sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Fragmentos 16

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo



Jean Meslier — Common Sense

É peculiaridade da ignorância preferir o desconhecido, o oculto, o fabuloso, o maravilhoso, o incrível, e até o terrível, àquilo que é claro, simples e verdadeiro. A verdade não dá à imaginação peças tão vivas como a ficção, que cada um pode organizar como bem entender. Os vulgares não pedem nada melhor do que ouvir fábulas; padres e legisladores, inventando religiões e forjando mistérios a partir deles, os serviram a seu gosto. Dessa maneira, atraíram entusiastas, mulheres e analfabetos em geral. Seres desse tipo renunciam facilmente a razões que são incapazes de examinar; o amor do simples e do verdadeiro é encontrado, mas no pequeno número daqueles cuja imaginação é regulada pelo estudo e pela reflexão. Os habitantes de uma vila nunca ficam mais satisfeitos com o pastor do que quando ele mistura bastante latim em seu sermão. Os homens ignorantes sempre imaginam que aquele que lhes fala de coisas que eles não entendem é um homem muito sábio e instruído. Este é o verdadeiro princípio da credulidade das nações e da autoridade daqueles que pretendem guiá-las.


A prova de que a religião não é necessária, é que é ininteligível

Se a religião era necessária para todos os homens, deveria ser inteligível para todos os homens. Se essa religião era a coisa mais importante para eles, a bondade de Deus, ao que parece, deveria torná-la a mais clara, a mais evidente e a melhor de todas as coisas. Não é surpreendente ver que esse assunto, tão essencial para a salvação dos mortais, é precisamente o que eles menos entendem e sobre o qual, durante tantos séculos, seus doutores mais disputaram?

Nunca sacerdotes, nem da mesma seita, chegaram a um acordo entre si sobre a maneira de entender os desejos de um Deus que verdadeiramente se revelou a eles. O mundo em que habitamos pode ser comparado a um local público, em cujas diferentes partes são colocados vários charlatães, cada um se esforçando para atrair clientes depreciando os remédios oferecidos por seus concorrentes. Cada barraca tem seus compradores, que estão convencidos de que somente seu empirismo possui os bons remédios; não obstante o uso contínuo que fazem deles, eles não percebem que não são melhores ou que estão tão doentes quanto aqueles que correm atrás dos charlatães de outra barraca. A devoção é uma doença da imaginação, contraída na infância; o devoto é um hipocondríaco que aumenta sua doença pelo uso de remédios. O homem sábio não aceita nada disso; ele segue um bom regime e deixa o resto para a natureza.


A fé tem raiz na mentes fracas, ignorantes ou indolentes

Os discípulos de Pitágoras tinham uma fé implícita na doutrina de seu mestre: "Ele disse isso!" foi para eles a solução de todos os problemas. A maioria dos homens age com o mesmo motivo. Um cura, um padre, um monge ignorante, se tornará, na questão religiosa, o mestre de seus pensamentos. A fé alivia a fraqueza da mente humana, para quem a aplicação é geralmente uma obra muito dolorosa; é muito mais fácil confiar nos outros do que examinar por si próprio; como o exame é lento e difícil, geralmente é desagradável para mentes ignorantes e estúpidas, bem como para mentes muito ardentes; é por isso que a fé encontra tantos partidários.

Quanto menos iluminação e razão os homens possuem, mais zelo eles demonstram por sua religião. Em todas as facções religiosas, as mulheres, despertadas por seus diretores, exibem um grande zelo nas opiniões das quais é evidente que elas não têm a menor ideia. Nas brigas teológicas, as pessoas correm como um animal feroz contra todos aqueles que seu sacerdote deseja excitá-los. Profunda ignorância, credulidade ilimitada, cabeça muito fraca, imaginação irritada, esses são os materiais dos quais são feitos devotos, fanáticos e santos. Como podemos fazer com que essas pessoas entendam a razão que se deixa guiar sem examinar nada? Os devotos e pessoas comuns são, nas mãos de seus guias, apenas autômatos que eles movem à vontade.


A honra é uma verificação mais salutar e mais forte do que a religião

Dificilmente existe um homem que não tema mais o que vê do que o que não vê; os julgamentos dos homens, dos quais ele experimenta os efeitos, do que os julgamentos de Deus, dos quais ele tem apenas ideias vaporosas. O desejo de agradar ao mundo, a corrente dos costumes, o medo de ser ridicularizado e o "O que eles dirão?" têm mais poder do que todas as opiniões religiosas. Um guerreiro com medo da desonra não arrisca sua vida em batalhas todos os dias, mesmo correndo o risco de incorrer em condenação eterna? As pessoas mais religiosas às vezes mostram mais respeito por um servo do que por Deus. Um homem que acredita firmemente que Deus vê tudo, sabe tudo, está em toda parte, quando estiver sozinho, cometerá ações que nunca faria na presença dos mais comum dos mortais. Aqueles que afirmam ser os mais firmemente convencidos da existência de um Deus agem a cada instante como se não acreditassem em nada a respeito.


A religião não é necessária para a moralidade e a virtude

É-nos dito constantemente, e muitas pessoas sensatas passam a acreditar que a religião é necessária para conter os homens; que sem ela não haveria controle do povo; que moralidade e virtude estão intimamente ligadas a ela: "O temor do Senhor é", nos é dito, "o começo da sabedoria". Os terrores de outra vida são terrores salutares e calculados para subjugar as paixões dos homens. Para nos desiludir no que diz respeito à utilidade das noções religiosas, é suficiente abrir os olhos e considerar quais são os costumes das pessoas mais religiosas. Vemos tiranos arrogantes, ministros opressivos, cortesãos perversos, inúmeros extorsionistas, magistrados inescrupulosos, impostores, adúlteros, libertinos, prostitutas, ladrões e bandidos de todos os tipos, que nunca duvidaram da existência de um Deus vingativo ou das punições do inferno, ou as alegrias do Paraíso.

Embora muito inúteis para a maioria dos homens, os ministros da religião tentaram fazer a morte parecer terrível aos olhos de seus eleitores. Se os cristãos mais devotos pudessem ser consistentes, passariam a vida inteira em lágrimas e finalmente morreriam nos mais terríveis alarmes. O que é mais assustador do que a morte para aqueles infelizes que são constantemente lembrados de que "é uma coisa terrível cair nas mãos de um Deus vivo"; que eles devem "buscar a salvação com medo e tremor!" No entanto, temos a certeza de que a morte do cristão tem grandes consolações, das quais o incrédulo é privado. Dizem que o bom cristão morre com a firme esperança de gozar a felicidade eterna, que ele tentou merecer. Mas essa firme garantia, não é uma presunção punível aos olhos de um Deus severo? Os maiores santos não são os que devem duvidar se são dignos do amor ou do ódio de Deus? Os sacerdotes que nos consolam com a esperança das alegrias do Paraíso, e fecham os olhos para os tormentos do inferno, tiveram a vantagem de ver seus nomes e os nossos inscritos no livro da vida?

[Impressiona em Meslier como ele passa da crítica da religião à crítica social. Se separarmos somente sua análise da sociedade de seu tempo, podemos perceber o quantum com que as revoluções do século XVIII mostraram em ferocidade. São as tiranias que criam as grandes revoluções, e os abusos de um poder coagulado que geram as maiores vinganças.

Meslier inicia contestando a religião em todos os aspectos das antigas escrituras, dos rituais e da irracionalidade dos dogmas e mistérios, e por fim adentra no terreno político para demonstrar que a religião é um instrumento do poder para exploração do próximo e glorificação de príncipes tiranos.


Como a união de religião e política é fatal para as pessoas e para os reis

Os soberanos deste mundo, ao associar a Divindade ao governo de seus reinos, ao fingir ser Seus guardiões e Seus representantes na Terra, ao admitir que detêm seu poder Dele, devem necessariamente aceitar Seus ministros como rivais ou senhores. É, então, surpreendente que os padres muitas vezes tenham feito os reis sentirem a superioridade do Monarca Celestial? Fizeram eles os príncipes temporais entenderem que o maior poder físico é obrigado a se render ao poder espiritual da opinião? Nada é mais difícil do que servir a não mais de uma vez a dois senhores, especialmente quando eles não concordam com o que exigir de seus súditos. A união da religião com a política necessariamente causou uma dupla legislação nos Estados. A lei de Deus, interpretada por Seus sacerdotes, é frequentemente contrária à lei do soberano ou ao interesse do Estado.

Quando os príncipes são firmes e seguros do amor de seus súditos, a lei de Deus às vezes é obrigada a cumprir as sábias intenções do soberano temporal, mas com mais frequência a autoridade soberana é obrigada a recuar diante da autoridade Divina; isto é, diante dos interesses do clero.

Nada é mais perigoso para um príncipe do que se intrometer nos assuntos eclesiásticos (no cálice de água benta), ou seja, a reforma dos abusos consagrados por suas mãos, isto é, tentar pela religião.

Deus nunca se irrita mais do que quando os direitos Divinos, privilégios, posses e imunidades de Seus sacerdotes interferem com especulações metafísicas ou as opiniões religiosas dos homens, que nunca influenciam sua conduta, a menos que estejam em conformidade com seus interesses.

Nada prova essa verdade com mais força do que a conduta de um grande número de príncipes em relação ao poder espiritual, ao qual os vemos muitas vezes resistir. Se um soberano que é persuadido da importância e dos direitos da religião não deve, conscientemente, sentir-se obrigado a receber com respeito as ordens de seus sacerdotes, e considerar os mandamentos da Divindade.

Houve um tempo em que os reis e o povo, mais conformáveis e convencidos dos direitos do poder espiritual, tornaram-se escravos, renderam-se a ele e continuaram sendo instrumentos dóceis nos momentos felizes. Por uma estranha inconsistência, às vezes vemos a maioria dos monarcas se opor aos empreendimentos daqueles que consideram ministros de Deus.
Um soberano cheio de religião ou de respeito a seu Deus deve estar constantemente prostrado diante de seus sacerdotes e considerá-los seus verdadeiros soberanos. Existe algum poder sobre a terra que tem o direito de se medir com o do Altíssimo?


A teologia nem explica nem ilumina nada no mundo da natureza

Se acreditássemos nos adeptos da religião, nada poderia ser explicado no mundo sem ela; a natureza seria um enigma contínuo; seria impossível para o homem se compreender. Mas, no fundo, o que essa religião nos explica? Quanto mais a examinamos, mais descobrimos que as noções teológicas são encaixadas para deixar nossas ideias mais perplexas; elas transformam tudo em mistérios; elas nos explicam coisas difíceis por coisas impossíveis.

É, então, explicando coisas que se as atribuí à intervenções desconhecidas, a poderes invisíveis, a causas imateriais? É realmente esclarecedor da mente humilde quando, em seu embaraço, é direcionada para as "profundezas dos tesouros da Sabedoria Divina", sobre as quais nos dizem que é em vão que voltemos nossos olhares arrojados?

A natureza divina, sobre a qual nada sabemos, pode nos fazer entender a natureza do homem, que achamos tão difícil de explicar? Pergunte a um filósofo cristão qual é a origem do mundo. Ele responderá que Deus criou o universo. O que é Deus? Nós não sabemos nada sobre isso. O que é criar?

Não temos ideia disso! Qual é a causa de pestes, fomes, guerras, procissões, inundações, terremotos? É a ira de Deus. Quais remédios podem evitar essas calamidades? Orações, sacrifícios, procissões, oferendas, cerimônias são, segundo nos dizem, os verdadeiros meios de desarmar a fúria celestial. Mas por que o Céu está raivoso? Porque os homens são maus. Por que os homens são maus? Porque a natureza deles é corrupta. Qual é a causa dessa corrupção? É, um teólogo da Europa iluminada responderá, porque o primeiro homem foi seduzido pela primeira mulher a comer de uma maçã que seu Deus o proibira de tocar. Quem induziu essa mulher a fazer essa loucura? O diabo. Quem criou o diabo? Deus! Por que Deus criou esse diabo destinado a perverter a raça humana? Não sabemos nada sobre isso; é um mistério escondido no seio da Divindade.

A terra gira em torno do sol? Dois séculos atrás, um filósofo devoto teria respondido que tal pensamento era blasfêmia, porque tal sistema não podia concordar com o Livro Sagrado, que todo cristão reverencia como inspirado pela própria Divindade. Qual é a opinião hoje sobre isso? Não obstante a Inspiração Divina, os filósofos cristãos finalmente concluíram confiar em evidências e não no testemunho de seus livros inspirados.

Qual é o princípio oculto das ações e dos movimentos do corpo humano? É a alma. O que é uma alma? É um espírito. O que é um espírito?

É uma substância que não possui forma, cor, expansão ou partes. Como podemos conceber essa substância? Como ele pode mover um corpo? Não sabemos nada sobre isso. Tem almas brutas? Os cartuxos garantem que são máquinas. Mas não os vemos agir, sentir e pensar de uma maneira semelhante à dos homens? É uma pura ilusão, você diz. Mas por que você priva os bruto das almas que, sem entendê-lo, você atribui aos homens? É que as almas dos brutos envergonhariam nossos teólogos, que, contentes com o poder de assustar e condenar as almas imortais dos homens, não têm o mesmo interesse em condenar as dos brutos. Tais são as soluções pueris que a filosofia, sempre guiada pelas principais linhas da teologia, foi obrigada a apresentar para explicar os problemas do mundo físico e moral.


Ave Lallemand – Viagem pelo sul do Brasil

A muitos respeitos, a [Ilha da] Madeira me atraiu, empolgou e encantou, mas também me deu motivo para muitas observações contristadoras. Vê-se também ali o que se manifesta em toda a monarquia portuguesa, da Europa à China: decadência geral!

O povo na Madeira está em decadência física e moral. O mau resultado da colheita do vinho nos últimos anos, a dura epidemia de cólera e, sobretudo, a debilidade da pátria trouxeram à ilha enorme pobreza, pobreza ou desmoralização, conforme se prefira dizer ou explicar. Em Funchal isso pouco se observa; ali um ganha do outro os estrangeiros que chegam, geralmente ricos, mantêm muita gente. Mas no interior da ilha estão todos empobrecidos e tão na ordem do dia está a mendicidade, que se veem famílias inteiras, os pais e seis a oito filhos, sentados à beira da estrada e apelando para os viajantes ou transeuntes. Quase poderia afirmar-se que a instrução das crianças não vai além de aprender a esmolar um xelim em língua inglesa. Muitos homens emigram para o Brasil. As mulheres e moças ganham a vida fazendo renda grosseira e flores artificiais que, com outras flores, procuram vender aos homens o mais caro possível.

As famílias de melhor condição parecem desaparecer uma pós a outra. Muitas embarcam para Lisboa e deixam em Funchal, vazias, as suas casas fideicomissárias, pois tais casas de família não devem ser vendidas.

+++++++++++

Muitas rendas, provenientes das propriedades na ilha, são, pois, dispendidas em Portugal e mesmo em Paris e assim são subtraídas muitas fôrças da ilha já sacrificada.

É muito espalhada entre o povo a opinião de que se a ilha fosse governada pelos ingleses seriam remediados muitos inconvenientes, o empobrecimento e a desmoralização. A opinião é mais fácil de dar que de provar. Quem não pode ajudar a si próprio, não pode ser muito ajudado mesmo por outro governo bem ordenado. Sob administração inglesa ter-se-ia mais trabalho inglês, mais atividade inglesa do que se tem atualmente, mas os portugueses não suportariam a concorrência dos anglo-saxões.

++++++++++++

Sobre o Império em 1858
O Estado, sacudido por muitas tempestades, especialmente por veleidades republicanas e oclocráticas, ainda era dirigido por uma regência. A declaração da maioridade e a ascensão ao trono do Imperador Pedro II trouxeram tranqüilidade e ordem às massas agitadas e, desde então, muitos maus elementos foram afastados. A boa forma estatal encheu-se com melhores espíritos; houve melhoramentos na igreja e nas escolas; surgiram, um após outro, institutos de fomento; a arte e a ciência reergueram-se e prosperaram; e as sombras tenebrosas do tráfico de escravos e da escravidão fogem progressivamente da Terra de Santa Cruz.

++++++++++++

Descrição da viagem do Rio a Floripa.
O vento soprava favorável e entretanto o velho vapor só andava oito nós, às vezes apenas quatro a seis, verdadeiro escândalo em face da considerável subvenção paga pelo governo à companhia de navegação. [Deveria haver um estudo cuidadoso de nossos historiadores sobre este fenômeno. Uma vez estatizado ou subvencionado um serviço, ele passa a ser lento. Não só nossa burocracia é lenta, como os serviços públicos de alto a baixo. Nos tempos das ferrovias estatais, uma viagem que poderia ser feita em 6 a 7 horas, levava 12 a 13 horas. Misteriosamente o trem parava em uma estação intermediária para a troca de piloto e isto custava uma hora. Evidentemente que havia combinação de sindicatos, mas o fato é que as filas nos hospitais públicos continuam sob o mesmo efeito da lentificação.]

++++++++++++

O problema da intolerância religiosa ex-pos-facto: Menos sangrentos que os ataques dos índios, mas, no entanto, danosos à prosperidade, sobretudo à produção humana da colônia — tão importante para o Brasil — têm sido os prejudiciais ataques de sacerdotes católicos da própria Alemanha, que com as armas da superioridade espiritual e sua força mística têm intimidado as almas simples e a consciência dos colonos de ambos os credos, inquietando-os e levando-os à vadiação nos batismos, casamentos, confissões, etc.

++++++++++++

Até ali, das 11.346 almas da colônia, 4.778 tinham esperado salvar-se pela Igreja Católica e 6.568 pela Igreja Evangélica e, na expectativa dessa Salvação, tinham convivido em concórdia cristã.
Existiam 21 igrejas e templos, 9 católicos e 12 evangélicos.

++++++++++++

"Desde a fundação da colônia até hoje" — continua o Dr. Hildebrandt — "nunca se deu na população de diferentes crenças o menor conflito em matéria religiosa; e, embora essa população viva misturada, como as situou a divisão das terras nunca se levantou queixa a esse respeito e todos vivem na maior união.

Antes da chegada da Missão dos jesuítas a São Leopoldo eram frequentes os casamentos mistos; muitos homens católicos desposavam senhoras evangélicas e batizavam os filhos segundo o rito católico, o que concorreu, não pouco, para a difusão do catolicismo. Igualmente se uniam homens evangélicos à senhoras católicas, cujos filhos, conforme combinavam, eram batizados, parte como católicos e parte como evangélicos. Mas, desde a chegada dos missionários à colônia, essas uniões se tornaram mais raras, pois os missionários julgavam que deviam ser intolerantes a esse respeito e recusavam sua sanção a esses casamentos.

Sua intolerância chegou ao ponto de recusarem-se a batizar filhos de pais católicos, se os padrinhos fossem evangélicos.
"Essa singular conduta, de parte dos sacerdotes missionários, era por demais estranha aos colonos alemães, educados na escola da tolerância, quando, até então, os sacerdotes brasileiros não lhes tinham criado nenhuma dificuldade.
"No princípio, essa intolerância dos missionários jesuítas despertou não só rivalidade entre os adeptos dos diferentes cultos como também causou muitas discórdias em famílias, especialmente entre as que viviam sob o regime do casamento misto."
Disso também ouvi falar muito em São Leopoldo. Acontecem coisas muito desoladoras! Homens e mulheres, que por longo tempo tiveram vida conjugal feliz, perderam a paz e a união; é para um homem perder a razão. Irmãos desavieram-se e filhos sublevaram-se contra os pais: tão enfaticamente ensinaram os jesuítas o quarto mandamento!

Que querem nas picadas de São Leopoldo os jesuítas, saídos das úmidas celas claustrais para oprimir as almas livres das certas? Aqueles dignos senhores devem sair da região; são um veneno para a prosperidade de São Leopoldo, embora não possam estorvá-la inteiramente, pois não há nada mais para entravar, nem católicos, nem protestantes, nem casamentos mistos e seus descendentes.

Estranho ou revelador?
Corre em toda parte ouro francês e norte-americano e dólares (patacões) mexicanos, peruanos e espanhóis: só não há papel-moeda brasileiro, o que embaraçaria o viajante desprevenido nesta nova Alemanha, se houvesse viajantes.

Apesar de haver pouco espaço, recebemos eu e o meu "spahi" um local separado para dormir com duas boas camas. Na minha, aliás, a dona da casa mandara pôr uma coberta e travesseiros bordados, pois as brasileiras gostam de mostrar certa elegância em todos os artigos de roupa branca.

Preguiçosos e indiferentes, quase ridículos ao lado dessa viva agitação, aqui e ali pastam burros, um pouco separados do rebanho, odiados e desprezados pelos cavalos e sobretudo pelas éguas. Estas têm de ser quase enterradas para suportarem o estranho garanhão; as éguas jovens, sobretudo, parecem violentamente exaltadas quando pela primeira vez lhes sucede sofrer, em seu esbelto corpo, esse atentado à natureza.

++++++++++++

...moravam numerosas famílias em pequenos compartimentos contíguos e brincavam de Alemanha, isto é, eram desunidas, brigavam e amarguravam a vida mutuamente o mais que podiam.

++++++++++++

Mas para quem é indiferente chegar hoje ou amanhã, apreciará à direita e à esquerda muitas quebradas onde esplendecem purpúreas acácias, brilhantes cássias amarelas e caneleiras de flores semelhantes à da macieira, ao passo que, no meio da confusão das parasitas criptogâmicas, pendem dos galhos de mirtáceas quase secas purpurinas orquídeas. Na orla da mata, onde há mais umidade, encontra-se com abundância uma bonita iridácea — penso que uma ferrária e um ionidium azul que cheira a violeta; uma sálvia cor de jacinto, pequenas oxálidas vermelhas, lantanas, comelinas azuis e, em charcos, muitas pontederiáceas meniantes ninfeoideas com folhas redondas, flutuantes, vilársias. Ao lado desses tranquilos habitantes da solidão, alegra-se também o viajante com as magníficas formas do gado que pasta, dos cavalos e da algazarra dos pássaros: falcões, corujas, circaetas e perdizes. [Decididamente, Lallemand era um erudito em botânica, como a maioria de seus pares do século XIX.]

+++++++++++

Diante de uma venda muito isolada, fizemos uma pausa para o almoço. Mesmo pela raridade dessas vendas, nelas se encontra ao meio-dia toda sorte de gente, em parte vizinhos distantes (decerto uma "contradictio in adjecto", mas expressão correta para o oeste do Rio Grande), em parte viajantes. Um viajante europeu é sempre ali, no primeiro momento, alguma coisa estranha; todos ficam embaraçados diante dele. Mas logo que ele fala algumas palavras na língua do país e se comporta com simplicidade e decência, desaparece imediatamente o constrangimento; em menos de um minuto tem-se na boca o símbolo da paz, da concórdia, do completo entendimento — o mate.

Todos os presentes tomaram mate. Não se creia todavia que cada um tivesse sua bomba e sua cuia próprias; nada disso! Assim perderia o mate toda sua mística significação. Acontece com a cuia de mate como à tabaqueira. Esta anda de nariz em nariz e aquela de boca em boca. Primeiro sorveu um pouco um velho capitão. Depois um jovem, um pardo decente — o nome de mulato não se deve escrever — depois eu, depois o "spahi", depois um mestiço de índio e afinal um português, todos pela ordem.

Não há, nisso, nenhuma pretensão de precedência, nenhum senhor e criado; é uma espécie de serviço divino, uma piedosa obra cristã, um comunismo moral, uma confraternização verdadeiramente nobre, espiritualizada! Todos os homens se tornam irmãos, tomam mate em comum!

Quem o compartilha pela primeira vez, julga estar numa loja maçônica. O erudito clássico vê, na pequena cuia, a edição in-doze da mystica vannus dos tempos pré-cristãos e do domínio da loura Ceres.


Santa Maria da Bôca do Monte chama-se o lindo ninho de casas brancas com telhados vermelhos. Diante dela, um arco duplo de laranjeiras forma, em torno de uma praça verde, um passeio que muitas·capitais nórdicas poderiam invejar à aldeia riograndense.
Trazia várias cartas para entregar e como lá não há hotel tive de escolher a hospedagem que três ou quatro pessoas me haviam oferecido. Fui para a casa de um honrado alemão de antes quebrar que torcer, sobre cuja casa e família tenho de dizer algumas palavras.

Logo à entrada, veio a meu encontro, com profunda emoção uma senhora de certa idade. Quando ao chegar falei com o dono da casa, ela, sem ver-me, reconheceu-me exatamente pela voz com que eu a consolara em tempos de grande necessidade e muita miséria. Já catorze anos eram passados; ela vivia então no RIO de Janeiro em condições muito difíceis e necessitara repetidas vezes de minha assistência médica. Muito me impressionou esse encontro e o reconhecimento da voz, visto como a senhora jamais pensara em encontrar-me aqui no longínquo sul, foi realmente digno de nota. Tinha um pedaço de terra na serra e viera à vila para fazer compras, pois não pertencia à família de meu hóspede.

+++++++++++

Segundo contou, vivem em Santa Maria, à entrada da serra, mais de 32 famílias alemãs. Todas vivem bem, todas inteiramente contentes. Todas as atividades locais são alemãs: artífices, comerciantes, etc. A maioria da gente veio a pouco e pouco de São Leopoldo; muitos já vivem na serra como ativos lavradores e, em parte, já penetraram até ao Rio Uruguai.

Só no dia seguinte (27 de março) examinei a singularmente alemã Santa Maria. Mas não preciso descrevê-la. Imagine-se uma rica aldeia à margem da estrada de Darmstadt a Heidelberg ou outro lugar à entrada da montanha, e estamos no centro de Santa Maria. Até o dialeto do Palatinado se fala aqui nas ruas, como língua do país e, como lá, se ouve em toda parte. No entanto, no "palatinatismo" se intromete na originalidade da vida rio-grandense. Quase nunca os jovens alemães tiram a espora e o poncho listrado. Nas vielas alemãs rangem a cada momento grandes carretas; oito bois bem nutridos vão atrelados na frente. Os grosseiros carros-de-carga de duas rodas são carregados de produtos do país e de artigos de importação, para cuja produção e venda Santa Maria é ponto muito importante. Por isso existe entre os negociantes alemães de Santa Maria gente rica, por menos que se note isso à primeira vista. O homem mais rico, entre esses alemães, possui uma fortuna de 150.000 táleres. Há vários, no lugar, que possuem mais de 5.000 táleres.

E como veio para o Brasil, há anos, toda essa gente? Pobre como Jacó quando atravessava o Jordão.

Um dos negociantes alemães que há dezenove anos chegaram sem nada a Santa Maria, mostrou-me sua casa, seu armazém, seu pomar; tudo tão bem construído, tão espaçoso, tão bem ordenado, que a gente esquece os campos do Rio Grande e julga estar numa loja europeia. E, abrindo-se as grandes caixas de papelão, nelas se encontram chales caros, tule, vestidos elegantes. As freguesas moram em Santa Maria, nos arredores, na serra; têm dinheiro para pagar essas coisas·caras sem dificuldade.

Atrás do armazém de mercadorias, o depósito de sal e, ao lado deste, um outro de couros secos e tudo em ordem modelar.

E dessa maneira se encontram os alemães no lugar. Considera-se quase uma necessidade que o alemão em Santa Maria tenha de enriquecer.

Muito se discutiu na Alemanha se o emigrante alemão podia prosperar no Brasil. Eu os vi aos milhares prosperando nas serras e aqui em Santa Maria da Boca do Monte. Muitos, cujos nomes apenas se tenham ouvido na Alemanha, se tornaram gente rica e distinta e há muito tempo responderam claramente por que no norte da Alemanha a gente se aflige e se atormenta ansiosamente. Mas de modo algum quero censurar os teóricos, antes confesso de bom grado que até agora eu só tivera conhecimentos muito escassos sobre a vida notavelmente desenvolvida e forte e a prosperidade dos alemães no Rio Grande; e, antes de minha viagem, não conhecia Santa Maria da Boca do Monte nem sequer de nome.


[Um episódio borgiano, de facas e vinganças.] Conforme contou o Capitão, o meclemburguês há longo tempo assassinara um homem, numa briga, com sua faca de magarefe. Com o relatório do Capitão para Cruz Alta, o tribunal mais próximo, a 17 milhas geográficas de São Miguel, foi ele absolvido. Mas o homicídio se estampou de tal modo na cara do homem que não sei ao certo se esse crime foi o último ou o primeiro que cometeu.

Horrendos esses homens com suas facas à cinta. Em toda parte enfrentei esses magarefes com impávida franqueza. Quem é cortês, neles pode confiar. Mas a lâmina sai facilmente da bainha e, neles, uma coisa não se extingue: a vingança.

Meu Capitão pardo, que representa no "povo" a polícia de São Miguel, contou-me umas histórias sangrentas, muito curiosas, de verdadeiras vinganças corsas, às vezes horripilantes.

Recordo-me, a propósito, de uma história autêntica, do Rio Grande. Um menino deixara sua vaca entrar na horta de um homem e estava procurando retirá-la quando este, desatendendo a rogos, o esbordoou severamente. Isso não foi apenas um castigo, mas também uma ofensa; o menino era branco e não escravo. Jurou vingar-se do homem, ao que o outro riu. O jovem portou-se passivamente e retirou-se do lugar. Nove anos depois, chega um jovem muito bem montado diante da casa do homem e, segurando o cavalo, manda chamá- lo. Muito serenamente lhe pergunta se ele se lembra daquela história da vaca e do menino que ele surrara tão duramente.

Rindo, responde o outro: "Sem dúvida. E o menino prometeu vingar-se". - "Pois bem" - disse o jovem - "eu sou aquele menino e hoje cumpro minha palavra". E no mesmo momento atira no outro e foge. A história de uma vingança nascida na infância e amadurecida na juventude tornou a aparecer-me quando o Capitão terminou as suas histórias de facadas e fomos comer nosso modesto jantar.

+++++++++++

Sobre o destino da raça guarani na visita a São Miguel das Missões:
E num desses rostos guaranis acha-se toda a história da raça que está desaparecendo. Outrora os jesuítas reuniram esses índios e cristianizaram homens que só existiam para a floresta provisória, para o campo provisório. Não lhes trouxe o cristianismo alegria para a vida, mas consolação para a morte, consolação com que afrontam o estiolamento de sua raça. Posso dizer: o povo foi levado até à dor de uma sexta-feira da Paixão, porém não ao júbilo entusiasta de uma manhã de Páscoa.

[O cristianismo que não trouxe alegria para a vida, porém consolação para a morte tem sido um traço constante do catolicismo ibérico. Ao lermos seu relato sobre as ruínas de São Lourenço, ressurge na minha mente a questão da disjunção na sociedade ibérica. Descreve as ruínas como um “castelo forte clerical”. Fica evidente que se trata de uma sociedade em que periodicamente se destrói a si própria. E a conquista das Missões não poderia ser diferente dos demais episódios sangrentos da história colonial].

++++++++++++

Cresce também nas Missões, como planta característica, além de algumas bonitas verbenas, uma escrofularínea de transição, semelhante a uma solanácea e inteiramente parecida com uma petúnia.

+++++++++++

[Observação que hoje em dia seria incluída como descrição de espécies em extinção:] E assim, quando pela primeira vez vi o Rio Uruguai correndo, silenciosamente, entre matas escuras e as pedras negras marginais e passei à margem oposta, pareceu-me um rio morto. Nenhuma casa na margem oposta, nenhuma vida animal em suas praias. Nenhum peixe saltou do fundo, nenhum pássaro sobrevoava as avérneas águas a oeste do Rio Grande.

+++++++++++

[A indolência do estilo pecuarista do são-borjano:] De fato, na margem do Uruguai alcançam preços elevados todos os gêneros alimentícios vegetais e à pobre gente não resta mais do que comer carne duas ou três vezes por dia. A criação de gado faz-se um tanto por si mesma, pelo menos ninguém se dá ao trabalho de melhorar as pastagens ou a raça do gado.
E assim temos em São Borja relações inversas às da Alemanha.
Na Alemanha lamenta-se o homem pobre, de que na semana inteira não tenha carne, tendo de viver de feijão e batatas. Nas Missões olha-se com piedade para a pobre família que toda a semana só tem carne e não pode comprar feijão. No norte pre- pondera numericamente, no primeiro plano, o homem que cultiva e no sudoeste o gado e o cavalo em vez do homem. Esses inconvenientes, de fato extraordinariamente incômodos, só podem ser remediados pela imigração em grande escala.

Pelo menos a metade das enormes várzeas do Uruguai precisa ser revirada pelo arado e plantada por agricultores. Em nosso século é essa a missão da raça anglo-saxônica, germânica do norte.

Como resumo de nossa peregrinação na Província, estudaremos essa importantíssima e vital missão.

+++++++++++

Pregando e conquistando, os jesuítas subiram o Uruguai e o Paraná e, com piedosa tranquilidade, fundaram ao norte e ao noroeste da Província, e mesmo subindo o Paraná, o singular reino das trinta ou trinta e duas Missões, das quais ainda pertencem ao Brasil aqueles Sete Povos.

Com todos os meios que podem empregar a prudência, a astúcia, a força e a cobiça e decerto também um consciencioso zelo católico, souberam eles conseguir um poder que ainda hoje surpreende a quem lê a história e percorre as ruínas daqueles castelos fortes clericais. Ali se mantinha a mais prodigiosa coação eclesiástica sobre cem mil índios que, com as suas forças reunidas, trabalhavam para a sua penitenciária cristã, sem poderem libertar-se de seus pastores. A igreja não era o meio de felicitar os homens, mas os homens é que eram o meio de felicitar a igreja e seus príncipes. [Singular e espantosa conclusão para um viajante do século XIX].

Assim, quando expulsaram os jesuítas, a farragem desmoronou-se. Os submissos habitantes das Missões não foram educados para a vida de nação livre e não podiam suportar a luz viva de um europeísmo geral.

Esse europeísmo, porém, embora o ameaçasse desbancar o jesuitismo no noroeste e amplamente já o tivesse desbancado, desenvolvera-se lentamente ao leste da Província. Já se tinham fundado cidades como Rio Pardo, e Porto Alegre, não para ordens monásticas, mas para uma nação em crescimento. Mas o domínio português temia o crescimento do jovem gigante Brasil, em cujas praias estava escrito, em traços graníticos, o "Surge et impera". Via de bom grado o florescimento de sua colônia, mas sempre temia que um dia se levantasse e se tornasse autônoma.

Então Pedro I por sua própria conta lançou sobre os fortes ombros o pálio imperial, desviando, felizmente, uma segunda dominação jesuítica, a pressão de uma metrópole egoística sobre a colônia. [refere-se à independência do Brasil, suponho.]

E desde alguns anos ainda uma terceira dominação jesuítica produziu graves feridas na Província do Rio Grande! Querendo Deus, passou para sempre essa dominação jesuítica de um embuste republicano [trata-se da revolução farroupilha], no qual cada indivíduo se tornaria o tirano de outro, como tantos se tornaram o assassino do próximo.

Entretanto, prosperam com felicidade a Província do Rio Grande e sua população. Pode estimar-se o número de habitantes em 300.000. Destes, menos de 200.000, sem acepção de cor, têm direitos de cidadãos livres; menos de 100.000 são escravos. Os restantes são estrangeiros, dos quais só alemães deve haver uns 25 a 30 mil indivíduos.

A criação de gado, como é feita no Rio Grande do Sul, pede muita terra e pode ser realizada com poucos braços; aliás, geralmente é feita por si mesma e por isso é praticada com pouco cuidado. Evidentemente essa facilidade do trabalho e de ganhar a vida teve decisiva influência sobre o caráter dos habitantes do interior da Província. Não sendo oprimidos pelas pequenas preocupações da vida, eles são isentos do sentimento de mesquinharia que tão frequentemente em todo o mundo é característica das grandes cidades entre merceeiros e operários.

Não importa em geral ao rio-grandense uma despesa, ceder um cavalo, uma vaca ou algumas libras de carne ou receber um estranho. Se, por um lado, a circunstância de que nos imensos campos de sua terra as residências ficam distantes umas das outras e de que absolutamente não há hotel o obriga, por amor ao decoro, a uma certa hospitalidade, por outro lado a hospitalidade espontânea, oferecida de boa vontade, é um traço profundamente característico da maioria dos estancieiros e mesmo das pessoas pobres, se tais existem no país — hospitalidade na mais ampla escala.

+++++++++++

[A endemia de nosso modelo tributário não passou despercebida]
Aqui devo chamar a atenção para uma desvantagem financeira. O imposto de exportação da Província é de três por cento e, para couros, mais sete por cento, ao todo dez por cento, ao passo que no vizinho Estado de Montevidéu esses direitos são muito mais liberais. Por isso, muitos produtos são exportados, por vias ilegais, para o Estado vizinho, abrindo-se um campo brilhante para o contrabando. As outras vastas fronteiras não são controladas. Só se fiscaliza o comércio em Itaqui e em Uruguaiana!

++++++++++++

Mas gostaria de tomar a liberdade de considerar falsa e parcial a opinião sobre os rio-grandenses de parte de qualquer viajante que não domine bem a língua portuguesa.

++++++++++++

[Cito para contestar a ideia de que o catolicismo tivesse exclusividade hegemônica sob o império].
Quando a colônia de Petrópolis ainda não tinha sacerdote protestante, cuidava dela o meu irmão, pastor da comunidade do Rio e, apesar de ter tido um conflito confessional com o núncio Bedini, foi distinguido pelo Imperador com a Ordem de Cristo. Quando o pastor nomeado depois, Dr. Lippoldt, por causa da debilidade de sua saúde, necessitou de um auxílio, o Imperador socorreu-o de maneira verdadeiramente imperial. Quando, depois da morte do pastor, o meu digno amigo Neumann foi nomeado pregador de Petrópolis e, como pai de família, não podia viver com o que ganhava, os seus vencimentos foram elevados pelo governo, apesar das infinitas dificuldades devidas às disposições orçamentárias.

Quando o pastor Winkler, que sucedeu meu irmão nas suas funções na comunidade do Rio, se esforçara em várias viagens pastorais a comunidades protestantes dispersas, foi ele condecorado pelo Imperador com a Ordem da Rosa. E ainda há poucos meses, quando o pastor Konig chegou da Europa para uma comunidade alemã no Espírito Santo e era necessária, além do estipulado no contrato, uma despesa suplementar de 300 taleres para os aprestos da viagem, bastaram algumas linhas escritas para que o governo católico fizesse o pequeno presente ao sacerdote protestante. Sacerdotes protestantes que levaram a sério a sua função e o seu Evangelho foram, pois, distinguidos e agraciados por sua majestade o Imperador e pelo seu governo. E onde quer que um protestante procurou cumprir o seu dever com seriedade e zelo, a sua confissão religiosa nunca foi empecilho para ser ele validamente reconhecido, mais reconhecido do que merece. Faço a última afirmativa por mim mesmo. Nunca pus o meu protestantismo debaixo do alqueire, mas corajosamente, alegremente, sobre o velador. Mas quando alguém quis apagar minha luz, fui sempre, todas as vezes, um compatriota protestante.

+++++++++++

[Criticando a picaretagem dos aliciamentos na Europa por agentes que ganhavam dinheiro per capita para trazer imigrantes:]
...assim virão, se todos podem crer, centenas, milhares, milhões de homens sem aliciamentos, sem mentira, sem embuste, sem prêmio de 30 mil-réis por peça para o Rio Grande, homens laboriosos para executarem boas obras e em união, como já acontece em tantos lugares no país, o homem católico ao lado da mulher evangélica e o judeu no meio da comunidade cristã, para que termine a história do judeu errante na Europa e no Brasil não se erijam altares à Inquisição e ao Santo Ofício.


J. Felício dos Santos — História do Distrito Diamantino

A historia de Minas nos primeiros tempos, depois do descobrimento das lavras auríferas, quase que só consiste nas variações das ordens sobre a maneira de tributar o ouro em beneficio da fazenda real, e na resistência e relutância que faziam os mineiros, com mais ou menos sucesso, ao vexame e severidade com que eram executadas. O governo não tinha um sistema determinado, variando constantemente entre a capitação e o quinto, da circulação livre do ouro em pó ou convertido em barras das casas de fundição [donde se conclui que o casuísmo tem origens no império português]; o que, porém, transpirava em todas as sua determinações era o intuito único de aumentar os interesses do fisco, tendo em pouca monta a sorte dos povos e os sacrifícios que poderiam fazer para suportarem os impostos com que eram sobrecarregados. Demarcados os terrenos e zonas auríferas, ninguém podia neles penetrar sem licença do governo, que construía e vigiava escrupulosamente os caminhos que o comunicavam para fora.

Quem conseguia entrar carecia ainda para sair de igual permissão. Formou-se assim um estado que vivia do sequestro das demais população da capitania. Organizou-se um regimento para a administração da cobrança dos direitos da coroa. O absolutismo folga de manifestar-se por regulamentar sobre tudo e a propósito de tudo.

A sua pretensão à previsão de todos os incidentes e circunstâncias importa a negação do livre arbítrio, e aí funda ele a principal base de seu poder (*) (*) J. Pereira da Silva, História da, Fundação do Império Brasileiro.

+++++++++++

Ora a sorte dos povos era indiferente ao governo, quando se tratava dos interesses da fazenda. Devia- se deixar ao povo os únicos meios de subsistência: o mais se lhe tomava a bem da metrópole.

++++++++++++

... o célebre motim do povo de Vila Rica, na noite de 28 de Junho de 1720, de que não entra no nosso propósito fazer a narração.
O governador, que houve-se durante o motim sempre com a maior covardia, foi forçado a aceitar quatorze artigos, em que se compreendiam o do perdão para os amotinados, e o de mais não se tratar do estabelecimento de casas de fundição. Logo, porém, que estes depuseram as armas, o governador não se lembrou mais de cumprir o prometido, e mandou prender e justiçar os cabeças do motim. Era essa a política do tempo. Muitas vezes o governo baixava-se a transigir com os criminosos, que galardoava e premiava, quando dali podia resultar interesses a bem do fisco.

+++++++++++

O descobrimento do diamante, topázios e pedras preciosas, que começou a efetuar-se em 1727 e 1728, acrescentou o júbilo da corte de D. João V, e deu motivo a festas esplêndida que em Lisboa e no reino todo se celebrarão, e a 'te deums' e procissões inumeráveis, que extasiarão o povo português, por enquadrarem à sua religiosidade. Para Roma remeteu o governo as primeiras amostras, que lhe foram enviadas. Ações de graças solenes se deram ao Todo Poderoso da capital do mundo católico. O santo papa e os cardeais felicitaram ao rei de Portugal. Cumprimentaram-no todos os monarcas da Europa.

Não se ocuparam os povos da terra com outro objeto e notícia. Dir-se-ia que se descobrira coisa que devia regenerar e felicitar o universo ("). J. Pereira da Silva, História da Fundação do Império Brasileiro.

[O aspecto social do catolicismo português tem fundamental importância no entendimento de que estava associados com o dever da proteção estatal, entendendo por esta mais a corte numerosa do que a plebe. Por isso a notícia do descobrimento dos diamantes era tornada pública pois o benefício da coroa representava também o benefício do povo, representando as origens do estatismo no absolutismo, que depois seria encarnado pela República].

[Agora, finalmente encontrei o elo entre a Inquisição e o sistema legal do Império: eles eram complementares e harmoniosos, guardando a mesma mentalidade legal. Não há pois uma Inquisição separada do mundo social regulado pelo absolutismo português].

Para melhor execução desta resolução o governador mandou publicar o bando de 7 de Abril de 1734, impondo pena severas aos contraventores. Toda a pessoa que, depois de expirado o prazo de seis meses, fosse encontrada com moeda proibida ou deixasse de pagar o quinto, ou concorresse por qualquer modo para a saída do ouro em pó para fora da capitania, ficava incursa nas penas do confisco de todos os bens e de degredo por dez anos para a Índia. Quem somente tivesse noticia de algum destes crimes, e não o denunciasse à autoridade para ser punido, ficava sujeito a pena de extermínio da capitania por toda a vida, além de outras penas, que lhe poderiam ser impostas a arbítrio do governador, conforme o caso. Deviam igualmente ser exterminados aqueles indivíduos contra quem só houvesse suspeitas. Todo o delator, em virtude de cujas denúncias se fizessem confiscos até a importância de duas arrobas de ouro, ainda que por parcelas, obteria certidões, “para que – diz o bando [édito, decreto] – , possa requerer a Sua majestade toda as honras e mercês, que o dito Senhor costuma fazer a quem o serve com zelo e fidelidade, e preferência para todo os cargos, ofícios e ocupações honoríficas, além da parte que lhe pertencer ao ouro confiscado”. Ainda copiaremos textualmente a ultima parte do bando: — “E qualquer escravo que denunciar a seu senhor, e por virtude da dita denunciação for confiscado, ficará forro e se lhe passará carta de alforria em nome de Sua Majestade, e se lhe dará a terça parte do dito confisco”.

[O incentivo à delação era também uma imposição de insegurança generalizada e uma porta aberta para as fraudes. Serve como exemplo cristalino da disjunção social que nos permeia até no DNA].

Todo o ouro em pó encontrado fora da demarcação, se reputava desencaminhado e confiscado, seu condutor sujeito ás penas de desencaminhador. Também se reputava desencaminhador o que fosse encontrado conduzindo ouro por picadas, veredas, caminhos ocultos, ou pouco frequentados, que não iam em diretamente à casa da fundição; porque a lei de 27 de Outubro de 1733 tinha proibido abrirem-se novos caminhos ou picadas para as Minas, devendo a entrada e saída ser feita pelos antigos e públicos.

Havia o escambo de ouro em pó (de fácil troca pela sua divisibilidade) por mercadorias dos tropeiros que chegavam carregados aos sítios para vender suas mercadorias. O governo, com isso, percebendo que havia circulação sem fisco, cercou os sítios e estabeleceu a obrigatoriedade de apresentação do ouro na saída dos caminhos percorridos pelos mercadores, encaminhando todo o ouro apreendido às casas de fundição. Isso não só era uma violação do comércio, como uma imposição de alta nos preços das mercadorias.

[Nota-se nestes textos, que a atividade econômica não pode ser escrita apenas como uma exação da riqueza no interesse maior da corte, porém como uma atividade fim, ao qual a escravidão era estendida a toda a sociedade, mesmo que parte dela desfrutasse de privilégios. Neste ponto, a Inquisição também apresenta as mesmas características].

++++++++++++

Em 1735 extinguia-se a casa de fundição, estabeleceu-se a capitação, e o ouro em pó pôde circular livremente na capitania e fora dela, como depois diremos; a consequência foi o seu valor subir a 1$500, sendo abolido o quinto. Do 10 de Agosto de 1751 em diante, sendo novamente restabelecidas as casas de fundição, o valor do ouro em pó desceu a 1$200.

++++++++++++

Quando imposições mesmo indiretas são excessivas, sem que os contribuintes tenham uma retribuição igual aos sacrifícios que fazem, a consequência é a elevação dos preços dos objetos tributados, o definhamento das indústrias, o desanimo, a miséria pública.

+++++++++++

[Mais analogia com os tribunais da Inquisição:]

Quando a companhia denunciava algum crime de contrabando de diamantes, todos os bens do denunciado eram confiscados e postos em praça; duas terças partes do produto pertenciam-lhe, e a outra à fazenda real. Se a denuncia era dada por um terceiro, tinha este uma terça parte, a fazenda real outra e a companhia outra. Para proibir a mineração clandestina sustentava a companhia uma numerosa tropa de capitães do mato. A duodécima condição do contrato conferia aos contratadores um poder imenso, que os tornou quase senhores absolutos da demarcação. Em virtude dessa condição, se eles tinham suspeita de que alguma pessoa extraía ou comprava diamantes, podiam comunicá-la ao intendente, o qual tomando informação secreta, e não havendo, inteira prova, mas só indicio, mandava logo exterminar da demarcação e comarca a pessoa suspeita. Só a denúncia dos contratadores se reputava como indício suficiente, sem se exigir mais prova, para o extermínio.

[Segue-se um caso que repete os tribunais da Inquisição em sua lógica condenatória:]

O que temos à vista é um processo pouco volumoso, que começa por uma petição, assinada pelo contratador Francisco Ferreira da Silva, dirigida ao intendente e acompanhada de um rol dos nomes de vinte e duas pessoa, moradoras do Tijuco, das quais seis são escravas. O contratador alega que tem suspeitas e suficientes indícios, de que, dessas pessoas, umas extraem e outras compram diamantes: e porque isso é prejudicial ao seu contrato, requer se passe mandado de busca nas casas das pessoas indicadas, que serão notificadas para dentro de três dias saírem para fora da demarcação diamantina; e achando-se diamantes em seu poder, sejam logo presas, recolhidas á cadeia, se faça sequestro em todos os seus bens. Seguem o despacho deferindo a petição, o mandado, e auto de busca, do qual consta não se ter achado diamante algum em casa dos indiciados: em consequência são só intimados para saírem da demarcação no prazo de três dias. Os réus embargam esta notificação: nos embargos alegam que, conforme o direito divino e natural, ninguém pode ser condenado sem primeiro ouvido e convencido; que nunca extraíram e nem compraram diamantes, etc.; mas seus embargos são desprezados, julgando-se subsistente a notificação, visto que os notificados, diz a segunda sentença, por informação secreta, que se tomou, são pessoas suspeitas. Aqui termina o pequeno processo.

+++++++++++

O art. 30 autoriza a todo o soldado do destacamento dos dragões ou pedestres a dar busca repentina em qualquer casa ou pessoa, havendo suspeita de traficância de diamantes, conduzindo depois a tomadia [a coisa apreendida] e o indiciado à presença do intendente. Procurou-se assim estabelecer o despotismo militar. Podem-se conjecturar os abusos, que necessariamente deviam resultar desta autorização, e de fato resultaram, como se verá da continuação deste escrito.

[Tal qual a inquisição, o sistema protegia o denunciante que passava a ter credibilidade sem necessidade de provas. A forma de aquisição da parcela dos bens usurpados do denunciado era bastante singular para o despotismo vigente].

A respeito das denúncias se determinou que fossem dadas em segredo, não se lavrando delas auto algum, afim de se animar os denunciantes com a certeza de ficar seu nome desconhecido. O denunciante devia escrever a delação em um papel, com a declaração de todas as circunstâncias e provas do delito, sem ser necessário assiná-lo. Este papel era entregue pessoalmente ao intendente, ou a algum dos caixas, que o assinava com declaração do dia, mês e ano em que lhe fora apresentada, e depois de assim legalizado o entregava ao denunciante. Este papel tornava-se por esta forma um título ao portador, e por consequência podia ser transferido, negociado, vendido, doado ou alienado por qualquer maneira. Depois tratava-se de processar o denunciado. Feito e liquidado o confisco, entregava-se ao portador do título a parte, que por lei competia ao denunciante, e, se o portador era escravo, ainda se lhe conferia a liberdade em nome de el-rei.

Foi esta uma invenção bem engenhosa, digna do gênio e inspiração do despotismo: um filho podia denunciar o pai, um irmão o irmão, um amigo o amigo, um escravo o senhor, depois receber o premio da denúncia e ficar desconhecido o nome do denunciante!

[Um descalabro que produziu uma disjunção social com o medo latejando no seio das famílias e que certamente contribuiu para o caráter ambíguo e desviante do brasileiro. Já vi como se formou o Jeca, extraído do meio minerador e condenado a viver errante e sem vida social pelas condenações que sofria como contrabandista].

O art. 32 recomenda muito especialmente, que aos denunciantes se pague, com toda a pontualidade e exatidão o premio que lhes é devido pela denúncia.

O art. 34 manda que o intendente reduza as lojas, vendas e armazéns do Tijuco, vila do Príncipe e arraiais circunvizinhos ao número que for restritamente necessário, não se podendo estabelecer mais outras para o futuro; devendo os gêneros dos negócios, que se suprimirem, ser comprados pelos donos dos que ficarem subsistindo, pelos preços em que combinarem, e na falta de combinação, pela avaliação, que derem louvados nomeados pelo intendente. [Uma confirmação da hostilidade ao livre mercado e a competição, além do controle de preços que viria a criar o espírito do estatismo como encarnação da nacionalidade. Ou seja, se combatia a essência do capitalismo].

[Agora uma determinação muito comum na União Soviética do tempo de Stalin, só que variando de fora para dentro:]

O art. 37 renova a sempre repetida proibição de pessoa alguma poder entrar no distrito diamantino, sem licença por escrita do intendente; a qual deverá ser requerida, vindo acompanhado o requerimento de um bilhete da polícia, ou das justiças do lugar donde o impetrante houver habitado, mostrando o negócio, que tem de fazer, ou o lugar para onde se dirige. O mesmos roceiro e condutores de gêneros alimentícios não poderão obter senão licenças anuais para entrarem na demarcação, mostrando que não são suspeitos.

[E o livro poderia terminar aqui:]
A terra se despovoa, o comércio se estanca; uns não se atrevem a fazer girar seu cabedal, porque não sabem a hora em que se verão perdidos, ou eles próprios ou os que lhes comprarão as fazendas. Os comerciantes do Rio de Janeiro, que fiam as suas fazendas às mãos cheias para qualquer das outras comarcas, recusam até ouvir o nome da do Serro Frio: o escasso povo que resta, descontente e como estúpido definha e a nada se abalança, enquanto mede com os olhos o lugar para onde se retire. Enfim o despotismo feio, magro, descarnado mostra sua hedionda cara entre este povo.

+++++++++++

[Um depoimento contra o Marquês de Pombal, que nossos historiadores insistem em classificar como Reformador:]
Quatro anos depois mudava-se a política portuguesa. D. José I era falecido, e com sua morte caiu o ministério do marques de Pombal. Por ódio ao despotismo deste ministro, seus inimigos, chamados ao poder, entendem estabelecer um novo sistema de administração. D. Maria I subia ao trono. Começaram as reações. Pombal fugiu de Lisboa à vista de oitocentos proscritos, que ele sepultara nas masmorras do Limoeiro, e aos quais a rainha, por sugestão dos novos ministros,acabava de conceder a liberdade, e que o acusavam em nome de quatro mil vítimas, que se dizia terem perecido nos ferros. Os parentes dos condenados como regicida pela tentativa de 1759 requereram a revista de seus processos, que afinal foi concedida pela rainha em 1780.

Diz- e que os condenados foram declarados inocentes pelos voto de quinze juízes contra três; mas que a rainha não quis sancionar o julgamento, por conhecer que ele fora ditado mais por ódio ao marquês que por amor da justiça; e assim esta decisão ficou em segredo.

+++++++++++

[E a seguir, um depoimento a favor de Pombal:]
Entretanto enlouquecera a rainha D. Maria I, e teve de resignar a gerencia dos negócios do estado o seu segundo genitor o príncipe D. João (D. João VI depois da morte dela). O poder estava quase exclusivamente entregue as mãos de uma fidalguia devassa e dissoluta. A presidência do erário era exercida por um ministro inepto e incapaz de administrar os próprios negócios. Governo fraco e reacionário só tratava de demolir as obras do marquês de Pombal que por seu gênio conseguira sustentar a dignidade da nação e levá-la a um alto grau de prosperidade. Por sua morte tinham ficado no erário sobra de muito milhões, que logo serão dissipados pelo governo que lhe sucedeu . Daí resultou o mau estado das finanças do reino, os pesados tributos que pagávamos. A imensa riqueza que Portugal sugava do Brasil não chegava para sanar a penúria do tesouro.

Este estado ainda foi mais agravado pela guerra geral que envolveu a Europa no fim do século XVIII, depois da morte de Luis XVI, da qual resultou a paralisação do comércio, como sempre acontece.

+++++++++++

[Chama atenção a disjunção social na colônia, reinante até os dias atuais, entre as ordens do governador e a divergência do Intendente, produzindo inúmeras controvérsias e litígios, o que levou à mudança de atitude do Intendente, que – conhecendo os círculos sociais da cidade onde foi contestado em abaixo-assinado ao governador, assumiu uma perseguição implacável dos cidadãos de Diamantina:]

No Tijuco reinava o terror, a desolação. Foi posto em prática o sistema de uma espionagem intolerável. Ninguém mais contava com segurança em sua casa; por toda a parte podia-se suspeitar um espião disfarçado do intendente. O mais leve indício de contrabando dava motivo a numerosos despejos. Não se faziam processos, não o conheciam formalidades. Muitas famílias foram reduzidas à miséria, outras viram-se forçadas a abandonar uma pátria onde não achavam segurança. Por esta forma a população do arraial ia- se dizimando todos os dias. Eram estas as ordens secretas da diretoria?

Constou um dia que João Ignácio preparara uma longa lista de várias pessoas, dizem que de duzentas, que pretendia mandar despejar da demarcação. Esta notícia excitou a princípio uma consternação geral, depois o ódio público e disposições hostis contra a ordem de despejo, se se tentasse executá-la. O comandante do destacamento, [...] conhecendo o estado do espírito público, foi ter com João Ignácio, fez-lhe ver os inconvenientes do numeroso despejo, que constava que ele tentava decretar, os sintomas de desespero e sedição, que se manifestavam nos habitantes, porque já se dizia que estavam dispostos à resistência, «"is a lista sobre aquela mesa, disse o intendente; amanhã todas as pessoas nela mencionadas serão intimadas para despejarem a demarcação". "Protesto em nome do governador, respondeu o comandante, que se tal ordem for dada juntar-me-ei eu e o meu destacamento ao povo para resistirmos à sua execução".

+++++++++++

Outros opinavam pelos meios pacíficos, e queriam que se fizesse uma representação ao príncipe regente, em que não se pedisse a demissão do intendente e fiscal, como também a revogação do regimento diamantino, como uma lei bárbara, que dava azos à tirania, revestindo os ministros encarregado de sua execução de um poder absoluto, sem permitir às partes o direito de defesa e de recurso aos tribunais superiores.

+++++++++++

[Finalmente aparece a Inquisição:]
T. J. Vieira Couto, não logrou a satisfação de vir pessoalmente a Tijuco dar conta aos seus constituintes da missão de que o encarregaram..... Quando se preparava para voltar, foi preso por ordem do Santo Ofício, processado e condenado como libertino e pedreiro livre [isto é, maçom] e encerrado nas masmorras da Inquisição. A prisão do procurador do povo foi geralmente atribuída a uma denúncia secreta, que João Ignácio por vingança dera contra ele ao tribunal da Inquisição. Não o acreditamos. João Ignácio, como nos afirmaram pessoas hem informadas, não teve parte alguma nesta perseguição. A política da época servia-se da Inquisição como de um instrumento para guerrear seus inimigos, ou abafar as ideias infensas ao regime do absolutismo. Se perseguiam os chamados pedreiros livres, não era tanto por fazerem eles parte de uma associação, que fora condenada e excomungada por Clemente XII e Bento XIV, mas principalmente por serem os que mais concorriam para a disseminação dos princípios revolucionários, cujo foco existia em França.

++++++++++++

Não sabemos como a maçonaria se introduzira no Brasil; é certo, porém, que em meados do século passado já funcionava na Bahia o grande oriente maçônico, e um fato, que se não pode negar, a importante cooperação no trabalho lento, oculto, persistente, para a nossa independência. A Inconfidência de Minas tinha ido dirigida pela maçonaria. Tiradentes e quase todos os conjurados eram pedreiros livres.

José Joaquim Vieira Couto chegando a Lisboa, como procurador do povo do Tijuco, na qualidade de pedreiro livre achou-se em contato com muitos homens eminentes, e entre estes Hipólito José da Costa, com quem se relacionou mais estreitamente, sem dúvida pela homogeneidade de pensar e ardente espírito de patriotismo, que animava estes dois brasileiros. Hipólito é bem conhecido no Brasil pelo muito que fez em prol da independência, como redator do Correio Brasiliense.

++++++++++++

É o espírito do avaro ambicioso, que destrói o que não lhe pode ser útil, só para não aproveitar a outrem. A política de então não compreendia, que da prosperidade do indivíduo é que depende a do estado. [Ainda não entende].

++++++++++++

O fabrico da pólvora, porém, era absolutamente proibido. Sabemos qual era o sistema colonial. Proibições com penas as mais rigorosas não nos permitiam utilizar das riquezas, que a natureza com tanta prodigalidade disseminara sobre nosso solo. Todo o comércio era exercido por monopólios; toda a indústria fabril era proibida aos brasileiros; exauria-se a colônia para enriquecer os negociantes de Lisboa; muitos gêneros de primeira necessidade, que abundavam em nosso país, não podíamos obter senão comprando-os às companhias portuguesas, e quando os importávamos vinham sobrecarregados de pesados direitos.

+++++++++++

Se nos tempos coloniais trabalhávamos para a sustentação da corte de Lisboa, hoje trabalhamos para a do Rio de Janeiro. O que lucramos com a independência?

+++++++++++

Era aqui a vasta e singular adega, sempre fresca pela umidade, que transudava dos poros do granito, e onde se guardavam os vinhos mais finos e deliciosos que chegavam remetidos diretamente da Europa, e não sofriam, seja dito de passagem, a química do Rio de Janeiro, arte esta já então conhecida, e que em nossos dias há chegado a um súbito grau de perfeição. [A falsificação de vinhos europeus continua até hoje, pela adulteração de parte de seu conteúdo. Pode-se dizer que temos aí um procedimento de 250 anos].

++++++++++++

[Como se faz um bom historiador?
Em 10 de Março de 1820 os espanhóis, proclamando o regime constitucional, obrigaram a Fernando VII a jurar a constituição de 1812. Em 21 de Agosto rompeu no Porto uma revolução semelhante: aceita por Lisboa em 15 de Setembro, propagou-se logo por todo o reino. Assim Portugal revolucionava-se, mas não tanto por amor da liberdade, como por se ver pungido de inveja pela prosperidade do Brasil, que deixava de ser colônia depois da vinda da corte, e cujo comércio se engrandecia com o franqueio de seus portos ao estrangeiro, em prejuízo da indústria portuguesa, que não mais nos tinha por consumidores forçado dos seu maus produtos. Pedia-se o regresso do rei para Lisboa: era o principal, quase o único fim da revolução. [os maus produtos fabricados no Brasil tem portanto origem na cultural colonial]

Os brasileiros, em geral toda a América, consideravam o regime dos anglo- americanos como o protótipo dos governos: provam-no as manifestações de Minas em 1789, de Pernambuco em 1817. Se houvesse partido do Brasil a iniciativa deste grande movimento, é fora de dúvida que teríamos seguido o exemplo de nossos irmãos do novo- mundo. Então o que seria o Brasil?

++++++++++++

[Cumpre notar nos movimentos que antecedem a Independência (Bahia 1817, Rio 1821), a manifestação clara de indignação com o despotismo do mundo colonial, sugerindo que o espírito de liberdade inaugurado pelas revoluções americana e francesa tinha repercutido no Brasil, e provavam que o mundo entraria em uma nova era de direitos humanos, de onde surgiria o romantismo e, na matriz cristã, o socialismo:]

A liberdade política, consistente na faculdade de praticar tudo o que por lei não for proibido; a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de classes privilegiadas; a inviolabilidade do direito de propriedade, e da segurança pessoal, não se podendo decretar penas arbitrárias, que não estejam por lei anteriormente designadas; a estigmatização das penas de confisco, de infâmia, de açoite, do baraço e pregão, a marca de ferro quente, da tortura, e outras que só serviam para degradar o homem e sua posteridade, sem corrigi-lo; o direito de petição; os recursos dados às partes contra decisões injustas, iníquas, arbitrária — estes e outros princípios eternos fundados na lei natural, iam ser reconhecidos e proclamados na constituição que as cortes de Lisboa tinhão de impor à realeza do direito divino.

+++++++++++++

[O jacobinismo conatural a qualquer revolta:]
Mas se a autoridade se desmoralizou, o povo por outro lado tornava-se mais audaz e arrogante, certo de sua força e da santidade de sua causa. Então constitui-se agressor. No terceiro dia, reunido com os milicianos, saíram pelas ruas novamente dando os vivas do costume e bradando para que se prendesse o fiscal como inimigo da constituição jurada na corte. A arruaça ia tomando vulto, e talvez tivesse consequência, se não interviesse o tenente coronel Manoel Vieira Couto, que repreendeu os milicianos, como os mais entusiastas e principais autores do motim, tomou-lhes as armas, e mandou que se dispersassem.

++++++++++++

[O bispo de Vila Rica deixa bem claro que no fim do despotismo e início periclitante do governo constitucional com vistas a formação do governo provisório, o poder temporal deve se submeter ao poder espiritual. E depois, na primeira assembleia, o pároco em discurso repetiu:]
A primeira obrigação do deputado era obedecer às autoridades eclesiásticas.
[Encerra o livro falando da reformada lei de concessão de 1853, categorizando-a de excelente, depois de discorrer sobre a decadência da Extração (real) e da invasão das terras de garimpo por legiões de empreendedores individuais da bateia.]

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é bem-vindo.