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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Fragmentos 21

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Afrânio do Amaral — Serpentes em Crise

Ver conteúdo editado no livro A Insondável Matéria do Esquecimento.

Livro importantíssimo para se conhecer o serviço público brasileiro e sua corrupção miúda nos anos 30. Afrânio do Amaral foi um cientista que se destacou pelo trabalho de ofidiologia nos EUA e, com a saída de Vital Brasil, foi convidado para assumir a pasta depois de o governo estadual, através do secretário de saúde, tomar conhecimento de diversos descalabros que estavam ocorrendo no Instituto Butantan. Afrânio aceita o convite, encerrando sua carreira internacional e volta ao Brasil. Os desacertos com a cultura brasileira do funcionalismo tornam o livro um relicário de anotações sobre nosso modelo de estado.

Pg 76 – Estive na Europa no 2º semestre de 1935, e durante minha ausência atrasaram-se os trabalhos de instalação do Laboratório de Química porque o material trazido pelo cientista enviado ficou abandonado no Porto de Santos, cuja responsabilidade de liberação tinha sido acordada com o dr. José Arantes que não obstante criticava o depoente fazendo “imprecação contra mim, acusando-me de altas que em grande parte lhe cabia”.

Pg 39 – AA oferece um resumo da escrita de José B. Arantes e de Waldemar Beckolt que são provas cabais como a péssima redação tem relação com o caráter.
Exemplo de corrupção e cumplicidades – Roubo na Caixa Beneficente dos empregados do estabelecimento cometido pelo menor diarista Antonio Julio, que foi promovido logo depois da confissão, para que o dito pudesse pagar o desfalque com a majoração dos vencimentos. Por aí já vemos como era o Brasil no despertar dos anos 30.

O presidente da caixa lesada, era nada menos que Alcides Prado, seu detrator. Os desvios foram praticados a partir de 1933, a princípio em pequenos montes, mas em importâncias mensais mais significativas a partir de 1934. A caixa funcionava como cooperativa e possuía um armazém para fornecer produtos aos funcionários, utilizando os lucros como capitalização securitária.

Feita a auditoria, foi constatada a existência de vales retirados falsificados, e o funcionário confessou o crime e o caso foi entregue à polícia. O dinheiro desviado foi empregado pelo indivíduo em esbanjamentos diversos, na compra de uma motociclete, em empréstimos a terceiros.

Outra acusação contra AA foi a de ter desviado 6 ampolas de soro antiofídico da coleção em que estava encarregado (pg 104). AA responde que os supostos desvios eram simplesmente doação feita por ele ao Museu Paulista. Os tubos era presente que o Dr. Vital Brasil havia lhe dado. E as peles de serpente, presente concedido aos policiais que atenderam o chamado no instituto no valor de 6 mil réis.

AA faz um parênteses para observar que enquanto o Brasil exportava uma tonelada de minério de ferro por 6 mil réis, importava 530 mil contos de reis (1935) em produtos siderúrgicos manufaturados.

“E dizer que o Brasil, em lugar de ter empobrecido com a exportação daquele pesado ouro, poderia ter se enriquecido com a exportação do precioso material, se já houvesse despertado de sua longa letargia, sob o impulso de verdadeiros estadistas” pg 108. O próprio AA afirma que nunca exigiu gratificação por tempo integral, apesar de trabalhar 10 a 12 h diárias.

Acumulou ademais o cargo de assistente-chefe da sessão de ofiologia e zoologia médica do Butantan sem receber qualquer gratificação complementar.

“Dessa dedicação sem limites à coisa pública eu já teria motivos para ter-me arrependido, se ainda hoje não repugnasse ao meu espírito ganhar, como fazem muitos, para não trabalhar, ocupar o cargo só pelos direitos e proventos dele decorrentes, esquecido dos deveres e dificuldades a ele ligados” pg 109

Pois já o mostrou Bacon, “os homens em posições proeminentes são triplamente escravos: escravos da nação, escravos do público e escravos do trabalho: por isso não têm liberdade de dispor, nem de suas pessoas, nem de seus atos, nem de seu tempo”.

“O Instituto instalou no prédio em que o museu ocupava uma parte, um pequeno hospital regional como centro de estudos aplicados à patologia humana” pg 113.

Com uma mente organizada no treinamento que a atividade científica lhe conferia, AA organiza cada acusação em um item, reúne os itens de mesmo gênero, posto que muitas eram repetidas, e contesta numericamente uma a uma em documento distribuído ao secretário de depois nos autos do processo.


OS RAPAPÉS

Frase de Rui Barbosa na pg 159: “Enquanto Deus nos dê um resto de alento, não há que desesperar a sorte do bem. A injustiça pode irritar-se, porque é precária. A verdade não se impacienta: porque é eterna. Quando praticamos uma ação boa, não sabendo se para hoje, ou para quando, o caso é que seus frutos podem ser tardios, mas são certos. Uns plantam a semente da couve para o prato de amanhã, outros a semente do carvalho para o abrigo do futuro. Aqueles cavam para si mesmos. Estes lavram para seu país, para a felicidade de seus descendentes, para o benefício do gênero humano”.

Em 1924 a situação do instituto era: “cada qual fazia o que queria e entendia, sem ligar importância ao princípio de autoridade. Cada seção do instituto funcionava sem a necessária conexão, deliberando cada chefe de serviço como se fosse independente da autoridade central. Os assistentes davam ordens diretas aos escriturários, ao administrador, ao fotógrafo, ao desenhista, ao chefe de cocheiras e ao mestre de culturas, sem audiência do diretor, causando tal proceder a mais acentuada balbúrdia e desordem” pg 163.

Nas pgs 167-169 narra como foram os convites e as atividades que desenvolvia nos EUA até sua decisão e condições de acertar o cargo no Butantan.

Qual o estado do Instituto quando assumiu?

Um pavilhão ocupado como “república” de funcionários solteiros. A própria garagem havia sido transformada em casas de residências de empregados subalternos.

A antiga casa da fazenda, que fora ocupada como residência dos diretores, achava-se promiscuamente instaladas 4 famílias de empregados.

No período inicial de tomada de posse e antes da consecução do inventário, observou alarmado a facilidade com que desapareciam materiais como álcool, fósforos, querosenes, algodão, seringas e agulhas, sapólios, sabões, drogas, etc.

Esta desordem ocasionara um deficit de quase mil contos de réis no exercício de 1926. Para colocar em prática as reformas de caráter ético, passou a visitar inesperadamente as instalações, fiscalizando a presença de funcionários e anotando os faltosos, mudando a sistemática de uso do carro oficial usado pelos assistentes, para um ônibus que conduzisse os funcionários até o Largo de Pinheiros. Evidentemente que os “lesados” não gostaram das reformas, especialmente superiores e subalternos que consumiam gratuitamente leite e legumes produzidos no Instituto.

Quando as medidas restritivas foram postas em prática, coibindo pequenos privilégios e prevaricações, evidentemente que a oposição ao novo diretor haveria de transformar em fenômeno coletivo.

Para não deixar dúvidas, passou a utilizar como carro oficial seu próprio cadilac e pagar a gasolina do próprio bolso.

Estabeleceu uma tabela de preços de legumes e leite para os funcionários residentes que tinham dificuldade em obter externamente. Tendo realizado uma viagem a Piracicaba com o carro de um de seus diretores por ter seu carro na oficina, e dado carona na volta a 2 parentes seus, foi acusado de transportar familiares. Pg 177

A sordidez dos acusadores consistia em atribuir o acervo animal do Instituto como propriedade de seu diretor. Assim, foi acusado de manter equinos de puro sangue, para fins comerciais e de esporte, à custa do Instituto, tratados por empregados seus subalternos e fazendo-os pagar exposições oficiais em SPaulo, tendo obtido vários prêmios do Estado em seu nome individual. Pg 200

Isto porque tinha 2 cavalos comprados, com seu dinheiro para uso nas inspeções às propriedades do Instituto. E sendo de puro sangue e participado de uma exposição na Água Branca, com o objetivo de vendê-los, foi acometido das acusações.

Depois de ter vencido na justiça e a sentença ter sido publicada, 2 deputados “que costumavam fazer da difamação o baluarte de suas atividades demagógicas”, reeditaram as mesmas alegações contra AA.

Novamente volta à luta AA, replicando com farta documentação todos os argumentos solertes lançados contra si.

Pg 213 – Texto de Ruy Barbosa sobre os insultadores na política brasileira.

Nacos
Vesânico – furioso, insano.
O Pícaro Bronco.
Acusações anódinas – pouco eficaz, medíocre, banal, insignificante.
“O esperpento, na linguagem tradicional é o feio, o desalinhado, por extensão, o absurdo, o desatinado, é o espanto, o assombroso diante dos contrastes violentos da civilização espanhola”.
Proteiforme – algo que muda frequentemente. Partidos políticos proteiformes.
Desataviada arenga

Nas pgs 244 e 245 AA faz críticas a Fundação Rockfeller e sua nefasta influência sobre o serviço de Higiene no Estado de SP.

A sindicância no Instituto Butantan iniciou em janeiro de 1936. Em outubro já estava lavrada a sentença a favor de AA. Em 26/10/36 o Secretário de Saúde Pública exara em seu despacho administrativo que “nenhum dos fatos apresentados depõe contra a honestidade pessoal, a capacidade e competência científica do dr. AA”.

Enquanto Afrânio do Amaral era mantido no cargo, seus detratores foram colocados em disponibilidade. Passaram então a buscar um partido + forte para desforra, filiando-se ao PRP.

AA publica no OESP sua carta de reconhecida vitória, agradecendo o apoio e manifestando suas convicções.

Conclui na pg 252 que só depois de mandar o governo fazer o balanço das contas do Instituto e dos estoques de materiais iria reassumir o cargo, 'quando os afastados já não mais se encontrassem, os nojentos elementos que tanto mal haviam feito à instituição'. Assim decide “reassumir o posto de sacrifício, que é sem dúvida, no Brasil, o exercício de qualquer função pública de relevo”.

Sua perplexidade com a penetração da desídia foi descobrir que o próprio relatório que havia elaborado sobre o movimento observado na conclusão do inquérito, transmitido ao Palácio do Governo, apareceram na súmula informações diversas das que tinha fornecido, percebendo que os inimigos do Instituto tinham conseguido penetrar, modificando o texto dos dados oficiais da Secretaria. E conclui: “isto também serve para caracterizar uma época”.

Pg 253. Armando Salles de Oliveira afasta-se do governo estadual para disputar a presidência da República, e o secretário nomeia Sebastião Calazans para o Serviço Sanitário. Em conluio com um ex-deputado classista e médico José Toledo Piza, começou a forçar resultados estatísticos para mostrar que a vacina variólica estava fraca. No plano federal explode o golpe de 10/11/37, “pondo termo aos nossos congressos caricatos e ao falso regime democrático”. E com a substituição de todo o secretariado e do próprio interventor do estado, tudo volta à manha da corrupção, agora mais acobertada e silente para se apropriar da coisa pública.

Com o golpe entra no Serviço Sanitário do Estado o dr. Raul Godinho, considerado por AA o autor intelectual da campanha contra ele. No mesmo dia (5-5-38) mandou tomar de assalto o Butantan, ainda antes da publicação no diário oficial. E AA conclui amargamente: “revelava-se dessa maneira, em toda a plenitude, um dos objetivos principais, senão o maior das administrações públicas neste grande deserto de homens que é a nossa terra”.

Pg 260 – Decreto assinado em 6/5/38 (dia do assalto) e publicado em 7/5/38. Imediatamente o instituto passa da condição de instituição de pesquisa para se transformar em mero laboratório de produção de soros e vacinas, demitindo os pesquisadores estrangeiros e brasileiros que ali trabalhavam.

Conclui dizendo que a posse de seus inimigos, trazidos de volta pela ditadura, se cristalizou como “a mais absoluta falta de espírito público, ignorância do ideal de servir, cuja expressão tangível é o egoísmo sob qualquer das formas, individual ou familial, é o filhotismo tão generalizado entre nossos homens, para os quais não existe o bem comum, senão o bem privado, o interesse particular e imediato”. Pg 266.

Seu último parágrafo é uma elegia ao povo brasileiro:

“E assim, através da seleção negativa de valores, do desinteresse dos homens de responsabilidade pelos negócios públicos sujeitos a todos os azares, da repetição chocante e dolorosa, dos exemplos de descontinuidade administrativa, vão desaparecendo as últimas esperanças de virmos a ter uma situação realmente construtiva, que reponha a máquina do Estado nos trilhos, que se afaste das perigosas camarilhas de aproveitadores que, enfim, trate apenas dos altos interesses do povo, em benefício da própria contribuição que a nossa raça tem o dever de trazer ao progresso da humanidade”. Pg 267.

Depois segue o remate de Plínio Barreto

O interventor que expulsou AA do Butantan era nada mais nada menos que o nefando Ademar de Barros.


Peter Kellemen — O Brasil para Principiantes

Ver mais detalhes no blog Resumo de Livros

Cita na pg 34 a causa da carência de telefones no Rio de Janeiro que corrobora a tese do controle estatal. E faz analogia com um casamento onde o marido vai perdendo a atração pela mulher exatamente pela mudança de tratamento.

Assim, sob o nome da proteção estatal aos consumidores, o governo, para evitar que a empresa concessionária ganhe demais, prefere congelar tarifas que em época inflacionária corroem investimentos e torna a escassez do produto a causa da formação de filas de milhares de pessoas para obtenção de uma linha.

Curiosa consequência: a demanda é reprimida NÃO pelo preço extorsivo que se poderia esperar de um monopólio cruel, mas pela intervenção do governo ao não permitir que a empresa amplie seus terminais.

Sobre os 60 milhões de médicos (a população brasileira da época), crônica deliciosíssima sobre a mania brasileira de receitar remédios para quem se queixa de uma dor, havendo aglomerações e disputa pelos melhores nomes de medicamentos, observa que “o brasileiro médio tem mais retratos de seu interior (as tais de radiografias ou chapas) que Marylin Monroe em roupa de banho.”

Selecionei as melhores crônicas no blog Resumo de Livros. Foi difícil resumir um livro de crônicas tão rico em cultura brasileira, tão palpável em descrever os meandros psicológicos das interações da vida social carioca. Somente um olhar estrangeiro, carregado de ironia e condescendência pode nos apurar aquilo que passa batido pelos historiadores: o caráter do brasileiro frente às suas instituições. Trata-se de uma literatura perdida, esquecida e que, no entanto, é riquíssima em posturas culturais próprias.


Valle-Inclán — Tirano Bandeiras

Voltando ao Tirano Bandeiras depois de ter lido há mais de 40 anos, encontro na pg 216:
“O honorável corpo diplomático – uma ladroeira de interesses coloniais – ataca nossos flancos com notas mesquinhas que os telegramas difundem. A Diplomacia tem suas agências de difamação e hoje os utiliza contra a República de Santa Fé. A borracha, as minas, o petróleo despertam as cobiças dos ianques e do europeu. Pressinto horas de suprema angústia para todos os espíritos patriotas. Talvez estejamos ameaçados de uma intervenção militar”. Este parágrafo revela a mentalidade colonial através de 2 mecanismos: a imobilização como norma, isto é, a manutenção do mesmo sistema agrícola, e a possibilidade de enriquecimento coletivo como cobiça dos estrangeiros. Em vez de agradecer a Deus pela generosidade de nossas riquezas, preferimos hostilizar aqueles que as querem comprar como se o benefício deles fosse pecaminoso e no mundo dos negócios não houvesse reciprocidade. Note que se passa no final do século XIX.

Livro que é considerado o início do estilo burlesco na literatura latino-americana.

Nacos:
Valetudinário – débil, doentio, enfermiço.
Liposo – remelento –
mofino – avarento, que incomoda, infeliz, desafortunado.


Vargas Llosa — O Chamado da Tribo

Um livro importante sobre o tribalismo da era das redes sociais. Llosa descreve a biografia de diversos pensadores, iniciando por Adam Smith e depois Ortega y Gasset. Em Smith fiquei sabendo que era agnóstico, juntamente com Hume que inclusive escreveu Diálogos Sobre a Religião Natural, em que critica o cristianismo e que devo ler.

Fiquei interessado por Smith cujo livro A Riqueza das Nações nunca cheguei a ler por completo, pois os princípios econômicos da obra são amplamente divulgados. Ocorre que Llosa chama a atenção para os aspectos secundários da obra, pois Smith, ao contrário do que eu pensava, era filósofo. E sua personalidade TDA, ausente em momentos de convivência social ou de meditação em passeios me interessou particularmente, pois senti que temos afinidades no estereótipo de sermos um eremita no meio de um sanatório.

Em Ortega y Gasset, Llosa procura mostrar a personalidade visionária dele e ao mesmo tempo seus equívocos (em relação aos EUA), especificando a originalidade de seu pensamento no tratamento do homem massa, que viria a ser estudado posteriormente ao fascismo/nazismo/comunismo, e a desumanização da obra de arte.

Muito interessante a biografia de Hayek, que não conhecia. E em Popper descobri um ponto de intercessão com o A Insondável Matéria do Esquecimento na pg 114. Ao descrever o mundo primitivo da sociedade humana: “por outro lado, o mundo terceiro permanece quase estático: a vida da tribo transcorre dentro de uma rotina estrita, de regras e crenças que zelam pela permanência e a repetição do já existente. Seu principal traço é, como na República platônica, o horror à mudança. Toda inovação é vista como ameaça e anúncio de invasão de forças externas das quais só se pode esperar o aniquilamento, a dissolução no caos da placenta social em que o indivíduo vive agarrado, com todo o seu medo e o seu desemparo, em busca de segurança.”

Segue-se Raymond Aron, de quem conhecia o clássico O Ópio dos Intelectuais e sobre a Aliança Atlântica e Isaiah Berlin, de quem li apenas A Força das Ideias e que não me impressionou tanto. Llosa descreve Berlin como se estivesse fazendo um discurso comemorativo, ou panegírico, tal a quantidade de elogios que muitas vezes confundem o que ele mesmo pretende dizer além da louvação.

Por último, Jean François Revel, que também conhecia a personalidade, apesar de ter lido 3 dos seus livros. Não sabia que Revel tinha sido socialista, e um crítico do socialismo, de quem recebeu diversas críticas que Llosa resume magistralmente: “sabe-se que na vida política, o ódio mais forte é despertado pelo parente mais próximo”. Preciso encontrar La Cabale des devóts.

Em o Conhecimento Inútil, Revel, segundo Llosa, conseguiu escrever um livro que “por sua valentia moral e pela ambição de seus propósitos, constitui o revulsivo de uma época”. “A força que move a sociedade em nossa época não é a verdade, mas a mentira”. Llosa observa de maneira anti-pessimista, contrariando Revel, “que não é a intelligentsia que faz a história. De modo geral, os povos – as mulheres e os homens sem rosto e sem nome, a 'gente comum' – são melhores que a maioria dos intelectuais: mais sensatos, mais pragmáticos, mais democráticos e mais livres na hora de decidir sobre assuntos sociais e políticos”. Faltou falar que as mudanças, pequenas e depois avolumadas, vão sendo criadas pela humanidade apertando os botões da tecnologia.


José Maurício de Carvalho — Caminhos da Moral Moderna: A Experiência Luso-Brasileira

Ao ler as primeiras 20 pgs introdutórias, fiquei com a impressão de estar na presença de sonolentas “philosophical ruminations”. O fator kantiano é desolador em qualquer exercício racional de entendimento. Senti uma pontada de não chegar ao fim, de abandonar o livro por excesso de especulações gratuitas, sem nexo, orientadas exclusivamente para a reverberação das consonâncias próprias do monólogo filosófico.

Por ex, a pg 19: “A racionalização do fato moral e dos ideais humanos foi um equívoco. A moralidade não emerge do enquadramento racional do comportamento humano”. O que se pode dizer? Que o autor nega a experiência humana colaborativa como fundadora dos princípios morais? (Lembrei de Matt Ridley). Ou supõe que a religião seja por si só o suficiente? Por outro lado, acerta quando diz (pg 27) “que o século XVIII gerou um ambiente místico de nostalgia, isto é, de desejo de retorno à vida espiritual da Igreja Primitiva”. Não sei se a palavra mística está correta, posto que, a rigor, o Iluminismo foi a saída da razão mística para a razão crítica.

Finalmente, chegando na pg 28 percebe-se que o autor começa a vislumbrar a questão da tradição luso-brasileira e a contrarreforma. Pg 29 ...”as máximas medievais, pois a filosofia (tomista) era um saber que unia o homem a Deus”. E depois: “o caminho para Deus era a completa anulação do indivíduo”.

A ética da salvação – Maurício de Carvalho torna-se lúcido dali pra frente ao saber contrapor a moral tradicionalista lusitana à moral do Iluminismo.

Percebi que o autor tem um propósito extremamente conciliador entre a realidade do tradicionalismo e a do iluminismo. Se analisa as divergências de pensamento, não o faz de modo a posicionar-se dentro de uma ou outra ótica, mas apenas apresentando seus postulados. Seguidor de Antonio Paim, certamente que tem em suas raízes a formação liberal indispensável ao trato da questão, aparentando ser um conservador sem ser tradicionalista.

Ao colocar o papel do rei no sec XV como o de liderança das virtudes sobre os súditos pela força de seu exemplo, Arrais explicou que “o governador primeiro se deve a si retificar e depois ao seu povo. Que de outra maneira haver-se-á como quem quer endireitar a sombra da vara torta”. Pg 66.

Um dos pontos mais importantes do livro está na descrição do combate à riqueza como valor essencial da contrarreforma. Num momento em que o Novo Mundo era o alvo da cobiça de tantos quantos queriam acesso aos bens materiais, a moral vai na direção oposta, e o “combate à riqueza no plano individual explicitou-se então na desconfiança contra os ricos”. pg. 106. E estende estas considerações por páginas de importantes testemunhos da época. Vale destacar que a relação entre virtude e desapego material, excluía os príncipes em “razão de sua missão e os altos prelados da Igreja, cuja formação moral os punha a salvo das tentações”. Só encontro esta hipocrisia no mundo atual dentro do judiciário brasileiro.

No cap 2 avança no terreno da formação da mundividência tradicionalista. “A norma tradicionalista insurgiu-se contra a liberdade do homem que se tornou a principal característica da ética moderna, transcendendo inclusive a finalidade política de tornar-se, segundo Aristóteles, a causa formal da pólis.”

Pg 131. Em 1823 o Frei Faustino José já dizia que as desgraças públicas que tanto tem oprimido Portugal, Espanha e Itália tem origem na Revolução Francesa de 1789. Da mesma forma (pg 132) a maçonaria era vista como principal inimiga jurada de todas as instituições religiosas e políticas que “existem hoje em Portugal: portanto é necessário destruir essa facção ímpia e monárquica, para que seus agentes não destruam a religião de Jesus Cristo, e o trono em que os portugueses colocaram a sereníssima Casa de Bragança”.

Antonio Suarez levanta um ponto importante: reconhecendo o progresso do conhecimento trazido pelo iluminismo, afirma que o progresso moral não depende dele, fazendo eco à opinião da época de que somente o cristianismo produziu progresso moral, negando sua existência nas civilizações grega e romana.

O ponto de contato (pg 138) do tradicionalismo com o socialismo ocorre, para Antonio Suarez na “obrigação que deriva do dever de beneficência. Por ela as propriedades ou direitos de uns estão subordinados ao socorro dos outros”. Uma questão moral presente na política do bolsa família 200 anos antes. Por isso as riquezas devem ser distribuídas segundo esta concepção.

Pg 179 -- “Kant introduziu a distinção entre a moralidade e a legalidade, pois nem sempre o legal é moral. No entanto, Melo Freire combateu no kantismo o fato de se deixar a razão individual decidir o que é mais correto ou não. O direito estaria para a consciência coletiva como a ética para a individual. Assim, a liberdade de uma nação viria de sua capacidade de realizar interdições radicais, pois deste modo ela própria criava um limite capaz de conter o comportamento destrutivo. Melo Freire deslocou para a legislação a tarefa de estabelecer a moral social, hegelianamente edificou o estado como instância e garantia da liberdade”. [putz... foi a nossa perdição]

Pg 201. “Muito curiosa foi a consideração da usura, prática abominada pela 'segunda geração' de contrarreformistas. Melo Freire preservou a interdição asseverando que a 'usura não só é delito civil, mas religioso, e por esta causa trato dela neste lugar' [no Código Criminal que escreveu]. Não há qualquer distinção entre as implicações da antiga usura e o empréstimo voltado para a produção.

O código abriu ainda espaço para as afrontas contra o Estado, aquelas que Pombal procurou colocar entre os vícios moralmente condenáveis. Era preciso coibir as afrontas contra o Estado pois estava aí a raiz da desordem social. Além disso, o Estado era um modo pelo qual o Absoluto emergia na história, desde que, em última análise, Deus era o sustentáculo do poder político”.

Pg 221. Segundo o Visconde de Cairu, descrito por Silva Lisboa, “o comércio é o motor do mundo, o vínculo da união, e paz dos povos; o manancial da Riqueza, e prosperidade dos impérios, é depois da religião, o civilizador universal, por tender à indefinida divisão e perfeição do trabalho, extermínio dos prejuízos locais, e propagação por toda a parte dos sentimentos de humanidade, e dos honestos gozos da vida.... porque o comércio é o fundamento de toda a humana política, e o meio porque se trata a paz e o amor entre os homens!”

Cairu faz uma crítica ao trabalho infantil ao analisar a deformação física que causava nas crianças e adolescentes pelas péssimas condições de trabalho nas indústrias, pg 222-223. O moto de Cairu foi conciliar os novos valores do liberalismo com aqueles herdados da tradição católica. Antecedendo nossa época em que a criatividade comanda o processo de inovação, Cairu observou (pg 228) que “se uma vez se convencessem os que governam, e são governados, que o corpo pouco pode pelas próprias forças adquirir os bens da vida, e que o espírito é o que tudo vivifica, impelindo, e dirigindo os braços para os maiores e melhores resultados da Indústria, e que por isso a inteligência, e não o trabalho, é a causa principal da Riqueza e Prosperidade das nações, não teriam caído no sofismo das escolas...”

Pg 236: “O Iluminismo estabeleceu uma confiança plena capacidade humana de resolver os próprios problemas”. No entanto, Cairu partilhou parcialmente desse clima, mas não acompanhou os britânicos na confiança externa, afirmando perplexo, a incapacidade da razão e dos sentimentos para estabelecerem sozinhos os rumos que garantissem o aprimoramento do homem. 'Como é possível fazer os homens melhores doutrinando-lhes moral egoísta e anticristã, prescindindo dos dogmas da Divina Providência, da imortalidade d'alma e do culto externo a Deus?'

Curiosa também é da tentativa de justificar o desejo de adquirir sem ser confundido com a cobiça, “um grande vício e mesmo um pecado, além do que estava associado à usura”. A solução seria um contorcionismo para preservar a ordem moral da contrarreforma: 'o desejo de adquirir não se deve confundir com a cobiça desordenada. Sem aquele desejo, os homens permaneceriam no estágio selvagem; e com ele a sociedade civil tem subido já muito, e é capaz de subir a um auge indefinido de riqueza e magnificência, que emule (ainda que em miniatura) a beleza e munificência do Ente Supremo nas obras de criação'.

[Esta dicotomia seria um dos principais empecilhos ao desenvolvimento do Brasil no Império, e de resto, deixa um vácuo no problema do patrimonialismo, provando como nossa formação moral não era compatível com o mundo capitalista que se desenhava e que permanece até hoje].

Pg 277. Observo que confirma a tese principal da contrarreforma na questão moral das pessoas e não no arranjo institucional. De que vale falar no caráter das pessoas se elas não tem acesso à propriedade? “Para completar a tábua de virtudes (Cairu) enumerou uma longa lista delas que estariam associadas a formação do denominado grande caráter, virtudes com amplitude universal. São essenciais para todas as nações que aspirem o desenvolvimento. É no bom caráter das pessoas que estaria a defesa para as más qualidades ou vícios, que eram, em última instância, as fontes de corrupção e as causadoras das Revoluções.

[Agora não é mais a situação socioeconômica as causadoras da revolução, porém a falta de virtude nas pessoas. Esta interpretação bizarra deveria ser explorada pelo autor, que passa batido num ponto indesculpável para entender o engendramento da moral contrarreformista com o subdesenvolvimento. O que se conclui é que a moral de Cairu é a moral de estado!!! Por isso ele não precisa penetrar no entendimento da sociedade civil, embora dela possa falar, provavelmente confundindo-a com a corte. Neste caso, podemos traçar a suspeita de que nosso estatismo está descolado da modernidade, sem rejeitá-la em seus postulados, mas recusando suas diretrizes práticas econômicas.]

O autor segue pela trilha do confronto entre as ideias da modernidade com o tradicionalismo, afirmando que “Cairu abriu-se aos valores modernos, porém inseriu-os no esquema antigo. Sabemos que a moral social consensual, na forma como fora organizada nas sociedades pós-renascentistas, não representa a ausência de Deus. Para os crentes de qualquer religião era natural que a submissão existisse. O problema é que nas sociedades onde se implantou a moral social consensual, os valores e as normas de convivência precisaram encontrar fundamentos laicos, pois numa mesma comunidade deveriam conviver não apenas pessoas de religiões diferentes, mas inclusive os ateus. Caberia aos crentes, caso a caso, inserir as normas negociadas no contexto teorético mais amplo, relacionando-as a sua fé. Não foi isso que pensou Cairu. A moral social, segundo entendeu, permanecia dependendo da religião e o próprio estado possuiria uma religião oficial. 'Sem dúvida (afirmou Silva Lisboa) a religião verdadeira é a base firme da moral pública: sem ela, os bons costumes, as virtudes morais, não tem pureza, nem sólida garantia'. [este ponto é parte do que se chama de olavismo].

E na pg 281 cita os 20 princípios constitutivos da moral pública.
Na pg 291 temos o estatismo com sua origem no pensamento econômico de ordem moral, isto é, o estado encarnado no dever do bem comum. Cairu “perdeu de vista a ordem natural, aquela que Adam Smith havia denominado de mão invisível. O resultado foi uma síntese ampla onde se traçou o perfil de uma existência virtuosa..., meditou-se sobre a conduta humana em geral (consciência moral, sentido da felicidade, fontes, leis e deveres morais) e também questionou-se a estrutura do juízo prático, aquele que envolvia os atos humanos (papel da liberdade e da vontade). Todo esse esforço especulativo revelou contudo uma inconsistência insuperável, a redução da doutrina dos valores a um ideia distante, traçado de antemão e voltado para obter a felicidade noutro mundo pela prática de virtudes que significavam na realidade a negação do próprio homem. Ao seguir Silva Lisboa em seu propósito de mostrar que pelo controle moral da economia o homem podia cumprir os desígnios de Deus, vamos descobrindo os pontos obscuros do projeto, herdeira da insuficiência moral do pombalismo. Insuficiência porque se revela em três níveis: primeiro porque o propósito ético-religioso jusnaturalista adotado pelo liberalismo aproxima a ação humana da vontade de Deus de modo irreconciliável com o ideal de salvação da Contrarreforma, segundo porque a fundamentação filosófica da ética não conta com qualquer garantia objetiva auferida de Deus e terceiro porque a ordem cultural não se reduz aos instintos e nem é resultado de deliberação racional.”

[O que se revela da análise de JM de Carvalho é a inegável percepção de que se falava no início do século XIX em nome da ordem moral da contrarreforma, o que se repetiria no século XX em nome da moral socialista. Tire-se o nome de Deus e coloque-se o nome “sociedade sem classes” ou qualquer outro da literatura marxista-leninista e temos o mesmo discurso. Sem tirar nem por.
Esta conclusão, que não foi feita pelo autor, permite definir com clareza sem igual o elo de ligação entre nosso mundo colonial e a preferência pelo estatismo, exponencializada no bolivarianismo e petismo.]

[Na CONCLUSÃO, pg 295, enfatiza que “os novos valores propugnados pelas ideias iluministas ensejaram não apenas uma acomodação, mas uma conciliação com matrizes antigas”. É de se perguntar se o país de imitação não nasce justamente aí. Primeiro imitando Portugal, depois a França e Inglaterra, e por último os EUA. “A modernização pombalina deixou intacta a moral católica”. Segundo o autor, para entender o processo “é essencial transcender o trabalho do historiador para tentar tematizar as vinculações entre as formulações teóricas e a cultura.” E na pg 297-8 explica um dos enigmas do combate às ideias de Nietzsche tão veementes na direita naftalina, “porque ele acabou por fazer apologia dos valores opostos aos defendidos pelos contrarreformistas. O grandioso NÃO era para ele as virtudes contrarreformistas da abnegação, da humildade, da alegria, do sacrifício, as quais constituíam antes valores da ralé. O homem superior não precisava ser pobre, humilde, casto, obediente ou, em resumo, medíocre, mas ao contrário devia explorar essa gente pequena que exercitava tais virtudes.]

[E por fim (pg 299) chega ao ponto culminante de sua análise: “acreditamos que é nesse mesmo fundamento imutável e na ideia de justiça dele derivada que se ancoraram os socialistas da geração de setenta para perpetuarem o ódio à riqueza e garantirem a sobrevivência da moral contrarreformista. Isto, no entanto, exige uma outra pesquisa”.]

[Bate o gongo no fim do sétimo match da luta de pesos pesados.]

[E então, o autor dá a volta por cima e parte para o último round: “A atividade humana foi então canalizada no sentido de realizar nacionalmente, através de projetos do estado, aquilo que a mundivisão moderna apontava como novo ideal de vida”. Lacrou!]

E logo adiante: “As desavenças entre os modernizadores não afetavam a moral contrarreformista porque elas se concentravam em torno da extensão e significado do novo papel do Estado”.

Cito apenas por curiosidade: “deve-se fugir dos desvios que os hegelianos operaram no kantismo, isto é, o pessimismo individual e o tomismo histórico.”

Sobre a fonte inegável do sectarismo olavista, o autor conclui: “... o contrarreformismo ficou na contramão da história por fundar-se em pressuposto impossível de constituir-se em parâmetro inquestionável numa sociedade plural”. Eis aí uma das intuições culturais da direita naftalina.

O que para o contrarreformismo era o amor ao próximo, para o socialismo bolivariano passou a ser o altruísmo.

[O livro de José Maurício de Carvalho tem o raro pendor de investigar um tema tão caro a mim desde a assinatura da Revista Vuelta em 1977, que é a compreensão da realidade latino-americana a partir da herança ibérica, desenvolvida insistentemente por Octavio Paz. Que esta herança seja negada, inclusive no meio acadêmico, como singularidade de nossa danação ao estatismo e a autocracia, é um dos atestados de atraso intelectual da academia. Grande livro, por revelador e, se peca um pouco pela prolixidade do autor, fornece elementos de sobra para a retomada do pensamento liberal livre das amarras da tradição.]


Jean-François Revel — O Monge e o Filósofo

Interessante livro sobre as diferenças de opiniões entre a filosofia ocidental e o budismo. Um debate entre pai e filho iniciado no Nepal abordando todos os aspectos da doutrina budista, deste a questão de definir se o budismo é uma filosofia, uma religião ou uma metafísica, até a visão psicológica do budismo. Sendo agnóstico, Revel não se deixa convencer com os argumentos do budismo, demonstrando com superioridade intelectual suas discordâncias com todo o respeito de quem passou pelo estudo de inumeráveis correntes do pensamento humano. Matthieu é muitas vezes redundante e enfadonho, pois suas respostas para diferentes perguntas recai sempre no mesmo círculo de argumentação. Entretanto, descobri que tenho algumas coisas de budista em comportamento de negação do eu, de introspecção como fonte do saber. Mas recuso a noção de reencarnação e de permanência dos espíritos para além da vida. Um livro recomendado para quem tem indagações filosóficas centradas no aprofundamento do eu.


Paulo Mercadante — A Consciência Conservadora no Brasil

Como tinha escrito alhures, Olavo, pertencendo a um grupo cuja prática intelectual consistia em eliminar um livro cujo conteúdo arranhasse os preceitos tradicionalistas, elogiou Paulo Mercadante sem tê-lo lido. Pois se toda a literatura que especula sobre a Inquisição é por si objeto do Index Proibitorum dos perenialistas, lemos na pag 32, o seguinte:

“Dominando a instrução [pública, educacional], penetrava o Catolicismo em todas as manifestações culturais da colônia. Por outro lado, estabelecia-se a Santa Inquisição. Qualquer palestra ou afirmação atrevida podia ser deturpada e arrastar o imprudente à fogueira. Da visitação de Marcos Teixeira, a que alude Capistrano de Abreu, há uma lista de mais de uma centena de pessoas denunciadas, e uma octogenária foi queimada. Não escapavam da fiscalização das bibliotecas dos próprios senhores de engenho.”

[Os senhores de terras] "cultivavam hábitos aristocráticos. Avezados ainda à violência das guerras de conquistas, identificavam o saque ao vencido à noção própria de honra, entendendo por fim a conquista da terra e a submissão do gentio em termos de luta religiosa contra os infiéis idólatras” pg 33. Para um agitador como Olavo que afirmou diversas vezes que a Inquisição não existiu, fica provado mais uma vez que não leu Mercadante, como não o fez com toda a obra de Wilson Martins.

“...Honra e saque confundem-se na ideologia do colonato, o que justifica as palavras do Bispo de Leiria aos condenados que partiam para o Brasil: “Vá, degradado para o Brasil, donde voltará rico e honrado”.

Gostei do nome do periódico chamado Revérbero, em citação de 1821. E também do Malagueta.

Sobre o bifrontismo do império no Brasil, o autor fala do espírito reacionário as voltas com a restauração e a perda do status do imperador como de direito divino, e da acomodação da ala liberal e jacobina aos ditames da escravidão. “... o senhor rural, em sua fazenda, [que] se encontra voltado para o mercado externo, onde sua produção como valor de troca é colocada, comporta-se dúplice econômica e mentalmente; vive numa fazenda de escravos de látego em punho, enquanto se empolga com ideias liberais correntes nos países europeus já libertos do feudalismo; revolucionário, quando analisa suas relações de produção com o mercado externo, e conservador, quando reage a qualquer ideia de abolição. Seu caminho é necessariamente o compromisso entre a escravatura e o liberalismo econômico.”

No capítulo V trata do Ecletismo Brasileiro. Novamente a contradição entre o espírito liberal em voga e o caráter dos proprietários de terra e escravocratas, e fala também da falta de uma cultura de suporte ao povo do interior fragilizado pela autoridade feudal do proprietário rural, como bem demonstra Muniz de Souza. Deixa claro que no pós independência o Brasil procura se definir como país, sem no entanto conseguir sair do ecletismo, absorvendo as ideias liberais através do comércio e mantendo as reacionárias do modo de produção. São contradições que nos permitem julgar 200 anos depois que não conseguimos nos modernizar totalmente por falta de precedentes que não estejam contaminados pela interpretação impotente de nós mesmos. Ele trata de enfatizar o que chama de política de transação. Uma ideia importante para o entendimento do ecletismo.

No capítulo VI trata da Constante Conciliação nos Acontecimentos. Inicia afirmando sobre o colorido singular de nossa História de 3 tendências em permanente conflito no XIX. 1) O liberalismo extremado da Revolução Francesa.
2) Os liberais que se aproximam dos conservadores por temor à revolução.
3) Os moderados.

Cita Euclides da Cunha, ao dizer que na revolução do 7 de abril. “o que teria havido foi o caso vulgar nas revoluções triunfantes: o radical, o agitador vermelho, extinta a sua ação demolidora, fazia-se conservador no governo e vibrava a autoridade recém-adquirida contra os que o haviam auxiliado a destruir a autoridade antiga”. Lembra O Sobrinho e a Carteira do Meu Tio de Macedo.

No capítulo VII fala da Fórmula Conciliatória.

Mais adiante cita os embates em torno da libertação progressiva dos escravos no gabinete Cotegipe. A situação chegou a tal ponto que se estabeleceu uma desordem social, pois “os escravos fugiam. Desertavam das senzalas, desconhecendo a autoridade dos senhores. Mais de dez mil desceram a encosta de Cubatão para Santos. Boatos enchiam de terror os senhores fazendeiros: planejava a escravaria um extermínio em massa da classe senhorial. Em 1887 promovia-se em SPaulo uma reunião de fazendeiros. Diante da recusa das forças armadas em prender negros fugidos, intensificou-se o êxodo”.

Isto prova que o movimento abolicionista tinha repercutido nas Senzalas e que o progresso da luta pela emancipação forçou a abolição do qual o decreto da Princesa Isabel foi apenas um ato terminal e não um gesto altruístico, como gostam de satisfazer os nossos dómines da interpretação da história como produto da personalidade heroica. Vale a pena consultar a pg 168.

E passa ao capítulo sobre o Romantismo.
A influência do romantismo é importante destacar porque se está na base do abolicionismo, vai fundar o socialismo no século seguinte e ser o combustível principal do populismo de esquerda.

Há, efetivamente, um divórcio entre as ciências humanas e o resto das ciências naturais. Do ponto de vista da importância da tecnologia nos tempos que vão da revolução industrial aos smartphones, se tomarmos em consideração a ausência de uma predisposição tecnológica de pensar a solução dos conflitos sociais como resolvíveis na técnica, podemos começar com os 50 anos de debates no Brasil a respeito do problema da escravidão. Não ocorre a nenhum escritor daquela época, publicista, político ou literato, colocar a questão da escravidão como solucionável pela possibilidade de uso de máquinas que poupem o trabalho e substituam o escravo.

Toda a problemática social gira em torno desta ausência. E se passarmos para o século XX, novamente a tecnologia não faz parte do discurso social. Nenhuma das partes em conflito sabe fazer uso dela como argumentos para si.

Ainda hoje, sabendo da evidência de que a robótica vai mudar o modo de cultivo, produção manufatureira, etc, a tecnologia continua ausente das reivindicações de uma parte da inteligentzia como abstração solucionática do problema em conflito. Se existe uma constante do passado no presente, a evidência de que a ausência da tecnologia é o elemento mais acentuado no debate de todos os tempos.

A chamada ficção científica ocupa a imaginação dos distopistas pelo simples fato de apresentar a tecnologia como veículo de opressão. Mas, de novo, ela não aparece na literatura como libertadora das aflições do trabalho cotidiano, da rotina e da pobreza. Se a pergunta técnica perdura desde o império romano, podemos concluir que o saber humanista está totalmente ausente da realidade social enquanto percepção de transformação instrumental, e condenado a ser uma repetição livresca das mazelas da política que repete incessantemente a insensatez da impotência intelectual dos pensadores. [Este meu texto apareceu aqui por acaso].


Luis Makhlouf de Carvalho — O Cadete e o Capitão

Livro que trata da biografia de Bolsonaro enquanto militar. O autor Luis Makhlouf pesquisou os fatos biográficos relativos à carreira de Bolsonaro, com foco principal no episódio em que ele teria planejado a explosão de bombas em alguns locais como protesto contra a situação do salário dos militares.

No livro de Makhlouf lemos no primeiro capítulo, 2 episódios interessantes. Os oficiais da AMAN costumavam insultar seus subordinados para testá-los psicologicamente nos exercícios práticos, acreditando que a humilhação tempera o caráter. Trata-se de uma herança de nosso barbarismo social. Já li sobre o mesmo comportamento no exército russo. Ocorreram mortes que trataram de abafar quando a causa era incerta, ou divulgar, quando se tratava de acidente.

Neste capítulo, deduz-se, pela atmosfera dentro do exército, que se trata de uma instituição não diferente das demais, e que, por sua natureza torta, carregada dos vícios sociais da formação da brasilidade, sugere que somente pessoas com um temperamento inadaptado são as que melhor conseguem sucesso político.

O capítulo também fala a propósito da presença de Geisel na formação dos oficiais e que teria dito em entrevista, em 1997, quando Bozo já era deputado, que ele fora um mau militar.

Num dos treinamentos, bateu de cabeça em uma árvore abrindo um corte no supercílio que foi costurado com 4 pontos.

No capítulo sobre a Operação Beco Sem Saída, Makhlouf explica detalhadamente a posição e participação de Bolsonaro na tentativa de tumultuar a ordem militar com a explosão sincronizada de bombas na ESAO, AMAN e talvez outras instalações. A manobra seria o aumento salarial pleiteado por ele em artigo à revista Veja em outubro de 86. A insatisfação com o soldo era dirigida ao ministro do exército de Sarney, General Leônidas Pires Gonçalves que foi quem ordenou a prisão por 15 dias dele. A respeito dele, assim se referiu Bolsonaro: 'nosso exército é uma vergonha nacional e o ministro está saindo um Pinochet'. Trinta anos depois ele elogiava Pinochet nas declarações que prestava à imprensa.

A Comissão de Justificação atuou para investigar a responsabilidade dos envolvidos nos projetos de atentados à bomba. Foi aprendido um croqui que seria um esboço para explodir a adutora Guandu do Rio. Levado para perícia, o material escrito no croqui deveria ser confrontado com a letra de punho de Bolsonaro. A primeira perícia deu um resultado inconclusivo, favorecendo Bolsonaro, a segunda novamente, mas a terceira e quarta confirmaram que se tratava de seu punho, sendo portanto, o autor do plano terrorista. Foi condenado na Comissão de Justificação por 3x0, porém, absolvido no STM.

Deve-se observar que os laudos inconclusivos foram emitidos pela Polícia do Exército e o condenatório pela Polícia Federal. O quarto laudo foi da Polícia do Exército, retificando o segundo e apontando Bolsonaro como autor.

A última parte do livro trata do voto dos membros do STM que julgaram o recurso dele justificando seu apelo e que o absolveram por 9 x 4. Percebe-se claramente a intenção de conservar a estrutura do exército tal como é: um sistema de aparente sanções, mas colimado por uma impunidade cognata ao estado brasileiro nas atitudes de complacência para com o delito como uma natureza implícita de nosso caráter nacional. Ao fim, Bolsonaro fica proibido de participar da diplomação da ESAO com a presença do ministro do exército. Sentindo que não teria mais futuro no exército, decide abandonar a carreira, sendo aconselhado por seu amigo, o controverso Newton Cruz, a se envolver na política como representante do setor militar. O jornalista do Estadão, autor do livro, mandou um exemplar para Bolsonaro se manifestar sobre os dados pesquisados. A única resposta que recebeu foi a de que ele não reconhecia os fatos e negava o assunto. Como no Brasil se lê muito poucos livros e muitos textos online, a mancha na biografia de Bolsonaro jamais foi usada para fins políticos.


Jean-François Revel — Para que Filósofos?

Depois da leitura de O Monge e o Filósofo, desfrutando do mesmo ceticismo agnóstico de Revel, resolvi partir para a leitura deste pequeno livro.

Inicia distinguindo a questão de se existe uma técnica na filosofia da mesma forma que nas ciências naturais, por exemplo, a física, que impossibilitaria um neófito questionar os fundamentos defendidos por um filósofo. Argui que não, que toda a argumentação pode ser entendida e o filósofo que se recusa a fazê-la não é mais que um criador de “geringonças de palavras sem ideias”, citando Rousseau.

“Para esses filósofos, a ideia é estranha de que a falta de certo conhecimento a posteriori, ainda não obtido, proíba a construção de um sistema completo de explicação, mas o “a posteriori” defende no coração de sua filosofia em sua pior forma: de preconceito disfarçado de resultado científico. Todos os seus argumentos são reduzidos finalmente a este: que uma explicação é necessária. É, sem dúvida, mas isso significa que é capaz de produzi-la imediatamente? E por que seria preciso exatamente dessa forma? Por que não seria de uma ordem totalmente diferente, tanto que, não só não poderíamos fornecê-la, como não poderíamos representar que tipo de explicação seria?”

Revel acerta em cheio na “philosophical rumination” dos filósofos: “Um tratado sobre filosofia geralmente começa com uma exposição sombria e depreciativa de teses simplistas atribuídas a predecessores imaginários ou a um "pensamento ingênuo" forjado para esse efeito; uma exposição à qual a afirmação continua imediatamente - em um tom não menos sombrio e tenebroso - de que a teoria do autor (ainda a ser apresentada) certamente será mal compreendida e distorcida. Atualmente é Heidegger que conseguiu elevar esse método a alturas apocalípticas. Eu vou falar sobre isso mais tarde. Mas o método é antigo e os personagens secundários o usam diariamente.”

Em seguida, ironiza a fenomenologia de Merleau Ponty e Sartre, mostrando como são conceitos em que o filósofo chama a atenção para coisas que não existem, com o agravante de que todo mundo sabe que não existem. [Estou gostando cada vez mais].

“Um filósofo começará proibindo, em termos cominatórios, que se o tome ao pé da letra, porque se isso acontecer, sempre significará que há algo mais em seu livro, uma passagem que não foi prestada atenção ou que o leitor não terá entendido.” Ahahahah…“ E em vez de ser seu raciocínio que sustenta sua filosofia, é sua “filosofia” que é castigada por sua ignorância. ”[Ahahahah. Demolidora!!!] Como se vê, o ex-filósofo acertou na mosca. Quantas vezes ouvi a mesma coisa dos reacionários tradicionalistas? “Repetindo as frases familiares sobre o "humanismo" mais brando, [Heidegger] lamenta o progresso científico feito desde o Renascimento, progresso que nos separa do Ser. Condena a "loucura técnica" de nosso tempo, fingindo confundir, como tantos outros, o maquinismo com o emprego lucrativo e imperialista feito dele, e contentando-se, de qualquer maneira, com a nostalgia hipócrita de um mundo pré-industrial.”

E na pg 24 continua burlando-se de Heidegger: “Vai o pensamento de Heidegger, cada vez mais essencial, mais fundamental, mais original, mas sempre mais distorcido, mais traído, mais incompreendido, se transformar brutalmente em um anel de palavras?”

”O caráter rigorosamente tautológico da proposta de Heidegger, que, quando se trata do ser, limita-se a nos dizer que nele o ente surge e, quando se trata do ente, nos diz que só é possível entendê-lo à luz do ser, tal caráter, digo eu, não deve nos impedir de olhar atentamente o que diz sobre o ente, pois é a única coisa que abordou explicitamente até agora.”

E descasca o abacaxi francês: “Se se é francês, é verdade que o orgulho de ser filósofo já deixou de ser sentido; nesse jardim de preguiça que é a filosofia, a França tira uma soneca particularmente longa: nunca o pensamento filosófico tem sido tão débil na França como desde o início do século XIX.”

...“ Eu me pergunto como foi possível [os franceses] escreverem milhares e milhares de páginas sem o menor traço de gênio, sem a menor ideia interessante. ”

Depois de Heidegger, sobra pra Bergson. Desmonta a insensatez filosófica do nobre francês em uma página e termina com uma conclusão arrasadora sobre a queda vertiginosa deste depois de desfrutar de grande fama: “Pode, portanto, a filosofia francesa sem temor, se orgulhar de Bergson. Mas, pelo contrário, quando ouço alguns de nossos "filósofos" falarem em nome de Descartes, Pascal ou Rousseau, penso na frase de Nietzsche: "É repugnante ver os grandes homens serem reverenciados por fariseus".

Veja o resumo completo no meu blog Resumos de Livros.


Bertrand Russell — A Filosofia entre a Religião e a Ciência

Li A Filosofia entre a Religião e a Ciência de Bertrand Russel, um artigo de 10 pgs em epub. Trata-se de uma abordagem interessante sobre o passado humano, especialmente da passagem da filosofia para a teologia, com o cristianismo e seu desenvolvimento posterior, em combate com a religião que atinge o cume no Iluminismo.

Nacos:
Eu iria ver a casa alvorecer cada dia mais, e os salutares efeitos dessa alvinitência se iriam derramando sobre a filosofia e o meneio da vida. Drummond em A Bolsa e a Vida.


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