terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Fragmentos 13

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Esta página contém o resumo de um único livro

Por Que as Nações Fracassam – Acemoglu, Daron

Por não haver tal consenso, as regras que acabam regendo cada sociedade são definidas pela política: quem detém o poder e como esse poder pode ser exercido.


Teorias que não funcionam

Muitos acreditam também que a América Latina jamais enriquecerá devido ao caráter intrinsecamente libertino e carente de seu povo, que além disso sofre do mal da cultura “ibérica”, a tendência a deixar tudo para mañana (amanhã).

Defendemos que a conquista da prosperidade depende da resolução de certos problemas políticos básicos.

É exatamente por partir do pressuposto de que os problemas políticos já foram solucionados que a economia torna-se incapaz de apresentar uma explicação convincente das desigualdades mundiais.


A criação da prosperidade e da pobreza

A política é o processo pelo qual uma sociedade escolhe as regras que vão governá-la. A política permeia as instituições pelo simples motivo de que, por melhores que as instituições inclusivas sejam para a prosperidade econômica de cada país, para certas pessoas ou grupos, como a elite do Partido Comunista da Coreia do Norte ou os latifundiários da cana-de-açúcar da Barbados colonial, será muito mais vantajoso estabelecer instituições extrativistas [patrimonialistas]. Sempre que houver conflito em torno das instituições, o que acontecerá vai depender das pessoas ou grupos que vencerem o jogo político – quem conseguir mais apoio, obtiver mais recursos e formar mais alianças eficazes. Em suma, o vencedor será determinado pela distribuição de poder político na sociedade.

As instituições econômicas e políticas, que em última instância são sempre frutos de escolhas da sociedade, podem ser inclusivas e estimular o crescimento econômico ou extrativistas e obstaculizá-lo.

[Ele não usa o termo patrimonialismo, porém extrativismo. Estive tentado a substituir todas as palavras, mas desisti, porque não sei se a expressão extrativismo tem alguma repercussão acadêmica].


Pequenas diferenças e conjunturas críticas: o peso da história

A Europa Ocidental, que experimentou muitos dos mesmos processos históricos, tinha instituições similares às inglesas na época da Revolução Industrial. Havia diferenças sutis, mas significativas, entre a Inglaterra e o resto, e por isso a Revolução Industrial deu-se na Inglaterra e não na França. A revolução criou então um contexto absolutamente inédito – assim como uma série de desafios específicos para os regimes europeus, que por sua vez deu origem a uma nova sucessão de conflitos, que culminariam na Revolução Francesa. Esta constituiria uma nova circunstância crítica, que fez as instituições da Europa Ocidental irem ao encontro das inglesas, ao passo que o Leste Europeu distanciava-se ainda mais.

[Histórias e culturas diferentes produzem resultados diferentes, independente das instituições].


“Eu vi o futuro e ele funciona”: O crescimento sob instituições extrativistas

O crescimento foi tão abrupto que mesmerizou gerações de ocidentais, não só Lincoln Steffens. A Agência Central de Inteligência americana, a CIA, ficou mesmerizada. Os próprios líderes soviéticos deixaram-se fascinar – como aconteceu com Nikita Khrushchev, que se vangloriou, em 1956, num discurso a diplomatas ocidentais: “Vamos enterrar vocês [o Ocidente].” Ainda em 1977, um economista inglês defendia, em um livro de referência muito considerado nos meios acadêmicos, que as economias ao estilo soviético eram superiores às capitalistas em termos de crescimento econômico, sendo capazes de proporcionar emprego pleno e estabilidade de preços e até de injetar na população motivações altruístas. O pobre e velho capitalismo ocidental cansado de guerra só se saía melhor mesmo na concessão de liberdades políticas. Com efeito, o livro didático mais utilizado nas faculdades de Economia, de autoria do ganhador do Prêmio Nobel Paul Samuelson, previa repetidamente a iminente preponderância econômica da União Soviética. Na edição de 1961, Samuelson previa que a renda soviética teria ultrapassado a americana possivelmente em 1984, mas mais provavelmente até 1997. Na edição de 1980 houve ligeira alteração na análise, sendo as duas datas adiadas, respectivamente, para 2002 e 2012.

Um exemplo do que podia acontecer com quem levasse o trabalho a sério demais, em vez de ter a sensibilidade de adivinhar os desejos do Partido Comunista, é o caso do censo soviético de 1937. À medida que os resultados parciais iam chegando, foi ficando claro que apontariam para uma população de cerca de 162 milhões, muito menos do que os 180 milhões antevistos por Stálin e, de fato, abaixo dos 168 milhões que o próprio Stálin anunciara em 1934. O censo de 1937 era o primeiro realizado desde 1926 – e, portanto, o primeiro após as grandes fomes e os expurgos do começo da década de 1930. Os números corretos da população refletiam esses acontecimentos. A reação de Stálin foi mandar prender e deportar para a Sibéria, ou matar, os organizadores do censo. Ordenou então a realização de outro, ocorrido em 1939. Dessa vez, os recenseadores acertaram; descobriram que a União Soviética contava com 171 milhões de habitantes.


Diferenciação

Com as principais linhas de negócios sob o monopólio de uma elite cada vez mais restrita, o declínio era inevitável. Veneza, que parecia ter chegado à iminência de converter-se na primeira sociedade inclusiva do mundo, sucumbiu a um golpe. Suas instituições políticas e econômicas foram se tornando cada vez mais extrativistas, até que a cidade entrou em declínio. Em 1500, a população havia despencado para cem mil habitantes. Entre 1650 e 1800, enquanto a população da Europa crescia rapidamente, a de Veneza não parava de cair.

[Parece incrível que o autor não cite uma linha sobre o fechamento das rotas do Mediterrâneo e a ascensão inglesa].

A oposição às ferrovias acompanhou a oposição à indústria, exatamente como no Império Austro-Húngaro. Até 1842, havia uma única ferrovia na Rússia: a Tsarskoe Selo, que percorria os 27 quilômetros que separavam São Petersburgo das residências imperiais de Tsarskoe Selo e Pavlovsk.

A política contrária às estradas de ferro só seria revertida com a derrota definitiva da Rússia pelas forças inglesas, francesas e otomanas na Guerra da Crimeia (1853-1856), quando finalmente se compreendeu o grave risco para a segurança nacional que o atraso de sua rede de transportes representava.


Rompendo barreiras: A Revolução Francesa

A Revolução Francesa acarretou muita violência, sofrimento, instabilidade e guerra; não obstante, foi graças a ela que os franceses não se viram atados a instituições extrativistas que lhes bloqueassem o crescimento econômico e a prosperidade, como aconteceu com os regimes absolutistas do Leste Europeu – caso do Império Austro-Húngaro e da Rússia, por exemplo.

EXPORTANDO A REVOLUÇÃO

Às vésperas da Revolução Francesa, em 1789, os judeus de toda a Europa eram submetidos a severas restrições. Na cidade germânica de Frankfurt, por exemplo, sua vida era regulamentada pelas determinações de um estatuto que datava da Idade Média. Não podia haver mais de 500 famílias judias na cidade, todas obrigadas a viver em uma pequena área murada da cidade denominada Judengasse, gueto judeu – de onde não tinham permissão para sair à noite, aos domingos ou durante festividades cristãs. O Judengasse era incrivelmente apinhado. Tinha 400 metros de comprimento, mas não mais de 3,5 metros de largura; em certos pontos, menos de 3 metros. Os judeus viviam sob constante repressão e regulação. Todos os anos, no máximo duas novas famílias podiam ser admitidas no gueto e no máximo 12 casais judeus podiam contrair matrimônio – isso, se ambos contassem mais de 25 anos. Os judeus eram proibidos de cultivar a terra e comercializar armas, especiarias, vinho ou grãos. Até 1726, tinham de usar certos emblemas: dois círculos amarelos concêntricos para os homens e um véu listrado para as mulheres. Todos tinham de arcar com uma capitação especial. Quando estourou a Revolução Francesa, vivia no Judengasse de Frankfurt um jovem e bem-sucedido comerciante, Mayer Amschel Rothschild. Em princípios da década de 1780, Rothschild havia se estabelecido como o principal negociante de moedas, metais e antiguidades em Frankfurt. Como todos os judeus da cidade, porém, não podia abrir um negócio nem viver fora dos limites do gueto.

No Leste Europeu, incluindo a Prússia e a parte húngara do Império Austro-Húngaro, os servos encontravam-se presos à terra. Na parte ocidental do continente, essa forma mais estrita de servidão já havia desaparecido, mas os camponeses deviam aos senhores feudais um sem-número de taxas, tributos e obrigações trabalhistas. Por exemplo: no estado de Nassau-Usingen, estavam submetidos a 230 diferentes pagamentos, tarifas e serviços. As tarifas previam pagamento após um animal ser abatido, chamado de dízimo de sangue; havia também o dízimo das abelhas e o dízimo da cera. Se uma propriedade fosse comprada ou vendida, o senhor teria taxas a recolher. As guildas, que regulamentavam todos os tipos de atividade econômica nas cidades, normalmente gozavam também de mais força nesses lugares do que na França. Nas cidades de Colônia e Aachen, na Alemanha Ocidental, a adoção das máquinas de fiar e de tecer fora bloqueada por essas associações de ofícios. Muitas cidades (de Berna, na Suíça, a Florença, na Itália) eram controladas por umas poucas famílias. Os líderes da Revolução Francesa e, posteriormente, Napoleão exportaram a revolução para essas terras, derrubando o absolutismo, pondo fim aos vínculos feudais com a terra, abolindo as guildas e impondo igualdade perante a lei – a noção fundamental de estado de direito, que discutiremos em mais minúcias no próximo capítulo.

O clero foi destituído de seu status e poderes especiais, e as guildas, nas áreas urbanas, foram extintas ou, ao menos, gravemente enfraquecidas.


O círculo virtuoso

Para quem trata de instituições, as mudanças geopolíticas deveriam ser analisadas do ponto de vista da maior ou menor capacidade de adaptação e modificações.

[Na análise do império romano ele utiliza dados históricos].


Não no nosso quintal: barreiras ao desenvolvimento

Francisco I impediu o desenvolvimento da indústria. A indústria levaria à fábricas (sic), e as fábricas concentrariam trabalhadores pobres nas cidades, sobretudo na capital, Viena. Esses trabalhadores se aliariam, então, aos adversários do absolutismo. Todas as suas políticas pretendiam congelar as elites tradicionais em seu lugar e manter intocado o status quo político e econômico. Sua intenção era manter a sociedade basicamente agrária – e a melhor maneira de atingir seu objetivo, acreditava ele, era, antes de qualquer coisa, impedir a construção das fábricas. Suas intervenções nesse sentido não podiam ser mais diretas; em 1802, por exemplo, a criação de novas fábricas em Viena foi proibida.

O comentarista inglês Edmund Burke, conservador e ferrenho opositor da Revolução Francesa, escreveu, em 1790: “É com infinita cautela que um homem deve arriscar-se a pôr abaixo um edifício que, em alguma medida tolerável, respondeu por séculos aos objetivos comuns da sociedade ou a propor-se a reerguê-lo sem ter diante dos olhos modelos e padrões de comprovada utilidade.” Em termos gerais, Burke equivocou-se. A Revolução Francesa veio substituir um edifício condenado e abriu caminho para instituições inclusivas não só na França, mas em boa parte da Europa Ocidental.

O apogeu das reformas progressistas ocorreu com a eleição de Woodrow Wilson, em 1912. Em seu livro lançado em 1913, A Nova Liberdade, Wilson assinala: “Se o monopólio persistir, terá sempre as rédeas do governo nas mãos. Não guardo expectativas de que verei o monopólio conter a si mesmo. Se houver neste país homens de porte grande o bastante para apoderar-se do governo dos Estados Unidos, eles o farão”.

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A essa altura, Mengistu era o líder inequívoco do Derg. Como residência, o lugar de onde governaria a Etiópia, ele havia escolhido o Grande Palácio de Selassié, que havia ficado desocupado desde a abolição da monarquia. Na celebração, ele se acomodou em uma poltrona dourada, como os imperadores de antigamente, para assistir à parada. O Grande Palácio voltou a sediar o governo, e o antigo trono de Hailé Selassié passou a ser ocupado por Mengistu – que começou a comparar-se ao Imperador Tewodros, que havia reinaugurado a Dinastia Salomônica, em meados do século XIX, após um período de declínio.

Um de seus ministros, Dawit Wolde Giorgis, registra em suas memórias: No começo da revolução, todos havíamos rejeitado fervorosamente tudo o que guardasse qualquer relação com o passado. Recusávamo-nos a dirigir automóveis ou usar ternos e considerávamos criminosas as gravatas. Tudo o que nos conferisse um aspecto abastado ou burguês, tudo que tivesse laivos de opulência ou sofisticação era desprezado como parte da velha ordem. Todavia, por volta de 1978, isso começou a mudar. Pouco a pouco, o materialismo passou a ser não só aceito, mas necessário. Trajes assinados pelos melhores alfaiates europeus tornaram-se os uniformes de todos os mais altos funcionários do governo e membros do Conselho Militar. Tínhamos o melhor de tudo: as melhores moradias, os melhores carros, o melhor uísque, champanhe, comida. Uma total inversão dos ideais da revolução.

Giorgis recorda também vividamente como Mengistu mudou após transformar-se no único governante: Mengistu revelou sua verdadeira face: vingativo, cruel e autoritário [...]. Muitos de nós, que conversávamos com ele de igual para igual, com as mãos nos bolsos, começamos a nos pegar em posição de sentido, adotando uma atitude cautelosamente respeitosa em sua presença. Ao dirigirmo-nos à sua pessoa, sempre havíamos usado a forma familiar “você”, antes; agora, preferíamos o mais formal “senhor”, ersiwo . Ele se mudou para uma sala maior e mais suntuosa no Palácio de Menelik [...]. Começou a usar os automóveis do imperador [...]. Onde originalmente se supunha que houvesse uma revolução de igualdade, ele agora se tinha convertido no novo imperador.


Por que as nações fracassam hoje

ONDE O ALGODÃO É REI

O algodão responde por cerca de 45% das exportações do Uzbequistão, o que faz dele o produto agrícola mais importante do país desde o estabelecimento da independência, a partir do desmanche da União Soviética, em 1991. Na vigência do comunismo soviético, todas as terras aráveis do Uzbequistão encontravam-se sob o controle de 2.048 fazendas estatais, que após 1991 foram dissolvidas, e a terra, distribuída. Contudo, isso não significava que os fazendeiros tivessem autonomia para agir. O algodão era demasiado valioso para o novo governo do primeiro, e até agora único, presidente do Uzbequistão, Ismail Karimov. Assim, foram introduzidas regulamentações determinando o que os produtores poderiam plantar e exatamente por quanto poderiam vendê-lo. O algodão é uma exportação valiosa, e os agricultores recebem uma fração ínfima dos valores praticados no mercado mundial; o restante fica com o governo. Como ninguém plantaria algodão por esses preços, o governo os obriga. Hoje, cada fazendeiro tem de reservar 35% de suas terras ao algodão – o que causou muitos problemas, sendo um deles as dificuldades com o maquinário. Na época da independência, cerca de 40% da safra era colhida por colheitadeiras. Após 1991, não surpreende, em vista dos incentivos criados pelo regime do Presidente Karimov para os agricultores, que estes não se mostrassem nem um pouco dispostos nem a adquiri-las nem a cuidar de sua manutenção. Reconhecendo o problema, Karimov saiu-se com uma solução, na realidade, uma opção mais barata que as colheitadeiras: crianças em idade escolar. As cápsulas de algodão começam a amadurecer e estão no ponto para a colheita no começo de setembro, mais ou menos na altura da volta às aulas. Karimov determinou que os governadores locais enviassem cotas de entrega de algodão às escolas. No começo de setembro, os bancos escolares perdem 2,7 milhões de alunos (dados de 2006). Os professores, em vez de instrutores, tornam-se recrutadores de mão de obra. Gulnaz, mãe de duas dessas crianças, explicou o que acontece: No começo de cada ano letivo, aproximadamente no princípio de setembro, as aulas são suspensas e, em vez de irem para a escola, as crianças vão para a colheita do algodão. Ninguém pede autorização dos pais. Não há descanso no fim de semana [durante a colheita]. Se por algum motivo uma criança fica em casa, seu professor ou o tutor da turma aparece para denunciar os pais. É feito um planejamento para cada uma, de 20-60 kg diários, dependendo da idade. Se alguma delas deixa de atingir sua meta, na manhã seguinte é repreendida na frente de toda a classe. A colheita se estende por dois meses. As crianças da região rural que têm a sorte de ser designadas para fazendas perto de casa, podem ir andando ou são levadas de ônibus para o trabalho. As que moram mais longe ou vêm das cidades têm de dormir nos telheiros ou currais, junto com as máquinas e o gado. Não há banheiros nem cozinhas. As crianças têm de levar sua própria comida para o almoço. Os principais beneficiários de todo esse trabalho forçado são as elites políticas, encabeçadas pelo Presidente Karimov, o rei de fato de todo o algodão uzbeque. Em tese, os estudantes são pagos pelo trabalho, mas só em tese. Em 2006, quando o preço mundial do algodão girava em torno de US$1,40 por quilo, as crianças recebiam cerca de US$0,03 por sua cota diária de 20-60 kg. Provavelmente 75% do algodão são hoje colhidos por crianças. Na primavera, as escolas fecham as portas para a capina do solo e transplante de mudas. Como se chegou a esse ponto?

Os interesses econômicos familiares são administrados pela filha de Karimov, Gulnora, que deve suceder o pai na presidência. Em um país tão pouco transparente e cheio de segredos, ninguém sabe ao certo o que a família Karimov controla nem quanto dinheiro ganha, mas a experiência da empresa americana Interspan é sugestiva do que se passou na economia do país nas últimas duas décadas. O algodão não é o único produto agrícola; determinadas regiões do país são ideais para o cultivo do chá, e a Interspan decidiu investir nessas áreas. Em 2005, tinha se apoderado de mais de 30% do mercado local, quando então começaram os problemas. Gulnora chegou à conclusão de que a indústria do chá parecia bastante promissora economicamente. Não demorou para que os funcionários locais da Interspan começassem a ser sistematicamente presos, surrados e torturados. As operações tornaram-se inviáveis e, em agosto de 2006, a empresa deixou o país.

Seus negócios passaram para as mãos da família Karimov, cujas atividades no setor expandiam-se rapidamente e, na época, representavam 67% do mercado – em contraste com os 2% de poucos anos antes com uma economia baseada em trabalhos forçados – especificamente, trabalhos forçados de crianças.

infelizmente, tem muito em comum com outras ex-repúblicas socialistas soviéticas, que compreendem desde a Armênia e o Azerbaijão até o Quirguistão, o Tadjiquistão e o Turcomenistão.

As reformas econômicas da década de 1990, conduzidas por economistas e instituições financeiras internacionais, visavam à libertação dos mercados e redução do papel do Estado na economia. Um dos pilares centrais dessas reformas é sempre a privatização de bens estatais. No México, o processo de privatização (páginas 29-30), em vez de aumentar a concorrência, limitou-se a converter os monopólios estatais em privados, promovendo o enriquecimento de empresários com boas conexões políticas, como Carlos Slim. Ocorreu exatamente o mesmo no Egito.


Por que as nações fracassam

As nações fracassam economicamente devido ao extrativismo [isto é, patrimonialismo] de suas instituições. São elas que mantêm os países pobres na pobreza e os impedem de enveredar por um caminho de crescimento econômico. É o caso, hoje, na África, de lugares como Zimbábue e Serra Leoa; na América do Sul, de países como Colômbia e Argentina; na Ásia, de lugares como Coreia do Norte e Uzbequistão; e, no Oriente Médio, de nações como o Egito. As diferenças entre esses países são evidentes. Alguns são de clima tropical, outros se encontram em latitudes temperadas. Alguns foram colônias britânicas; outros, do Japão, da Espanha e da Rússia. Apresentam as mais diversas histórias, idiomas e culturas. O que todos têm em comum são as instituições extrativistas. Em todos esses casos, a base dessas instituições é uma elite que estrutura as instituições econômicas de modo a locupletar-se e perpetuar o próprio poder, em detrimento da vasta maioria da população.


Compreendendo a prosperidade e a pobreza

O IRRESISTÍVEL CHARME DO CRESCIMENTO AUTORITÁRIO

As empresas que contam com o apoio do partido recebem contratos em termos favoráveis, desapropriam pessoas comuns de suas terras e transgridem impunemente leis e regulamentações.

O Acordo de Bonn – firmado em dezembro de 2001 entre líderes dos antigos mujahedin afegãos, que haviam colaborado com as forças americanas, e alguns dos principais membros da diáspora afegã, entre eles Hamid Karzai – definiu um plano para o estabelecimento de um regime democrático.

Uma multidão de funcionários de organizações de ajuda humanitária e suas respectivas comitivas afluiu para a cidade em seus jatinhos particulares; ONGs de todo tipo chegaram para cumprir seus próprios objetivos; e tiveram início elaboradas negociações entre governos e delegações da comunidade internacional. Bilhões de dólares eram agora despejados sobre o Afeganistão. Apenas uma parcela ínfima desse montante, porém, chegou a ser aplicada na construção de infraestrutura, escolas ou outros serviços públicos essenciais para o desenvolvimento de instituições inclusivas ou mesmo para a restauração da lei e da ordem.

Assim, contrataram os poucos burocratas com conhecimento de inglês e os professores que ainda restavam nas escolas para dirigir seus veículos e ciceroneá-los, pagando-lhes valores muito acima dos salários afegãos da época. À medida que os poucos burocratas qualificados eram desviados para a prestação de serviços para a comunidade de ajuda humanitária, os recursos externos, em vez de contribuir para a construção de infraestrutura no Afeganistão, ajudaram a solapar ainda mais o Estado que deveriam estruturar e fortalecer.


Os aldeões de um distrito remoto

[…] no vale central do Afeganistão ouviram pelo rádio um comunicado sobre um novo programa multimilionário para a construção de abrigos na região. Muito tempo depois, foram entregues algumas traves de madeira, trazidas pelo cartel de transporte de carga de Ismail Khan, conhecido ex-líder militar e membro do governo afegão. Como, porém, eram demasiado grandes para ter qualquer utilidade no distrito, os aldeões deram-lhe o único uso possível: lenha.

Dos recursos prometidos, 20% foram destinados aos custos administrativos da ONU, em Genebra. O resto foi terceirizado para uma ONG, que abateu mais 20% para cobrir seus próprios custos administrativos em Bruxelas – e assim por diante, por mais três camadas, nas quais cada parte se apropriava de mais 20% do restante que lhe chegava às mãos. A pequena quantia que chegou ao Afeganistão foi usada para comprar madeira no oeste do Irã e, em grande parte, para contratar o cartel de Ismail Khan, arcando com preços de transporte inflacionados. Foi quase um milagre que aquelas traves de madeira gigantes tivessem sequer alcançado a aldeia.

Vários estudos estimam que apenas 10% ou, no máximo, 20% dos recursos humanitários chegam ao seu destino.

No decorrer das últimas cinco décadas, centenas de bilhões de dólares foram destinados a governos de todo o mundo a título de fomento do “desenvolvimento”. A maioria desses recursos foi desperdiçada nos meandros da burocracia e da corrupção, como no Afeganistão.

Os mesmos problemas institucionais significam que a ajuda externa será ineficaz, pois será saqueada e dificilmente chegará às mãos de seus reais destinatários.


Ayn Rand — A Virtude do Egoísmo

Mas se a dúvida, não a confiança, é o estado moral próprio do homem; se a autodesconfiança, não a autoconfiança, é a prova de sua virtude — se o medo, não a autoestima, é a marca da perfeição; se a culpa, não o orgulho, é a sua meta — então a doença mental é um ideal moral, os neuróticos e psicóticos são os mais altos expoentes de moralidade, e os pensadores, os realizadores, são os pecadores, aqueles que são corruptos demais e arrogantes demais para buscar a virtude e o bem-estar psicológico, pela crença de que eles estão incapacitados a existir.

[…] o suposto atalho para o conhecimento, que é a fé, nada mais é que um curto-circuito que destrói a mente.

A humildade é, por uma questão de necessidade, a virtude básica de uma moralidade mística: é a única virtude possível para homens que renunciaram à razão.

O orgulho tem de ser merecido; é a recompensa do esforço e da conquista; mas a essência da moralidade, segundo ensinam aos homens, consiste em autossacrifício: o sacrifício das suas razões a alguma autoridade maior, e o sacrifício dos seus valores a quem quer possa afirmar desejá-los.

O primeiro é o fato de que autossacrifício significa — e somente pode significar — sacrifício da razão. Um sacrifício, deve-se lembrar, significa a rendição de um valor maior a favor de um menor ou a algo sem valor.

Os místicos declaram que tudo que exigem do homem é que ele sacrifique sua felicidade? Sacrificar a sua felicidade é sacrificar os seus desejos; sacrificar os seus desejos é sacrificar os seus valores; sacrificar os seus valores é sacrificar o seu julgamento; sacrificar o seu julgamento é sacrificar a sua razão — e é nada menos do que isto que a crença do autossacrifício almeja e exige.

Consequentemente, a maioria dos sistemas políticos era uma variante da mesma tirania estatista, diferindo apenas em grau, não em princípio básico, limitada apenas pelos acidentes da tradição, do caos, da disputa sangrenta e colapso periódico...

Têm-se observado frequentemente que, apesar do seu progresso material, o gênero humano não alcançou nenhum grau comparável de progresso moral. Esta observação é usualmente seguida de alguma conclusão pessimista a respeito da natureza humana. É verdade que o estado moral do gênero humano é vergonhosamente baixo. Mas, se considerarmos a inversão moral monstruosa dos governos (tornada possível pela moralidade altruísta-coletivista), sob a qual a Humanidade tem sido obrigada a viver ao longo da maior parte da sua história, começaremos a admirar como os homens conseguiram preservar uma certa aparência de civilização, e qual vestígio indestrutível de autoestima os tem mantido caminhando verticalmente sobre dois pés. Começa-se também a ver mais claramente a natureza dos princípios políticos que têm de ser aceitos e defendidos, como parte da batalha para a Renascença intelectual do homem.

Nos escritos dos medievalistas e socialistas, pode-se observar o anseio inconfundível por uma sociedade na qual a existência do homem será automaticamente garantida a ele — isto é, na qual o homem não terá de carregar a responsabilidade por sua própria sobrevivência. Ambos os lados projetam sua sociedade ideal como aquela caracterizada por algo que chamam de ‘harmonia, pela liberdade de mudança rápida ou desafio ou exigências rigorosas de competição; uma sociedade na qual cada um deve fazer sua parte prescrita para contribuir para o bem-estar do todo, mas onde ninguém enfrentará a necessidade de fazer escolhas e decisões que afetarão crucialmente sua vida e futuro; onde a questão do que alguém obteve ou não, e merece ou não, não aparecerá; onde as recompensas não serão ligadas à conquista, e onde a benevolência de alguém garantirá que nunca se precise suportar as consequências dos erros de alguém. O fracasso do capitalismo de submeter-se ao que pode ser denominado como esta visão pastoral da existência, é essencial à acusação dos medievalistas e socialistas sobre uma sociedade livre. Não é um Jardim do Éden o que o capitalismo oferece aos homens.”

O racismo é a forma mais baixa e mais cruelmente primitiva de coletivismo.

O racismo afirma que o conteúdo da mente de um homem (não seu aparato cognitivo, mas seu conteúdo) é herdado; que as convicções, caráter e valores de um homem são determinados antes de seu nascimento, por fatores físicos além de seu controle. Esta é a versão do homem das cavernas da doutrina das ideias inatas — ou do conhecimento herdado —, a qual tem sido completamente contestada pela filosofia e pela ciência. O racismo é uma doutrina de, por e para brutamontes. É uma versão de quintal ou de fazenda de gado do coletivismo, apropriada à mentalidade que diferencia várias raças de animais, mas não animais e homens.


Donald Quataert — O Império Otomano

Tal como Bizâncio, praticavam uma espécie de cesaropapismo, um sistema segundo o qual o Estado controlava o clero.

Afinal de contas, a autoconsciência de um povo, da sua diferença e autonomia, das suas características particulares e singulares, nasce muitas vezes da sua comparação com o «outro» como forma de se auto-definir em termos daquilo que é, ou não.

Aliás, quando os europeus procuraram definir-se a si mesmos, fizeram-no, em parte, caracterizando-se segundo aquilo que não eram. Os europeus fizeram dos Otomanos o repositório do mal; identificaram as características que queriam possuir, atribuindo as contrárias ao seu inimigo. Foi, portanto, a crueldade em oposição à humanidade; a barbárie em contraste com a civilização; os infiéis contra os verdadeiros crentes.

No imaginário dessas populações europeias, cuja identidade estava ainda em formação, descrevia-se os Otomanos (os outros) como portadores de qualidades que os indivíduos civilizados (nós) não possuíam/não podiam possuir. No espírito do mundo europeu, os Otomanos ora eram terríveis, selvagens e «vis», ora tarados sexuais, devassos e dissolutos. Até mesmo no século XIX, a imaginação europeia rotulava o Oriente otomano como um antro de degenerada perdição dos prazeres pretensamente ausentes ou proibidos no salutar e civilizado Ocidente, onde os europeus eram, pelo contrário e de acordo com a sua convicção, ponderados, sóbrios, justos, sexualmente regrados, moderados e racionais.

No período da Reforma, os Otomanos foram, para muitas facções contestatárias, o verdadeiro castigo de Deus na Terra. Os anabatistas, reformadores radicais, sustentavam que os Otomanos eram um sinal de que Deus estava prestes a conquistar o mundo, ao que se seguiria a vinda do Anticristo; o Eleito destruiria os infiéis e dar-se-ia a Segunda Vinda de Cristo. Martinho Lutero, por sua vez, escreveu que os Otomanos eram um flagelo de Deus, um instrumento da ira divina pelo papado corrupto. Os católicos, por seu lado, consideravam que os «Turcos» eram a punição de Deus por permitir o êxito de Lutero e seus seguidores.

Porém, a maioria das narrativas relatava a crueldade dos Turcos, tal como a de Solimão, o Magnífico, em relação ao seu favorito, o grão-vizir Ibrahim. Numa peça francesa de 1612 Mehmed, o Conquistador, que foi na verdade um príncipe renascentista cosmopolita e requintado e conhecedor de várias línguas, transformou-se num brutal e cruel tirano cuja mãe era retratada bebendo o sangue de uma vítima.

No século XIX, os Otomanos forneceram contribuições notáveis no âmbito da música clássica europeia, introduzindo os instrumentos de percussão nas orquestras modernas

De 1720 até meados do século XIX, a chamada «música turca» – expressão que antes se aplicava aos instrumentos de percussão da orquestra – tornou-se a grande voga na Europa. As cortes europeias competiam entre si para produzir essas sonoridades turcas - os címbalos, os tímbales, os tambores, os bombos, os ferrinhos, as pandeiretas, os «sonhos» (um instrumento paviliforme composto por pequenos sinos). Esta música surgira com a banda dos Janízaros, que acompanhava os exércitos otomanos a fim de incitar as tropas e inspirar temor aos inimigos.

Surgiam por toda a parte os pseudo-sultões e sultanas, uma inovação de Madame de Pompadour na corte de Luís XV.

No século XIX, o turco libidinoso e de órgãos sexuais desproporcionados tornara-se uma característica importante da literatura pornográfica vitoriana.

E por volta do ano 1000, os Turcos nômadas (os chamados turcomanos) aproximaram-se das fronteiras orientais bizantinas. Oriundos das áreas circunvizinhas do lago Baikal, na Ásia Central, os povos turcos começaram a abandonar a ancestral zona de origem, passando a acorrer em elevado número ao Médio Oriente. Nas suas regiões de origem centro-asiáticas, o modo de vida turcomano caracterizava-se naquela época pelas crenças religiosas xamanísticas, pela dependência econômica da criação de gado e por valores sociais que enalteciam a bravura individual e uma considerável liberdade e mobilidade da nobreza feminina. O Livro de Dede Korkut, uma epopeia em estilo homérico, narra a história de valentes homens e mulheres, escrita pouco antes da expansão turcomana no Médio Oriente. Ele demonstra ainda que o tipo de governação turcomana era assaz fragmentado, obtendo-se a liderança por consenso e não tanto pela autoridade. Este conjunto de migrações – um importante fato na história mundial – deu origem a uma faixa de populações de língua turca, que se prolongava da Ásia Menor até às fronteiras ocidentais da China, iniciando, assim, a formação do Estado otomano. O modo de vida itinerante e politicamente fragmentado dos Turcomanos começou a causar grande perturbação no quotidiano das populações instaladas no planalto iraniano, que suportaram o impacto das primeiras migrações/invasões. À medida que os nômadas se deslocaram para as regiões do Médio Oriente já sedentarizado converteram-se ao Islamismo, embora conservassem muitos dos seus rituais e práticas xamanísticas. Nessas migrações faziam-se acompanhar dos respectivos animais, transtornando a economia dessas zonas bem como o fluxo das receitas tributárias pagas pelos agricultores aos seus governantes. Entre os invasores turcos nômadas incluía-se a família dos Seljúcidas, que liderava e era responsável pelos mais ou menos numerosos grupos de nômadas que rumavam para Ocidente. A família seljúcida tomou o poder no Irã e subjugou as populações rurais, assimilando de forma rápida a sua civilização pérsico-islâmica dominante; depois, enfrentou o problema da decisão a tomar relativamente aos nômadas que se lhe seguiram e que conturbavam a sedentária vida agrária no seu novo reino. A solução para a questão dos Seljúcidas seria encontrada na Anatólia bizantina.

As terras da Anatólia, além de férteis, eram habitadas principalmente por lavradores de outra fé – a cristã.

Além disso, entre 1204 e 1261 Constantinopla tomara-se a capital dos antigos cruzados; estes, em lugar de marchar sobre a Palestina, conquistaram a cidade imperial e pilharam as suas riquezas, estabelecendo o fugaz Império Latino-Cristão.

Os Otomanos recrutavam muitos gregos cristãos para as suas cada vez maiores fileiras militares (comandantes militares e soldados). Assim, muçulmanos e cristãos seguiram os Otomanos, não em nome de Deus mas pelo ouro e pela glória – pelas riquezas, pela posição e pelo poder que podiam alcançar.

João Cantacuzeno, [Que nome horrível].

Durante várias centenas de anos, as tropas otomanas foram as que mais cedo, com maior eficácia e em maior grau utilizaram armas de fogo, em comparação com as dinastias adversárias.

A infantaria equipada com canhões e armas de fogo desenvolveu-se em épocas muito recuadas, resultando numa estrondosa vantagem tecnológica, tanto contra os Sefévidas como no conflito dos Bálcãs.

Em muitas culturas, incluindo a otomana, a cavalaria impediu ou retardou a utilização de armas cuja recarga, além de muito demorada, era desonrosa para a ética guerreira de bravura e de coragem demonstrada no combate corpo-a-corpo.

Integravam o famoso corpo de Janízaros, um corpo de infantaria extremamente bem treinado e artilhado de armas de fogo, que alcançou inúmeros triunfos nos séculos iniciais do Império Otomano.
[…] a lealdade ao Estado-nação passou ser mais importante do que o vago sentimento de unidade cristã.

[…] guerras entre Habsburgo e Otomanos iniciadas no final do século XVII e que se arrastaram até ao século seguinte. Para fugir ao conflito, os sérvios ortodoxos migraram da sua região natal próxima do Kosovo, num fluxo intermitente rumo ao Norte. Até então, a área do Kosovo era predominantemente sérvia; porém, após a debandada dos Sérvios, a corrente migratória albanesa ganhou incidência gradual, sendo o espaço desocupado preenchido por albaneses. Alguns sérvios encaminharam-se para a Bósnia Oriental, onde a anterior maioria muçulmana deu, consequentemente, lugar a uma importante presença cristã. Outros sérvios atravessaram o Norte, atingindo os territórios dos Habsburgo, o que aconteceu, por exemplo, após as vitórias otomanas na guerra de 1736-1739. Aqui temos, então, o pano de fundo da crise entre Bósnios e Kosovares dos anos 90, no século XX. As migrações de natureza política verificadas noutros pontos do mundo otomano tiveram origens diferentes e uma magnitude consideravelmente maior. Deveram-se a dois conjuntos de acontecimentos. No que se refere ao primeiro, a Rússia dos czares conquistou Estados muçulmanos nas proximidades do litoral leste e norte do mar Negro, nos quais se incluía o canato da Crimeia; porém, havia muitos outros. Em segundo lugar, os Russos e os Habsburgo anexaram territórios otomanos ou promoveram a formação de Estados independentes no litoral ocidental do mar Negro bem como em toda a península balcânica. À medida que se desenrolavam estes processos, alguns muçulmanos que ocupavam a área fugiram, recusando-se a viver sob o domínio dos novos senhores. Contudo, muitos mais foram escorraçados pelos czares e pelos governos dos Estados que entretanto se haviam tornado independentes. Ambos consideravam que os muçulmanos eram inimigos, os indesejáveis «outros» que deviam ser expulsos a qualquer preço. Em resultado disso, os refugiados muçulmanos começaram a acorrer em grande número ao mundo otomano a partir de fins do século XVIII. Entre 1783 e 1913 calcula-se que tenham chegado ao Estado otomano, agora a perder território, cinco a sete milhões de refugiados, 3,8 milhões dos quais, pelos menos, eram súbditos russos. Por exemplo, de 1770 a 1784, cerca de 200.000 tártaros da Crimeia fugiram para Dobruja, no delta do Danúbio. Mais elevado ainda foi o número dos que partiram durante e depois da I Guerra Mundial; em 1921, nomeadamente, cerca de 100.000 refugiados afluíram a Istambul, muitos deles vindos da Rússia. Muitos refugiados partiram primeiro para dada zona, fixando-se depois noutras regiões dos Bálcãs otomanos e só abandonando a área quando ela se tornava independente. Um outro exemplo: cerca de dois milhões de pessoas saíram da região do Cáucaso com destino aos Bálcãs otomanos (12.000, aproximadamente, só em Sófia), à Anatólia e à Síria. A partida destes refugiados era voluntária ou ordenada pelo governo, para povoarem as fronteiras ou as terras desocupadas ao longo das novas vias férreas. Só em 1878, pelo menos 25.000 Circassianos chegaram ao Sul da Síria e 20.000 às proximidades de Alepo. Na Anatólia, o governo procedeu à instalação de refugiados, oferecendo-lhes muitas vezes incentivos para efetuar a ocupação das áreas situadas ao longo do caminho-de-ferro em expansão. O sofrimento dos refugiados era enorme: A dos emigrantes caucasianos não deve ter resistido à viagem, morrendo de fome e de doença. De 1860 a 1865 cerca de 53.000 pessoas perderam a vida em Trebizonda, no mar Negro, um importante ponto de entrada.

[…] Estas correntes migratórias deixaram marcas profundas, não sendo a menor delas as amargas memórias de extradição, ainda capazes de inflamar as relações entre países da atualidade, como seja a Turquia e a Bulgária. Hoje, os descendentes dos refugiados ocupam importantes cargos de liderança na economia e nas estruturas políticas da Jordânia, da Turquia e da Síria.

[…] A remessa de mercadorias por barco à vela era bastante mais barata e quase sempre mais rápida do que o transporte por terra. Este tornara-se proibitivo – salvo para distâncias curtas – porque a forragem consumida pelos animais custava mais do que os próprios produtos...

[…] no século XVIII, uma viagem de cerca de 1715 quilômetros de Istambul a Veneza, uma das principais rotas mercantis, podia levar apenas 15 dias, com ventos favoráveis. Mas, em condições adversas, a mesma viagem demoraria 89 dias.

De modo idêntico, o percurso Alexandria-Veneza (1760 quilômetros) podia ser rápido – 17 dias – mas também podia levar 89 dias, ou seja, o quíntuplo do tempo.

O navio mercante típico da época tinha capacidade para 50 a 100 toneladas, equipado com meia dúzia de tripulantes.

A rota caravaneira Alepo — Istambul estendia-se por 800 quilômetros, sendo precisos quarenta dias para o percurso;

Por outro lado, o transporte de gêneros alimentícios por caravana era raro, porquanto os custos eram geralmente superiores aos da venda. Por exemplo, o preço de um carregamento de cereais de Ancara para Istambul (cerca de 345 quilômetros) sofria um agravamento de 3,5 vezes; no caso de Erzumm para Trebizonda (300 quilômetros, aproximadamente), esse agravamento correspondia ao triplo.

Com a queda do império, os produtores ficaram num país – a Síria – e os consumidores noutro – a Turquia. Na tentativa de remodelar a nova colônia síria, transformando-a num satélite econômico, a França suspendeu a exportação de têxteis provocando, assim, o colapso da indústria de Alepo.

As medidas adotadas no século seguinte pelo Estado a favor do comércio livre incluíram, em 1826, a aniquilação dos Janízaros, defensores do monopólio e da restrição, a Convenção Anglo-Turca de 1838 e as duas reformas imperiais de 1839 e 1856.


Friedrich Nietzsche — A Visão Dionisíaca do Mundo

É conhecido que originalmente a tragédia não era mais do que um grande coro de canto.

Eurípedes era um pensador solitário, de modo algum do gosto da massa então dominante, na qual ele suscitava cautela como singular rabugento. A sorte não lhe era propícia, tampouco quanto à massa: e visto que para um poeta trágico daquele tempo a massa justamente fazia a sorte, compreende-se bem porque ele, durante o tempo de sua vida, conquistou tão escassamente a honra de uma vitória com suas tragédias. O que tanto impulsionou o dotado poeta contra a corrente geral? O que o desviou de um caminho que fora percorrido por homens como Ésquilo e Sófocles, e sobre o qual brilhava o sol do favor popular? Uma única coisa: justamente aquela crença na decadência do drama musical. Esta crença, porém, ele adquiriu nos bancos dos espectadores do teatro. Ele observou durante muito tempo, da maneira mais penetrante, que abismo se abria entre uma tragédia e o público ateniense. Aquilo, que era para o poeta o mais alto e o mais difícil, não era sentido pelo espectador absolutamente como tal, mas como algo indiferente. Muitas casualidades, que absolutamente são acentuadas pelo poeta, atingiam a massa com súbito efeito.

Sabedoria consiste em saber; e “não se sabe nada que não se possa exprimir e com que não se possa convencer os outros”. Este é aproximadamente o princípio daquela estranha atividade missionária de Sócrates, a qual deveria acumular em torno dele uma nuvem da mais negra malquerença, justamente porque ninguém estava em condições de atacar o princípio mesmo contra Sócrates, pois seria necessário para isso ter o que não se possuía absolutamente: aquela superioridade socrática na arte da conversação, na dialética.

[…] Os fanáticos da lógica são insuportáveis como as vespas.

A condenação intencionalmente grosseira e desconsiderada da arte tem, em Platão, algo de patológico: ele, que se alçou até este parecer somente por ira contra a própria carne, que espezinhou sua natureza profundamente artística em favor do socratismo, revela, na aspereza destes juízos, que a profunda ferida de seu ser ainda não tinha cicatrizado.

Tão logo surge o deus em sua máquina, notamos que Sócrates está atrás da máscara procurando colocar em equilíbrio felicidade e virtude em sua balança. Todos conhecem os princípios socráticos “virtude é saber: peca-se somente por ignorância. O virtuoso é o feliz.” Nestas três formas fundamentais do otimismo repousa a morte da tragédia pessimista.

Em dois estados o homem alcança o sentimento de delícia da existência, a saber, no sonho e na embriaguez.

Por toda parte se disseminou o otimismo socrático, que consiste em acreditar que através do conhecimento o homem chega ao ser íntimo de todas as coisas, enquanto verdade, enquanto permanência. Este otimismo, como podemos entender, fez com que o tipo humano hegemônico para toda a civilização baseada no socratismo deixasse de ser o guerreiro e o artista, para ser o homem de ciência, o técnico e o trabalhador — como podemos interpretar a partir do sentido que teve a Revolução Francesa para todo o Ocidente e consequentemente para toda a humanidade. Mas o socratismo, desde a sua origem, experimenta o devir como uma sucessão de crises. A disposição do homem em função do centro de certeza de si da consciência não foi suficiente para cegar a humanidade em relação ao seu devir, e por consequência em relação ao fundo originário da Vontade. Por toda parte, onde as catástrofes naturais alcançaram a humanidade, onde a ciência se deparou com o que não pode ser conhecido para a época, onde o homem é alcançado pela morte inevitável, o vislumbre da dor do puro devir na Vontade se abriu para a humanidade.


Orlando Tambosi — A Cruzada Contra as Ciências

Pg 25: A cruzada desenvolve campanhas em que atribui ao evolucionismo a “decadência moral dos valores espirituais”, a “destruição da saúde mental” e o aumento dos divórcios, do aborto e até das doenças venéreas.

Na pg 33 fala que “na epistemologia popperiana exige que as teorias científicas sejam falseáveis, isto é, a teoria só é científica se um fato ou observação puder refutá-la”.

Discordo deste enunciado tendo em vista o termo em inglês que torna a refutação confusa. O contrário seria verdadeiro, isto é, uma proposição só adquire status de científica se todas as tentativas de refutá-la forem repelidas pela sua própria lógica.

Na pg seguinte fala 5) “é falsificável” querendo dizer “é aberta à refutação”.

A narrativa da experiência na construção da bomba atômica está incompleta, pois havia duas correntes trabalhando na fusão nuclear; uma interessada na confirmação da hipótese física, sob comando de FERMI em Chicago, e a outra, a serviço do exército em Los Álamos, mais tarde. Para um exemplo de como a filosofia é para mim um jogo retórico, ver a pg 100 – primeiro parágrafo.

No livro de Tambosi, descarto a metade final da parte 3 e a parte 4. As demais são peças importantes no entendimento da questão proposta pelo autor.

Nacos:
Signácula - notas mnemônicas.


Russell Kirk — Edmund Burke

Há uns vinte anos atrás eu tinha prometido nunca mais ler biografias, pois era o gênero literário mais louvado para descrever a vida de uma pessoa e ocultar seu pensamento. A gente esquece as próprias promessas e termina reincidindo no erro.

Evidentemente Kirk fez um grande trabalho de reconstituição da vida de Burke, mas seu pensamento passa longe. Os breves relatos de seus discursos permitem avaliar a estatura do gênio, mas os tradutores, ao utilizarem o subjuntivo, conseguiram um português tão longínquo da língua parlamentar que o leitor parece estar lendo um compêndio de algum professor alucinado.

Na pg 208 encontramos os 8 pilares que constituem o núcleo do pensamento de Burke. O sétimo é o mais discutível, posto que foi vencido pelo tempo.

Por ex. Pg 226 “disse-se a Burke” no lugar de disseram.

Pg 286: “A revolução, depois de percorrer feroz por uma série de estágios de violência histérica, terminaria em despotismo, mas nessa ocasião teria levado à ruína a maior parte do que é nobre e tradicional na sociedade”.

O erro de Kirk, replicando Burke, consiste em colocar uma tese teórica como uma situação de fato, e um acontecimento real, como uma negação da tese presuntiva, quando na realidade a revolução não teria sequer iniciado se não houvesse se instalado o despotismo na forma de uma ordem legal que a revolta haveria de derrubar, criando outro com peculiaridades próprias.

Vejamos como uma idealização é substituída pela realidade. Pg 297 “somente um estado governado pela Constituição, pela Convenção e pelos usos consagrados, os direitos – ou as aspirações – dos homens podem ser realizados. Os discípulos de Rousseau destroem a estrutura que torna possível os direitos patentes dos homens e assim reduzem os homens à anarquia ou à escravidão – incluindo a servidão às paixões pois o homem de mente intemperada nunca pode ser livre, suas paixões forjam seus grilhões”.

Pg 310: “O temor de Deus é o início da sabedoria” – algo incompreensível para o século XXI. [Um antecessor de Burke do século XVIII, Jean Meslier, adoraria contestar esta ideia].

Sobre a humildade cristã e os valores destruídos pela revolução ver parágrafo à pg 312.

Burke não entendeu, ou não quis entender, que a velha ordem estava coagulada em si mesma, e que as aspirações do povo chegaram a um ponto de não retorno. Quando o campesinato entende que o acesso de servo da gleba à proprietário rural depende unicamente da deposição do rei, não há mais conciliação possível, e o espírito revolucionário está implantado na alma do camponês à espera dos novos líderes.

Burke fala de aristocracia natural para aquilo que hoje chamamos de elite.

Burke tem razão ao combater o espírito primitivo como justificativa para a destruição das elites, eliminando os melhores valores sociais em troca de um ideal que não passa de uma loucura. As revoluções socialistas iriam replicar estas ideias perseguindo com desdém toda a elite burguesa em nome do ideal proletário.

Usar a descrição de Burke dos valores do passado como narrativa da constituição e reprodução de nossa oligarquia assentada no judiciário, no meio político e na máquina tributária. Na pg 341 Burke explica o jacobinismo da revolução relativamente à desapropriação. E na pg seguinte explica como o Estado é o fim último do movimento.

Na concepção de Burke, o estadista conservador é aquele que combina a disposição para preservar com a habilidade para reformar.

O próprio Tocqueville (pg 422) achava exagerada a defesa de Burke da monarquia francesa.

É possível ser contra a revolução francesa? É possível tomar partido na história? Comparem com o modernismo brasileiro – que desfruta do mesmo prestígio que a revolução francesa na academia – e verifiquem como a falsa premissa de combater o pedantismo nas letras gerou uma linguagem literária despojada a tal ponto que se confundiu com o jornalismo e abriu caminho para o realismo socialista de Graciliano e Amado.

Sob o pretexto de combater o barroco, expresso pelo codinome de parnasianismo, combateu-se a linguagem erudita. Aqueles que tomaram partido de José Veríssimo contra Sylvio Romero estavam aderindo ao jornalismo às pressas, ao diário de redação de improviso e formaram o mesmo idioma que os críticos literários subsequentes, como Moyses Velhinho, que iriam desfigurar nossas letras, legando ao ostracismo nada menos que um Coelho Neto, um Carlos Vasconcelos e um Alberto Rangel (para não falar de Hilário Tácito). Escapou Euclides porque estava militando no jornalismo e desfrutou imediatamente de um alto preço pela sua obra seminal sobre Os Sertões.

Nacos:
Bombachata — festa com muitos excessos, comezaina, orgia, pândega, patuscada.
Mazorral — grosseiro, rude, mal-educado.
Calembur — trocadilho, joguete de palavras fundado na semelhança de sons que da lugar a equívocos.
Agarrando a ocasião pelas repas (pelos cabelos).
Escorralho — gentalha, ralé; resíduo (borra) de líquido em vasilha
Ver Michael OAKESHOTT - Racionalism in politics


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