quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Continuação de "Contra o Sistema da Corrupção"

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


CAPÍTULO 12 — “Nunca nos renderemos”

[Trata do projeto anticorrupção e da sabotagem de Bolsonaro. Explica os detalhes do que se esperava que ele vetasse. Começa a apresentar os casos e sua trajetória de frustração com o governo no encaminhamento do pacote anticrime. Este capítulo trata do aprendizado de Moro da vida política do país.]

39. … em Brasília perde-se mais tempo evitando o mal do que perseguindo o bem.

40. O fato de que muitos no Planalto e no Congresso me viam como um possível candidato nas eleições presidenciais de 2022 tornava tudo mais difícil: pensavam que, se a minha agenda anticorrupção e de luta contra o crime organizado fosse bem-sucedida, eu ganharia musculatura política.

41. Já no fim de 2018 eu e minha equipe começamos a preparar um projeto de lei para ser apresentado no início do ano seguinte, logo após a formação das presidências da Câmara e do Senado e das comissões legislativas no Congresso. O objetivo era alterar pontualmente as legislações criminal e processual penal, com medidas simples de serem compreendidas e postas em prática. O projeto ficou enxuto, com mudanças fundamentais para tornar a Justiça criminal mais eficiente, sem prejudicar os direitos dos investigados ou acusados.

42. A proposta modificava o Código de Processo Penal para inserir expressamente a execução da condenação criminal em segunda instância.

43. Nossa proposta também previa que, se a condenação fosse do Tribunal do Júri, que julga basicamente homicídios e feminicídios, a pena poderia ser executada já a partir da primeira instância.

[Descreve a proposta de ampliar o Banco Nacional de Perfis Genéticos, a regulação por lei da figura do whistleblower, ampliação do confisco dos bens de criminosos profissionais, o chamado confisco alargado; regime inicial fechado para cumprimento de pena por condenados por corrupção, peculato e roubo armado; ampliação do período de permanência de presos perigosos e lideranças criminosas em presídios federais de segurança máxima; proibição de progressão de regime de cumprimento a membros de organizações criminosas; instituição de mecanismos de acordo para resolução de casos criminais, como o plea bargain; aumento das penas para o uso de caixa dois em campanhas eleitorais.]

44. Mas nenhum dos pontos propostos na lei anticrime causou tanta polêmica quanto a atenuante ou a excludente da punibilidade em casos de excesso na legítima defesa: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.” Surgiu o receio de que essa mudança na lei pudesse aumentar a violência policial. Críticas um pouco injustas, entendo eu. A proposta reproduzia dispositivos idênticos dos códigos penais português e alemão (em ambos, o artigo 33). Não era e jamais foi uma “licença para matar” ou uma norma arbitrária.

45. Ouvi muitos absurdos de pessoas que simplesmente não sabiam o que estavam falando. Só caberia discutir o excesso se fosse caracterizada, previamente, uma situação de legítima defesa. Casos de balas perdidas ou mortes provocadas por pessoas comuns ou policiais sem que haja uma situação de legítima defesa não seriam, de forma alguma, contemplados pelo dispositivo, ainda que o agente agisse por conta do medo, da surpresa ou da emoção.

46. O mesmo ocorre no caso de um policial que atira em uma pessoa acreditando que ela estaria portando uma arma para realizar um ataque — uma situação denominada tecnicamente legítima defesa putativa e que nada tem a ver com o que estava sendo proposto. De todo modo, a proposição seria submetida ao Congresso. Se os parlamentares não concordassem com aquele ponto, bastava não aprová-lo. Eu, particularmente, nunca tive esse item como essencial ao projeto de lei anticrime e não escondi isso dos deputados e senadores. Mas era um pedido do presidente eleito e, além do mais, a proposta apresentada por mim era muito mais limitada do que a que Bolsonaro de fato pretendia — o presidente desejava criar uma excludente de ilicitude genérica para todo caso de morte decorrente de confronto policial.

47. Com o pretexto de não atrapalhar a tramitação da reforma da Previdência, os projetos foram colocados em segundo plano na Câmara. Além disso, as propostas sofriam muita resistência do presidente da Casa, Rodrigo Maia, na época filiado ao DEM fluminense, assim como de parlamentares do PT e do Centrão, como é conhecida a bancada de partidos mais fisiológicos — no caso desses dois grupos, a resistência poderia ser explicada pelo fato de parte de seus membros ser investigada ou acusada por crimes contra a administração pública em decorrência da Lava Jato.

[Depois de relatar o tratamento grosseiro de Rodrigo Maia com ele na tramitação da lei anticrime, desabafa:]

48. Deveria ser revisto o excessivo poder dos presidentes das casas legislativas. Ainda que haja maioria parlamentar para votar algum projeto, o presidente tem o total controle da pauta, decidindo o que irá ou não ser votado. É um pouco demais, considerando que o poder do presidente não deveria ser maior do que a vontade da maioria dos parlamentares. Se o presidente da casa não quer, ele simplesmente não pauta, e é o que explica por que projetos relevantes no combate à corrupção e de fortalecimento das instituições, como os que preveem a execução da condenação em segunda instância e o fim do foro privilegiado, não são nunca votados.

49. Mas devo aqui reconhecer que a culpa pela demora não foi só do deputado Rodrigo Maia. Além da resistência de outros parlamentares e partidos, o próprio Planalto jamais se interessou pelo projeto de lei anticrime e não se movimentou para que ele fosse votado. O Ministério da Justiça estava sozinho naquela luta.

[Fica clara a disjunção entre Moro e Bolsonaro nas questões relativas ao combate a corrupção e ao crime organizado].

50. Somente no dia 4 de dezembro [2019], após a aprovação da reforma da Previdência, os deputados votaram o projeto. Partes importantes ficaram de lado, como a execução da condenação criminal em segunda instância e a instituição do plea bargain. Mas propostas importantes foram aprovadas, como a execução das condenações em primeira instância do Tribunal do Júri, o confisco ampliado de bens, o whistleblower, a melhor regulação da atuação do agente policial disfarçado e a proibição da progressão de regime do preso que mantém vínculos com organizações criminosas.

51. Houve retrocessos introduzidos pela Câmara: a figura do juiz de garantias, restrições à prisão preventiva e alterações que dificultavam o uso da colaboração premiada como prova em processos penais, incluindo a proibição de divulgar o conteúdo de acordos de colaboração premiada antes da denúncia formal pelo Ministério Público. Se essa lei estivesse em vigor no início da Operação Lava Jato, por exemplo, não haveria a publicidade determinada pelo STF das revelações dos subornos pela Odebrecht nos acordos de colaboração. Longe dos holofotes da sociedade, haveria um caminho aberto para engavetar todas aquelas graves denúncias contra figuras políticas poderosas. Considerando ainda as restrições contra prisões preventivas e acordos de colaboração, as inovações feitas pela Câmara aparentavam ter como propósito inviabilizar novas grandes operações de investigação contra a corrupção.

52. A Câmara … não aprovou o terceiro [dispositivo], referente a lavagem de dinheiro, sem que se possa entender claramente o motivo. É certo que um agente policial disfarçado em operação de lavagem poderia ser um instrumento poderoso em investigações até mesmo contra a corrupção, um crime que normalmente antecede à lavagem, mas isso não poderia ser considerado um motivo para não aprovar a proposta legislativa.

[Não foi só isso. Recentemente o Congresso legislou que os atos de corrupção só poderiam ser criminalizados se o corrupto manifestasse intenção de se corromper, um acinte contra a ciência jurídica de todos os tempos e lugares, e uma manifestação evidente de que se legisla a favor da corrupção].

53. Aprovado na Câmara com essas modificações, o projeto seguiu para o Senado.

54. Ali, com os parlamentares que compunham o grupo chamado Muda Senado, eu acreditava que conseguiríamos alterar o projeto, restabelecendo medidas que não haviam sido aprovadas e retirando aquelas que considerava inconvenientes. O problema é que, se o projeto fosse alterado, teria de voltar à Câmara, com o risco de ser engavetado ou de ser restabelecido o texto aprovado pelos deputados — se isso ocorresse, as mudanças efetuadas no Senado de nada valeriam.

55. Havia também receio de que, no Senado, o projeto padecesse do mesmo problema ocorrido na Câmara, com tramitação a passos de tartaruga ao longo de 2020. Conversando com alguns parlamentares, especialmente a senadora Simone Tebet, presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, chegamos à conclusão de que seria melhor aprovar o texto sem alterações. O projeto iria para o Planalto, e o presidente vetaria as mudanças inconvenientes feitas pela Câmara. Isso faria com que o projeto entrasse em vigor mais rapidamente. Costurei um acordo informal nesse sentido com o Muda Senado e com lideranças do MDB na Casa. De fato, o projeto acabou sendo rapidamente aprovado no Senado, em 12 de dezembro de 2019, e foi à sanção ou veto presidencial.

56. Jair Bolsonaro havia me informado de que, no veto, seguiria as sugestões do Ministério da Justiça e Segurança Pública, da Advocacia-Geral da União, do Ministério da Transparência e da Controladoria-Geral da União. Propusemos vários vetos, inclusive sobre as normas introduzidas na Câmara que limitavam a prisão preventiva e os acordos de colaboração e introduziam a figura do juiz de garantias.

[No entanto, a traição vem à tona:]

57. O presidente deixa de vetar mudanças que contrariam o espírito do projeto anticrime e ainda vem reclamar comigo das críticas que estava recebendo?

58. Para um presidente eleito com o discurso de que seria “duro” no combate ao crime e à corrupção, era mais uma traição injustificável. Mais uma vez tinha-se a prova de que suas promessas de campanha não passavam de retórica política.

59. Tempos depois, eu conversava com um dos filhos parlamentares do presidente, Eduardo Bolsonaro, quando surgiu o assunto do juiz de garantias. Segundo ele, Jair Bolsonaro não teria vetado aquele ponto para não desagradar o Congresso, pois sabia que a lei era inviável e seria suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. Por isso, disse ele, o pai era um “verdadeiro gênio político”. Fiquei sem palavras. Confesso que, diante daquele discurso, fiquei em dúvida: era o presidente quem havia mentido para o filho ou era o filho que estava mentindo para mim? De uma forma ou de outra, era lamentável.

60. Pensando agora, talvez eu devesse ter renunciado ao cargo de ministro nesse episódio.

[Lembro de — neste episódio — ter escrito uma nota no Facebook dizendo que “Moro não tem mais o que fazer no MJ”.]


CAPÍTULO 13 — O avanço sobre a PF

61. É difícil entender o que pensa o Presidente Bolsonaro. Se ele não me queria mais no governo, poderia simplesmente me demitir. Em vez disso, preferia diminuir os seus subordinados aos olhos da opinião pública, como fez não só comigo mas também com outros ministros. O presidente não percebia que aquilo só enfraquecia o governo como um todo, ao tornar públicas as divergências internas.

62. Aquele comportamento também demonstrava a falta de liderança dele. O bom líder extrai o melhor dos seus subordinados em vez de constrangê-los e humilhá-los.

63. Na verdade, o presidente é muito suscetível a toda e qualquer teoria da conspiração, e em Brasília não falta quem goste de alimentar com intrigas ouvidos sensíveis e despreparados.

[Bolsonaro fez escola no conspiracionismo].

64. Mas, ainda no primeiro semestre de 2019, o presidente começou a me pedir que substituísse o superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro, com o argumento de que não confiava nele. Não foi apontado, porém, um motivo concreto para a alegada falta de confiança. Por questões burocráticas, segundo me disse o diretor-geral, o melhor seria fazer a troca no fim daquele ano. Mas, já em agosto de 2019, em uma reunião tensa com vários ministros no Palácio da Alvorada, Jair Bolsonaro ordenou de forma enfática que a mudança do superintendente da Polícia Federal e de um agente da Receita Federal, ambos do Rio de Janeiro, ocorresse com urgência e afirmou que não iria mais esperar.

65. Disse, em síntese, que era ele quem mandava e que Alexandre Saraiva, superintendente da PF no Amazonas, seria o novo chefe da Polícia Federal no Rio. “O que eu fiquei sabendo, se ele resolveu mudar, vai ter que falar comigo. Quem manda sou eu, [quero] deixar bem claro. Eu dou liberdade para os ministros todos, mas quem manda sou eu. Pelo que está pré-acertado, seria o lá de Manaus.

66. [Bolsonaro:] “Ué, eu tenho poder de veto? Ou vou ser um presidente banana agora? Cada um faz o que bem entende, e tudo bem?”

67. O presidente da Associação Nacional dos Delegados da PF reagiu: “Não cabe ao Presidente da República indicar ou trocar cargos internos da Polícia Federal. Os cargos internos são preenchidos pelo diretor-geral. Acho que foi bastante estranha essa declaração dele. A Polícia Federal é um órgão de Estado, não do governo dele. Ele pode indicar o diretor-geral, não os demais cargos internos.”

68. Depois desse episódio, Bolsonaro começou a reclamar comigo do diretor-geral da Polícia Federal, Valeixo, e a insistir para que eu o substituísse.

69. Jair Bolsonaro queria demiti-lo não por ele ter feito algo errado, mas por ter feito o que era certo.

70. Isso sem falar que o presidente, sem uma causa aparente, rompia de vez o compromisso assumido comigo ao me convidar para o ministério: a aludida carta branca para as nomeações.

71. No fundo, o principal motivo para eu mudar de posição foi que comecei a desconfiar das razões do presidente para a mudança pretendida. Por que o presidente queria tirar Valeixo, um profissional respeitado pela categoria, sem qualquer motivo objetivo, e substituí-lo por alguém de sua relação pessoal? O tempo me daria razão.


CAPÍTULO 14 — De olhos bem fechados

72. Em uma entrevista em 2 de abril à Rádio Gaúcha, defendi o distanciamento social para conter a pandemia e, naquele mesmo dia, publiquei o link da entrevista na minha página do Twitter. Nada muito diferente do que o Ministro Paulo Guedes dissera um pouco antes. Ainda assim, o presidente, desde o início um negacionista da gravidade do vírus (chegou a chamar a doença de “gripezinha”), reclamou da minha postagem.

73. A discordância quanto à política do governo federal no combate à pandemia desgastou ainda mais minha relação com o presidente.

74. Várias vezes, em março e abril, durante encontros pessoais com o presidente, sugeri a edição de uma lei federal com regras básicas sobre distanciamento social para que, a partir delas, os estados e municípios pudessem endurecer ou flexibilizar as próprias medidas. Claro que o distanciamento precisa ser coordenado com medidas de caráter econômico para preservar empregos, empresas e renda, o que vinha sendo feito pelo governo federal, mas as regras de distanciamento demandavam uma formulação mais homogênea no país..…

75. Sua única atitude era vociferar contra as medidas tomadas pelos estados e municípios, especialmente aqueles governados pela oposição, com o intuito de transferir a eles o ônus pelas dificuldades que a economia do país fatalmente sofreria em decorrência da pandemia.

76. Para esclarecer que as medidas de isolamento e de quarentena eram compulsórias, que seriam fiscalizadas pela polícia e que o eventual descumprimento poderia caracterizar crime previsto no Código Penal, os ministérios da Saúde e da Justiça e Segurança Pública editaram em conjunto uma portaria sobre o tema. O Código Penal já trata, no artigo 268, do crime de infração de medida sanitária preventiva, com pena de um mês a um ano de detenção e multa... mas a prisão costuma ser substituída pela assinatura de um termo de compromisso de comparecimento a todos os atos do processo. Nada extraordinário. Apesar disso, no contexto da escalada do conflito entre o presidente, de um lado, e o Ministro da Saúde e os governadores, do outro, Jair Bolsonaro passou a criticar publicamente episódios muito pontuais em que algumas pessoas foram detidas por infringirem medidas de quarentena.

77. Depois que Mandetta e eu saímos do governo, a portaria foi revogada — como se isso fizesse alguma diferença, pois continua lá, intocado, o artigo 268 do Código Penal…

78. Diante dessas ponderações, o presidente era incapaz de apontar motivos republicanos para a troca do comando na PF. O presidente insistia na troca do comando da Polícia Federal e apresentava um comportamento cada vez mais estranho. Ele continuava promovendo aglomerações e vociferando contra o distanciamento social e contra os governadores. Para agravar o seu ânimo, no dia 15 daquele mês, o STF determinara que os estados e municípios têm competência concorrente com a União para decidir sobre medidas de distanciamento social, de restrição de transporte e definição de serviços essenciais que não poderiam ser paralisados.

79. [Bolsonaro:] “Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira.”

80. A reunião teve outros momentos constrangedores, como já foi amplamente divulgado pela imprensa. Destaco uma passagem que parece pequena, mas que me deixou uma impressão muito ruim: a reclamação feita por Bolsonaro contra uma nota de pesar publicada pela Polícia Rodoviária Federal em relação ao falecimento de um de seus agentes por Covid-19. O presidente queria que a nota também informasse que a morte fora provocada por alguma comorbidade (ainda que a informação não fosse verdadeira) para minimizar a gravidade do coronavírus. Inacreditável.

81. Minutos antes desse encontro de 23 de abril, recebi mensagem do presidente com o link de uma notícia que o site O Antagonista acabara de publicar. O texto dizia que os inquéritos conduzidos pelo Ministro do STF Alexandre de Moraes para investigar as fake news e os atos anticonstitucionais já haviam “quebrado o sigilo” de “uma relação de 10 a 12 deputados bolsonaristas” e que a PF estava prestes a fazer buscas e apreensões em seus endereços quando veio a pandemia. E que a investigação havia identificado o “gabinete do ódio”, no Palácio do Planalto, como a fábrica de fake news. Junto com o link veio uma mensagem do presidente, “Mais um motivo para a troca”, uma referência à substituição do diretor-geral da Polícia Federal.

82. Aquela mensagem deixava ainda mais clara a motivação de Bolsonaro para a mudança do comando da PF. Ele queria alguém que pudesse controlar.

83. Bolsonaro estava irredutível, embora fosse incapaz de me informar um motivo aceitável para a troca na PF.

84. Eu não confiava mais no presidente.


CAPÍTULO 15 — O dia seguinte

85. No mesmo dia da minha renúncia, o presidente fez um pronunciamento público me criticando. Embora parte do discurso não fizesse muito sentido (como estranhas alusões ao aquecimento da piscina presidencial), Bolsonaro sugeriu que eu teria condicionado a saída de Valeixo à minha indicação para o Supremo Tribunal Federal. Isso nunca ocorreu.

86. Aliás, se o meu objetivo fosse uma cadeira no STF, bastava ter concordado com a troca e permanecer no governo, dizendo “amém” a todas as iniciativas do presidente. Eu havia deixado o governo por perceber a real falta de comprometimento de Bolsonaro com a agenda anticorrupção e, mais do que isso, pela constante sabotagem às iniciativas do Ministério da Justiça.

87. Havia outras divergências crescentes entre nós. Cito aqui algumas a título de exemplo: a política de armas, a falta de enfrentamento da pandemia, o tratamento dado à questão indígena, a relação com a imprensa, a política de alianças com o Congresso e a política econômica.

88. O presidencialismo de cooptação ressurgiu, e com toda a sua força. O resultado pode ser visto na lei que autorizou a privatização da estatal Eletrobras. Apesar da salutar venda da empresa, foram inseridos na lei diversos dispositivos estranhos ao propósito inicial, os chamados “jabutis”, criando reservas de mercado, restrições à livre concorrência e, por consequência, prejuízos ao consumidor. O governo, vendido ao patrimonialismo, não teve como conter a aprovação de medidas contrárias ao propósito inicial da lei, que era a abertura do mercado.

89. Já o Presidente Bolsonaro descumpriu todas as promessas da campanha eleitoral, inclusive aquelas feitas diretamente a mim. Em vez de fortalecer o combate à corrupção, agiu para enfraquecê-lo. Sem contar as investigações de um membro de sua família por atividades criminosas.

90. A minha expectativa, após a saída do governo, era recolher-me por algum período para uma vida privada e mais discreta. Porém, diante da abertura de inquérito contra mim pelo Procurador-Geral da República e dos incessantes ataques nas redes sociais, tive de me reposicionar. Diferentemente dos detratores, eu não conto com uma rede organizada de comunicação ou robôs em redes sociais para me defender.


CAPÍTULO 16 — Presunção de inocência à brasileira

91. Criminosos de colarinho branco têm condições financeiras de contratar hábeis advogados para sustentar e apresentar recursos perante os tribunais, em uma espiral sem fim.

92. Nem todos os acusados têm condições de recorrer indefinidamente ao Judiciário. Pessoas acusadas de crimes comuns não têm, em geral, as mesmas condições econômicas para buscar a impunidade por meio da manipulação do sistema e, por vezes, a lei recai sobre elas de uma forma excessivamente rigorosa.

93. Já em relação àqueles de amplos recursos, o ideal é reduzir as possibilidades de manipulação do sistema, com a eliminação das brechas processuais que favorecem a impunidade.

94. Os infindáveis recursos serviriam para prevenir a condenação de um inocente. Surpreendo-me até hoje quando ouço arraigados defensores dessa fórmula tão peculiar de presunção de inocência.

95. A grande verdade é que a “presunção de inocência à brasileira” é apenas uma construção interpretativa que visa garantir a impunidade de crimes cometidos pela classe dirigente, mais um reflexo da nossa brutal desigualdade social. Esse sistema falho aniquila o princípio de que todos devem ser tratados como iguais perante a lei — o que significa que, se você cometeu um crime, deve responder por ele, independentemente de sua condição social.

96. A impunidade da grande corrupção gerada por esse sistema está na raiz de nossa tradição patrimonialista e da cultura extrativista.


CAPÍTULO 17 — Os hackers

97. Cabe esclarecer que, na tradição jurídica brasileira, não é incomum o juiz conversar com procuradores, policiais e advogados. Isso faz parte do cotidiano do trabalho e não há nada de ilícito nisso. O que pode determinar alguma ilicitude é o conteúdo da conversa.

98. Por exemplo, pode acontecer de um procurador informar ao juiz que vai requerer alguma medida em um inquérito — como uma prisão preventiva — e o juiz pode legitimamente responder que, para tanto, são necessárias provas robustas que ele ainda não vislumbra na investigação. Ou, em outro exemplo, é possível um advogado procurar o juiz e pedir a revogação da prisão preventiva de seu cliente e receber como resposta que, para isso, seria necessário esclarecer, no pedido formal, alguns pontos específicos que seriam considerados relevantes para a tomada de decisão. Nada disso é ilícito ou antiético. Acontece muito, mais até nos tribunais superiores do que na primeira instância.

99. No fundo, foi construída uma farsa em cima de um crime com o objetivo de anular condenações e processos por crimes de corrupção.

100. Sempre houve forte suspeita de que teriam sido pagos por terceiros para realizar essas ações, mas, até o fechamento deste livro, não havia evidências conclusivas nesse sentido.

101. Ocorre que, como já adiantei, nenhuma das supostas mensagens reveladas indicava nada nesse sentido: não houve fraudes em provas, nem ocultação de provas, tampouco algum cerceamento de defesa, e não havia qualquer elemento que autorizasse conclusão de que alguém teria sido processado por conta de sua opinião política e não pela prática de um crime.

102. Toda a antiga e reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que repudiava a admissão de provas ilícitas em processo foi deixada de lado, sem explicação.

103. Ainda que eu tivesse alguma motivação pessoal — o que não era verdade —, como estender a anulação aos julgamentos proferidos pelas outras Cortes? Teriam elas também agido com parcialidade?


CAPÍTULO 18 — Enumerando os atrasos

104. A decisão pela anulação da condenação do ex-Presidente Lula se insere em um contexto maior de retrocessos na luta contra a corrupção que foram verificados desde os julgamentos do mensalão e da Operação Lava Jato.

105. A ação simultânea, por parte dos integrantes dos três poderes, contra os avanços institucionais, legais e jurídicos obtidos durante o mensalão e a Operação Lava Jato teve o efeito prático de interromper o ciclo virtuoso de melhoria do quadro institucional, arrefecendo o combate à corrupção e facilitando a impunidade dos poderosos.

106. Muitos brasileiros ficaram frustrados, eu inclusive. Como Ministro da Justiça, tentei, em vão, impedir esses retrocessos. O resultado seria diferente se eu tivesse o apoio do Planalto.


CAPÍTULO 19 — A perda de uma chance

107. Fiquei receoso de que a Operação Lava Jato fosse identificada com alguma pauta antidemocrática. Já não faltavam aqueles que afirmavam, mesmo em 2016, que a Lava Jato representava a criminalização da política, dando a ela um viés autoritário ou jacobino. Na verdade, não entendia e nunca vou entender esse argumento. Os condenados na Lava Jato eram políticos que haviam recebido suborno, ou seja, que haviam praticado crime de corrupção. Não se vislumbra como a punição de políticos corruptos possa ser compreendida como algo radical ou antidemocrático.


Epílogo — Precisamos de você

108. Os brasileiros e mesmo os estrangeiros perguntam-se, frequentemente, por que o Brasil, com tanto potencial e tantas riquezas, não consegue fazer as reformas necessárias para progredir e escapar da armadilha da pobreza, da desigualdade e do subdesenvolvimento.

109. A agenda do  futuro está capturada no presente por interesses especiais e não consegue deles escapar. Não adianta planejar belos projetos de lei ou de reformas, pois eles não serão aprovados, salvo em caso de uma situação de absoluta emergência ou com deformações que lhes retirem a eficácia.

110. [Por isso] a luta contra o sistema de corrupção nunca poderá prescindir de bons combatentes, entre eles você.


Voltar

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é bem-vindo.