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terça-feira, 24 de março de 2020

Fragmentos 23

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


A peste em Florença, narrada por Giovani Boccaccio foi considerada a primeira novela em que o tema de confissões íntimas foi empregado, tal como o conhecemos. Durante a PESTE NEGRA de 1348, sete moças e três jovens fogem da cidade em busca de um refúgio para sobreviver ao sofrimento horrível e impiedoso que matou só na cidade, cem mil pessoas. As primeiras páginas deste clássico da literatura medieval fornecem uma descrição da peste que merecem ser lidos nesta fase de coronavírus.

Boccaccio — Decamerão

Graciosas senhoras, quanto mais penso cá comigo e contemplo como são as senhoras naturalmente piedosas, mais concluo que esta obra lhes parecerá austera e pesada no princípio, assim como o é a dolorosa lembrança da última peste, com que ela se inicia, para todos os que a viram ou que de algum outro modo souberam de seus estragos. Mas não quero que isso as assuste e impeça de prosseguir, como se, lendo, houvessem de estar sempre entre suspiros e lágrimas. Este horripilante início não deve ser diferente do que é para o caminhante a montanha acidentada e íngreme, atrás da qual se encontre uma planície belíssima e amena, que lhe parecerá tanto mais agradável quanto maior tiver sido o padecimento da subida e da descida. E, assim como os confins da alegria são ocupados pela dor, as misérias têm seus limites no contentamento que sobrevém.

A este breve aborrecimento (digo breve porque contido em poucas linhas) seguem-se logo o deleite e o prazer já prometidos, que talvez não fossem esperados de tal início, caso isto não fosse dito. Na verdade, se me tivesse sido possível levá-las convenientemente àquilo que desejo por outro caminho, e não por esta senda tão árdua, eu o teria feito de bom grado: mas como, sem esta rememoração, não seria possível explicar por qual razão ocorreram as coisas que a seguir serão lidas, disponho-me a descrevê-las como que impelido pela necessidade. Digo, pois, que os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já haviam chegado ao número 1348 quando, na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas as da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas – começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro até se estender desgraçadamente em direção ao ocidente.

E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, como a limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade, e tampouco encontrando efeito as humildes súplicas feitas a Deus pelos devotos, não uma vez, mas muitas, em procissões e de outros modos, era já quase início da primavera do ano acima quando começaram a manifestar-se de maneira prodigiosa seus horríveis e dolorosos efeitos. Não se manifestavam como na parte oriental, onde expelir sangue pelo nariz era sinal manifesto de morte inevitável, mas começavam com o surgimento de certas tumefações na virilha ou nas axilas de homens e mulheres, algumas das quais atingiam o tamanho de uma maçã comum e outras o de um ovo, umas mais e outras menos, e a elas o povo dava o nome de bubões. E os referidos bubões mortíferos, não se limitando às duas citadas partes do corpo, em breve espaço de tempo começaram a nascer e a surgir indiferentemente em todas as outras partes, após o que a qualidade da enfermidade começou a mudar, passando a manchas negras ou lívidas, que em muitos surgiam nos braços, nas coxas e em qualquer outra parte do corpo, umas grandes e ralas, outras diminutas e espessas. E, tal como ocorrera e ainda ocorria com o bubão, tais manchas eram indício inegável de morte próxima para todos aqueles em quem aparecessem.

Para tratar tais enfermidades não pareciam ter préstimo nem proveito a sabedoria dos médicos e as virtudes da medicina: ao contrário, seja porque a natureza do mal não admitisse tratamento, seja porque a ignorância dos que o tratavam (cujo número era enorme, havendo, além dos cientistas, também mulheres e homens que jamais haviam feito estudo algum de medicina) não permitisse conhecer a sua causa, nem portanto usar o devido remédio, não só eram poucos os que se curavam, como também quase todos morriam nos três dias seguintes ao aparecimento dos sinais acima referidos, uns mais cedo, outros mais tarde, a maioria sem febre alguma ou qualquer outra complicação.

E a peste ganhou maior força porque dos doentes passava aos sãos que com eles conviviam, de modo nada diferente do que faz o fogo com as coisas secas ou engorduradas que lhe estejam muito próximas. E mais ainda avançou o mal: pois não só falar e conviver com os doentes causava a doença nos sãos ou os levava igualmente à morte, como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade a quem as tocasse.

É espantoso ouvir aquilo que devo dizer: se tais coisas não tivessem sido vistas pelos olhos de muitos e também pelos meus, eu mal ousaria acreditar nelas, muito menos descrevê-las, por mais fidedigna que fosse a pessoa de quem as ouvisse. Digo que era tamanha a eficácia de tal peste em passar de um ser a outro, que ela não o fazia apenas de homem para homem, mas fazia muito mais (coisa que indubitavelmente ocorreu várias vezes), ou seja, o animal não pertencente à espécie do homem que tocasse as coisas do homem que adoecera ou morrera dessa doença não só adoecia também como morria em brevíssimo espaço de tempo. Tive, entre outras, a seguinte experiência, coisa vista com meus próprios olhos, como há pouco disse: um dia tendo os farrapos de um pobre homem morto da doença sido jogados na via pública, dois porcos se aproximaram deles e, conforme é seu costume, primeiro os fuçaram e depois os tomaram entre os dentes para sacudi-los; em pouco tempo, como se tivessem tomado veneno, após algumas contorções ambos caíram mortos sobre os trapos que em má hora haviam puxado.

De tais coisas e de muitas outras semelhantes ou piores originaram-se diferentes medos e imaginações nos que continuavam vivos, e quase todos tendiam a um extremo de crueldade, que era esquivar-se e fugir aos doentes e às suas coisas; e, assim agindo, todos acreditavam obter saúde. Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter. Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando, divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando dia e noite ora nesta taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida, fazendo tais coisas muito mais nas casas alheias, apenas por sentirem gosto ou prazer em fazê-las. E podiam assim agir estouvadamente porque os outros, como se já não precisassem viver, tinham abandonado suas coisas e a si mesmos; de modo que as casas, em sua maioria, tinham se tornado comuns e eram usadas pelos estranhos que porventura chegassem, tal como teriam sido usadas por seus próprios donos; e, apesar desse comportamento animalesco, fugiam dos doentes sempre que podiam. E, em meio a tanta aflição e miséria da nossa cidade, a veneranda autoridade das leis divinas e humanas estava quase totalmente decaída e extinta porque seus ministros e executores, assim como os outros homens, estavam mortos ou doentes, ou então se encontravam tão carentes de servidores que não conseguiam cumprir função alguma; por esse motivo, era lícito a cada um fazer aquilo que bem entendesse. Muitos outros observavam uma via intermediária entre as duas descritas acima, não se restringindo na alimentação, como os primeiros, nem se entregando à bebida e a outras dissipações como os segundos, mas usavam as coisas na quantidade suficiente para atender às necessidades, não se encerravam em casa, iam a toda parte, alguns com flores nas mãos, outros com ervas aromáticas, outros ainda com diferentes tipos de especiaria, que levavam com frequência ao nariz, pois consideravam ótimo aliviar o cérebro com tais odores, visto que o ar todo parecia estar impregnado do fedor dos cadáveres, da doença e dos remédios. Outros tinham sentimento mais cruel (se bem que talvez fosse a atitude mais segura) e diziam que contra a peste não havia remédio melhor nem tão bom como fugir; e, convencidos disso, não se preocupando com nada a não ser consigo, vários homens e mulheres abandonaram sua cidade, suas casas, suas propriedades, seus parentes e suas coisas, buscando os campos da sua região ou das alheias, como se com aquela peste a ira de Deus não tencionasse punir as iniquidades dos homens onde quer que eles estivessem, mas só afligisse aqueles que ficassem dentro dos muros de sua cidade, ou como se achassem que ninguém deveria ficar nela, chegada que era a sua hora derradeira.

E, dentre esses que tinham tão variadas opiniões, embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; e esses doentes, que, quando estavam sãos, tinham dado exemplo àqueles que agora continuavam sãos, definhavam quase abandonados por todas as partes. E, sem contar que um cidadão evitava o outro, que quase nenhum vizinho cuidava do outro e que os parentes raramente ou nunca se visitavam, e só o faziam à distância, era tamanho o pavor que essa tribulação pusera no coração de homens e mulheres, que um irmão abandonava o outro, o tio ao sobrinho, a irmã ao irmão e muitas vezes a mulher ao marido; mas (o que é pior e quase incrível) os pais e as mães evitavam visitar e servir os filhos, como se seus não fossem. Por todas essas coisas, para a multidão incalculável de homens e mulheres que adoeciam não restava outro socorro senão a caridade dos amigos (e destes houve poucos) ou a ganância dos serviçais, que trabalhavam em troca de gordos salários e acordos abusivos, se bem que com tudo aquilo não restassem muitos: e os que havia eram homens ou mulheres de tosco engenho, a maioria não acostumada a tais serviços, que só serviam para pôr nas mãos dos doentes algumas coisas que estes pedissem ou para velar a sua morte; e, cumprindo tal serviço, muitas vezes pereciam junto com seus ganhos. E, do fato de estarem os doentes abandonados por vizinhos, parentes e amigos e de serem poucos os serviçais, decorreu um costume quase desconhecido antes: nenhuma mulher que adoecesse, por mais graciosa, bela ou fidalga que fosse, se importava de ter um homem a seu serviço, fosse ele jovem ou não, e de lhe expor todas as partes do corpo sem nenhum pudor, tal qual teria exposto a uma mulher, desde que a doença impusesse essa necessidade; e, nos tempos que se sucederam, isso talvez tenha sido razão de menor honestidade daquelas que se curaram. Além disso, morreram muitos que, se porventura ajudados, teriam escapado; assim, tanto por falta do devido atendimento, que os doentes não podiam ter, quanto pela força da peste, era tamanha a multidão de gente a morrer noite e dia na cidade que causava espanto ouvir dizer, quanto mais presenciar. Desse modo, como que por necessidade, entre os que sobreviveram, surgiram usos contrários aos primitivos costumes dos cidadãos.

Era uso (tal como ainda hoje se vê) as parentes e vizinhas do morto se reunirem em casa deste para chorar com as mulheres que lhe fossem mais chegadas; por outro lado, em frente à casa do morto, os vizinhos e muitos outros cidadãos reuniam-se com seus parentes, e o clero comparecia em conformidade com a posição social do morto; e, sobre os ombros de seus pares, com pompa fúnebre, círios e cantos, este era levado à igreja escolhida por ele mesmo antes da morte. Essas coisas, depois do aumento da ferocidade da peste, acabaram-se de todo ou na maior parte, surgindo outras em seu lugar. Por isso, não só as pessoas morriam sem muitas mulheres ao redor, como também havia muitos que saíam desta vida sem testemunho de ninguém; e a pouquíssimos foram concedidos o pranto piedoso e as lágrimas amargas dos cônjuges; em vez disso, na maioria dos casos era costume rir, gracejar e festejar entre amigos; e as mulheres, abandonando em grande parte a piedade feminina, aprenderam muitíssimo bem esses usos em nome de sua própria saúde. E eram raros aqueles cujos corpos fossem acompanhados à igreja por mais de dez ou doze vizinhos; seu ataúde não era levado sobre os ombros de honrados e prezados cidadãos, mas alçado aos ombros de uma espécie de sepultureiros surgidos na arraia miúda, que eram chamados coveiros e prestavam serviços mediante pagamento; estes, com passos apressados, na maioria das vezes não o levavam à igreja escolhida antes da morte, e sim à mais próxima, atrás de quatro ou seis clérigos com pouco lume, e em certas ocasiões até sem nenhum; e estes, com a ajuda dos referidos coveiros, sem se afadigarem em ofícios longos ou solenes, metiam o corpo na primeira sepultura que encontrassem vaga. Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção. Várias expiravam na via pública, de dia ou de noite; muitas outras, que expiravam em casa, os vizinhos percebiam que estavam mortas mais pelo fedor do corpo em decomposição do que por outros meios; e tudo se enchia destes e de outros que morriam por toda parte. Os vizinhos, em geral, movidos tanto pelo temor de que a decomposição dos corpos os afetasse quanto pela caridade que tinham pelos falecidos, observavam um mesmo costume. Sozinhos ou com a ajuda de carregadores, quando podiam contar com estes, tiravam os finados de suas respectivas casas e os punham diante da porta, onde, sobretudo pelas manhãs, um sem-número deles podia ser visto por quem quer que passasse; então, providenciavam ataúdes e os carregavam (alguns corpos, por falta de ataúdes, foram carregados sobre tábuas). Um mesmo ataúde podia carregar dois ou três mortos juntos, e isso não ocorreu só uma vez, mas seria possível enumerar vários que continham marido e mulher, dois ou três irmãos, pai e filho, e assim por diante. E foram inúmeras as vezes em que, indo dois padres com uma cruz para alguém, três ou quatro ataúdes, levados por carregadores, se puseram atrás dela: e os padres, acreditando que tinham um morto para sepultar, na verdade tinham seis, oito e às vezes mais. E tampouco eram estes honrados por lágrimas, círios ou séquito; ao contrário, a coisa chegara a tal ponto, que quem morria não recebia cuidados diferentes dos que hoje seriam dispensados às cabras; porque ficou bastante claro que, se o curso natural das coisas, com pequenos e raros danos, não pudera mostrar aos sábios o que devia ser suportado com paciência, a enormidade dos males conseguiu tornar mais sagazes e resignados até mesmo os ignorantes. Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora (principalmente se se quisesse dar a cada um seu lugar próprio, segundo o antigo costume), abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda.

E, deixando de lado todas as particularidades das passadas misérias sofridas pela cidade, direi que aqueles tempos tão adversos que a devastavam nem por isso pouparam os campos circundantes, onde (sem mencionarmos os castelos, que eram cidades em miniatura), nas aldeias esparsas e nas plantações, os lavradores miseráveis e pobres e suas famílias, sem nenhum socorro de médicos nem ajuda de serviçais, morriam nas ruas, nas lavouras e nas casas, de dia e de noite, indiferentemente, não como homens, mas quase como animais. Em vista disso, tornando-se dissolutos como os citadinos em seus costumes, eles não cuidavam de suas coisas nem de seus afazeres; ao contrário, como se esperassem a chegada da morte para aquele mesmo dia, não se preocupavam com os futuros frutos da criação, das terras e do trabalho já realizado, e esforçavam-se com todo o empenho em consumir tudo o que tivessem no presente. Com isso, bois, asnos, ovelhas, cabras, porcos, frangos e até os fidelíssimos cães, expulsos de suas próprias casas, saíam andando a esmo pelos campos (onde a messe ainda estava abandonada, sem ser ceifada, para não dizer colhida). E muitos, como se fossem racionais, depois de terem se apascentado bem durante o dia, voltavam saciados à noite para casa, sem serem tangidos por pastores.

Que mais se pode dizer (deixando os campos e voltando à cidade), senão que foi tamanha a crueldade do céu, e talvez em parte dos homens, que se tem por certo que do mês de março a julho (por força da doença pestífera e porque muitos doentes foram mal atendidos ou abandonados em suas necessidades, devido ao medo que os sãos sentiam) mais de cem mil criaturas humanas perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença, e que talvez, antes dessa mortandade, não se imaginasse que lá haveria tanta gente assim? Oh, quantos grandes palácios, quantas belas casas, quantas nobres moradas, antes cheios de criados, senhores e senhoras, esvaziaram-se de todos, até o mais ínfimo serviçal! Oh, quantas memoráveis linhagens, quantas grandes heranças, quantas famosas riquezas ficaram sem seus devidos sucessores! Quantos homens valorosos, quantas belas mulheres, quantos jovens airosos, que ninguém mais que Galeno, Hipócrates ou Esculápio teriam considerado saudabilíssimos, pela manhã comeram com familiares, companheiros e amigos, e à noite cearam no outro mundo com seus antepassados!


Martim Francisco — Viajando

Martim Francisco Ribeiro de Andrada III, da dinastia dos Andradas e terceiro Martim Francisco, nasceu em Santos e formou-se em advocacia, como se pode ler da escassa biografia da Wikipedia, que não cita sequer este livro.

Elogiado por Wilson Martins como o melhor livro de viagem que já lera, resolvi procurá-lo em sebos e nos sites de livros. Depois de alguns anos de tentativas frustradas, eis que encontro em algum baú da Internet em cópia fotográfica e salva em PDF da edição de 1929, com subtítulo "Coizas (sic) do Meu Diário".

Trata-se de 2 volumes sobre viagens à Europa que fez de 1913 a 1915 no primeiro, e de 1916 no segundo.

No prefácio de 2 parágrafos faz uma advertência:
“Permitindo-lhe a publicação, ostensivamente me inscrevo no número dos paulistas que não degradam a natureza humana: que há, leitor, em S. Paulo, terra das unanimidades legislativas e impunidades administrativas, dois partidos sociais: o dos que roubam e o dos que são roubados. Se pertences ao primeiro, fecha este livro; se porém ao segundo, recebe um apertado abraço do companheiro e amigo.”

Já se pode desconfiar que o livro vai ser bom e bombástico.

Logo após, começa a descortinar os primeiros floreios de elevado teor crítico:

“Do caráter brasileiro não consegue o observador excluir a ternura e o servilismo . O mais hospitaleiro e o menos rancoroso dos povos e, outrossim, o que mais aproxima o assentimento às raias da degradação. Nunca, em nossa terra, voto e opinião derribaram governos. Sempre, no Brasil, o mais forte foi o mais aplaudido. Nossas revoluções só triunfaram na capital do país, e quando militares.”

“Mas ser asno não é privilegio de quem não gosta de mim.”

“Governar é avançar e cobrar. Não há governo brando. Não há governo gratuito. Roma foi o pulso mais forte que o mundo padeceu.“

Excelente estilo nos apresenta sucessivamente, página a página Martim Francisco. Como este de estrebarias teogônicas.

“Nasceram e caminharam paralelas a arte e a liberdade de pensamento. Em Roma, receptora e respeitadora de todas as crenças enquanto o semitismo e o messianismo lhe não adaptaram inquisitorialmente o sacrifício de vítimas humanas (o culto de Moloch e o caso sandeu do sacrifício de Isac são alimentos duma mesma estrebaria teogônica), em Roma, os pensadores divulgavam asserções que, modernamente, obrigaram Flaubert e Courier a purgar delitos de opinião com o indefectível acréscimo do pagamento de custas!”

A viagem de navio iniciou em Santos, residência de MF e, depois de parar para abastecimentos em diversos locais, acabou em Nápoles, ponto de entrada na Europa.

Seu estilo começa a ficar claro quando narra a visita ao Vesúvio:

“Caí do cavalo. Desde 1880 quando, candidato liberal, percorri o sul paulista inutilizando cortesias que, com o meu chapéu, o conselheiro Saraiva mandara fazer ao candidato conservador, não mais sentira tão forte batedura na parte carnuda de minha individualidade. Reatamos priscas relações, o tombo e eu. Aplausos no auditório. Sendo inútil enfurecer-me, ri com os outros.”

Sinto neste “reatamos priscas relações, o tombo e eu” o mesmo descortino metafísico de Macedônio Fernandez. Descrevendo as propinas pagas desde a chegada em Nápoles até os mais singulares serviços, Martim Francisco vai nos introduzindo o verdadeiro bom humor do viajante:

“Em meio caminho, à subida, fora intimado a retratar-me, o mesmo sucedendo a toda comitiva. Duas liras por pessoa. Por ser muito gorda e por se haver derretido em risadas quando me vira cair do cavalo, uma espanhola, hirsutamente quarentona, foi pelo fotógrafo, ajeitada a preço fácil, avisada de que teria de pagar por duas pessoas. Bufou. Quem então riu fui eu. Estupendo o trabalho fotográfico! Minha mulher saiu parecida comigo, eu com o guia, e o guia com o deputado Sabino Barrozo.”

O que vai vendo vai associando à história antiga, arquitetura, mitologia, literatura, teatro e escultura, que são as fontes da museologia europeia. Em certo ponto, me identifiquei com o genial Martim quando fala de um certo Barcochebas que teria comandado uma revolta na Palestina, para completar com um parêntese de minha involuntária lavra: “Que nome enfarruscado!“

Sobre um quadro: “.... sacratíssima tela da qual um corpo se escafede esquecendo um pé à beira da moldura”.

Devo confessar (eu o escrevinhador desta resenha) que em 1976, quando de minha viagem a Napolis, encerrei minha estadia de 3 dias com a mesma conclusão que Martin Francisco em 1918: “[gostaria de] encerrar uma nota de viagem com este conselho à humanidade em geral e aos brasileiros em particular: quem não tiver de ir a Nápoles não vá; quem tiver de ir também não vá.”

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Ao jantar com um casal de ingleses, de repente sente uma cutucada por baixo da mesa. Se pergunta se era botina apertada ou unha encravada da madame em frente, para concluir: “A Europa é um perigo para os sexagenários.”

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Como se pode notar, o estilo é ecumênico. Já em Roma:
“A pedido da chuva e do recebimento das malas, adio para melhor ocasião as exclamações e a ternura com que pretendia chegar à Cidade Eterna e ver o Tibre.”

E no jantar à casaca no hotel, ao observar a quantidade de mulheres de nacionalidade inglesa de decotes desmedidamente arrojados e caras feias, conclui: “Suspeito que seu governo as exporta para diminuir a população dos outros países.”

E na hora de pagar a conta, chama o gerente de “rapinocrata”.

Observando o obelisco egípcio de granito vermelho junto a Igreja de SJ Latrônico com mais de 40 metros, tece algumas considerações sobre a origem egípcia do tribunal do júri, e arrisca uma variante do direito processual; “A mentirosa epígrafe ''Alegações Finais'', ainda hoje conservada em autos que os juízes, recebendo ordenado por inteiro, guardam anos e anos na gaveta quando os litigantes não são ricos, é também um legado que o velho Egito nos entregou.”

Falando do progresso do mundo pelas figuras de seus expoentes e pelo progresso material, conclui:

“No Brasil, irmanados o teologismo e a caserna, fenômeno sequente ao termo da guerra do Paraguai e a prisão dos bispos, foram de tal arte solapadas as instituições liberais que, após três quinquênios, teve a nação de sofrer o mais incontestável retrocesso. Tiraram-lhe cerca de seiscentos mil contos para engordar frades estrangeiros. Septuplicaram as responsabilidades do país. Aboliram o sufrágio eleitoral e a prestação de contas.

Eternizaram a moeda fiduciária. Alugaram a liberdade de imprensa. Em compensação arranjaram um cardeal. Ora, muito obrigado!
Basta de divagações. Boa Noite, Martim.”

Sobre o racionalismo de Bacon, explica por que não é um católico apostólico romano de tempo integral: “teria eu tempo de sobra para frequentar o truste messiânico explorador do medo do inferno?”

À moda cavalheiresca dos costumes polidos e gentis, comenta um simples acontecimento no “suntuoso Hotel Excelsior chibante de bilhetes de rifa, bispo do Maranhão, marquesas e duquesas bonitas, tendo uma destas me prometido aceitar o conselho, que lhe dei, de nunca mudar de idade e de fisionomia.”

Depois de ver dezenas de quadros, estátuas, miniaturas, conclui que não há santo alegre. Se os japoneses tinham sua Okamé, os gregos seu Dioniso e os romanos seu Baco, no cristianismo ninguém ri. E depois de repassar verdades ridentes conclui: “Esquisito! No Brasil, se o bem é triste, o mal é alegre.” E de tanto divagar sobre a alegria do demônio encerra com: “Penso que isso está errado. Preferiria diabos tristes e deuses alegres.”

Na visita ao Zoológico de Roma, depois de enumerar todas as feras e animais que nunca tinha visto de perto, chama-os de “meus irmãos em Darwin”.

Quanto ao templo de Saturno, no Fórum romano, sua observação não poderia ser mais perspicaz: “Coitado! Começou há vinte e quatro séculos como erário público a sua respeitável carreira histórica, e acaba despecuniado como qualquer fim de mês.”

Na visita do palácio de Adriano, desabafa depois de comentar a triste depredação de bárbaros a cruzados:

“A lei dos três estados... Ora! Quatro têm sido eles no Brasil: há também, a datar de 1889, o estado de sítio. E este tanto sitiou e restringiu o coração nacional, que durante dois anos de revolta, prisões, fuzilamentos, os positivistas brasileiros não pediram pela liberdade e pela vida de quem quer que fosse. Não gosta de mártires a Religião da Humanidade; prefere empregos públicos.”

De um filho de fazendeiro de café, que soube estar em itinerância (adjetivo para quem gasta muito ) pela Europa, comentou: “sendo inúteis quaisquer geadas para resfriamento do seu entusiasmo pelo desperdício.”

E falando das mulheres paulistas da nobreza cafeicultora, não amolece:
“Em S. Paulo, desde a extinta landocracia do açúcar e engrossadamente na do café, formava-se e hoje mais se forma, nos institutos femininos de ensino, pelo luxo e pelas preferências, uma espécie de aristocracia colegial. Viciada e iludida a índole das meninas, deixam elas os bancos escolares levando a preguiça como norma e a comodidade como sistema. Não era estranhável, no tempo da escravidão, ouvir de manhã o grito da filha do fazendeiro:

“Ó Maria, venha lavar minha cara!” E hoje, espelho, vestidura e respecivos preparos, certo tomam às minhas jovens patrícias uma sexta parte da vida. Penosa verdade, mas verdade: o meio paulista mais tem as desvantagens que as vantagens da civilização.”

Se trata de uma radiografia de nossas mulheres filhas das famílias abastadas, seguidoras da tradição portuguesa da ociosidade obrigatória como mandamento social da classe superior. Ao sair de Roma, pergunta-se o que mudou com o que viu, e responde que só solidificou seu ceticismo juvenil, para produzir uma tirada filosófica:

“O homem é um caso de encadeamento de forças mecânicas submetidas às leis que regem a matéria. Donde veio? Do passado que não tem princípio. Onde está? No presente que não tem duração. Para onde vai? Para o futuro que não tem fim.”

Descreve as pinturas e esculturas da visita a Galerie dell Uffizzi e o Palazo Pitti, e ao rumar para Fiezole resume sua chegada: “Ninguém vá a Fiezole sem grande sortimento de adjetivos laudatícios".

Em Fiezole:
“Num hotel onde pedi dois cálices de licor, esperei vinte minutos para ser atendido por um velho francês criado já pervertido pela localidade; veio afinal; demorou quase outros vinte minutos para cobrar o pagamento que lhe fiz em moeda inglesa. Custei a reconhecê-lo quando me trouxe o troco. Tinha envelhecido tanto!”

Na Igreja da Santa Croce, diz detestar os templos funerários e se surpreendeu com a presença na mesma necrópole de Galileu e do cardeal Belarmino. E depois de comentar as descobertas de Galileu e as disparidades das luzes contra as perseguições da obscuridade, observa: “O paganismo, só por motivos ocasionais, uma ou outra vez processou delitos de opinião, e raríssimas vezes perturbou o exercício do livre exame. Aos anátemas ao terror do inferno e à exploração mais recente do purgatório foi o ocidente eurasiano devedor dessa vertigem de uniformidade que paralisou durante dez séculos, pelo menos, o desdobramento normal do progresso.”

Ao sair de Florença, depois de passar por um desfile de pedinchentos querendo pagamento por serviços que jamais suspeitara pedir, resolveu safar-se pedindo dinheiro emprestado aos que desconhecia, finalizando com a seguinte asserção: “Na Itália, um bom meio de afugentar larápios é pedir-lhes dinheiro. Na Itália só?”

Abre uma anotação chamada Policialismo, Recordações Amargas (p 109), para confidenciar sua repulsa ao estado, que na verdade desconhecia o que fosse com esse nome, porque sabia bem o que era o governo ou a polícia, mas não a abstração chamada estado. Acho que se esqueceu do fisco, o infatigável arranjador de orçamento para as endividadas administrações públicas. E chegando ao judiciário comenta casos escabrosos de polícia, de conspirações em que foi envolvido em Santos e se safou da prisão e do destino de chefes revolucionários assassinados misteriosamente sem que nunca se soube por quem. (pg. 109). Como tenho anotado as críticas que a inteligência brasileira faz ao Estado, tenho de transcrever:

“Ponho o meu ideal administrativo não na obediência aos regulamentos, porém na bem exercitada autonomia do indivíduo. Governo? O menos possível. Mas isso, objeta-se-me, prejudica os direitos do Estado, a justiça do Estado, a honra do Estado, o Estado em suma. Sim ? Mas quem é o Estado? Onde o viram? É alto ou baixo? Viúvo, cego, loiro, magro? Sei que ele cobra impostos, domina, predomina, apropria-se, desapropria, consome, contrata, distrata, mas nunca o vi, nunca o viram. Conheço a Pátria, a Nação, o Governo; defino-os, discuto-os, explico-os: mas o Estado, não.
Teimam-se que ele existe praticando a Justiça. Pois sim!
Diga-se ao ouvido dum qualquer viandante urbano ou suburbano, nacional ou estrangeiro: a justiça tem negócios com você, e ele involuntariamente estremecerá. É que “Justiça" dentro do sofisma “ Estado”, significa ameaça, sofrimento, pancada. Justiçar é sinônimo de matar. O “Estado”, pelos seus órgãos, pelas suas agências, rege tudo: pratica ato de rei, de rajá; reina. “Você está reinando”, diz a mãe ao filho peralta, não ao filho que praticou uma boa ação. Por onde mais se revela e mantém o “ Estado” ? Pela polícia. Pelo policialismo.”

Narra 3 conspirações que lhe envolveram e como escapou delas, para concluir que a polícia brasileira tem lá suas vantagens com seus apitos de assustar gatunos, mas: “no descobrimento, porém, da verdade; na elucidação analítica do delito, como é imprestável a polícia brasileira!”

Em uma igreja barulhenta de Pádua, fez uma observação curiosa, digna de um literato de primeira classe:

“Acostumei-me no meio brasileiro onde todos falam ao mesmo tempo, a dividir o exercício da faculdade da atenção. E, sem perder de vista aqueles oito milagres, ao lado, nos quais a beleza dos tipos vence o cinzento feio e quase desvalorizador do malogrado Jeronimo de Treviso, nem poupar elogios ao mais que elogiado Samsovino pelo conjunto superior e uniforme do monumento, não larguei dos ouvidos do sacristão por mais que me parecesse desejar ele, livre de mim, descansar à sombra das próprias orelhas.”

Anedótico, não perde a oportunidade para destilar seu espírito hilariante. Ao encontrar um casal de peruanos, que pedindo permissão para fumar um cigarro vasculhou as algibeiras, saiu-se com esta observação:

“— Porque motivo, quando se procura um objeto, só se o encontra no último lugar?
— Porque depois que a gente o encontra não o procura mais, proferi sentenciosamente. ”

Depois de um lauto jantar e dos necessários palitos de pena de pato (!) rolantes pela boca, nota:

“— Na Itália ninguém sabe as voltas que um palito dá! E argumentando por analogia asseverei-lhes, que, na Itália, a maior porção de água limpa se chama Pó.
Ninguém achou graça. A culpa não foi minha.”

Em visita ao Lido, em Veneza, acompanhou com a vista o que eram aquelas pessoas desfilando: “É o Guarujá de Veneza. Mas um Guarujá com trinta hotéis abertos e oito por abrir, com uma empresa balnearia amiga da limpeza e não inimiga da modicidade dos preços. Tudo ali é progressivo, asseado, bonito, inglesas pudibundas, alemãs rubicundas, holandesas iracundas e até portuguesas furibundas não conseguem diminuir a delicia desse arrabalde veneziano.”

Ao sair de Milão em direção a Lausane, fez uma observação válida até hoje: “A italiana é bela, o que constitui uma resistência [à dissolução do país]; o italiano é resistente, o que constitui uma beleza social. Não há na península rivalidades municipais, emulação de zonas, rixas de lugarejos.”

“— Distingo, no largo patio da Estação Férrea [de Lausane em 1915] , três e meia dezenas de carregadores e cocheiros em interessante reunião.

"Determinava a utilidade dum acordo sobre preços e outros motivos de reciproca subordinação dos serviços nessas duas classes operárias. Não lhes ouvi os discursos, mas reparei que cada orador gesticulava por sua vez, e só depois que o outro aquietava os braços. Deduzi ser, ali, cada comparecente advogado de si mesmo, o bom senso advogado de todos, e a tolerância a forma processual do debate.

"Quinze ou vinte minutos depois, sem polícia, sem refladas, sem correrias, cada cocheiro, dissolvido o comício, prosseguiu no seu trabalho, cada carregador voltou ao seu serviço. Que lição de bem viver! Que exemplo de justiça rápida e gratuita! Sem custas; sem advogado — intermediário que fosse dizer ao juiz aquilo que a lei diz que o juiz já sabe; ali no pátio da Estação, quarenta e poucos contribuintes decidiram em minutos pleito que, no Brasil, custaria muitos meses, algumas peitas e muitos contos de réis!

"Não estava o fato a ensinar que mais de harmonia com o valor do tempo, com a nossa época, com a autonomia individual, com a lógica, e cedendo às fórmulas processuais do romanismo lugar a uma justiça territorial pronta e barata; o contribuinte fosse diretamente ao magistrado, lhe propusesse a reclamação e encarregasse o advogado de preparar a prova que, por despacho, edital, portaria ou qualquer outro meio, ao judiciário parecesse necessária ? Inconvenientes? Poucos. E hoje? Tantos! Acessível às paixões como qualquer de nós, poderosíssimo pela inamovibilidade, irresponsável de facto porque superior aos outros poderes, o judiciário, quando explora o mal, não é mau: é o próprio mal. É mal irremediável. Acatadupam-se os exemplos disso.

"Nem o talento indagador de Képler, nem ainda a genialidade de Laplace seriam capazes de aplicar corretivo ao juiz que prolonga os feitos. E que dizer do juiz que tarifa despachos? E quando ele promete o voto para obter promoção? E quando sentencia ser um bilhete de rifa prova superior a uma escritura pública? E quando furta dinheiro de órfãos? E quando insinua e recebe mimos aniversários? E quando remove marcos? E quando imagina divisas? E quando comercia na gerência de empresas subvencionadas? E quando falsifica depoimentos? E quando escamoteia a argumentação das partes?

"Perigos! Perigo permanente contra a índole da civilização no ocidente é o poder judiciário com as atribuições latíssimas que tem, e a impunidade que alardeia. Urge removê-lo para o nada.

"— A opinião pública é o espírito da sociedade. Para que arrostá-la com aposentadorias, condecorações, comissões, notoriedades obstinadamente conferidas a portadores de dois salários? Por que não acertar contra o escândalo? Por que não aprender com aqueles cocheiros e carregadores, ali no pátio da Estação, que o direito não deve ser banca de jogo com baralhos carimbados?

"À custa desses operários, reconheço-o, ganhei o meu dia. Que magnifica lição de bem viver me deram eles!” (Pgs 146-147)

Comentando sobre o jornal A Tribuna de Lausane, faz incursão comparativa no jornalismo brasileiro:

“O público prepara e educa o jornalista muito mais do que o jornalista educa e prepara o público. Cada fase política engendra o seu publicista; cada época o seu jornalismo. ” E desfila os nomes que considera os grandes nomes do jornalismo de um século atrás.

Em Genebra, fala dos grandes filhos desta cidade que reúne a “competência da mulher alemã com a amenidade da francesa”. E não sei porque espicaça nossa burocracia:

"Vá um russo a ‘Cantareira ou a 'Light' e peça informação: vagarosamente o empregado comunica o fato ao amanuense, este ao subdiretor, este ao diretor que determina requeira o russo por escrito; vai o requerimento a informar à respectiva seção; a informação é impugnada pela contadoria porque há dúvidas no selo aposto pela parte; grudam-se em textos e réplicas legais o contencioso e o gracioso: irrompe afinal o despacho, um simples despacho:
“Certifique-se, não havendo inconveniente. Na véspera desse despacho o russo enlouquecera.“

Depois de criticar as estátuas das grandes figuras de Genebra, como Rousseau e Calvino (a quem atribui humoristicamente ter cara de espião) se sai com essa:

“Urge organizar no Brasil uma associação de resistência contra bustos, estátuas, placas e hermas com que filhos, netos, genros e sobrinhos de seminulos ameaçam invadir a posteridade. Esses importunos não têm entranhas! Premeditadamente põem em perigo a atenção do porvir. ” E que dizer duns maníacos solenemente chatos, que conseguem ligar nome às ruas? “Em Santos, com o diplomata argentino dr. Julio Fernandes, inteligente e cáustico, fiquei em apuros quando insistiu ele em que eu lhe explicasse a notoriedade de vários arruados. Atrapalhado, atrapalhei-o. Expus-lhe que no Brasil, onde ser coronel é obrigatório desde que se é vereador e ser vereador confere direito em ter nome em esquina como prêmio a futuros serviços, a marcha da legalidade determinou não haver coronel sem rua, nem rua sem coronel. Não me entendeu. Nem eu.”

E a propósito de comparação entre a política daqui e de lá:
“Na Suíça, em regra, o presidente assume o exercício do cargo com apreensões e receios; preocupa-o o futuro. Em S. Paulo, não. Tranquiliza-o o apoio da opinião. Antes mesmo de prestar compromisso já o eleito do povo recebe das câmaras municipais, das corporações legislativas, de todos os diretórios locais, de amigos e até de desconhecidos, espontâneos protestos de aplauso a tudo quanto fizer. E na Suíça? Na Suíça não há exemplo de governo elogiado antes do respectivo exercício. Que vergonha!”

Enfim chega em Paris onde começa o segundo volume de Viajando. Encontra-se com um mundo de brasileiros de consulentes a bons viventes, todos aproveitando as delícias da Lutécia. Quando visita o cemitério histórico de Pére Lachaise, faz uma observação muito peculiar, depois de escrutinar um forno crematório:

“Tenho dúvidas a respeito da cremação. Inegavelmente o processo é mais limpo, mais rápido, e virá a ser mais barato do que a aparatosa e retardada inumação. Terá, porém, o indivíduo que nasceu, e cresceu, que se manteve e progrediu, a custa da natureza e ao amparo das leis do contrato social, direito de privar seus semelhantes de ossos que, sem prejuízo do dono, podem ser facilmente aproveitados para botões, cabos de talher, escovas de dentes e outros misteres da comodidade humana?” Resposta difícil.

Assistindo uma sessão do parlamento francês: “Em França, ao contrário do que sucede no Brasil, o orador só é abraçado e felicitado nos corredores, muito depois de terminado o discurso, e algumas vezes por esse motivo.”

Nos Invalidés ao observar os canhões e peças de batalhas, conclui: “Recuo para dar passagem a um general francês; vai apressado e condecorado. Ganha, informam-me, menos de mil francos por mês; menos que um major do exército brasileiro. É justo, é muito justo. Aqui em França os oficiais militares só têm obrigações militares; no Brasil, porém, têm eles o encargo que patrioticamente contraíram em 1889, de pagar a dívida externa do país. E como essa dívida, crescendo todos os dias, passou de trinta a cento e quinze milhões esterlinos, é lógico que vá também crescendo, sem interrupção, o soldo dos oficiais do exército.”

Assim foi Martim Francisco, um gênio espirituoso e observador arguto de tudo quanto viu e celebrou. Tinha razão Wilson Martins, o Viajando é o melhor livro de viagens que lera. E embora não seja um leitor do gênero, posso dizer, como Martim Francisco e no estilo burlesco dele, que eu também garanto.

Indo a um hospital de Paris fazer exames de saúde:

— “Biexaminaram-me, em horas diferentes, o dr. Landouzy, o dr. Huguier e seu ajudante dr. Hubert. Por cento e sessenta francos descobriram-me uma porção de moléstias. Por duzentos matavam-me!”

Na volta da Europa pelo porto de Gênova, já dentro do vapor, comenta a propósito de desaparecimento de alguns objetos da bagagem:

“Envergonhou-me na Europa a divulgada convicção da venalidade de nossas repartições públicas. Por mais que eu afirmasse ser a nossa latrocracia, quase toda, obra dos funcionários subalternos, tendo unhas aparadas cerca de noventa e três por cento dos ministros republicanos, ninguém acreditava nos meus protestos em prol da relativa honestidade nacional. A deputado francês que me perguntou porque, no Brasil, os ministros saem e os larápios ficam repliquei citando-lhe o caso do Panamá. Enfronhadamente me embuchou treplicando:

—"No Panamá o ministro saiu do parlamento para a cadeia; em vossa terra um réu acaba de sair da cadeia, para Secretário do Estado de S. Paulo."

"Impedido, por oportuno acesso de tosse, de dar ao francês uma resposta enérgica, recorri, para fechar o incidente, à mais prática das qualidades paulistas: a paciência. Silenciei. Calei-me.”

Em Dakar, tentando visitar uma mesquita que estava fechada, observou: “Singular! Cristo, o tribuno do Sermão da Montanha, o letrado das Parábolas, nada escreveu; Mahomet, iletrado, comerciante barato, ditou um livro de cento e quatorze capítulos!” E depois de criticar o islamismo impiedosamente (p 107-8), e ao final as demais religiões, conclui:

“Houvesse a humanidade empregado na terapêutica e na química, na física e na mecânica, as cogitações esbanjadas em invencionices filhas do medo e netas da esperteza sacerdotal, e, não como uma promessa continuamente adiada, mas como uma realidade perene, o homem seria há já muitos séculos, não o lobo do homem, porém o irmão do homem.”

E então um tema que sempre enfatizo. A questão tecnológica:

“Mas porque e para que me matricularam em academia de direito? Pois todas as Ordenações do Reino valem meio aparelho de eletricidade ou dez minutos de alfabeto Morse.”

Passando por Olinda e Recife na volta, não vê o progresso da Europa. Criticando o berço da colonização e a ordem moral do catolicismo, exclama:

“Pobre Brasil!
Doente, doente. Sífilis no norte, morfeia no sul, anemia na carteira, viltança na opinião, abatimento generalizado.”

Sem avisar o leitor, começa a narrativa de outra viagem de volta a Europa, começando pela Espanha. Seu propósito:

“Quero ver, quero entender a Grande Guerra. Hei de estudar a maior carnificina que o cristianismo estabeleceu no ocidente eurasiano. Campo vasto para cogitações! Retive de Aristóteles; a memória aplica-se ao passado, a sensação ao presente, a conjectura ao futuro.”

Pelo visto, esta opinião abre a suspeita do por que o livro foi escanteado. E recordando o descalabro em que se encontra o mundo pós-guerra, rememora o Brasil:

“S. Paulo não conhece legitimidade eleitoral. Não conhece verdade orçamentária. Não conhece prestação de contas. Ali a mentira não deprime. Enriquecer nos cofres públicos é caso habitual. Tramoia praticada é tramoia liquidada. Programa? A irresponsabilidade. Norma? A abolição do escrúpulo. Um exemplo entre mil: acusado de assaltos possessórios de terras devolutas, volumoso deputado federal, trêmulo e comovido, foi à tribuna e produziu como defesa a alegação de que fora republicano dos gloriosos tempos da propaganda” Somente o caráter probo, a honestidade intelectual, a retidão ética permitem a memória dos descalabros passados.

Em direção a Paris, na cidade de Pau, recebe uns jornais do Brasil e não evita o comentário que finaliza o livro que entra para o Índice dos Malditos pela lucidez de análise:

“Desde 23 de Março de 1841, variam no erário nacional as glosas do mesmo mote: arrecadação superior à receita orçada e despesa superior à arrecadação. Resultado: déficit.
Consequências: papel moeda, empréstimos, impostos.

“Quanto tempo durará ainda esse impossível administrativo? Não há males perpétuos: terminam todos pela cura ou pela morte.

“No Brasil persistem duas enfermidades; epidemia e incompetência nos governos e inanição moral no povo.”

Acho que o “impossível administrativo” que ele fala não se curou e nem morreu. O Brasil evolui na esteira da evolução mundial. Mas o sistema que compõe o Estado permanece tal qual sempre foi. Bastar ler nossos gênios esquecidos.


Nacos:
Pernambuco, aliás Paranã-ambuco na etimologia.
Palinuro: piloto, guia.
Automedonte: cocheiro que guia um carro. (Na Ilíada).
Empavesado - armado de pavéses, ornado de bandeiras e flâmulas. (Fig.) Vestido e ornamentado a primor e com trajos de cores brilhantes. Ensoberbecido, orgulhoso.
Somítico – avarento.
Ergotismo - Mania e gosto exagerado pelo uso de silogismos e sofismas em argumentações.
O bom orador de Catão, bonus dicendi peritus.
Zanaga: diz-se da pessoa vesga, torta doa olhos, zarolha
Alfange: escrita correta.
Procurar: Sanches de Frias , Ercília (1908)
Strepitum ventris: segundo o Google é estômago roncando. Pensei que fosse outra coisa.
“Sorriso de quem está contente com sua sorte embora nunca tivesse tirado a grande ...”


Alberto Rangel — No Rolar do Tempo

O livro trata de artigos contendo anotações de quando era cônsul em Paris a propósito da franquia feita pelo governo francês para a divulgação dos documentos brasileiros nos Arquivos do Orsay em Paris.

São deliciosas crônicas históricas embutidas nas opiniões de tantos quanto registraram suas impressões – principalmente – sobre o Rio de Janeiro e a corte imperial.

Livro esquecido, perdido na poeira de sebos, com edição de 1937, quase se desmanchando que, no entanto, revela a vivacidade e erudição do autor, meu conhecido de Inferno Verde e Quando o Brasil Amanhecia. Me sinto honrado em ler um livro que, apresentando as bordas dobradas da impressão in-fólio intactas e sem cortes, tenha sido seu primeiro leitor 83 anos depois de impresso.

Pg 15: Algumas apreciações são lançadas, nesses depoimentos da Correspondência Diplomática e Consular de França, às bandas e modalidades do caráter brasileiro. O juízo, de tão melindroso e importante, merece que por ele comecemos, consignando-o cuidadosamente. Raras se fazem essas alusões em documentos desse gênero; quando boas e sobretudo más, abundam em obras de caráter panfletário, nas discussões internas, verdejam pelas colunas das gazetas ou ponteiam ao correr de raras obras de psicologia social, em que nos analisamos; e também nas relações de viagem, na boca de transeuntes estrangeiros que nos viram a toda pressa e tantas vezes inexatos se mostram e dos quais é um tipo acabado esse Jacques Arogo que, com alguns dias de estada na cidade do Rio de Janeiro, se autorizou a lançar sobre o brasileiro o vilipêndio do arraso: “Ce caractère des Brésiliens étant en quelque sorte de ne pas en avoir” (Esse caráter dos brasileiros é de certa forma não o ter.)

O Plenipotenciário Conde Alexis de St. Priets, a quem se deve a única resposta razoável ao nosso grande enigma: "Que faut-il à ce pays? Un admnistrateur”, exclamava a 15 de agosto de 1834: “Chose étrange! Dans cette nation si venale, personne ne peut passer por ministeriel.” (Coisa estranha! Nesta nação tão venal, ninguém pode se fazer de ministro.)

Já nesses tempos, o engrossamento e o adesismo formavam suas extensas falanges, entupindo a opinião pública do engano de sua insincera conformidade. O entrelaçamento dos interesses de ocasião procurava ajeitar cada brasileiro ao calor solar dos que dominavam, e criavam empregos, inventavam gratificações, entornando nos escolhidos pelo nepotismo ou compadrismo, os amigos do peito, conterrâneos ou camaradas políticos, os recursos de tesouraria. Enfraqueciam-se dessa forma as facções; adquiriam-se novos elementos de apoio ou reforço à maioria governamental....

[…] Não fomos, portanto, constantemente o rebanho vil dos preocupados em cevar-se no cocho do suborno oficial. Sob este ponto de vista moral particular e condicente ao pecúlio das forças morais do país, Pontois, a 13 de outubro de 1836, não dissimulou, entretanto, o mau juízo que de nós fazia. Escarmentou-se ele de nossa falta de patriotismo e de inferioridade de sentimentos, desgraçadamente mesmo naqueles que se podiam considerar a nata do país: “Car le manque complet d'élevation dans les sentiments e les idées, l'absence de dévouement e de Patriostisme forment le trait distinctif de gens de ce Pays, sens excepter les esprits dúne trempe superieure, et president à toutes leurs actions.” (Como a completa falta de elevação de sentimentos e ideias, a ausência de devoção e patriotismo formam a característica distintiva das pessoas deste país, o que significa excluir os espíritos de temperamento superior e dirigente em todas as suas ações.)

Tal é o estilo e acuidade de Alberto Rangel que nos mantém surpresos com a independência de caráter de um ex-engenheiro da turma de Euclydes tornado diplomata depois de escritor, e que foi uma lucidez cristalina rara no Brasil.

Mas nem tudo que se encontra nos Arquivos do Orsay é negativo sobre o Brasil. “St. Priest, em fins de 1833, notava com seu desembaraço de sempre: Les Brésiliens qui manquent d'energie mais no d'esprit … e comme avant tout ils se manquent d'amour propre” (Os brasileiros a quem falta energia, mas não espírito… e, acima de tudo, lhes falta autoestima). Com o que o encorajava em parte St Georges, quando declarava a 18 de Outubro de 1845: “En général, les brésiliens sont doué d'une grande vivacité d'esprit e d'une grande facilité d'elocution. Une certaine eloquence banales est, pour ansi dire, a la portée de tous, et ils ne s'en font pas faute” (Em geral, os brasileiros são dotados de grande vivacidade de espírito e uma grande facilidade de expressão. Uma certa eloquência banal está, por assim dizer, ao alcance de todos, e eles não sentem falta). Dessa feita, os legados não nos maltrataram, emprestando-nos os dons do espírito, da eloquência e do amor próprio.”

Por sua vez, o Conde de Porto Alegre, “em 1854, quando da tribuna do Instituto Histórico e Geográfico atirava ao país este grito de alarme patriótico, em que se confrangia: “o nosso clima social ainda não robustece destas condições morais, porque mesmo aqueles que assim nascem, são modificados, senão deteriorados, por esse mormaço contínuo que faz adormecer todo o entusiasmo, e alista as almas no reino da indiferença”.

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Cette nation chétive s'étourdit ainsi sur sa misére par la pompe de ses illusions. (Essa nação insignificante atordoa sua miséria pela pompa de suas ilusões).

Não podemos nos deprimir por comentários depreciativos. Ao contrário, sou de opinião que eles são divertidos, quando temos consciência de nosso caos institucional. Porém, o ataque de St. Priest em 16/8/1834, Ministro plenipotenciário no RJ nos deixa perplexos : Les Brésilien sobre, agile et intelligent peu à toute force, faire un soldat mediocre, mais jamais un officer” (O brasileiro sóbrio, ágil e inteligente, pouco a pouco, faz um soldado medíocre, mas nunca um oficial). E mais adiante: “Au surplus, les hommes comme les chevaux de ce pays sont incapables de supporter la fatigue” (Além disso, homens e cavalos deste país são incapazes de suportar a fadiga). pg. 30. Não se sabe se estava sendo humorista ou simplesmente estúpido.

Doutra parte, é excêntrico como um flaneur da Rive Droite: “Les Brésiliens ne sont Belliqueux, ni par nature ni par position. Le climat le affaiblis et l'absence d'ennemis à combatre, ne supplée pas par la necessité, à cet inconvénient Phisique” (Os brasileiros não são belicosos, nem por natureza nem por posição. O clima lhes enfraquece, e a ausência de inimigos para combater, não compensa pela necessidade a desvantagem física).

A questão de Cor

O cap. V Rangel dedica à compilação de dados sobre A Questão de Cor: “os liames do Brasil à África mantém-se em dependências rigorosas, etc....” ...”O mulato ou caboclo exprimem, ao mesmo tempo, uma fusão e um esforço ao desenlace do enigma de duas civilizações que se não entendem, trazidas como foram ao drama do domínio e da servidão”. Questão ardente, peculiaríssima do Brasil, o problema do mulato não pode ser abordado sem que ressuscitem das cinzas da escravatura os epigramas dos poetas satíricos:

Tem o retrato na sala,
Do pai que nunca viu,
Mas da preta.... que o pariu,
Não tem retrato nem fala.

E no sertão de Pernambuco a miscigenação assim se exprime:

Todo branco quer ser rico,
Todo mulato pimpão,
Todo negro é feiticeiro,
Todo caboclo é ladrão.

E conclui: “curioso é que o caboclo e o pardo saiam mais ou menos arranhados, mesmo nessa poesia popular que não pode deixar de ser uma colaboração dos representantes dessa mescla motejada e escarmentada e que a si mesma se fulmina no bojo das suas violas....”

Rangel discorre sobre as observações relativas a pureza da raça que se encontra nos Arquivos do Orsay, muito conhecida dos historiadores nas narrativas do século XIX. Para uns, os mulatos são perigosos, para outros presumidos, quando não insolentes, vaidosos e até assassinos, não obstante haver mulatos na corte e até nos ministérios. No entanto, a difamação dos observadores, como Villhena, não cessa: “todas as crias, sejam mulatas ou negras, são criadas com mimo extremoso, motivo porque são todos vadios, insolentes, atrevidos, ingratos, por culpa dos senhores e falta de Governo Político”. O que ele quis dizer com falta de Governo Político é algo que não me aventuro a conjecturar.

A Unha Lusa no Prata

Neste capítulo, fala da repercussão na França ao estabelecimento da colônia do Sacramento a partir das informações de seus diplomatas. A reação espanhola, a defesa contra os invasores do outro lado do Prata e por fim, o abandono por Portugal da colônia, bem mais tarde como parte dos tratados de limites meridionais do Brasil.

Separatismo

No capítulo seguinte fala do Separatismo brasileiro, fornecendo interessantes detalhes sobre uma conspiração para separar as províncias do Norte (Bahia para cima até o Pará) do resto do Brasil. O Homem por trás da cena era nada menos que o visconde de Albuquerque que era oficial reformado do exército e conselheiro de estado e do Imperador. Este conhecimento (de que Albuquerque era um separatista dissimulado dentro da Corte) foi então considerado historicamente uma descoberta inédita dos arquivos do Orsay. Houve reações no Brasil de parentes do visconde (falecido em 1863) tentando negar o fato e silenciar o denunciante por se tratar de segredo de estado. Não conseguiram porque tinha passado mais de 60 anos da morte dele, e mesmo assim, Rangel abre um parágrafo para condenar as interferências na investigação histórica pelos interessados no silêncio de contrarrestar a verdade, embora os documentos mostrassem indiscutivelmente um contrato de divisão do Brasil em 1830 proposta pelo visconde de Albuquerque ao encarregado francês chamado Pontois.

A questão se torna mais interessante porque eu nunca tinha ouvido falar nela, significando que o livro de Rangel [e por consequência os dados de Orsay] ficou fora da documentação historiográfica brasileira.

Rangel não deixa por menos a visão peculiar da questão. “apraze-nos observar aqui, que quem queira manusear a obra de nossos historiadores em geral há de deparar um traço de sua inegável simpatia às insurreições. Essa gente, muito patriota, e ajuizada, quase toda queima incenso nas caçoulas da Separação e da Revolução. Começam por ver na Democracia uma aspiração do país, quando ela não tem sido senão o estopim de manifestações locais, a capa das palavras bonitas sobre ideias irrealizáveis, a que a massa popular na sua maior extensão sempre se conservou estranha”. Pg 93.

E avança em sua sociologia sobre a identidade nacional:
“Motivo de reações equívocas de doutores, nas cidades principais, o liberalismo foi sempre constantemente incompreendido e repugnado pelo povo propriamente dito, do 'pequeno' da cidade ao trabalhador da roça e ao homem do sertão.... Não houve um só movimento verdadeiramente popular no Brasil que trouxesse essa estampilha libertária como expressão real do seu conteúdo. As populações brasileiras levantaram-se de maneira extensa e consciente, no correr da sua história, mas sempre por questões de fanatismo religioso, causas econômicas ou simples questões de campanário”.

E prossegue conclusivo:
“Sendo absolutamente falsa a tese desses mal informados superficiais que, tomando a nuvem por Juno, estão sempre prontos a ver o Brasil congesto de aspirações democráticas, por outro lado há o abandono de todo estudo de impiedosa análise a esses elementos que surgiram ao norte, ao centro e ao sul do país, encarnando esses ideais e turvando a marcha pacífica da nação com seus reclamos de bacharéis sonhadores e soldados perturbadores”.

E vai adicionando comentários sobre nosso viés antidemocrático para concluir: “um pouco mais fundo que se eleve o exame desses ídolos e logo os pés de barro vão aparecendo...”

A Colônia do Sahi

No cap IX fala da experiência da colônia do Saí (Sahi ou Sahy) quase que complementando sua sociologia anterior. Foi um experimento baseado nas ideias do socialismo utópico de Fourier na criação de uma colônia de imigrantes na margem da baía de Babitonga, em frente ao porto de São Francisco do Sul, próximo da atualmente localizada Vila da Gloria.

A colonização se deu em duas fases, separadas por um ano, na qual pouco mais de duzentas pessoas desembarcaram para viver a aspiração de uma sociedade baseada no trabalho colaborativo e de ideais comuns. O modelo de Fourier era chamado de falanstério, onde o trabalho deveria ser atraente e associativo “eivado de puro platonismo. Pedia-se à aritmética a solução da moral. O mundo deveria ser como a repartição das abelhas em células cujo efeito totalizante do espírito seletivo da cooperação concertaria as desigualdades, injustiças e misérias do mundo...”

“O comandante do empreendimento era o médico homeopata Benoit Jules Mure, apoiado por uma sociedade estabelecida em Paris com o fim de recrutar pessoas para a grande experiência socialista.”

A grande propagadora foi Louise Bachelet, um fourierista francesa que entusiasta liderou o projeto para tomar o rumo definitivo da experiência colonial com aspirações diferentes das que se desenvolviam no continente. Carregada de altruísmo em sua causa, escreveu: “Puisse bientôt la théorie pure de Fourier compléter les lacunes que le déparant encore, nulle terre n'est aussi bien preparée pour une transition subite au regime phalansterien, e l'effect de cette conversion inévitable, qui réagira sur toute l'Amerique meridionale ne peut manquer d'élever bientôt cette portion du globe au plus haut dégré de prosperité et de grandeur”. (Possa em breve a pura teoria de Fourier preencher as lacunas que ainda lhe causam obstáculos, nenhum território está tão bem preparado para uma transição repentina para o regime falansteriano, e o efeito dessa inevitável conversão, que reagirá em toda a América do Sul, não pode falhar em elevar em breve essa parte do globo ao mais alto grau de prosperidade e grandeza.)

Era enfim a materialização de um sonho segundo Bachelet “concebido para as terras virgens, onde as sociedades humanas possam se formar a despeito de todos os precedentes e de todos os abusos do velho mundo”.

“Colocada a expedição ao mar, Bachelet desembarcava em 15 de julho de 1842 na praia vizinha à região. Ela beijou a areia da praia e entoou o cântico de sua paruia: “Partons, partons pour la terre promise, / Il faut un noveau monde à des destins nouveaux”. Pg 101.

[Erro de Rangel: Bachelet chegou de Montevidéu, conforme narra em seu depoimento sobre a Colônia do Sahy, do qual ele retirou algumas das citações. Os franceses foram perseguidos pelos argentinos de Rosas e tiveram de sair apressadamente de Montevidéu.]

Entretanto, a colônia já estava formada por um brasileiro naturalizado chamado Francisco Antonio Picot que era redator do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, e grande incentivador do projeto. Ele já havia criado a casa Picot, espécie de hospedaria para receber os recém-chegados no Sahi. Já haviam demarcado o local para a construção do grande falanstério, “para o qual se pediam seis milhões de francos. Seria a coroação do Idealismo. Nas suas abóbadas e agulhas reboariam os hinos da vitória sobre a desgraça, a anarquia e a incredulidade dos homens, a qual Bachelet dava o tom apaixonado: 'Place aux âmes ardentes et passionnées! Place aux infatigables athlètes! Place aux heroiques hordiers!' (Abram caminho para almas ardentes e apaixonadas! Abram caminho para os atletas incansáveis! Abram caminho para as hordas heroicas!)”.

Pg 103: “O jornal denominado “Phalange de Londres” e publicado nessa cidade, levava aos colonos sahienses as notícias de além Atlântico, sustentava a confiança dos fervorosos catecúmenos do trabalho glorioso e amável, da paz reprodutriz. E Louise Bachelet no cúmulo de seu entusiasmo bradava aos povos: 'e si quelqu' ouragan imprevu venait brise sa tige delicate, oh! alors, je ne plus rien à demander au monde, que quelques pieds de terre pour reposer aux lieux ou araient peri toutes mes esperances'. (e se algum furacão imprevisto viesse quebrar sua haste delicada, oh! então, não tenho mais nada a pedir ao mundo, do que alguns pés de terra para descansar em lugares onde teriam perecido todas as minhas esperanças.)”

E continua Rangel: “não se sabe se a abençoada terra do Sahi cobriu as cinzas da pobre afrontada por seus almejos desfeitos. Seria mesmo pouco provável. Com a dispersão da tribo sagrada, que iria fazer essa alma penada, concertando as madeixas, entre as tiriricas e carrapatos do Sahi, devolvida à simplicidade do nosso caipira, para o qual o Fourierismo nada deveria exprimir, senão a mania do estrangeiro dar um nome difícil à coisa tão fácil quanto fosse fincar quatro paus na terra, cobri-los de pindobas, meter em volta uns pedaços de maniva, e enquanto esperasse a chuva ferver a dança da catira, na zoeira das violas e sanfonas”.

(Maledicência de Rangel. O colono alemão, polaco ou italiano raramente decaiu à condição do Jeca, apesar das dificuldades e traições com falsas promessas da máquina corrupta do estado. Estudiosos da imigração citam poucos casos do balanço entre a cultura do imigrante e a do colono nativo. A assimilação dos costumes nativos era parte do contingente populacional da localidade. Se o contingente imigratório era menor do que o local, os costumes decaíam com a assimilação. Se fosse menor, os costumes europeus preponderavam. Ver "Um Brasil Diferente" de Wilson Martins.)

O ânimo inicial não perdurou. As desavenças dividiram os moradores, alguns retornaram para a Europa, outros buscaram novos caminhos onde pudessem prosperar com seu próprio empreendimento. O experimento de trabalho coletivo, animado por cânticos, não foi capaz de manter agregado e produtivo o projeto. O fracasso do falanstério antecipou o que seria o fracasso do socialismo no século seguinte. Nenhum estabelecimento industrial tão comum à época, como olarias, funilarias e madeireiras prosperou, porque houve desavenças e migração para outras colônias mais prósperas. Uma coisa eram as expectativas, outra a realidade áspera, acidentada, hostil e fatigante das novas terras. Um ano depois só restava um pequeno grupo do primeiro comboio de povoadores. Parte considerável tinha se mudado para a colônia do Palmital, hoje Vila da Glória, situada em frente de S Fco. do Sul, na Baía da Babitonga, onde não vigorava o regime do falanstério, porém o da propriedade privada.

Entretanto, Bachelet tinha elaborado o programa para a criação de indústrias na fase de organização, solicitando através de cartas, que se providenciasse um empréstimo aos capitalistas europeus, conforme narra em seu opúsculo.

O Dr. Mure não se conformava. Organizou nova leva de colonos, “de boa escolha, segundo exigia o Império”. De Dunquerque partiram nova leva de 117 fourieristas para a aventura falanstérica em Santa Catarina. Novo desacertos foram corroendo a organização social. A atração pelo Palmital dividia os novos imigrantes, “quebrando a fé dos idealistas e a solidariedade dos trabalhadores”. Muitos reembarcaram. Outros ficaram indecisos na espera de novas oportunidades. Ao fim, a colônia do Sahy ficou reduzida a uma insignificância. E Rangel arremata: “o horroroso modelo do novo conceito de vida sorridente e solidária era o burgo desbaratado, com o espectro da necessidade tomando-lhes as saídas, fuzilando-lhes a barriga vazia”.

Sete ou oito anos depois chegam os primeiros imigrantes para a colonização de Joinville, criada com outra inspiração, e que serviu de atração para alguns remanescentes do Sahi. E conclui Rangel: “a colônia do Sahi foi a lição esquecida e que convém rememorar, na hora do turvo presente (Rangel escreveu nos anos 30) desejo da aventura sob o signo da mística moscovita, a qual leva os ovos dos esturjões do Volga a misturarem-se ao guizadinho e feijão preto de alguns irrefletidos e crédulos intelectuais brasileiros mais ou menos falansterianos....”

Em todo o caso, a Colônia do Sahy merece um livro, e Louise Bachelet uma biografia.


Na segunda parte do livro, Rangel passa para os relatos das personalidades do Império na opinião da ferina diplomacia francesa: Dom Pedro I, José Bonifácio, Bernardo de Vasconcellos, Aguiar e Barca, Evaristo da Veiga, Diogo Feijó, D. Romualdo de Seixas, Pimenta Bueno, e outros, incluindo D. Pedro I e II.

Quanto a Manoel Pinto da Fonseca, o principal capitalista do tráfico de escravos dos anos 830, o arquivo guarda uma citação dele ao cônsul geral da Holanda, M. Wylep, citando as palavras do cônsul sobre o nosso rei do tráfico: “Eh certes oui je continue la traite: non par besoin d'argent; j'en ai aujourd'hui plus que je n'en veux; mais para amour propre et por me moquer des grandes Puissances, de leurs conventions e leur croisières” (Sim, sim, continuo negociando: não por dinheiro; hoje tenho mais do que quero; mas por amor próprio e por zombar das grandes Potências, de suas convenções e cruzeiros.)

Surpreende que a chancelaria francesa tenha dito que Pereira da Silva, historiador e apelidado de Plutarco brasileiro, tenha sido considerado um defensor do tráfico e antagonista dos ingleses.

No capt XII, Anedotas e Aspectos, conta curiosidades da mala diplomática francesa referente a episódios da vida na corte.

A Falta D'Água

Interessante A Falta D'água em que conta como era servida a água do RJ por duas fontes, o aqueduto Carioca, do tempo da colônia, e o de São Cristóvãon'amène plus que peu d'eau par suite du déboisement des montagnes de la Tijuca, ou il prend sa source, et il sera bientôt à sec, si on ne porte prompetement reme aux nombreur abatis de bois dont se fait le charon, e qui lasseront avant peu le Palais de l'Empereur environné de terrains steriles e malsains". (Traz pouca água como resultado do desmatamento das montanhas da Tijuca, de onde se origina, e logo estará seco, se não remediarmos rapidamente o abundante corte de madeira da qual o carvão é produzido; e que em breve deixará o Palácio do Imperador cercado por terras estéreis e insalubres.)

Cem anos depois Rangel observa que não se resolveu ainda a questão : “sucedem-se as administrações, os governos legítimos e ilegítimos, uns depois dos outros, alardeiam os seus programas construtivos e reformativos e pela época da estiagem falta água à capital do Brasil.” [E mais cem anos vivemos o episódio da contaminação das águas da CEDAE.]

“É o nosso vagar clássico, comprometendo as medidas de providência mais urgente. Pois se nas mais simples cousas arrastamo-nos nas decisões, por um gosto esquisito de tudo deixar para o dia seguinte.... Da proposta do Dr. Castro Lopes para levar o telégrafo de Niterói a Campos, a realização deste melhoramento levou 20 anos! Executou-se em 1850 a lei de 1801 que mandou enterrar [os mortos] fora das igrejas! E assim por diante. Imitamos, não prevemos; improvisamos, não continuamos; decretamos, não realizamos....”

Sobre os costumes lascivos da população carioca, Rangel desbasta o verbo na altura do seu estilo barroco genial: “os calógios ou zungus, como se denominavam os lugares de encontro e alcovitice, que hoje se tratam, num mistifório de enxacocos e galicistas, de 'casas de rendez-vous', multiplicavam-se. Ainda em 1888, e mais para diante, os préstitos carnavalescos, diademados de marafonas e organizados por bagacheiros, e a exposição do meretrício nas varandas e janelas de prédios e hotéis prostibulares, não pareciam escandalizar pessoa alguma. O próprio Chefe de Polícia, que intentava regulamentar, correndo um véu à chaga de supuração, sempre encontrou óbices às medidas coercitivas, projetadas nesse sentido.”

E mais adiante: “A instituição do namoro, herdeiro da escudeirice do Reino, prosperava, invadindo até os santuários, com o protesto de vigários e pregadores. Era, assim desenvolvida e descarada, filha de preconceitos criados principalmente nas tradições da clausura mourisca peninsular e do costume que ficou, filtrado do rigor das Ordenações, das grades de reclusão, no septo das gelosias ou 'urupemas' e dos biocos e mantéus em que se embuçavam as nossas mulheres. A Roda dos Enjeitados, com sua relativa facilidade de acolhimento e absorção, instalava-se, funcionando como o centro popular de reparação na qual dormitava a consciência pública, a assistência à desgraça feminina que o amor desonesto e vagabundo ia traçando aos seus riscos, fantasias e responsabilidades dolorosas...”

Quem escreve hoje em dia com esse apuro de linguagem, com essa narrativa carregada de lantejoulas precisas, brilho invulgar no sestro sinistro em que se debate a República? Em cem anos perdemos o erudito da língua nas estribeiras triunfantes da mensagem de texto truncada das redes sociais.

Nacos:
Vurmo – pus dos ferimentos supurados.


Sêneca — Sobre a Brevidade da Vida

“Por que nos queixamos da Natureza? Ela mostrou-se benevolente: a vida, se souberes utilizá-la, é longa. Mas uma avareza insaciável apossa-se de um e de outro, uma laboriosa dedicação à atividades inúteis, um embriaga-se de vinho, outro entorpece-se na inatividade; a este, uma ambição sempre dependente das opiniões alheias o esgota, um incontido desejo de comerciar leva aquele a percorrer todas as terras e todos os mares, na esperança de lucro; a paixão pelos assuntos militares atormenta alguns, sempre preocupados com perigos alheios ou inquietos com seus próprios; há os que, por uma servidão voluntária, se desgastam numa ingrata solicitude a seus superiores; a busca da beleza de um outro ou o cuidado com sua própria ocupa a muitos; a maioria, que não persegue nenhum objetivo fixo, é atirada a novos desígnios por uma vaga e inconstante leviandade, desgostando-se com isso; alguns não definiram para onde dirigir sua vida, e o destino surpreende-os esgotados e bocejantes, de tal forma que não duvido ser verdadeiro o que disse, à maneira de oráculo, o maior dos poetas: “Pequena é a parte da vida que vivemos.” Pois todo o restante não é vida, mas tempo. Os vícios atacam-nos, e rodeiam-nos de todos os lados e não permitem que nos reergamos, nem que os olhos se voltem para discernir a verdade, mantendo-os submersos, pregados às paixões. Nunca é permitido às suas vítimas voltar a si: se por acaso acontecer de encontrarem alguma trégua, ainda assim, tal como no fundo do mar, no qual, mesmo após a tempestade, ainda há agitação, eles ainda assim são o joguete das paixões, e nenhum repouso lhes é concedido. Pensas que falo daqueles cujos vícios são declarados? Vê aqueles cuja fortuna faz acorrer a multidão: são sufocados pelos seus bens. A quantos as riquezas não são um peso!

“Quantos não verteram seu sangue por causa de sua eloquência e da presteza diária com que exibiam seus talentos! Quantos não estão pálidos por causa de seus contínuos prazeres! A quantos a vasta multidão de clientes não dá nenhuma liberdade! Passa os olhos por todos, desde os mais pequenos até os mais poderosos: este advoga, aquele assiste, um é acusado, outro defende, e um outro ainda julga – ninguém reivindica nada para si, todos consomem mutuamente suas vidas. Pergunta por aqueles cujos nomes se aprendem de cor e verás que eles são identificados pelas características seguintes: este é servidor daquele, que o é de um outro – ninguém pertence a si próprio. E, portanto, é o cúmulo da insensatez, a indignação de alguns: queixam-se do desdém de seus superiores, porque estes não tiveram tempo de ir ter com eles quando o desejavam. Quem ousará queixar-se da soberba de um outro, quando ele mesmo não tem um momento livre para si próprio? E aquele, contudo, apesar de seu aspecto insolente, olhou-te uma vez com consideração, sem saber quem eras, prestou atenção às tuas palavras e mesmo recebeu-te junto de si; tu não te dignaste a considerar nem a ti mesmo. Portanto não há razão para pedires contas de teus favores a quem quer que seja, uma vez que, quando os fizeste, não desejavas estar com um outro, mas não podias estar contigo.

"Portanto, quando vires frequentemente uma toga pretensiosa ou um nome célebre no fórum, não o invejes: essas coisas são adquiridas ao custo da vida. Para ligar seu nome a um único ano, consumirão todos os seus anos. A uns, a vida abandonou logo nas primeiras etapas, antes que tivessem atingido as alturas ambicionadas; a outros, após terem galgado o cume das honras através de mil desonestidades, sobrevém o triste pensamento: “ter trabalhado tanto por uma inscrição num túmulo!” Enquanto estavam dispostos para novas esperanças como na mocidade, a extrema velhice de alguns, já incapaz, frustrou-lhes os grandes e insaciáveis esforços. Vergonha daquele que, já de idade avançada e querendo obter aplausos de um público ignorante, num processo de litigantes desconhecidos, perde seu fôlego; desgraçado o que, esgotado mais por causa de sua vida do que por causa de seu trabalho, sucumbe em meio aos seus próprios deveres; desgraçado o que morre recebendo suas contas sob o riso do herdeiro longamente deserdado”.

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“Vemos que chegaste ao fim da vida, contas já cem ou mais anos. Vamos! Faz o cômputo de tua existência. Calcula quanto deste tempo credor, amante, superior ou cliente, te subtraiu e quanto ainda as querelas conjugais, as reprimendas aos escravos, as atarefadas perambulações pela cidade; acrescenta as doenças que nós próprios nos causamos e também todo o tempo perdido: verás que tens menos anos de vida do que contas. Faz um esforço de memória: quando tiveste uma resolução seguida? Quão poucas vezes um dia qualquer decorreu como planejaras! Quando empregaste teu tempo contigo mesmo?”

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"Velhos decrépitos mendigam em suas orações um acréscimo de uns poucos anos; procuram parecer menos idosos e lisonjeiam-se com mentiras e encontram tanto prazer em enganar a si próprios, que é como se enganassem junto o destino. Mas, quando uma enfermidade qualquer adverte-os de que são mortais, morrem tomados de pavor, não como se deixassem a vida, mas como se ela lhes fosse arrancada. Ficam gritando que foram tolos em não viver e que, se por acaso escaparem da doença, haverão de viver no ócio; então, tomam consciência de quão inútil foi adquirir o que não desfrutaram, e de como todos os seus esforços resultaram em vão.

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“Deve-se aprender a viver por toda a vida, e, por mais que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer.”

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“E a velha, já cansada de enterrar herdeiros? E aquele que finge ser doente para excitar a cobiça dos caçadores de testamentos? E aquele amigo poderoso, que te mantém, não em sua amizade, mas em seu cortejo? Faz o cômputo dos dias de tua vida: verás que restaram muito poucos dias para ti mesmo. Tendo aquele obtido os cargos com que tanto sonhava, deseja abandoná-los e repete incessantemente: “quando este ano passará?” Outro proporciona espetáculos públicos, que tanto desejou que lhe fossem cabidos por sorte, e agora diz: “quando me livrarei deles?” Disputa-se tanto para ouvir aquele advogado, que ele enche de uma grande multidão todo o fórum, até para além de onde pode ser ouvido. “Quando” – diz ele – “me livrarei disto?” Cada um faz precipitar sua vida e padece da ânsia do futuro e de tédio do presente. Mas o que emprega todo o tempo consigo próprio, que ordena cada dia como se fosse uma vida, nem deseja o amanhã, nem o teme.”

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"Aquele que ambiciosamente muitas coisas cobiçou, orgulhosamente desprezou, insolentemente venceu, traiçoeiramente enganou, desonestamente roubou e prodigamente dissipou seus bens, necessariamente terá que temer suas próprias recordações."

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“Mas para aquele cuja vida esteve livre de preocupações, por que não haveria ela de ser longa? Dela nada foi transferido a um outro, nada foi atirado a um e outro lado, nada foi dado à Fortuna, nada desperdiçado por negligência, nada foi esbanjado com prodigalidade, nada ficou sem ser empregado: toda ela, por assim dizer, teve proveito. E, deste modo, por mais curta que seja, ela é mais que suficiente; e portanto, quando lhe vier o último dia, o sábio não hesitará em caminhar para a morte com passo firme.”

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E eis que esta frívola paixão de aprender inutilidades apossou-se também dos romanos.

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“O mais insolente dos reis da Pérsia, ao ver seus exércitos espalhados por vastos espaços de terra, de modo que nem podia abarcar seu número mas apenas a extensão, desfez-se em lágrimas porque, dizia, em cem anos nenhum dentre tão grande número de jovens haveria de estar vivo. Mas ele próprio, que chorava, estava prestes a apressá-los para aquele destino, fazendo perecer uns no mar, outros em terra, uns no combate, outros na retirada, e dentro de pouco tempo haveria de exterminar aqueles por quem temia o centésimo ano.


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