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segunda-feira, 11 de julho de 2022

Fragmentos 41

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Antonio Scurati – M: O Filho do Século

Trata da ascensão do fascismo pela biografia de Mussolini na descrição cronológica dos acontecimentos entre os anos de 1919 a 1926 na Itália, neste primeiro volume. O autor promete outros dois.

Scurati é um professor de letras e seu pendor literário fica claro na construção do texto e nas sutilezas e particularidades pessoais dos personagens da grande tragédia política produzida pelas consequências devastadoras da Primeira Guerra Mundial.

É a história contada por um homem de letras, com a sensibilidade para o histriônico e para o anedotário que existiam em torno deste jornalista excêntrico expulso das fileiras do jornal Avanti, de encarnação socialista, para a dissidência política através de seu próprio periódico Il Popolo D’Itália, tribuna onde do nada se tornou a figura mais importante do século XX na península.

Em uma Itália pobre, ainda sob o jugo do modelo agrícola de trabalho onde os camponeses eram explorados e sujeitos ao mandonismo e arbítrio dos proprietários locais, do desespero humilhante de ex-combatentes desmobilizados à procura de emprego nas cidades e de uma instabilidade política permanente, formaram-se as condições sociais para o descontentamento e a inserção dos novos métodos trazidos pela Revolução Russa nos movimentos de inspiração sindicalista insuflados pela agitação revolucionária.

Com a crise se agravando e sem uma estratégia para governar, o movimento de massas foi avançando na produção de seu próprio programa de expropriação e imposição de normas arbitradas por seus líderes.

Sem a ascensão meteórica dos socialistas nas eleições parlamentares, não se entende o fascismo, primeiro como aliado e depois como inimigo principal.

Os líderes que gravitavam ao redor de Mussolini tinham um propósito de ação impulsionado pela política de tomar decisões em nível local à revelia dos mandatários eleitos, abrindo confrontos que, através de um populismo no contrapé da ordem social, foram arregimentando seguidores para suas fileiras antes simpáticos ao socialismo até se transformar em um movimento nacional unificado e com capacidade de coerção e eliminação de todas as pessoas que constituíam um obstáculo para seus desígnios políticos.

De pacifistas passaram ao terrorismo social justificado por sua própria ideia de construção de uma nova ordem hegemônica.

Das cinzas do fracasso dos socialistas parlamentares nasceu um movimento que haveria de impor mais de três décadas do regime que seria imitado parcialmente em todos os governos autoritários latino-americanos.

Se a promessa socialista se esvaiu em 1922, a promessa fascista acaba no assassinato de Matteoti, o principal parlamentar socialista de oposição ao regime fascista, não restando a Mussolini senão o rompimento com a tradição que o elegeu, como sempre acontece com os ditadores.

Um livro para ser lido e meditado nesta fase de confronto do lulopetismo com o bolsonarismo.
[São Paulo, 14/07/22]

1) Os Fasci Italiani di Combattimento (no singular, Fascio di Combattimento), conhecidos em português como Grupos Italianos de Combate, foram uma organização paramilitar fundada em 1919 que viria a se tornar, mais tarde, o Partido Nacional Fascista. Seu inspirador e fundador foi Benito Mussolini que tomou o poder em 30 de outubro de 1922 em uma sequência de episódios que será descrita a seguir.

2) O germe do fascismo se formou na fileira dos Arditi, uma brigada de assalto criada na primeira guerra mundial para enfrentar os inimigos nas trincheiras. O autor define assim:
“-Em uma guerra que aniquilara a concepção tradicional do soldado como agressor, na qual eram os gases abrasivos e as toneladas de aço disparadas de locais remotos que os faziam explodir imóveis nas trincheiras, em um massacre tecnológico decorrente da superioridade do fogo defensivo em relação à mobilidade do soldado lançado no ataque, os Arditi trouxeram de volta a intimidade do combate corpo a corpo, o choque causado pelo contato físico, a convulsão do morto transmitida pela vibração da lâmina ao punho do matador. A guerra nas trincheiras, em vez de produzir agressores, havia formado milhões de combatentes com uma personalidade defensiva, inspirada na identificação com as vítimas de uma inevitável catástrofe cósmica. Naquela guerra de ovelhas prontas para o abate, eles trouxeram de volta a confiança em si mesmos que só é obtida através da mestria em esquartejar um homem com uma arma de corte de lâmina curta”.

3) Benito Mussolini, após ser expulso do Partido Socialista [em 1914], ao perder as armadas do proletariado, recrutou-os [os Arditi] logo, instintivamente. Em 10 de novembro de 1918, no dia da comemoração da vitória, após o discurso do deputado Agnelli no Monumento aos Cinco Dias de Milão, o diretor do Il Popolo d’Italia instalou-se em meio aos Arditi no caminhão que desfraldava a bandeira preta com o crânio. No Caffè Borsa, erguendo os cálices de espumante, brindou a eles dentre os milhões de combatentes. “Companheiros de armas! Eu os defendi quando o covarde os difamava. Sinto algo de mim nos senhores e talvez os senhores se reconheçam em mim.”

4) Os trabalhadores do Avanti!, jornal socialista com sede na Via San Damiano, bem atrás da Via Cerva, entoam a plenos pulmões “Bandiera rossa trionferà!”. Brindam ao 17 de fevereiro, o dia em que Milão e a Itália, após a breve ressaca pela vitória da nação sobre os históricos inimigos austríacos, descobriram com perplexidade que havia um novo inimigo no futuro: a revolução bolchevique.

5) Chama-se Filippo Tommaso Marinetti e, em 1909, fundou a primeira vanguarda histórica do Novecento Italiano. Seu manifesto por um movimento poético futurista teve ressonância pela Europa, de Paris a Moscou. Nele, propõe destruir os museus, as bibliotecas, as academias de qualquer espécie, assassinar o luar e louvar as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta, glorificar a guerra — “a única higiene do mundo” —, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertadores, as belas ideias pelas quais morremos e o desprezo pelas mulheres.

6) “Ai, ai... o Avanti! não existe mais! Ai, ai... o Avanti! não existe mais! Ai, ai...” Mussolini escuta e acaricia a cabeça calva na qual os fios ralos que despontam sombreiam uma calota cinza-azulada. Cinco anos antes, ele era o diretor do Avanti!. Muito amado pelos leitores, elevara a tiragem do jornal a números nunca antes atingidos. Agora está prestes a pisar no cadáver.

7) Gabriele D’Annunzio – Roma, 6 de maio de 1919
A enorme multidão reunida na Piazza del Campidoglio está imóvel, imóvel como a estátua equestre do imperador Marco Aurélio, ao redor da qual ela se aglomera. Todos esperam, com a cabeça inclinada para trás e o olhar voltado para o alto, que Gabriele D’Annunzio apareça na sacada da prefeitura de Roma. São dezenas de milhares de homens, em sua maioria jovens, robustos, fisicamente íntegros. No entanto, aquele homem consegue fazer com que se sintam mutilados. Graças à metáfora da “vitória mutilada”, cunhada pelo poeta, 20 mil rapazes íntegros e robustos sentem agora a falta de um membro ou de um órgão. E é por isso que o adoram.

São em boa parte veteranos da Primeira Guerra Mundial, a maior guerra da história, que combateram e venceram o inimigo ancestral do povo italiano há menos de um ano às margens do rio Piave, porém D’Annunzio consegue fazer com que se sintam derrotados. E isso os faz venerá-lo. Adoram e veneram o mago capaz do milagre de alquimia psicopata que está transformando a maior vitória jamais obtida pela Itália nos campos de batalha em uma derrota humilhante.

8) Em 24 de abril, Orlando, o presidente do Conselho de Ministros, e Sonnino, seu ministro das Relações Exteriores, abandonaram a Conferência de Paz de Paris. O Tratado de Londres, que em 1915 determinou as condições de entrada na guerra ao lado da Rússia, da França e da Grã-Bretanha, havia prometido à Itália, em caso de vitória, a Dalmácia, que durante séculos foi domínio da República de Veneza. Segundo os nacionalistas, a nova doutrina da autodeterminação dos povos, propagandeada por Wilson, daria agora à Itália também Fiume [Rijeka], pequena cidade de fronteira com ampla maioria de população italiana, excluída dos acordos de Londres. O slogan é: Tratado de Londres mais Fiume. Mas o presidente dos Estados Unidos da América, senhor do jogo diplomático, não quer, ao que parece, dar em recompensa ao aliado italiano nem um nem outro.

9) Após o abandono das negociações em Versalhes, a desilusão logo assumiu a aparência de drama na Itália. Os companheiros da véspera negavam o que haviam prometido ao preço de 600 mil mortos. A conferência de paz, observa Ivanoe Bonomi, “se revela à luz de uma emboscada”.

10) De fato, na conferência de paz, Wilson e os outros líderes da vitória continuaram a negociar e a decidir tranquilamente as novas fronteiras do mundo sem os italianos. Durante quinze dias de frenesi patriótico, enquanto os liberais, os nacionalistas e os fascistas italianos estavam hipnotizados por alguns rochedos no Adriático; em Paris, os aliados partilhavam as colônias alemãs na África e o Império Turco no Oriente Próximo. Apenas duas semanas após o abandono desdenhoso, Orlando e Sonnino [delegados do governo nas conversações do armistício] foram, então, obrigados a voltar a Paris com o rabo entre as pernas. O dano moral foi enorme. Um povo que acalentou a ilusão de ser capaz de resistir sozinho a todos cai no abandono. A milhões de camponeses pacíficos, ignorantes da realidade do mundo, que por quatro anos lutaram nas trincheiras de uma guerra mundial sem nem saber direito em que terra elas foram cavadas, é dito que o sacrifício foi em vão, que a ferida sangra por nada. A desilusão estoura dentro deles como uma dor quase desesperada.

11) Nascido em 1863, Gabriele D’Annunzio passou os primeiros cinquenta anos de vida tentando se tornar o maior poeta da Itália. Conseguiu. Seus versos e suas prosas — em especial o romance Il piacere — influenciaram os gostos de uma geração e tiveram ressonância internacional. Ele afirma com arrogância que “levou a literatura italiana de volta para a Europa” e tem razão. Os maiores intelectuais do continente o leem, admiram-no e o elogiam publicamente. Sua vida, enquanto isso, é vivida como uma obra de arte: dândi inigualável, hedonista militante, sedutor triunfal, histriônico, sensual, imaginativo, põe a própria erudição infinita a serviço da busca obsessiva pelos prazeres sensuais e pela saciação dos apetites carnais desenfreados. Em seguida, em plena Belle Époque, quase de repente, o culto estético transmuta-se nele em culto à violência, a inquietação de uma época assume tons sanguinolentos. Seu insaciável desejo de conquistas femininas se torna desejo de expansões territoriais. O cantor da languidez infinita se torna o cantor do massacre: louva primeiro as aventuras coloniais em Canzoni d’Oltremare, depois empurra a Itália para a guerra com o discurso de Quarto; o esteta decadente se transforma em Vate, um poeta sacro, profeta da glória nacional.

12) Não contente, ao eclodir da Primeira Guerra Mundial, na marca dos 50 anos, idade em que os homens do seu tempo entram na velhice, D’Annunzio, o colecionador de lacas e esmaltes, decide se tornar o maior soldado da Itália. E consegue. Após obter a autorização para se alistar como oficial de ligação nos lanceiros de Novara e conseguir um brevê de voo, participa de incursões aéreas sobre Trieste, Trento e Parenzo, e do ataque ao monte San Michele, no front do Planalto Cársico. Ferido durante uma aterrissagem de emergência, perde o olho direito. Usa a convalescência na composição de Notturno, uma de suas obras mais misteriosas e inspiradas. De volta ao front, contra todas as recomendações médicas, na décima batalha do Isonzo concebe o ataque arriscado ao Ponto 28, para além do curso do rio Timavo. É ali que morre Giovanni Randaccio. Como se quisesse vingar o amigo, o poeta prepara uma série de sensacionais aventuras bélicas: ataca o porto de Cátaro, sobrevoa Viena com sua esquadrilha e faz com que do céu chovam manifestos de propaganda que convidam a capital do inimigo à rendição, e fura o bloqueio naval austríaco na baía de Bakar, a bordo de pequenas embarcações de assalto, com uma incursão zombeteira que levanta novamente o moral das tropas italianas após a derrota de Caporetto. Seu nome conquista o direito de estar inscrito na lista dos campeões e dos heróis.

13) Gabriele D’Annunzio, Roma, 6 de maio de 1919:
“Esta, romanos, esta, italianos, esta, companheiros, é a bandeira desta hora. A imagem sublime do soldado de infantaria que apoiou nela a cabeça e deixou sua efígie. E é a imagem de todos os mortos; para todos os que morreram pela pátria e na pátria se assemelham [...]. Agora, ouçam. Façam o mais absoluto silêncio [...]. Mais uma vez, está suspensa no desconhecido a alma da nação, que, na dureza da solidão, havia reencontrado toda a sua disciplina e toda a sua força. Esperamos em silêncio, mas em pé [...]. Eu, para que a expectativa seja fundamentada e o recolhimento seja vigilante e o juramento seja fiel, fixo na arca de Aquileia, quero tarjar de luto minha bandeira até que Fiume seja nossa, até que a Dalmácia seja nossa. Todo bom cidadão, em silêncio, tarje de luto a própria bandeira, até que Fiume seja nossa, até que a Dalmácia seja nossa.” 14) Benito Mussolini, Cesare Rossi – Fim de junho de 1919 Para o problema político, nós queremos: política externa não submissa, reforma da legislação eleitoral, abolição do Senado.

Para o problema social, nós queremos: jornada de trabalho de oito horas, salários mínimos, representações sindicais nos conselhos de administração, gestão operária das indústrias, seguro por invalidez e aposentadoria, distribuição aos camponeses das terras incultas, a reforma eficiente da burocracia, escola laica financiada pelo Estado.

Para o problema financeiro, nós queremos: imposto extraordinário sobre o capital com caráter progressivo, expropriação parcial de todas as riquezas, confisco de 85% dos lucros da guerra, confisco de todos os bens das congregações religiosas.

Para o problema militar, nós queremos: a nação armada.

O programa dos Fasci di Combattimento foi publicado no Il Popolo d’Italia de 6 de junho, quase três meses depois da reunião na Piazza San Sepolcro, após mil discussões e ajustes. Foi alardeado em página inteira, em seis colunas, com manchetes em letras garrafais. Com exceção da revolução, é quase o mesmo programa dos socialistas revolucionários, mais à esquerda do que os reformistas. Um programa concebido por dissidentes do socialismo para atrair ex-companheiros.

15) Cesare Rossi tem razão no diagnóstico: os Fasci di Combattimento não têm noção do futuro, não sabem onde desaguar. Mas Cesarino erra o prognóstico: esse deficit será sua salvação, e não sua condenação. É preciso encarar a realidade de um modo generalizante. No fundo, cada vida valia uma outra vida, cada sangue, um outro sangue. Os fascistas não querem reescrever o livro da realidade, querem apenas seu lugar no mundo. E o terão. Trata-se apenas de fomentar os ódios de facção, exasperar os ressentimentos. Nada, então, será impedido. Não há mais esquerda nem direita. Basta alimentar certos estados de espírito que afloram neste crepúsculo da guerra. Nada mais. Só isso.

16) Por isso, eles podem, e devem, se dar o luxo de ser reacionários e revolucionários de acordo com as circunstâncias. Eles não prometem nada, e cumprirão a promessa.

17) Em 17 de julho, a primeira reunião dos Fasci di Combattimento da Itália central e setentrional, realizada em Milão, deliberou a mais firme oposição à “grevíssima”. Estavam representadas uma dúzia de cidades, no máximo, diante de poucas centenas de inscritos. Mesmo assim, pela primeira vez, os fascistas decidiram pela linha dura contra os agitadores “vermelhos”, “a raça bastarda que desonra a Itália”, tomando como modelo a Rússia de Lênin, e não a própria pátria vitoriosa contra os austríacos.

18) O governador da província lhe comunicou uma novidade explosiva: uma circular sigilosa do governo prevê e estimula pela primeira vez a colaboração dos fascistas no trabalho de repressão, inclusive violenta, das tentativas de revolução, desde que aceitem ser dirigidos pelas autoridades. O Estado liberal, em suma, para frear o avanço dos “vermelhos”, se coloca ao lado dos fascistas, e esses, pela primeira vez, vão se opor a uma greve das massas populares.

19) Gabriele D’Annunzio – 11 de setembro de 1919
[Descreve a tomada de Fiume por D’Annunzio e seu exército de granadeiros à revelia do governo, do exército, de todo mundo:]
O poeta, então, é arrebatado por uma lembrança. Por um longuíssimo instante, o ancião encarquilhado e cego volta, como um estudante, para as carteiras da escola: abre o capote que cobre seu corpo febril e repete o gesto com o qual Napoleão, desembarcado na França após a fuga de Elba, nos arredores do lago de Laffrey, ofereceu o peito ao general francês, seu ex-ordenança, enviado para detê-lo. O mímico bate nervosamente no peito com o gesto napoleônico que esperou toda a vida para usar.

“Vamos, dispare sobre estas medalhas”, intima ao general que viera detê-lo.

Encantado pela fitinha azul da medalha de ouro sobre o peito de D’Annunzio, seduzido ele também por aquele sentimento audacioso da vida e do mundo no qual fogo guerreiro e rebelde se tornam uma só coisa, o homem de armas e o homem em revolta, o general Pittaluga retruca citando o pai e o avô, ambos garibaldinos. Naquele instante, na fronteira entre duas nações e duas épocas, no cruzamento das ressonâncias, a história se reduz a uma figura retórica, a metáfora remete a outra metáfora, o poder dos símbolos se transfere através dos séculos, tudo se confunde, o carro blindado acelera, a cancela da fronteira se estilhaça.

Fiume, com seus navios ancorados no porto, com os montes ao fundo, surge para D’Annunzio como uma “noiva vestida de branco”. Na curva da estrada, uma centelha de desejo faz brilhar a pupila do único olho que lhe restou: o poeta tem aos seus pés uma cidade a ser conquistada. O literato conhece, finalmente, a luxúria que assedia o condottiero prestes a liberar para o saque suas tropas mercenárias. Na sua idade — dirá Nitti —, para o poeta-soldado, a Itália é apenas mais uma das muitas mulheres com quem se deitou.

As tropas de D’Annunzio entram em Fiume pouco depois das 11h. A população as recebe extasiada. As mulheres de Fiume, em suas melhores roupas, se oferecem aos libertadores. Dos edifícios, chovem folhas de louro.

D’Annunzio, ao chegar no Hotel Europa, segue direto para a cama. Foi guiado por uma estrela da sorte. É ele a própria estrela. Nunca teve outra. São 11h45. Nem mesmo um disparo foi feito.

20) No entanto, de modo inesperado, os integrantes do conselho aceitaram confiar a administração de uma cidade disputada por três nações, no centro de uma controvérsia diplomática de alcance mundial, a Gabriele D’Annunzio, um homem famoso pela incapacidade de administrar até suas finanças pessoais, um famoso e orgulhoso esbanjador, perseguido pelos credores de toda a Europa por ter dilapidado uma enorme fortuna, a sua e a de outros, com gastos insensatos com futilidades como pedras preciosas, esmaltes, lacas e decorações suntuosas de mansões.

21) O esteta fica de lado. Entra em cena o legislador. Daqui em diante, é ele quem seguirá em frente. Sua primeira providência será o fechamento temporário dos bordéis para impedir as brigas entre os legionários de Fiume e os soldados franceses. Para D’Annunzio, que é um amante insaciável, é uma renúncia enorme. O comandante, todavia, está disposto a dar o exemplo. Priva-se daqueles luxos que por toda a vida julgou irrenunciáveis. Manda cobrir seu quarto de bandeiras no lugar das inevitáveis tapeçarias. Permite a si mesmo apenas um maço de flores em um vaso de cristal e um punhado de bombons em uma copa de prata maciça.

22) Em um circuito mais amplo, a aventura de Fiume ganhou a inimizade de Wilson, o presidente dos Estados Unidos da América, a nova grande potência planetária, os únicos autênticos vencedores da Primeira Guerra Mundial. Wilson considera Fiume o capricho de um rapazola que põe em risco a constituição da Liga das Nações, a grandiosa instituição jurídica, diplomática e humanística que, a seu ver, deverá dar ao mundo um século de justiça e paz.

23) D’Annunzio, nesse meio-tempo, oscila entre êxtases sublimes e furores apocalípticos.

24) Mussolini também hesita. No fim de setembro, após voltar do passeio a Veneza, parecia ter se comprometido com o fanatismo. Escreveu sobre uma “revolução em marcha” que, iniciada em Fiume, poderia se concluir em Roma. Aconselhou o Parlamento para que votasse a anexação [de Fiume]. Ameaçou-o, por sua vez: “Ou a anexação em curtíssimo prazo ou a guerra civil entre a Itália dos combatentes e a dos parasitas.”

25) Wilson tem razão: Fiume é um delírio. O automóvel em que Mussolini entra pela primeira vez na cidade em 7 de outubro se desloca devagar entre manifestações populares entusiasmadas. É terça-feira, mas parece domingo, é outono, mas parece o auge do verão, já é noite, mas parece meio-dia. Toda a cidade parece estar em pleno orgasmo. O clima humano é de orgia a céu aberto. A libido desenfreada do sedutor a invade. Soldados, marinheiros, mulheres, cidadãos agitam-se, entrelaçados de várias maneiras, ao ritmo de fanfarras militares. Em cada esquina, grupos de Arditi juram comovidos sobre punhais desembainhados, as moças desfilam com guirlandas como estátuas votivas ou então com um corte de cabelo masculino e trajando fardas emprestadas, os muros estão cobertos de inscrições que declaram: “pouco me importa!” Até os trajes marciais estão dissipados.

Tudo é bizarro, incomum, excitante. Mas há algo de sinistro nesta festa. A juventude do século, depois de ter escapado por quatro anos da morte nas trincheiras de toda a Europa, em vez de voltar à economia, à família, à religião, aos antepassados, às virtudes, aos dias, parece ter deslizado para Fiume, arrebatada por uma esbórnia, para pôr fim àquela vida estúpida e inútil.

26) É a mesma água que Mussolini jogara sobre o fogo do Comandante por carta em 25 de setembro: marchar sobre Trieste, declarar derrubada a monarquia, nomear um diretório de governo com D’Annunzio presidente, preparar uma Constituinte, declarar a anexação de Fiume, mandar tropas fiéis para desembarcar na Romanha a fim de suscitar um levante republicano.

27) Agora estava decidido. Se os socialistas o odiavam, se os companheiros da esquerda intervencionista não o queriam na chapa, se os partidos tradicionais de governo eram “velharia” a ser despachada, os fascistas se candidatariam sozinhos. Respaldados por combatentes e Arditi. Mais ninguém. Ele se apresentaria como principal candidato da lista eleitoral.

Margherita Sarfatti [a aristocrática amante de M] riria dele. “Mas como? Até ontem você dizia que nunca se candidataria à palhaçada dessas eleições!?” Sim, claro, ontem... Mas amanhã é outro dia.

28) Em contrapartida, em pouco mais de um mês Fiume já se tornou um mundo entre mundos, o porto franco da rebeldia de todas as facções políticas: nacionalistas e internacionalistas, monárquicos e republicanos, conservadores e sindicalistas, clericalistas e anarquistas, imperialistas e comunistas. As vanguardas políticas, sociais e artísticas de toda a Europa estão indo ao encontro da feira das maravilhas: sonhadores, libertários, idealistas, revolucionários, anticonformistas, aventureiros, uma multidão de heróis e desajustados, talentos inquietos e excêntricos, homens de ação e ascetas, desesperados sem nada a perder e milionários em busca de emoções, jovens violentos e escritores parisienses em voga, artistas vegetarianos e padres reformados, amazonas em uniformes militares e militares enfeitados como bailarinas, sedutores em busca de conquistas femininas e pederastas em busca de conquistas masculinas. A mistura é entusiasmante, o bacanal, orgíaco, a licenciosidade, normal, o arrebatamento, absoluto, o espetáculo, contínuo, a festa, ininterrupta. O individualismo, a pirataria, a excentricidade, a transgressão, as drogas, a liberdade sexual, o cosmopolitismo, o feminismo, a homossexualidade, o anarquismo colocam Fiume fora do mundo e, ao mesmo tempo, acima dele. Um só mundo não basta. Nos corredores dos palácios romanos do poder, os politiqueiros recorrem às intrigas de sempre, tramam estratagemas, temporizam, propõem soluções de meio-termo. Aquele é o submundo. Fiume, na visão de Gabriele D’Annunzio, é o supermundo. Por ali, não se passa.

29) Entre os 19 candidatos [à eleição de 2019 depois da dissolução do parlamento], 18 estiveram no front, dos quais 7 eram voluntários, 5 receberam medalhas de prata, 8 foram feridos e 2, mutilados. Os nomes de destaque, além do principal candidato da chapa, são o de Filippo Tommaso Marinetti, o do anticlericalista Podrecca, o do sindicalista Lanzillo, o do industrial De Magistris. Também figura na lista Arturo Toscanini, celebérrimo maestro e sócio diligente do Fascio di Combattimento milanês. O maestro soube que seria candidato durante uma assembleia na quadra de uma escola. Estava distante, apoiado em um cavalete. Marinetti o convenceu a aceitar. Toscanini também financiou a lista com 30 mil liras.

30) Mussolini começa como um filósofo: “A vida nas sociedades modernas é de uma complexidade formidável.” Suas várias necessidades inadiáveis exigem habilidades técnicas, homens livres e audaciosos. Exigem “a derrocada do passado”. É preciso eliminar por completo aquela burguesia inerte e parasitária que ostenta uma riqueza mal adquirida e uma dupla imbecilidade impotente. Ele não é contra o proletariado. É uma calúnia. Ele sempre lutou pelas oito horas dos metalúrgicos. Ele é contra as tiranias, inclusive aquela proletária. Só isso. E também é falso que eles sejam violentos. Se atacados, reagem, mas os fascistas não são bebedores de sangue. Ele, pessoalmente, é contra a violência. E também não dá a mínima para o fato de ser ou não eleito, não faz questão da medalhinha.

31) Com a mão esquerda, Netuno aplaca as tempestades, mas na direita segura o tridente. Uma extremidade tricúspide capaz de eviscerar um cetáceo de sete toneladas.

32) “Obtivemos poucos votos, é verdade, mas, em compensação, disparamos muitos tiros de revólver.” Ou algo do gênero. Ri com escárnio até mesmo da piada que já circula por Milão: “Com um maestro como Toscanini na chapa, a sonata só podia ser excepcional.”

A verdade é que a derrota foi mortal para os fascistas, e a humilhação pessoal para ele, que já se imaginava “o deputado de Milão”, foi constrangedora. As eleições de 16 de novembro foram “vermelhas”. Os socialistas receberam 1.834.792 votos, correspondentes a 156 parlamentares eleitos. Um resultado triunfal, um presságio de revolução. O fracasso da chapa fascista foi, inversamente, total: de cerca de 270 mil votantes do colégio eleitoral de Milão, os fascistas obtiveram apenas 4.657 votos. Mussolini obteve apenas 2.427 votos preferenciais. Nenhum dos candidatos fascistas foi eleito. Nenhum. Nem sequer ele. Foi um fiasco completo.

Confessou apenas à mulher, mentindo a todos os outros: “Uma derrota total. Não obtivemos sequer uma cadeira. Na Galleria, as pessoas avançaram contra nós.” Foi obrigado a ligar para Rachele e tranquilizá-la quando informaram que a galhofa do cortejo fúnebre encenado pelos socialistas havia ficado de tocaia até mesmo embaixo da casa deles em Foro Bonaparte. “Aqui está o cadáver de Mussolini!”, gritavam as pessoas e batiam contra o portão. Atrás do seu caixão, outros dois caixões vazios acolhiam fantasiosamente os cadáveres de Marinetti e D’Annunzio. Rachele, por sua vez, confessou ao marido que havia se refugiado no sótão com as crianças. Parece que a pequena Edda foi acometida por uma crise de nervos.

Os visitantes, como se fosse um funeral, continuam a afluir à sede do jornal. É inútil tentar manter a porta fechada. Quando na rua estão tentando enterrar até sua sombra, as pessoas vêm procurá-lo.

Para se mostrar inalterado, ele mandou lhe trazerem um copo de leite.

33) Benito Mussolini para por alguns segundos, dando tempo ao redator para ser invadido pela perplexidade. Mexe de novo o leite, recomeça: “Deram-me por morto, mas por isso mesmo eles sabem que, se subirem, dou cabo de pelo menos uns dois com esta pistola. E, se você não sabe, em Milão não existem entre os afiliados do Partido Socialista dois heróis sequer que saibam enfrentar o perigo. Um bando de tolos. São um bando de tolos. Por isso... eu bebo leite.”

34) Corriere della Sera, 18 de novembro de 1919.
Um cortejo socialista havia parado na Via S. Damiano, embaixo das janelas do Avanti!, para aclamar um discurso de Serrati celebrando o socialismo. O cortejo estava se recompondo e voltando a se deslocar quando, segundo o primeiro relato, um desconhecido, na altura da ponte de ferro-gusa, lançou na direção da frente do cortejo um objeto que, ao tocar o solo, explodiu; os estilhaços, da distância de 20 ou 30 metros, atingiram os primeiros manifestantes. Em meio ao pânico que se seguiu, ergueram-se dos feridos gritos de dor e, enquanto alguns companheiros prestavam socorros, outros tentavam seguir o desconhecido, que logo desapareceu na escuridão.

35) Os agentes de segurança pública encontram, escondidos em um aquecedor, 13 revólveres novos de vários calibres, 419 cartuchos, e um lança-foguetes usado recentemente. Umberto Pasella, Enzo Ferrari, Filippo Tommaso Marinetti são presos.

Albertini, senador do Reino, grande burguês, proprietário e diretor do Corriere della Sera, convencido de que o destino do fascismo está marcado pelo desastre eleitoral, para convencer o presidente do Conselho a liberar Mussolini, usou um argumento típico do pensamento liberal do qual ele é um dos principais expoentes italianos: “Mussolini é uma ruína, não façamos dele um mártir.”

36) [Na posse dos novos parlamentares:] Nicola Bombacci, os cabelos desalinhados e a barba por fazer, marcha à frente dos dissidentes. Enquanto passa diante do trono, encara o soberano e grita: “Viva a república socialista!” Seu sucesso pessoal na circunscrição de Bolonha foi enorme. Alguns jornais o definem como “o rei das preferências”. Só com ele, sem contar todos os outros parlamentares socialistas, saem de Montecitório mais de 100 mil italianos. O rei se vê pronunciando o discurso da Coroa em um plenário quase vazio.

A cena é memorável; seu efeito teatral, fortíssimo. Os deputados dissidentes, lá fora, na Piazza di Montecitorio, regozijam, se congratulam e se abraçam. Suas risadas são genuínas, despreocupadas. O sonho de uma vida livre e justa se realiza. No morno sol de inverno de uma praça romana, neste momento, são os representantes de um povo que voltou a ser criança. A alegria dura alguns instantes. Pouco depois, deputados e senadores percebem com perplexidade que não têm nenhum projeto para o resto do dia. Os socialistas conquistaram a Itália, mas não sabem o que fazer com ela.

Uma vez que aqueles homens não sabem o que fazer, são espancados. Bandos de nacionalistas começam a espancá-los já no início da tarde. São perseguidos pelas ruas de Roma, agarrados pelas gravatas pretas de republicanos e obrigados a gritar “viva o rei!”. No início da noite, a pancadaria continua com a estreia dos guardas régios, o novo corpo de polícia recém-constituído para manter a ordem pública. Giacinto Menotti Serrati, líder do partido, é levado à força para a chefatura de polícia e coberto de socos.

Do lado socialista, como sempre, é proclamada a greve geral. A primeira vítima é registrada no dia seguinte na Piazza Esedra. Trata-se de Tiberio Zampa, operário da tipografia do Avanti!, com 23 anos.

As fábricas param novamente. Milão dorme mais uma vez com as armas aos pés, à espera da revolução.

37) Benito Mussolini, por enquanto, está ali de mãos vazias, mas ele foi o primeiro a entender que podia explorar o rancor no contexto da luta política, o primeiro a assumir a dianteira de um exército de insatisfeitos, rebaixados e fracassados que passam seus dias lustrando os próprios punhais enquanto ele alterna entre a redação e a rua, esperando que algo exploda. E que ele possa aproveitar a onda de choque ou então escrever a respeito no jornal. Tasca nota em Mussolini o pescoço grosso que se ergue sobre um tronco grandioso, o rosto empertigado e cheio, o porte arrogante, o cigarro recém-aceso que pende, em todo o seu comprimento, bem do meio dos lábios carnudos, como um falo exibido e despudorado. Mussolini tem a exuberância selvagem do homem do povo repaginado.


CONTINUA

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