizada pelo jornalismo.

O tradutor usa “quebra lança” repetidas vezes no lugar de “bater canelas”, “suar a camiseta”, o que demonstra desconhecer a própria língua que escreve. A pior coisa em um tradutor é o desconhecimento do idioma em que traduz. Assim, o velho sobretudo russo vira casaco de frio.

Evidenciação por evidência.
Continua a narrativa com o tempo dos verbos trocados, os nonsenses da tradução em que o autor não demonstra ter noção de entender o prosaico da língua portuguesa.

Os nomes na novela de Ribakov são uma confusão. Ele apresenta sobrenomes e nomes e chama as pessoas ora por um ora por outro nome, deixando o leitor no maior sufoco de atenção para não se confundir. Uma construção desagradável do ponto de vista literário. Acho natural que se apresente alguém pelo nome completo, mas usar na mesma frase 2 nomes para a mesma pessoa passa por um desrespeito ao leitor. Será que existe alguma relação entre a apreciação que uma certa crítica possa atribuir à obra literária e a criação de dificuldades pelo autor? Parece que sim. A experiência tem demonstrado que um estilo voluntariamente espinhoso em uma linguagem simples ganha muito mais apreciadores do que um estilo ornamental e colorido em argumentos simples.

Meu Deus do céu! Um grupo senta no restaurante e olha o cardápio de vinhos. Um deles pergunta: – o que vamos beber? Escuro ou rosé?

Um tradutor que escreve vinho escuro deveria pegar 20 anos de prisão na Sibéria.

Oh no! Um formulário em quatro vias, o tradutor-professor-doutorado prefere escrever “um formulário em quatro exemplares”.

A última: O dentista saiu para algum lugar e voltou com um engradado cheio de uvas, no lugar de garrafas de vinho.

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