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terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Fragmentos 22

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Mary Beard — SPQR - Uma História da Roma Antiga

O livro começa na disputa entre Cícero e Catilina em 63 A.C. A historiadora faz questão deste início para poder caracterizar as instituições e costumes romanos na época de maior grandeza da cidade com 1 milhão de habitantes. Diz o seguinte:
“Em meados do século I a.C., o Senado era um corpo de uns seiscentos membros; eram todos homens, que haviam sido anteriormente eleitos para cargos políticos. Qualquer um que tivesse ocupado um cargo menor, como o de questor, dos quais eram eleitos vinte por ano, ia automaticamente para o Senado com assento vitalício. Eles se reuniam regularmente, debatiam, aconselhavam os cônsules e expediam decretos, que na prática eram geralmente obedecidos — embora, por não terem força de lei, havia sempre a incômoda questão do que iria acontecer se um decreto do Senado fosse ridicularizado ou simplesmente ignorado. Sem dúvida, o comparecimento oscilava, mas nessa reunião em particular a casa certamente estava cheia”. Refere-se ao discurso de Cícero contra Catilina. Um pouco adiante, a historiadora afirma que este número (1 milhão) representava a população espalhada pelos arredores da Itália (?). A autora tem um modo particular de analisar as dúvidas de seu próprio trabalho, transferindo para seus leitores: “Será que não existe outro lado nessa história? As evidências detalhadas que temos a partir dos escritos de Cícero, do seu ponto de vista, significam que sua perspectiva será sempre dominante. Mas não significa necessariamente que seja verdadeira em qualquer sentido simples, ou que seja a única maneira de ver as coisas”.
Quo usque tandem, fulano de tal, patientia nostra?” Dedica uma página à sobrevivência da frase de Cícero em nosso arsenal político atual. Até quando, fuluano de tal, vamos ter que te aguentar?

Acho interessante registrar que na análise quantitativa da documentação romana dispersa pela Europa, Grécia e Egito, a autora afirme que uma só pessoa não conseguiria lê-la em toda a sua vida.

No capítulo seguinte a autora analisa os primórdios da fundação de Roma. Os mitos, as divergências e inconsistências dos fatos narrados e a sombra de dúvida sobre tudo o que se sabe. Rômulo teria matado Remo? A loba reproduz o mito do falo desencarnado da virgindade de Réa Silvia na origem dos irmãos? Ou Roma seria fundada por Enéas, depois de fugir da guerra de Troia no século XII, conforme narrada por Homero? A dualidade de Rômulo e Remo é comparada com a de Adão e Eva.

Trazendo para o leitor as dúvidas, fica-se em certa altura do início do capítulo 3 com a sensação de que as especulações sobre o túmulo de Rômulo devem ser entendidas como uma fantasia dos descendentes de Cícero até nossos dias por que não conseguimos entender como alguém que tenha fundado uma cidade possa ter uma importância atribuída tão grande se ao morrer a cidade não era mais que um povoado em expansão, como qualquer outro que conhecemos no Novo Mundo, sem a agilidade que nos caracterizou na época moderna.

“Quinto Fábio Pictor [Quintus Fabius Pictor][o primeiro historiador de Roma], que escreveu aproximadamente em 200 a.C., e afirmou que ao final do período dos reis o número de cidadãos homens era de 80 mil, compondo uma população total de mais de 200 mil pessoas. Essa é uma cifra absurda para uma comunidade nova na Itália arcaica”. “..a religião subscrevia o poder romano”.

“Por outro lado, ele [Numa Pompílio, o sucessor de Rômulo] concebeu um calendário de doze meses, que servia como referência para o rol de festas anuais, dias santos e feriados.” Impressiona saber que esta organização do tempo perdure até hoje. A respeito da datação utilizada pelos romanos, fala em acontecimentos peculiares como “e o vinho feito “quando Opímio [Opimius] era cônsul” (121 a.C.) que teria sido uma safra particularmente famosa.”

Sobre as Doze Tábuas: “Em alguns casos, mesmo advogados romanos cultos compreenderam mal o que leram nas Doze Tábuas. A ideia de que um devedor insolvente, que tivesse vários credores, poderia ser morto e seu corpo dividido entre eles, em pedaços de dimensões proporcionais às quantias devidas, parece ser uma dessas interpretações equivocadas. Seja como for, essas citações oferecem o acesso mais direto à sociedade de meados do século V a.C., suas casas e famílias, suas preocupações e seus horizontes intelectuais”.

O conteúdo trata do seguinte: “Em sua maior parte, as Doze Tábuas abordam problemas domésticos, com um foco intenso na vida familiar, vizinhos encrenqueiros, propriedade privada e morte. Elas tratam de procedimentos para se abandonar ou matar bebês deformados (uma prática comum ao longo da Antiguidade, que os acadêmicos modernos conhecem pelo eufemismo “deixar expostos”), herança e a conduta adequada em funerais. Cláusulas específicas proibiam mulheres de arranhar suas faces ao prantear um defunto, ou de construir piras funerárias perto demais da casa de alguém, ou ainda de enterrar ouro — exceto o dos dentes — junto ao corpo. Outra preocupação óbvia era com prejuízos criminosos ou acidentais. Tratava-se de um mundo em que as pessoas preocupavam-se em como lidar com a árvore do seu vizinho que se projetava sobre sua propriedade (a solução: tinha que ser cortada em uma determinada altura) ou com os animais do vizinho que corriam descontrolados (solução: o dano tinha que ser reparado ou o animal sacrificado). Preocupavam-se com ladrões irrompendo durante a noite — o que devia ser punido mais severamente do que os roubos diurnos —, com vândalos destruindo seus cultivos ou com armas extraviadas ferindo um inocente. Mas, caso tudo isso soe um pouco familiar demais, era também um mundo em que as pessoas se preocupavam com a magia.”

Analisando a contradição entre patrícios e plebeus, coloca em tela o mesmo sentimento dos negros americanos no pós-guerra com relação à vitória da democracia e o apartheid social de bares, hotéis e ônibus nos EUA que levaram a Luther King: “Até onde sabemos, foi apenas alguns anos após o estabelecimento da República, no início da século V a.C., que os plebeus começaram a reclamar de sua exclusão do poder e da exploração que sofriam por parte dos patrícios. Afinal, perguntavam-se eles repetidas vezes, por que lutar nas guerras de Roma se todo o lucro gerado por nós serve apenas para encher os bolsos dos patrícios?”

“Em 494 a.C., atormentados por dívidas, os plebeus fizeram a primeira de várias passeatas pela cidade, uma combinação de motim e greve, para forçar os patrícios a aceitarem as reformas. Funcionou. Desencadeou uma longa série de concessões...” “Os romanos estenderam sua cidadania a algumas comunidades de amplas áreas do centro da Itália. Às vezes, isso envolvia plenos direitos de cidadania e privilégios, incluindo o direito de voto ou de concorrer a eleições romanas, embora continuando ainda a ser cidadão de outra cidade. Em outros casos, eles ofereciam uma forma mais limitada de direitos que passaram a ser conhecidos (autoexplicativamente) como “cidadania sem voto”, ou civitas sine suffragio.”

Interessante: ...”os Cipiões estavam também no âmago da revolução literária romana, como patrocinadores e patronos da primeira geração de autores. Não por acaso, a origem da literatura em Roma estava intimamente ligada à expansão ultramarina: “A Musa se impôs de maneira guerreira aos impetuosos habitantes de Roma”, descreveu um escritor do século II a.C. O início do Império e o da literatura foram dois lados da mesma moeda.”

“Há séculos, os romanos escreviam por diversas razões: informes, regras e regulamentações públicas, alegações de propriedade rabiscadas em um pote. Mas foi o crescente contato com as tradições do mundo grego, a partir de meados do século III a.C., o catalisador da produção e da preservação da literatura como tal. Ela nasceu da imitação dos predecessores gregos, e do diálogo, da competição e da rivalidade, em um momento que fala por si. Em 241 a.C., exatamente quando os soldados e marinheiros romanos conseguiam a primeira vitória de Roma no exterior, na ilha predominantemente grega da Sicília, em algum lugar de Roma um homem chamado Lívio Andrônico [Livius Andronicus] ocupava-se em adaptar para o latim, a partir de um original grego, a primeira tragédia a ser exibida em Roma — foi encenada já no ano seguinte, em 240 a.C.”

Mais uma observação de caráter literário:
“Alguns dos oradores mais eloquentes dos séculos III e II a.C. ficaram famosos por atacar a influência corruptora da cultura estrangeira em geral, e da grega em particular, sobre a moral e o comportamento romano tradicional. Seus alvos iam da literatura e filosofia ao hábito de se exercitar nu, à comida sofisticada e à depilação. Na linha de frente dessas críticas estava Marco Pórcio Catão [Marcus Porcius Cato] (“Catão, o Velho”), um contemporâneo e rival de Cipião Africano, que Catão criticou, entre outras coisas, por se divertir com ginástica grega e teatros na Sicília. Dizem ainda que Catão teria chamado Sócrates de “tagarela inveterado”, que recomendava uma dieta medicinal romana à base de legumes e verduras verdes, pato e pombo (em contraposição às prescrições dos médicos gregos, que segundo ele podiam muito bem matá-lo), e que advertia que o poder romano podia ser derrubado por causa da paixão pela literatura grega. Segundo Políbio, Catão uma vez observou que um dos sinais da deterioração da República era que os garotos bonitos agora custavam mais caro que os campos, e que jarras de peixe em conserva valiam mais do que agricultores. Não estava sozinho nessas opiniões. Em meados do século II a.C., outra destacada figura encontrou apoio ao defender que um teatro em estilo grego em construção em Roma deveria ser demolido, já que era melhor e mais favorável à formação do caráter dos romanos que eles assistissem às peças em pé, como tradicionalmente vinham fazendo, e não sentados à moda decadente do Oriente. Em resumo, segundo tais argumentos, o que se fazia passar por “sofisticação” grega nada mais era do que uma insidiosa “flacidez” (ou mollitia, no jargão romano), que fatalmente minaria a força do caráter romano.”

Aí temos um pouco de tudo: virilidade, viadagem, austeridade versus hedonismo. Ela conclui da seguinte forma: “Seria isso uma simples reação conservadora contra as ideias modernas que chegavam a Roma de fora, um surto de “guerras culturais” entre tradicionalistas e modernizadores? Em parte talvez fosse.... Mas o sentido, diferenciado, bem demarcado, da dura austeridade romana — que romanos posteriores projetaram em seus pais fundadores e que foi preservado como uma visão poderosa de romanidade no mundo moderno — era resultado de um forte choque cultural, nesse período de expansão exterior, a respeito do que significava ser romano nesse novo e vasto mundo imperial. Colocado de outro modo, a “greguice” e a “romanidade” eram não só inseparavelmente ligadas mas também diametralmente opostas.”

Sobre a ascensão romana: “Por outro lado, os eventos de 146 a.C. [3a guerra púnica] foram vistos como o início do colapso da República e como o anúncio de um século de guerras civis, assassinatos em massa e homicídios, que trouxeram de volta o governo autocrático. O medo do inimigo, assim rezava esse argumento, havia sido bom para Roma; sem uma ameaça externa de peso, “o caminho da virtude era abandonado em favor do caminho da corrupção”.

No capítulo 6 descreve com Tibério Graco a propositura da reforma agrária de parte das terras conquistadas, e do seu fracasso em adotá-la, citando Cícero: “A morte de Tibério Graco”, escreveu ele, “e antes disso toda a argumentação por trás de seu tribunato, dividiu um povo unido em dois grupos distintos [partes]”.

Com Caio Graco, eleito tribuno do povo em 123 a.c. Foi implantada a distribuição de cereais ao povo, adotando a política de panem et circenses, e comprovando que a partir dai, o populismo iria reger a atividade política romana [meu].

A autora não vê assim. Afirma que “diferentemente de todos os reformadores romanos anteriores, Caio patrocinou não apenas uma iniciativa mas cerca de uma dúzia. Foi o primeiro político da cidade, sem contar os míticos pais fundadores, a ter um programa extenso e coerente, com medidas que cobriam pontos como o direito de apelar contra a pena de morte, a declaração de ilegalidade da propina e um esquema muito mais ambicioso de distribuição de terra do que aquele proposto por Tibério.”

Sobre o destino de Caio depois de tentar o terceiro mandato como tribuno, “Nesse processo, foi assassinado, ou se matou para frustrar o seu assassinato, por um bando armado sob o comando de Opímio. A violência não era de um lado só. Ela havia eclodido depois que um dos criados do cônsul — ao que parece andando para cima e para baixo com as vísceras de alguns animais que haviam acabado de ser sacrificados, o que acrescentou o toque macabro à cena — gritou alguma ofensa casual aos apoiadores de Caio (“Deixem os rapazes decentes passarem, bando de punheteiros”) e fez um gesto ainda mais grosseiro. Eles foram para cima dele e o apunhalaram até a morte com seus estiletes de escrita, claro sinal de que não estavam armados, e que, apesar de ser um grupo de letrados, não eram meras vítimas inocentes.”

Foi então que [Pompeu] ganhou o apelido de adulescentulus carnifex: “garoto carniceiro”, algo mais do que enfant terrible.

Mas havia uma questão maior. Essa celebração foi a mais poderosa expressão até então do Império Romano em termos territoriais [a chegada de Pompeu vitorioso da guerra contra Mitrídates], e até mesmo da ambição romana pela conquista do mundo. Um dos troféus carregados em desfile, provavelmente com o formato de um grande globo, exibia a seguinte inscrição: “este é um troféu do mundo todo”. E uma lista das realizações de Pompeu exposta num templo romano incluía a afirmação jactanciosa e superotimista de que ele “estendeu as fronteiras do Império aos limites da Terra”. [A terra não pera plana?:]

Mas apesar de sua famosa rapidez (celeritas era um de seus lemas), César ainda levou mais três anos, até 45 a.C., para superar seus adversários romanos na África e na Espanha, assim como para resolver os problemas com Farnácio, filho e usurpador de Mitrídates. Entre a travessia do Rubicão e sua morte em março de 44 a.C., César fez apenas algumas rápidas visitas a Roma; a mais longa foi a estadia de cinco meses, a partir de outubro de 45 a.C. Do ponto de vista da cidade, tornou-se um ditador em grande medida ausente.

Sua relação [de Cícero] com Túlia sempre havia sido muito próxima — íntima demais, segundo a terrível fofoca espalhada por alguns de seus inimigos, que condescendiam com a tática romana favorita de atacar um oponente por meio de sua vida sexual.

Na sucessão de guerra civil pós morte de César:
Há também alguns indícios de como os soldados rasos deviam ver as coisas. Na atual cidade de Perugia, e arredores, dezenas de pequenas balas de atiradeira foram desencavadas, projéteis mortais de chumbo que eram catapultados de lá para cá e vice-versa entre as forças de Otaviano, que sitiava a cidade, e as de Lúcio Antônio e Fúlvia, dentro dela. Muitas eram feitas em moldes, que imprimiam uma frase curta na bala, como para levar uma mensagem ao inimigo. Essa não era uma ideia incomum no mundo antigo: há balas gregas mais antigas desse tipo com o equivalente a “Te peguei!” ou “Ai!”, e algumas da Guerra Social traziam escrito “Get Pompeius” (significando “Pai de Pompeu, o Grande”) ou “Nas suas tripas”. Mas as balas de Perugia são bem mais eloquentes. Algumas são provocações: “Vocês estão famintos e fingem não estar”, lê-se numa mensagem lançada sobre a cidade, onde a fome acabou levando à rendição. Várias outras carregavam mensagens brutalmente obscenas dirigidas a partes previsíveis da anatomia de seus diversos alvos, machos e fêmeas: “Lúcio Antônio, seu careca, e você também, Fúlvia, arregacem seu cu”; “Estou indo me enfiar no cu da madame Otávio”; ou “Estou indo atrás do clitóris de Fúlvia” (landica, “clitóris”, o mais antigo uso comprovado do termo em latim).

[Acho que o nome landica deveria ser usado para um drink tropical.]

“Eu lhes dei um Império infindável” (imperium sine fine), profetiza Júpiter para os romanos na Eneida de Virgílio, um épico nacional, um clássico desde a primeira hora e um livro que foi diretamente para o currículo escolar da Roma de Augusto. E ainda permanece no currículo do moderno Ocidente, 2 mil anos depois.

Augusto entra como um camaleão impossível de definir, um velho réptil cheio de truques, continuamente mudando de cor, do amarelo para o vermelho e deste para o preto, uma hora melancólico e sombrio, outra exibindo todos os encantos da deusa do amor. [Um dirigente proteiforme].

Cícero tratou com escárnio aqueles que trabalhavam para ganhar a vida: “O dinheiro que vem de vender o seu trabalho é vulgar e inaceitável para um cavalheiro [...] pois os soldos são efetivamente os grilhões da escravidão”. Tornou-se um clichê dos discursos moralizantes romanos dizer que um verdadeiro cavalheiro sustentava-se com proventos de suas propriedades, não com trabalho assalariado, inerentemente desonroso. O próprio vocabulário latino captava a ideia: o estado desejado para a humanidade era o otium (não tanto o “lazer”, como costuma ser traduzido, mas a condição de ter controle do próprio tempo); “negócios” de qualquer espécie eram, portanto, o oposto indesejável, isto é, negotium (“não otium”).

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Um exemplo ainda mais claro disso é encontrado na decoração de um bar, datada do século II d.C., na cidade portuária de Ostia. O tema principal da pintura é o elenco-padrão antigo de filósofos gregos e gurus, tradicionalmente agrupados sob o título de “Os sete sábios”, entre eles: Tales de Mileto, o pensador do século VI a.C., famoso por afirmar que a água era a origem do universo, e seus aproximadamente contemporâneos Sólon de Atenas, um legislador quase lendário, e Quílon de Esparta, outro antigo luminar e intelectual. Algumas das pinturas não sobreviveram, mas originalmente todos os sete estavam ali sentados em elegantes poltronas e segurando pergaminhos. Mas havia uma surpresa. Cada um deles estava acompanhado por um slogan que não tinha nada a ver com seus temas de predileção, como política, ciência, lei ou ética — mas com defecação e outras escatologias (ver lâmina 15). Acima de Tales estava a frase “Tales aconselhava aqueles que cagavam muito a realmente se empenharem nisso”; acima de Sólon, “Para cagar bem, Solon batia na barriga”; e acima de Quílon, “O esperto Qúilon ensinava a peidar sem fazer barulho”. Abaixo dos sábios havia outra fileira de personagens, todos sentados em um banheiro coletivo com vários assentos (um arranjo normal no mundo romano). Eles também proferiam frases de mictório, por exemplo, “Dê pulinhos e você irá mais rápido” e “Já está saindo”.

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Plínio [ a partir de 109 d.c.] admitiu que não tinha muita certeza de como lidar com eles. Para começar, dera-lhes várias oportunidades de abjurar e havia executado apenas aqueles que se negavam a isso (“sua teimosia e obstinação inflexível certamente deve ser punida”). Mas então muitos outros nomes foram trazidos à sua atenção, conforme as pessoas começaram a acertar velhas contas acusando seus inimigos de serem cristãos. Plínio continuou permitindo que aqueles sob investigação abjurassem, desde que provassem sua sinceridade derramando vinho e incenso diante de estátuas do imperador e dos verdadeiros deuses. Mas a fim de descobrir o que estava no fundo de tudo isso, ele mandara torturar e questionar duas escravas cristãs (tanto na Grécia quanto na Roma Antiga, os escravos só podiam fornecer evidência legal sob tortura) e concluiu que o cristianismo era “apenas uma superstição perversa e rebelde”. Ele também queria que Trajano confirmasse se o método usado era correto. E o imperador mais ou menos assentiu, embora tenha acrescentado uma nota de precaução: “Cristãos não devem ser perseguidos”, escreveu ele, “mas se forem acusados e considerados culpados, devem ser punidos”. Essa é a mais antiga discussão sobre o cristianismo que sobreviveu fora da literatura judaica ou cristã.

Mas o mais próximo que Plínio consegue captar sobre a variedade cultural é quando considera o cristianismo “uma superstição perversa e rebelde” e tenta compreender melhor seus rituais e cerimônias.

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A província da Bitínia e do Ponto, como era tecnicamente conhecida, era um mundo à parte de Roma, com uma desconcertante, e às vezes “exótica”, mistura de tradições gregas e locais, como outros escritores antigos tiveram a perspicácia de destacar.

Superinteressante o livro de Mary Beard, que encerra no séc. II d.C. por não ver no futuro sucessivo o mesmo império que a seduziu.


Gerald Horne — O Sul Mais Distante

Um estudo detalhado sobre a escravidão no Brasil, especialmente do tráfico da África e do envolvimento dos americanos. Horne vasculhou centenas de cartas diplomáticas, anotações de viajantes, livros, tudo o que ficou registrado sobre a escravidão nos EUA. Conta coisas horripilantes sobre o tratamento dado aos escravos no Rio, muito diferente dos EUA, e da presença americana, posto que não havendo o canal do Panamá, os navios da costa leste se abasteciam no Rio rumo à Califórnia, mais intensivamente na corrida do Ouro dos anos 40. Em um único dia havia 3 mil americanos circulando em um Rio sem esgotos, em que as fezes dos patrões eram carregadas em baldes depois do anoitecer e atiradas no mar.

Paradoxalmente, muitos negros pertenciam às forças policiais e guardas da cidade, para espanto dos americanos onde a segregação não permitia este tipo de atividade – provavelmente devido a baixa remuneração e confirma o que já se sabia: os mulatos não trabalhavam.

Era tão desumana a escravidão, que os proprietários de escravos não usavam bois ou cavalos como força de tração, porém os escravos agrupados como se fossem animais. As punições eram feitas em praça pública aos olhos de todo mundo que lá estivesse, e não foram poucos os comentaristas que apontaram a descomunal crueldade dos brasileiros de origem portuguesa. No capítulo 6 aborda a tentativa de colonização da Amazônia pelos americanos por iniciativa de um tal de Maury, que se tornou chefe naval das forças sulistas e que mandou um agente, chamado William Lewis Herndon explorar o território, coisa que cumpriu viajando de Lima a Belém do Pará e escrevendo um livro em forma literária e não como relatório, tornando-se muito popular e chamado de Exploration of the vale of the Amazon, que chegou a ter duas edições totalizando 30 mil exemplares. A guerra da Secessão interrompeu a conspiração e com a perda dos sulistas, o assunto morreu.

Reproduzo um parágrafo na pg 159:

“Mas, mesmo nessas condições tão favoráveis para os cidadãos americanos no Brasil, havia preocupações importantes. Na opinião de muitos, Londres – o inimigo ubíquo – demonstrava mais energia e resolução em 'proteger os direitos dos súditos britânicos' no Brasil do que Washington fazia pelos nacionais americanos. 'Manipulando temores dos brasileiros, apesar de os brasileiros a detestarem, a Grã-Bretanha consegue tudo o que quer imediatamente; e nós.... nada conseguimos com eles, a não ser atrasos intermináveis e evasivas'. Por 'mais de vinte anos' essa atitude de súplica e paciência' foi 'incapaz de conseguir coisa alguma' e um 'respeito decoroso por nossa honra nacional exige que outras medidas sejam tentadas'. Precisava-se de 'autorização para exigir acordos imediatos, com o apoio de dez ou doze navios de guerra prontos para bloquear o Rio de Janeiro, o que alcançaria em 24 horas mais resultados do que nossa pacífica e amorosa diplomacia obteve em 24 anos.”

O livro é bastante tedioso porque Horne repete os casos similares a partir de outras fontes, permitindo confirmá-las, mas ao mesmo tempo, aborrecendo o leitor com o já visto contado por outra abordagem. No capítulos 9 trata da ideia de deportação de escravos para o Brasil dos colonos sulistas cujo principal agitador era o já citado Maury, que também era deficiente físico e tinha um alto posto na Marinha, e da recusa do governo Imperial em permitir a vinda de escravos, exceto se cidadãos americanos.

No capítulo 10, Confederados no Brasil, descreve a saída dos derrotados da guerra da secessão em busca de novas terras e das dificuldades de sobreviver em um país muito mais atrasado que os EUA em infraestrutura, o desgosto com as relações econômicas e por fim, o retorno ao país em busca de uma anistia e recomeço. A maioria das colônias definhou, exceto Santa Bárbara, a origem da cidade de Americana. Alguns colonos espalhados continuaram no Brasil e conseguiram se adaptar.

Um livro que vale a pena ser lido para se conhecer os rumores sobre a ocupação da Amazônia, frequentemente ventilados nos EUA, mas nunca levados à prática por tratar-se de uma iniciativa de particulares e não do governo americano.


Tavares Bastos — O Vale do Amazonas

Para conhecer a versão brasileira das preocupações com a Amazônia na mesma época de Maury, encomendei o livro de TB tendo em vista uma investigação dos pontos de concordância sobre as políticas para o desenvolvimento da Amazônia.

Excelente publicista, este terceiro livro de TB que leio é mais um relatório ao estilo Carlos de Vasconcelos (Pró-Pátria) do que uma análise euclidiana. Porém, devo salientar que TB é da década de 860 e portanto, numa época em que a borracha já estava sendo explorada mas sem o mercado automobilístico que a tornaria preciosa.

Sobre a livre navegabilidade do Amazonas, a partir das considerações de segurança, controle e viabilidade para o desenvolvimento da região, destaca TB a existência de uma mentalidade que procura complicar aquilo que é simples. Na pg 39 discute uma dessas opiniões de exclusivismo.

“Entretanto, o espírito de conquista, transmitido pelos portugueses, tem animado certos manejos diplomáticos com o fim de consagrar-se o princípio egoístico do uso exclusivo para os ribeirinhos, igual neste século ao princípio bárbaro, segundo o qual, antes de tudo, devia cada Estado assegurar-se a propriedade absoluta de uma e outra margem dos rios navegáveis.

Porventura, a mesma tradição ainda se respeita no mundo oficial. Não falta por aí representante vivo desse espírito de outrora. A alguns deles devemos os prejuízos derramados na população quanto à necessidade do Brasil se apoderar de territórios desocupados ou desconhecidos, ou pertencentes mais aos novos vizinhos do que a nós. Por outra parte, certos discípulos desta escola há entre os próprios moços, que se querem recomendar às secretarias ostentando o zelo sagrado, útil para o avanço na carreira.

Segundo essa escola, a quem talvez se pudesse imputar em parte a guerra com o Paraguai, e cuja sabedoria se admira pelos seus resultados negativos, deve o Império adquirir todos os territórios disputados, aqueles mesmos sobre que nem a posse nem os tratados lhe dão direito. Esta frase absurda há de se ler em algum documento. Em resumo: embarace o Brasil as suas questões externas, levante pretensões pouco fundadas, para depois ter de desistir delas com desonra!”.

Na pg 50 inicia assim seu argumento sobre a contestação da tese de que só se poderia abrir a navegabilidade com tratados com todos os países vizinhos: “Aqueles cuja missão política neste país tem sido enredar as questões pela preguiça de resolvê-las com decisão, exigem que a abertura do Amazonas fique dependente da fixação dos nossos limites com os estados vizinhos, assim como de regular-se por convenções a navegação dos grandes afluentes por onde queles estados se comunicam com os portos brasileiros.”

Lembrei neste parágrafo, das exigências de ambientalistas para que a concessão da exploração de petróleo na foz do Amazonas (em 2018) fosse outorgada na licença depois do Brasil ter um tratado com a Guiana Francesa relativo à remota possibilidade de vazamentos tomarem as correntes marítimas e atingirem aquele país. Se uma mentalidade persiste através das gerações, temos em Tavares Bastos um dos reveladores de um modo de ser do oficialismo estatal brasileiro.

Na pg 54 esclarece que o primeiro Lopez queria a mesma coisa no Paraguai, e que em duas missões diplomáticas o Brasil conseguiu definir o direito de navegação para o Mato Grosso antes da definição dos limites territoriais, que depois seriam objeto do início da guerra do Paraguai.

Por que o Brasil incorria no mesmo erro paraguaio para as nações do vale do Amazonas? Esta era a questão que ele levou para o Congresso.

Na questão de limites ele insiste bastante na posse, que chama de utis possidetis. Pg 64: Tavares Bastos em torno de 1860, em discurso no Congresso: "...Contra esses meios de aplicação, contra o espírito exagerado do fisco, contra a tendência a regulamentar, CONTRA O VÍCIO ABOMINÁVEL QUE CONSISTE EM EMBARAÇAR TUDO PARA PREVENIR-SE MUITO, devia eu protestar, e cuido desempenhar um dever". Não podia ser mais claro sobre o caráter do estado.

TB condena a política dos ribeirinhos, uma decisão oficial do Império acerca do uso do território amazônico, excluindo o estrangeiro e, em consequência, o investidor. Esta política, tem acarretado danos: “1) impedindo o maior progresso e proveito que podia resultar daquela região; 2) exigindo maiores despesas”.

… “Ainda recentemente um dos mais autorizados órgãos da imprensa europeia pôde dizer que o nosso ciúme português estremece com a revelação das grandezas do Amazonas, e prefere murar as suas riquezas a vê-las prosperar nas mãos dos outros”, citando a Revue des deux mondes, 1/ 2/ 1864, pg 684.

TB inicia a apresentação da situação fiscal dos portos fluviais, enfatizando o contraste entre os de Albuquerque, que servia Mato Grosso, com Belém, Manaus e Tabatinga. E a mesma análise feita por Carlos de Vasconcelos (Pró-Pátria) 40 anos depois. Somando transporte, taxas portuárias e impostos, os produtos chegavam 100% mais caros em Manaus do que em Belém. Ele discute também a questão da isenção para a navegação de paquetes do Peru. Os dados estão nas pgs 74 a 77.

Vale a pena observar que as mesas de renda (denominação que corresponde as nossas coletorias) apresentavam um balanço negativo entre os valores arrecadados e o gasto com pessoal, sempre excessivo em número de funcionários, guardas, porteiros, etc, exceto em Albuquerque. O mesmo acontecia com a Rede Ferroviária Nacional nos anos 1960, conforme os dados apresentados por Emil Farhat em O País dos Coitadinhos.

Da receita federal: “As Mesas de Rendas foram criadas no período da Regência, na primeira metade do século XIX, e destinavam-se a operar despachos aduaneiros e fiscalização em portos de escasso movimento, cuja renda não compensasse a instalação de uma aduana completa.”

Pg 92-93. O processo dos despachos na alfândega e mesas de rendas exige algumas reflexões.

Este assunto é um daqueles em que o comércio merece ser atendido sem demora. As formalidades atuais são vexatórias e inúteis. A papelada no Pará é tal que os despachos de um dos vapores da Cia do Amazonas, em uma recente viagem do Pará a Manaus, pesava 8 libras. Esses enormes papéis são designados ali pelo nome de papagaios. As cartas de guia do Pará, que acompanharam o manifesto do paquete Tapajós na viagem do mês de novembro último, foram 29, das quais 17 de gêneros estrangeiros e 12 nacionais.

Os manifestos e cartas de guia vêm por primeira e segunda vias do porto da procedência do gênero, assim como é igualmente por duas vias que no porto de destino se processam os despachos para a saída dos gêneros. Cada uma dessas vias deve conter minuciosamente a quantidade e o valor de cada artigo, exigência penosíssima, pois sucede comumente que cada volume contém muitos artigos de classes e natureza diversas. A bem do comércio de cabotagem do Amazonas, mormente dos que fazem os paquetes da Cia, que devem inspirar perfeita confiança ao fisco, dever-se-ia permitir o seguinte: [segue suas sugestões de desburocratização. A anotação do parágrafo anterior foi feita como demonstrativo de que as coisas pioraram, em vez de melhorar.]

[Providências cautelosas – expressão que usa para a cultura da desconfiança], TB fala do despovoamento das vilas na estação da colheita, pois improvisam sobre as ilhas “efêmeras da vazante, povoações provisórias, de um aspecto tão interessante por seu lado pitoresco, como deploráveis por sua condição econômica. Esse transtorno da vida social, essa depravação moral alimentada pelo trabalho em comum e ausência de todas as regras de decência, essa existência nômade, preocupam a todos os que observam as coisas do Amazonas. … Entretanto, é certo que o desenvolvimento moral do povo e principalmente o exemplo do imigrante conseguirão alterar gradualmente os hábitos da população e melhorar os processos da indústria. [Fala a seguir da obtenção da borracha e do cultivo experimental em certas ilhas, enfatizando a importância do produto para a manufatura estrangeira].

Pg 124-125: “Eu não pertenço ao número daqueles pessimistas ou tímidos que enxergam sempre o futuro através das sombras da sua imaginação abatida. Como o Brasil interior, tem o Amazonas certeza do seu progresso. Adote-se uma política firme acerca dos grandes interesses da nação, e a confiança restabelecer-se-á: onde dominava o pavor, reinará a coragem; onde a melancolia da descrença emudecia os espíritos, resplandecerá a vida agitada de uma sociedade em marcha. Adote-se a política generosa de uma patriotismo sincero, e sentir-se-á gradualmente suceder a esta impertinente atmosfera de desânimo que nos oprime, o ar aquecido do entusiasmo geral. Mas quantos motivos, quanta decepção, quanto descuido, quanto desprezo, quanta incúria, quanta injustiça, não têm alimentado ali no Pará essa longa descrença e esse abatimento, o mais desagradável traço fisionômico das nossas populações do norte? Neste país, nesta nossa sociedade constituída sob a influência do estúpido despotismo português, e dos prejuízos e usos da metrópole ainda mais estúpidos e detestáveis, não é só o governo o único culpado; talvez não seja o mais culpado. Mas é certo contudo que ministros e presidentes ignaros, indolentes e incapazes não são raros na história do nosso governo, ou são muito comuns.

Pg 140-141, falando a propósito da educação efetuada nas 20 escolas de todo o Amazonas. “Felizmente, quanto ao ensino profissional, por mais socialistas (sic) que sejam e são tais instituições, já a província conta com um estabelecimento útil, proveitoso e eficaz, o dos Educandos de Manaus. Ainda que modesto, ele revela, pelos resultados obtidos, quando pode a perseverança. Instrução elementar, instrução popular, instrução leiga, instrução profissional, isto é, ensino útil sem latim, sem retórica, sem clericalismo, mas abundante de noções práticas e de conhecimentos físicos, – eis a alavanca do nosso progresso.

…. “Ah! Mas eu me esqueço do inimigo comum, do grande desbaratador de todas as combinações, a infernal intriga de aldeia elevada à dignidade de política! Ao menos por piedade e compaixão, como pedia o preclaro publicista maranhense (J.F. Lisboa), ao menos por piedade e compaixão não apliquemos a esses desertos o ferro em brasa da nossa política. Não são as nossas livres instituições, não é o jogo democrático de um sistema baseado sobre a eleição e a liberdade individual, as causas verdadeiras dos lamentáveis abusos da política provincial: é a tendência comum dos governos geral e local para se apoderarem dessas armas e dessas instituições em seu proveito, ou no de seus amigos; é a organização administrativa, a judiciária e a policial combinadas para comprimirem ou corromperem a vida popular. De modo que assim a imoralidade acompanha as instituições democráticas para perturbá-las e desacreditá-las. Post hoc, ergo propter hoc: da coincidência das duas coisas conclui-se contra os inconvenientes do sistema liberal. Não declamemos, porém, contra o regime constitucional aplicado ao país inteiro, sem distinção entre províncias e território. Mas protestemos contra o procedimento dos governos, e principalmente certas escolhas de funcionários e certas condescendências criminosas”.

Pg 154-155 – Tratando da questão do desenvolvimento de Iquitos, no Peru, muito superior ao da contraparte brasileira, TB trata de afastar os boatos de que o Peru estivesse construindo uma fortificação militar capaz de ameaçar nosso território: “Não se trata, pois, de um arsenal nem de uma fortaleza no território limítrofe, como têm adrede espalhado noveleiros levianos, os interessados na interrupção das relações pacíficas entre os dois países, os adeptos da escola fatal do exclusivismo, esses funestos espíritos cheios do ciúme e ódio portugueses para com o vizinho e o estrangeiro em geral, esses beatíficos sebastianistas que oram pela volta do bom regime das velhas ideias, simulando dirigir adorações aos princípios liberais das sociedades modernas”.

[Lembra algum movimento nacional liderado por um guru boquirroto? Noto, com um certo alívio, que tenho escritores que também pensam como eu na questão da origem ibérica dos nossos males].

Analisando as informações geográficas dos cursos dos rios Juruá e Purus, que segundo informes de visitantes e testemunho de índios teriam conexões em que o Ucayali teria um braço em comum com o Purus, TB lança a hipótese do desconhecimento com uma acusação contra nosso exclusivismo ridículo, se comparado com a livre navegação nos rios europeus transnacionais. Pg 190.

No capítulo dedicado a enfatizar a necessidade de explorar os afluentes do Alto Amazonas, inicia com “alguém já disse ironicamente que os brasileiros conhecem menos o seu Amazonas que os astrônomos a geografia da Lua”, para recomendar que a província do Pará criasse uma flotilha para este fim, “libertados da papelada diária dos navios da divisão” e “desligados da divisão naval respectiva, para que os não estorvem os chefes desta, que de ordinário desdenham de tais serviços científicos, e tudo embaraçam com a exigência de formalidades inúteis”.

No final, Considerações Gerais resume tudo o que é importante nos aspectos culturais da região. Destaco:

1) A situação do índio, que desde o início da colonização foi sujeitado, ou pelas autoridades religiosas ou pelas militares. Em ambas acabou espoliado. “Daí perpetuou-se na tradição dos governos cristãos a ideia de um despotismo organizado, como meio de educação e incentivo de trabalho para os índios” pg 203 e 204. Os diretores ou tenentes-coronéis eram as autoridades civis encarregadas de dirigir um aldeamento, o qual utilizavam o trabalho dos índios como escravos na produção e coleta de bens para seu proveito exclusivo. Os padres, não poderiam resistir as privações do celibato em meio a concupiscência moral. Em consequência, uma população mestiça ia se formando e aumentando os braços da indústria de extração e plantações.

2) Contrariando a opinião generalizada, afirma que a salubridade da região amazônica é ótima, e que os boatos de um clima terrível serviram para espantar o imigrante de origem saxônica. Ao contrário, a uberdade da terra é invejável para o plantio de algodão, arroz, fumo e café, e a temperatura só é inclemente ao redor do período das 11 as 15 hs. Confirmando Gerald Horne, “se alguma parte do Brasil merecesse preferência para a imigração norte-americana seria indubitavelmente o Amazonas”.

3) “A imigração para o Brasil depende certamente de variadas condições: o casamento civil, a liberdade de culto exterior, a proteção e favores aos cultos dissidentes, a discriminação do domínio público, o regime das terras, o sistema administrativo, a escravidão e outras causas conspiram contra esse grande interesse do país. Mas eu não parecerei exagerado assinalando entre elas um lugar ao nosso regime aduaneiro”.

Dedica um subcapítulo para falar dos impostos locais exagerados (p 200). Isto confirma a análise de Carlos de Vasconcelos 40 anos depois. 'A borracha paga, na província do Pará, pelo desembarque em Belém, 8%; pela saída, 5%; imposto municipal do distrito produtor, 3%; total: 16%. Reunindo o imposto geral de exportação de 7%, o total dos direitos sobre esse artigo sobe a 23%. Na província do Alto Amazonas, os mesmos impostos chegam a totalizar 25%.' O mesmo vale para o tabaco e o cacau. Além disso as canoas, ou regatões utilizadas para o tráfego de mercadorias tinham de pagar um imposto semelhante ao nosso IPVA divido entre a província e o município. Calcula que o total dos impostos de um regatão são de 261$000. Em conclusão: “tais impostos são evidentemente excessivos”, confirmando a situação histórica.

Naturalmente, como a questão tributária no Brasil faz parte da natureza proteiforme do estado, estes valores iam se alterando com o tempo, chegando a 43% (conforme Carlos de Vasconcelos citado) na tributação em cascata 40 anos depois, originando a perda de competitividade da borracha brasileira frente à da Malásia, com impostos de apenas 6%. No entanto, o flagelo tributário não chega às escolas na dimensão que merece, a não ser citado secundariamente como a causa da Inconfidência Mineira.


Emil Cioran — História e Utopia

Quem poderia adivinhar, no século passado, que a nova sociedade, por causa de seus vícios e iniquidades, iria permitir à antiga manter-se e até consolidar-se, e que o possível, tornado realidade, voaria em auxílio do liquidado? Aqui como lá, estamos todos em um ponto morto, igualmente diminuídos nessa ingenuidade em que se elaboram as divagações sobre o futuro. A longo prazo, a vida sem utopia se torna irrespirável, para a multidão pelo menos: sob pena de petrificar-se, o mundo necessita de um delírio novo. Essa é a única evidência que se deduz da análise do presente.

Enquanto isso, nossa situação, a nossa daqui, não deixa de ser curiosa. Imagine uma sociedade superpovoada de dúvidas onde, com exceção de alguns casos aberrantes, ninguém se compromete inteiramente com nada; onde, carentes de superstições e de certezas, todos exigem a liberdade e ninguém respeita a forma de governo que a defende e encarna.

O burguês não crê em nada, é um fato; mas é esse, pode-se dizer, o lado positivo de seu vazio, já que a liberdade só pode se manifestar no vazio de crenças, na ausência de axiomas, e só aí onde as leis não têm mais autoridade que uma hipótese.

[Falando da liberdade]
Não há algo de perverso em nosso amor por ela? E não é aterrador dedicar um culto ao que não quer nem pode durar? Para você, que não a tem mais, ela é tudo; para nós, que a possuímos, ela é apenas ilusão, porque sabemos que a perderemos e que, de toda maneira, ela é feita para ser perdida.

II – A Rússia e o vírus da liberdade

Às vezes penso que todos os países deveriam se parecer com a Suíça, comprazer-se e arruinar-se, como ela, na higiene, na insipidez, na idolatria das leis e no culto ao homem; por outro lado, só me atraem as nações desprovidas de escrúpulos tanto em pensamentos como em atos, sempre prestes a devorar as outras e a devorar-se a si mesmas, pisoteando os valores contrários à sua ascensão e a seu êxito, insubmissas à sensatez, essa chaga dos velhos povos cansados de si mesmos e de tudo, e como que satisfeitos de cheirar a mofo.

….saquearam sua filosofia e suas artes, asseguraram o sucesso às suas produções, mas não assimilaram seus talentos. Da mesma maneira, pode-se roubar tudo do Ocidente, salvo seu gênio.

Uma civilização se revela fecunda pela capacidade que tem de incitar as outras a imitá-la;

Cada civilização acredita que seu modo de viver é o único bom e o único concebível, e que tem o dever de converter o mundo a esse modo de viver, ou infligi-lo a ele

Quanto mais um império se humaniza, mais se desenvolvem nele as contradições que o farão perecer.

O Império necessita para subsistir do princípio coesivo do terror. Abre-se à tolerância? Ela destruirá sua unidade e sua força, e atuará sobre ele como um veneno mortal que ele próprio teria administrado...

… Esse gosto pela devastação, pela desordem interior, por um universo semelhante a um bordel em chamas...,

[Gostei da metáfora]

[Herzen]...embora gostasse de especular sobre a vida dos povos, matéria vaga e inesgotável, passatempo de emigrado. Os povos, entretanto, segundo outro russo, Soloviev, não são o que imaginam ser, mas o que Deus pensa deles na eternidade.

III – Escola dos tiranos

Não há nada mais admirável humanamente e mais lamentável historicamente que um tirano desmoralizado por seus escrúpulos.

Uma república que se respeita deveria enlouquecer ante a aparição de um grande homem, bani-lo de seu seio, ou pelo menos impedir que se crie uma lenda em torno dele. Ela repugna isso? É porque, deslumbrada pela sua calamidade, não acredita mais nem em suas instituições nem em suas razões de ser. Enreda-se em suas leis, e essas leis, que protegem seu inimigo, a dispõem e a incitam à demissão. Sucumbindo sob os excessos de sua tolerância, poupa o adversário que não a poupará, autoriza os mitos que a minam e a destroem, deixa-se prender nas suavidades de seu carrasco. Merece subsistir quando seus próprios princípios a estimulam a desaparecer? Paradoxo trágico da liberdade: os medíocres, que são os únicos que tornam possível seu exercício, não saberiam garantir sua duração. Devemos tudo à sua insignificância e perdemos tudo por causa dela. Assim encontram-se sempre aquém de sua missão.

É que, precisamente, pode-se chegar a tomar gosto pela tirania, pois o homem prefere apodrecer no medo do que enfrentar a angústia de ser ele mesmo.

VI – A idade de ouro

Acorrentados à diversidade, extraímos dela essa soma constante de decepções e de conflitos, tão necessária a nossos instintos. Livres de preocupações e de impedimentos, estaríamos entregues a nós mesmos; a vertigem que resultaria disso nos tomaria mil vezes piores do que já o faz nossa servidão. Este aspecto de nossa degradação escapou aos anarquistas, últimos pelagianos, que tiveram entretanto, sobre seus antecessores, a superioridade de rejeitar, por seu culto à liberdade, todas as cidades, começando pelas “ideais”, e de substituí-las por uma nova variedade de quimeras, mais brilhantes e mais improváveis que as antigas.

Se se insurgiram contra o Estado e pediram sua supressão, é porque viam nele um obstáculo para o exercício de uma vontade fundamentalmente boa; ora, é precisamente porque a vontade é má que nasceu o Estado; se ele desaparecesse, ela se comprazeria no mal sem nenhuma restrição. Isso não impede que a ideia anarquista de aniquilar toda autoridade seja uma das mais belas que já foram concebidas. E nunca se deplorará o bastante que se tenha extinguido a raça dos que quiseram realizá-la. Mas talvez devessem desaparecer e ausentar-se de um século como o nosso, tão apressado em invalidar suas teorias e suas previsões. Eles anunciavam a era do indivíduo, mas o indivíduo chega a seu fim; anunciavam o eclipse do Estado: nunca o Estado foi tão forte nem tão incômodo; anunciavam a era da igualdade: o que chegou foi a idade do terror. Tudo vai se degradando. Até nossos atentados, comparados com os dos anarquistas, baixaram de qualidade: os que de tempos em tempos ainda são cometidos carecem desse fundo de absoluto que redimia os deles, executados sempre com tanto cuidado e brio.

Dostoiévski aproxima o catolicismo do “socialismo”, os identifica mesmo, segundo uma ótica que participa do método e do delírio, mescla eminentemente eslava. Em relação ao Ocidente, tudo na Rússia está um grau acima: nela o ceticismo se torna niilismo; a hipótese, dogma; a ideia, ícone. Shigalev não profere mais insanidades do que Cabet; no entanto, põe nelas uma fúria que não se encontra em seu modelo francês. “Vocês não têm mais obsessões, só nós as temos ainda”, parecem dizer os russos aos ocidentais através de Dostoiévski, o obsesso por excelência, preso, como todos os seus personagens, a um único sonho: o da idade de ouro, sem o qual, nos assegura, “os povos não querem viver e nem sequer podem morrer”. Ele não espera sua realização na história, pelo contrário, teme seu advento, sem com isso ser “reacionário”, pois ataca o “progresso” não em nome da ordem, mas do capricho, do direito ao capricho. 


Isaiah Berlin — Quatro Ensaios Sobre Liberdade

O ensaio está disponível no Google Docs, clicando no link abaixo. Total: 21 pgs

Isaiah Berlin Quatro ensaios sobre liberdade. No Google Docs, 21 pgs

Nacos
Abelardo:
"A inveja acomete o que é mais alto; os ventos sopram com violência contra os cumes mais elevados".
Proust:
“O ciúme nada mais é muitas vezes do que uma inquieta necessidade de tirania aplicada às coisas do amor”. A Prisioneira pg. 72


Fernando Pereyron Mocellin — A Missão 60

Um santamariense participou da Segunda Guerra Mundial como piloto e tempos depois escreveu suas memórias a propósito das 59 missões de combate que realizou contra alvos alemães no centro e norte da Itália. Sua última missão foi escrever o livro que chamou de A Missão 60. (Pgs 175-176): "Íamos a Civitavecchia conversar com os nossos médicos e enfermeiros que estavam adidos ao 154 Station Hospital americano, e confraternizar com o pessoal da FEB. Bebíamos vinho, passeávamos pelas ruas estreitas de Civitavecchia e gastávamos o dinheiro de ocupação, generosamente. Trocávamos um dólar por cem liras e não havia razões para economias. E recebíamos, também, cartas do Brasil. Escrevíamos para matar a saudade. A vida em Civitavecchia era vazia e triste.

A essa altura, já fazia frio e havíamos recebido novos uniformes do Brasil, calças e blusas de lã caqui. Os números não correspondiam, a calça era sempre maior do que a blusa, ou vice-versa. Os botões mal pregados, tudo na base da carregação. E isto nos entristecia. Por que no Brasil não se procurava fazer as coisas direito? Estávamos acostumados com o americano (nota: o autor recebeu treinamento em aviões de combate nos EUA e pilotava os aviões americanos cedidos ao Brasil, que não tinha aeroplanos, mas que esconde sua insuficiência militar), que primava pela perfeição em tudo, e lamentávamos a negligência do brasileiro. E pensávamos: o mesmo tempo que se gasta para fazer malfeito é o que se pode gastar para fazer bem-feito. E isso sem novas despesas e novos desperdícios de tempo.

Mas, se isso nos entristecia, a Cantina Brasil nos alegrava. De quinze em quinze dias, podíamos comprar uma garrafa de uísque americano, Raleigh ou Four Roses. E isso era uma beleza! Comprávamos, também, cigarros e chocolates, pois o que recebíamos do Brasil era da pior qualidade.  Os cigarros eram ruins, tão ruins, na linha do Liberty e do Tufuma, que nem o italiano aceitava. Às vezes, nos revoltávamos mas sempre aparecia um, para dizer:

– Não estranho. Os pacotes que vêm do Brasil, na metade do caminho, são despojados do melhor conteúdo. O Brasil parece que não ama seus soldados, não os quer felizes nem bem-alimentados. [Note que era o correio militar o encarregado do transporte de pacotes para os pracinhas].

E ouvíamos. calados e tristes, porque era realidade, uma dolorosa realidade. Enquanto os outros países faziam tudo pelos seus soldados e procuravam dar-lhes o conforto, a alimentação e o apoio moral necessário, do Brasil nos mandavam cigarros Tufuma e surripiavam o que de melhor vinha nos pacotes que nos enviavam os nossos familiares. Mas nada disso tinha importância, porque era guerra. E o nosso grupo já estava pronto para a luta, disposto a defender e morrer pelo Brasil".

[Conheci os cigarros Tufuma na minha juventude e posso assegurar que ninguém queria fumá-los. Guardo estas preciosidades para mostrar aos leitores como a podridão vem de longe e como toda a crítica ao Estado fica sempre aquém dos fatos reais daqueles que dependem dele.]


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