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quarta-feira, 13 de julho de 2022

Fragmentos 41 - parte 5

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


1923

186) A essa altura, é o que sempre acontece aonde quer que ele vá: assim que é reconhecido, seu corpo que atravessa o espaço atrai as pessoas com a força de um impulso sexual. Quando Mussolini tenta simplesmente percorrer a pé o trecho entre o gabinete e o Grand Hotel, já em Piazza Colonna a multidão o reconhece, o assedia, quer tocá-lo, adoradora, exaltada, em orgasmo por causa desse político novo que vem da rua, da multidão, que vive do contato direto, pessoal com ela, ostentado, exilado, obsceno, esse filho de ferreiro que acabará com os velhos politiqueiros desconhecidos das massas, perdidos nas sombras de suas intrigas e manobras palacianas. Aonde quer que ele vá, a multidão o cerca, o abraça, lá fora, na praça.

187) O homem do destino come e bebe pouco, precisou reduzir o consumo de café, mas direciona todos os seus apetites em um transbordante dinamismo saneador. Há uma enorme quantidade de trabalho atrasado, o barco está cheio de furos, o relaxamento dos funcionários públicos é vergonhoso. Então ele leva tudo às costas, não delega — não confia —, lê todos os jornais, até os que não mereceriam ser lidos — quase todos —, faz chover sobre a Itália uma tempestade de decretos — começando pela simplificação da burocracia —, recebe todos os dias centenas de visitantes que o esperam ansiosos na antessala, ajeitando a gravata e verificando a ponta dos sapatos como antes de um encontro amoroso.

188) No entanto, já que a dor é eloquente, mas a felicidade é muda, até Margherita Sarfatti, a refinada salonnière, a dama cultíssima, precisou se entregar aos clichês sentimentais de uma empregadinha apaixonada. Adoração e repetição. Repetição e adoração.

189) O projeto a ser sabotado se chama Milizia per la Sicurezza nazionale. Foi anunciado nas reuniões de cúpula fascistas em meados de dezembro e aprovado pelo Conselho de Ministros no dia 28 do mesmo mês. Agora o decreto jaz há três semanas na escrivaninha do rei, que ainda hesita em assiná-lo. Se o fizesse, batizaria o nascimento de um segundo exército paralelo, partidário e faccioso, ao lado do Exército nacional. Com a Milizia per la Sicurezza nazionale, um corpo de voluntários armados integrado ao Exército mediante recrutamento regular, porém ligado por juramento apenas ao presidente do Conselho, Mussolini quer normalizar a violência fascista, legalizando-a, mas também quer desmobilizar as esquadras das províncias, arregimentando-as em sua nova armada pessoal. Com um único golpe, ele se apropriaria da violência legítima, que na Era Moderna é somente do Estado, e poria sob controle a violência das esquadras.

190) Sua finalidade será a defesa da revolução fascista e a manutenção da ordem pública.

191) O juramento será à Itália e, sobretudo, ao presidente do seu Conselho de Ministros, Benito Mussolini. A disciplina deverá ser “cega, imediata, respeitosa e absoluta”.

Terminada a apresentação, antes de passar a palavra aos presentes, Mussolini a retoma brevemente. Arregala os olhos, gira as pupilas e as fixa em Farinacci, meio escondido do seu olhar:

“Dirijo-me aos senhores da segunda fileira de poltronas. Aviso: a Itália suporta no máximo um Mussolini, e não várias dúzias.”

192) “Benito, mas a revolução foi feita para você ou para todos nós?”

193) As negociações secretas iniciadas há meses pelo presidente do Conselho de Ministros com o alto escalão do Vaticano para uma reconciliação com a Igreja são uma carta na manga no braço de ferro que o opõe ao Partido Popular, o partido político dos católicos italianos. Ao nível secreto, corresponde a ação manifesta do governo que assina, uma após outra, concessões ao Vaticano dissimuladas de medidas técnicas: equiparação das taxas escolares, retorno dos crucifixos às salas de aula, obrigatoriedade do ensino religioso, escolha dos professores por parte das autoridades eclesiásticas e, o mais importante, isenção do imposto extraordinário sobre o patrimônio dos seminários. Mussolini está pronto para conceder ao papa isso e muito mais para se livrar de dom Sturzo, o fundador do partido dos católicos, pelo qual sente um incômodo insuperável que beira a repulsa física.

194) O plenário de Montecitório está abarrotado, tanto nas bancadas quanto nas tribunas do público. Discute-se a reforma da lei eleitoral — que entregaria o Parlamento aos fascistas —, e os deputados liberais, democratas, socialistas e populares são convocados para levantar uma última barreira. A Comissão Parlamentar aprovou de surpresa o projeto de lei assinado por Acerbo, que prevê a atribuição de dois terços das cadeiras à chapa que obtiver a maioria relativa e, se o plenário não rejeitá-lo agora, a próxima eleição poderá ser a última.


1924


195) Segundo os boatos, a camareira também cumpre o papel de cafetina dos desafogos sexuais, que também são consumados com pressa, com as calças emboladas em volta dos tornozelos. Cesira o acode, mas o trata sem deferência excessiva; aliás, queixa-se com o único policial que monta guarda no andar por causa de um leãozinho, presente do dono de um circo equestre, que o Duce teima em manter em uma jaula no salão.

196) No entanto, se você olhar para ele sob outro ângulo, Benito Mussolini é o conquistador que, se vai a Londres em visita de Estado, na estação Victoria é acolhido por uma multidão em delírio; é o pensador a quem Giuseppe Ungaretti, nessa mesma época, pede que escreva o prefácio da sua obra-prima poética O porto sepulto; é o chefe carismático que industriais, políticos experientes, bispos e militantes esperam durante horas, trepidantes, para se encontrarem na antecâmara do seu gabinete na Sala das Vitórias.

197) Desmistificadas as lendas malévolas dos opositores internos, ele passa à estratégia para as próximas eleições políticas:

198) A estratégia é clara: desidratar os outros partidos e transferir seus integrantes para o Partido Nacional Fascista. Para isso, é necessário pôr fim de uma vez por todas às violências casuais dos membros selvagens das esquadras, acabar com os loucos, os exaltados, os destinados à morte certeira. O fascismo triunfará nas eleições trilhando “a via legalista”. Mas também é preciso acabar com as queixas da oposição sobre as liberdades pisoteadas: “A revolução fascista não veio com sacrifícios de vidas humanas; não criou até agora tribunais especiais; não houve rajadas de pelotões de fuzilamento; não exerceu o terror; não foram promulgadas leis de exceção.”

199) A despeito das proclamações públicas relativas à “via legalista”, em 10 de janeiro, ele, Giunta, Marinelli e De Bono se reuniram na casa de Mussolini na Via Rasella, gerida por Cesira Carocci, e ali, após brincarem um pouco com o leãozinho, decidiram construir um organismo secreto que dependesse diretamente deles para atingir os inimigos do fascismo. O Duce o considera indispensável: nessa fase de transição, em que as leis ainda sentem os efeitos do espírito liberal, não é possível fazê-lo com meios legais. A lacuna deve ser preenchida.

Durante a reunião, Mussolini também manifestou sua admiração pela energia impiedosa com que Lênin, na fase nascente do Estado comunista, não hesitou em autorizar que a Tcheka, a polícia secreta russa, usasse métodos de terror. O elogio, então, serviu como sugestão aos conselheiros para que batizassem a organização clandestina com o nome “Tcheka Fascista”. No fim da reunião, o Duce, satisfeito, cheirou as próprias mãos: “Sinto cheiro de leão!”, exclamou.

Para ficar à frente da “Tcheka Fascista”, foi proposto o nome de Amerigo Dùmini. O Duce o aceitou de bom grado. Nos últimos meses, o integrante florentino das esquadras desempenhara várias missões secretas na França para eliminar perigosos antifascistas fugitivos.

200) Todavia, o mestre de tática deu a Cesare Rossi indicações precisas para a compilação das listas. Primeira: se os homens dos velhos partidos quiserem entrar no “listão” fascista, deverão ser desmembrados. Entrarão um por vez, de cabeça baixa, desarmados. Ao obrigá-los a abjurar o pertencimento ao partido de origem, sua reeleição será equivalente a uma rendição. Sua cadeira no Montecitório implicará a insignificância política. Fim dos partidos tradicionais, despolitização da vida parlamentar, um único e grande “partido da nação”: o fascista. Segunda indicação: seja qual for a proveniência dos desmembrados, seu destino deve ser um só: a submissão ao Líder, a total dependência da sua vontade e, talvez, do seu capricho. Portanto, o sistema das nomeações deve vir do alto. Em síntese: só indivíduos, e não partidos, e todos nomeados por um único homem, o único que importa.

Recebidas as diretrizes, Cesare Rossi deve enfrentar a feira dos aspirantes, uma balbúrdia de pelo menos três mil suplicantes que chegam a Roma escoltados por imponentes séquitos de protetores e falastrões e se amontoam, impassíveis, no palácio do governo, onde acampam por horas e dias, obrigando o funcionário de serviço a dispersar grupos de deputados com o velho grito policial usado nas praças com os grevistas: “Circulando, pessoal, circulando...”.

201) Entretanto, no plano político a estratégia de Mussolini está dando frutos. Não está em jogo apenas a conquista de uma maioria, mas uma gigantesca operação de transformação para corromper o pouco que resta das ideias do Risorgimento: uma obra de demolição moral. Esse é o objetivo que Mussolini estipula para si mesmo, instigando os maiores líderes liberais, com todos os seus discursos de constitucionalidade e democracia, a entrar no “listão” e a se endividarem com os fascistas para se reelegerem.

202) “Quem não está conosco está contra nós.”

É só isso que o Duce continua a repetir para Cesare Rossi nos raros momentos em que se digna a lançar um olhar de desprezo e ira para o mingau que borbulha na baixa cozinha eleitoral.

203) Benito Mussolini, telegrama a Umberto Ricci, governador da província de Pavia, recém-nomeado:

O comportamento eleitoral de Forni cria algo irreparável entre ele e o nosso partido. Considero Forni um inimigo do meu governo.

204) Cesare Forni, carta aberta a Benito Mussolini, Corriere della Sera, 2 de março de 1924: Pode me perseguir, presidente. Eu não vou me dobrar até que o senhor mande tirar minha vida. Nós combatemos uma batalha santa não contra o senhor, nem contra seu governo, mas contra a degeneração do partido.

205) Circular telegráfica enviada pelo Partido Nacional Fascista às federações provinciais lombardas e piemontesas, 11 de março de 1924:

Ordena-se que os senhores Cesare Forni e Raimondo Sala sejam considerados os mais temíveis inimigos do fascismo. Por conseguinte, e paralelamente às instruções fornecidas pelo chefe do governo aos governadores das províncias, é preciso tornar a vida desses senhores impossível [...].

[Nota minha: Essa dissidência tem semelhança com a russa após a morte de Lênin.]

206) Como se não bastasse, no início de fevereiro, Mussolini até o recebeu em casa, na Via Rasella, para nomeá-lo chefe da “Tcheka Fascista”. Giovanni Marinelli, o tesoureiro do partido, presente à reunião, propôs que fosse fornecido um disfarce a Dùmini, contratando-o como inspetor-viajante das vendas do Corriere Italiano, dirigido por Filippelli, um trambiqueiro a serviço da família Mussolini que enriqueceu com os excedentes de guerra. Duas mil e quinhentas liras de salário mensal. E tem também o automóvel do jornal à sua disposição, o quarto no Hotel Dragoni, o aluguel de 400 liras mensais do apartamento na Via Cavour, as remunerações, as regalias, as gratificações a serem divididas a seu bel-prazer entre seus homens de confiança, a mesa cativa nas trattorie Bracche ou Al Buco. Tudo à custa do partido.

[Nota minha: O favorecido é Amerigo Dùmini.]

207) [Cesare Forni]: É o tipo de homem que você sempre gostaria de ter ao seu lado, nunca à sua frente, mas foi ele quem procurou encrenca. Nas eleições, apresentou uma lista dissidente: os Fasci di Combattimento Nacionais. Mussolini tentou de tudo: lhe propôs um comando na África, ameaçou-o, ordenou que os governadores de província fechassem seus jornais, prendessem seus amigos, dissolvessem as seções do partido em seus territórios, mas nada funcionou, ele não cedeu. Depois ultrapassou qualquer limite. Em um comício em Biella, em uma praça abarrotada com milhares de pessoas, milhares de fascistas, apontou o dedo contra os mandachuvas do partido: “Conheço muito bem indivíduos de condição financeira extremamente humilde que, em 1920 e 1921, me pediam poucas liras de esmola para poder matar a fome. Hoje vivem em Roma, em apartamentos principescos, pagos com o dinheiro do povo italiano.”

208) Lá está ele. Cesare Forni é pelo menos uma cabeça mais alto do que as centenas de passageiros anônimos, ignorantes e moderadamente felizes. Impossível não avistar seus cabelos ainda louros e as pálpebras já pesadas naquele mar de simples transeuntes. Difícil imaginar a violência no meio daquela multidão de padres, contadores e comerciantes.

209) Sozinho no círculo dos agressores, o agredido parece ainda maior. Enorme, desarmado, combate com as mãos nuas, com chutes e socos. Com as mãos já fraturadas pelos golpes, arranca um porrete recoberto de ferro e distribui golpes cegos. Um sujeito que estava com ele se aproxima. Um dos agressores sangra, recua, o círculo se rompe. Atraídos pela pausa momentânea, alguns transeuntes invertem a fuga e se aproximam.

Então, a cizânia de golpes recomeça, o círculo volta a se fechar, dezenas de madeiras estalam contra os ossos do crânio, quebram úmeros, escafoides, metacarpos. Cesare Forni, o rosto mascarado de sangue, cambaleia, recosta em um muro, desaba. Continuam a golpeá-lo mesmo no chão. A multidão grita “Chega! Chega!”. Quando todos o deixam sozinho, de Cesare Forni resta apenas um monte de farrapos no imenso volume vazio de um átrio ferroviário, uma pequena, cega mancha de sangue no universo infinito.

Em 15 de março, Benito Mussolini reivindica em um artigo assinado — originalmente intitulado “Quem trai morre” — o direito do fascismo de punir os próprios traidores. Consegue facilmente sustentar que a violência fascista é pouca coisa comparada à ferocidade com que os bolcheviques exterminam os dissidentes: na Rússia, no dia anterior, morto Lênin, Stálin ataca publicamente as teses de Trótski, o principal artífice da revolução. E, afinal de contas, Forni nem sequer morreu.

Então, na semana seguinte, para agradecer pelo tratado que devolve Fiume à Itália, Vítor Emanuel III confere a Benito Mussolini o colar da Ordem Suprema da Santíssima Anunciada, a honorificência máxima da Casa de Saboia. Agora o filho do ferreiro de Predappio é oficialmente primo do rei.

210) Benito Mussolini, discurso comemorativo da fundação dos Fasci di Combattimento pronunciado no Teatro Costanzi, Roma, 24 de março de 1924:

É necessário ser a favor ou contra. Ou fascismo, ou antifascismo. Quem não está conosco está contra nós.

211) O gosto pelo fratricídio e o fascínio pelo desastre voltaram a levar a melhor, e Matteotti foi o primeiro a cair novamente na polêmica com os cruéis irmãos do Partido Socialista Italiano. Acusou-os de executar “a manobra de sempre, descarregando sobre nós, infames reformistas, a responsabilidade pela divisão e pelo enfraquecimento do proletariado”.

212) Entretanto, não falta nem mesmo uma vírgula no livro que Matteotti acabou de publicar: Un anno di dominazione fascista. Na sua minuciosa lista das violências cometidas pelos homens do regime, abusos e delitos perpetrados pelos integrantes das esquadras nas províncias enquanto Mussolini, em Roma, se finge de pai da pátria, não falta uma cruz sequer. As surras, os incêndios e os assassinatos são elencados um a um, às dezenas, às centenas, aos milhares. Ao lado de cada um deles, o lugar, o nome, a data, como nas lápides funerárias.

213) Giacomo Matteotti, carta a Filippo Turati, às vésperas das eleições de 6 de abril de 1924:

Antes de mais nada, é preciso assumir, em relação à Ditadura fascista, um comportamento diferente do mantido até aqui; a nossa resistência ao regime do arbítrio deve ser mais ativa; não ceder em nenhum ponto; não abandonar nenhuma posição sem os mais incisivos, os mais altos protestos. Todos os direitos dos cidadãos devem ser reivindicados; o mesmo código reconhece a legítima defesa. Ninguém pode se iludir de que o fascismo dominante vá depor as armas e restituir espontaneamente à Itália um regime de legalidade e de liberdade; tudo o que ele obtém o impele a novos arbítrios, a novos abusos. É a sua essência, a sua origem, a sua única força; e é o próprio temperamento que o dirige.

214) A tensão nervosa, o asco furioso pelos próprios semelhantes, a melancólica visão da miséria humana despertaram no macho, como muitas vezes acontece, o fervor erótico.

215) Quatro milhões, seiscentos e cinquenta mil votos. Dois de cada três italianos votaram na chapa nacional do Fascio di Combattimento Litório. A lei Acerbo previa um desmesurado prêmio de maioria para a chapa que superasse 25%. Não houve necessidade: a chapa fascista obteve 64,9% dos votos. Elegeu todos os seus 356 candidatos, até o último. A eles, acrescentam-se os 19 eleitos de uma chapa nacional suplementar. Até o comparecimento às urnas aumentou. O governo de Benito Mussolini poderá, assim, contar no Parlamento com uma maioria esmagadora de 374 eleitos.

216) Mas as facções não morrem, e nem toda a Itália está com Mussolini. Os partidos de oposição foram sem dúvida dizimados: os deputados socialistas, em comparação com a legislatura anterior, diminuíram de 123 para 46; os populares, de 108 para 39; e os democratas, de 124 para 30. Só os comunistas ganharam alguma coisa, passando de 15 para 19 deputados. Entre eles, Antonio Gramsci entra para a Câmara no lugar de Nicola Bombacci, excluído da chapa.

217) Em protesto contra as irregularidades eleitorais, os socialistas deixam o plenário. Suas cadeiras vazias, embora poucas, abrem um abismo no triunfo de Benito Mussolini, que ainda agora, e apesar de tudo, odeia ter de se passar por um homem de direita.

218) “O que Dùmini está fazendo? O que essa Tcheka faz?! É inadmissível que, depois de um discurso como esse, aquele homem ainda possa circular! Senhorzinho Maldito!”

O acesso de fúria do Líder após o discurso de Matteotti desencadeou ondas de pânico no seu entourage.

219) Apenas os colaboradores mais próximos de Mussolini e alguns dos seus parentes — o irmão Arnaldo, Rachele, Finzi, Cesare Rossi e poucos outros — conhecem as explosões de cólera habituais, os ataques de ira, os instantes de feroz criminalidade que arrebatam Benito Mussolini. A violência, de resto, é o clima de toda uma época, a lei da atmosfera na qual se enreda o planeta fascista.

220) O Duce do fascismo mal terminou seu discurso conciliador de 7 de junho de 1924 e o boato já se espalha: Mussolini quer levar os socialistas para o seu governo. No fundo, sempre desejou poder voltar a abraçar os velhos companheiros. Parece que já havia tentado em novembro de 1922, após a Marcha. Na ocasião, não teve êxito. Talvez consiga agora, em junho de 1924. Nos corredores de Montecitório, volta-se a respirar.

221) [Descreve a captura, sequestro e assassinado de Giacomo Matteoti, principal figura opositora de Mussolini no parlamento. Os 4 assassinos eram comandados pessoalmente por Dùmini que fizeram a cilada na saída da residência de Matteoti. O desaparecimento foi seguido de intensas buscas e as pistas logo começaram a surgir com o descobrimento do automóvel Lancia que tinha sido alugado por Filippelli, o diretor do Corriere Italiano, ex-secretário pessoal de Arnaldo Mussolini, irmão de Benito. A polícia investiga, a carteira de Matteoti foi retirada do corpo e passa de mão em mão até chegar a Mussolini que fica paralisado e perplexo com aquilo e resolve guardar numa gaveta. No parlamento, Mussolini faz um discurso cínico condenando o desaparecimento e prometendo a prisão dos culpados.]

Entrevista de Scurati a propósito do assassinato de Matteoti

Poucas horas mais tarde, Amerigo Dùmini é parado na estação Termini enquanto tenta a fuga rumo ao Norte. De Bono, chefe de polícia, ignorando todos os protocolos de detenção, arrasta-o para uma conversa particular na delegacia da estação e exige a entrega da mala cheia de roupas ensanguentadas da vítima: “Você deve negar tudo, negar tudo. Aqui se trata de salvar o fascismo.”

Amerigo Dùmini se torna o detento 780/Gsi (grande supervisão e isolamento) da prisão Regina Coeli. Por ora, é o único a pagar pelo delito, mas lhe prometem uma libertação precoce. Com a certeza da impunidade, aceita. Os outros membros do bando ainda estão todos foragidos.

222) A notícia do sequestro de um parlamentar em plena luz do dia, nas ruas do Centro, rompeu com violência a vida violenta de todos os dias. A indignação é geral, as vozes de protesto se erguem por toda parte, até entre os próprios fascistas. Os jornais de oposição imprimem uma edição extraordinária após a outra, mas, mesmo assim, deixam insatisfeitos os leitores ávidos por justiça e vingança. O provável crime parece tão perverso e odioso que coloca em crise todo o sistema. A corrupção evidente, os métodos violentos de luta política e a corrosão dos ideais de repente se tornaram intoleráveis para todos. Recriminações, repulsas, ameaças, tintinar de sabres, soluços, remorsos, todos torcendo as mãos e arrancando os cabelos. De súbito, não se ouve nem se vê mais nada, para onde quer que se vire. A ideia abstrata, dispersa, do Mal se coagula, como um extrato de concreto de secagem rápida, na pessoa de Amerigo Dùmini e dos seus cúmplices, desconhecidos ou foragidos.

São preparados memoriais defensivos, Balbo vai correndo ao Palazzo Chigi pedir o “fuzilamento imediato de Dùmini”, começa a ocultação das provas, a disseminação de indícios falsos, a destruição dos rastros, os despistamentos, as falsas notícias difundidas com arte, a máquina da lama. Dizem que Matteotti teria fugido para o exterior, que estaria entocado na casa de uma amante, que alguns dias antes teriam chegado em Roma dois matadores da extrema-direita francesa.

223) Mussolini promete punir os culpados, condena a abominação, se diz comovido, pesaroso, se diz até pronto para fazer “justiça sumária” se lhe pedirem, depois protesta que um delito tão absurdo, danoso, foi cometido — mais do que contra a oposição — contra o tronco da revolução fascista, que resta profundamente manchado por ele: “Só um inimigo meu”, exclama com força, “que por longas noites tivesse pensado em algo diabólico poderia cometer o delito que hoje nos aflige com horror e nos arranca gritos de indignação.”

224) Uma onda de desprezo e comoção está submergindo o fascismo, um gorgulho de murmúrios o arrasta para o fundo. À medida que emergem detalhes do crime que comprometem os homens do governo, os jornais se lançam em revelações escandalosas sobre delitos de todo tipo: as trapaças de Aldo Finzi em áreas edificáveis compradas a preço de banana com lucro enorme, as despudoradas especulações de Michele Bianchi envolvendo a emigração clandestina e assim por diante. A foto em grupo dos homens que cercam Mussolini parece a de uma corte de baixo império.

Em contrapartida, a figura de Giacomo Matteotti ascende à glória de um santo. Sua casa na Via Giuseppe Pisanelli já se tornou meta de peregrinação; no local do sequestro, acumulam-se centenas de coroas de flores, uma espécie de mausoléu a céu aberto.

225) Se não for rompida, a cadeia de responsabilidade logo chegará até ele. Então ele a rompe, sacrificando seus colaboradores mais próximos: Benito Mussolini pede a renúncia de Aldo Finzi e Cesare Rossi.

Aldo Finzi, seduzido por uma promessa — sua abnegação será recompensada muito em breve com o ministério do Interior, é o que lhe dizem —, aceita. Já Cesare Rossi tem um ímpeto violento: afirma sua completa inocência, declara que deve defender a própria honra, chama Mussolini de louco na presença de amigos. Rossi escreve uma carta oficial de renúncia, sóbria, cortês, porém depois envia outra, secreta, com ameaças claras. Uma vez enviadas as duas cartas, toma um chá de sumiço.

226) Carta particular de Cesare Rossi a Benito Mussolini, 15 de junho de 1924:

Presidente,

A partir de uma série de indícios e de notícias circunspectas, tenho a impressão de que você escolheu a mim, e apenas a mim, como bode expiatório da catástrofe que se abateu sobre o fascismo [...].

Pois bem, para certas coisas, é preciso que duas pessoas estejam de acordo. Não sirvo de forma alguma para isso [...]. No tribunal: se eu não receber, nos próximos dias, a prova do reconhecimento dos deveres de apoio não tanto em relação à minha pessoa, ao meu passado; não tanto em relação à minha condição de seu colaborador e executor, às vezes de ações ilegais por você ordenadas; mas sobretudo em relação à elementar ausência das razões de Estado, realizarei o que declarei esta manhã e aperfeiçoei ao longo do dia [...].

É desnecessário advertir que, se o cinismo de que você deu provas assustadoras até hoje, complicado pelo desnorteamento pelo qual você foi invadido logo quando deveria dominar as situações criadas exclusivamente por você, o induzisse a ordenar gestos de supressão física durante o período em que eu estiver foragido, e na desafortunada eventualidade da minha captura, você também seria um homem destruído, e, como você, o regime, pois minha longa e detalhada declaração documentada já está, é óbvio, nas mãos de amigos de confiança que de fato cumprem os deveres da amizade.

227) Mas também a justiça segue seu curso. Após permanecer foragido, Albino Volpi é enfim detido em um restaurante de Bellagio enquanto almoça antes de cruzar a fronteira suíça. Filippelli, o diretor do Corriere Italiano que alugou o carro do delito, após alguns dias de despudorada impunidade, é interceptado pela guarda costeira a bordo de uma lancha em rota para as praias francesas. Nas horas seguintes, caem na rede, um após o outro, quase todos os acusados: Giuseppe Viola e Amleto Poveromo são presos em Milão, enquanto Cesare Rossi, sem esperança de poder continuar foragido, se entrega à chefatura de polícia de Roma em 22 de junho.

228) [A contra-ofensiva de Mussolini foi ordenar aos governadores manifestações de apoio ao governo. A recente Milizia per la Sicurezza Nazionale criada como resultado da organização de ações repressivas do movimento fascista antes da tomada do poder, realiza enorme desfiles pelas grandes capitais do país.]

229) Mas também a justiça segue seu curso. Após permanecer foragido, Albino Volpi é enfim detido em um restaurante de Bellagio enquanto almoça antes de cruzar a fronteira suíça. Filippelli, o diretor do Corriere Italiano que alugou o carro do delito, após alguns dias de despudorada impunidade, é interceptado pela guarda costeira a bordo de uma lancha em rota para as praias francesas. Nas horas seguintes, caem na rede, um após o outro, quase todos os acusados: Giuseppe Viola e Amleto Poveromo são presos em Milão, enquanto Cesare Rossi, sem esperança de poder continuar foragido, se entrega à chefatura de polícia de Roma em 22 de junho.

230) “Se eu me salvar, salvo todos. Fique tranquilo. Quanto mais confusão, melhor.” [Disse Mussolini depois de pedir a renúncia de diversos ministros.]

231) Em 26 de junho, o governo obtém a moção de confiança do Senado com ampla maioria: 225 votos a favor, 21 contra, 6 abstenções.

“Votação importantíssima”, escreve Mussolini em suas notas, “eu ousaria dizer decisiva. O Senado, em um momento difícil, em plena tempestade política e moral, alinha-se quase de maneira unânime ao governo.”

232) Para dar voz aos últimos, surge um jovem ex-voluntário de guerra toscano — que adota o nome de Curzio Malaparte —, fundador de uma revista, La conquista dello Stato, na qual, em nome da alma popularesca, rústica, generosa e atrevida do fascismo provincial em contraposição à “cloaca romana”, defende com a espada desembainhada a irrupção do esquadrismo intransigente contra os viúvos de Matteotti.

233) A violência, evocada pelo Duce, eclode poucos dias depois, em 5 de setembro, em Turim. Piero Gobetti, o delicado e jovem diretor do La rivoluzione liberale, é esperado na rua por um grupo de integrantes de esquadras; surram-no violentamente, causando gravíssimas lesões internas; uma pequena multidão assiste atônita e prudente à luta de um homem contra uma dezena. Mas não é apenas a agressão de Turim. Voltam a surgir por toda parte manifestações, destruições, alvoroços. De ambos os lados. A piora culmina em um bonde em Roma no qual, em 12 de setembro, o operário Giovanni Corvi assassina com três tiros de revólver o sindicalista fascista Armando Casalini diante dos olhos petrificados da filha pequena. Em Cremona, Farinacci invoca a limpeza étnica da oposição: “Se não é suficiente a vassoura, que se use a metralhadora.”

O jornal fascista L’impero pede campo de concentração para os chefes do Aventino. Os integrantes das esquadras de província imploram a Mussolini: “Duce, desate nossas mãos.” A “segunda onda” parece inevitável, incipiente, uma necessidade histórica.

234) Mussolini:
O delito contra Matteotti, que foi lealmente deplorado por todo o partido, foi adotado pela oposição como o tão procurado pretexto para atacar o governo. Estamos diante de uma espécie de frente antifascista unida.

Para a noite de segunda ou terça-feira, ordene uma reunião dos fascistas da cidade e da província em uma praça para reafirmar solenemente a confiança no Governo e no Fascismo.

235) Texto:
Sua poltrona de presidente do Conselho de Ministros ainda é uma barricada, seu ataque é dirigido abertamente aos seus inimigos.

“Senhores! O discurso que estou prestes a pronunciar não poderá ser, a rigor, classificado como um discurso parlamentar. Não procuro em vocês um voto político, já os obtive em demasia.”

O orador agora empunha um livro. É o manual dos deputados, que contém o Estatuto do Reino. A atenção de todos se concentra no volume encadernado como se fosse uma granada ativada.

“O artigo 47 do Estatuto diz: ‘A Câmara dos Deputados tem o direito de acusar os ministros do rei e de conduzi-los à Alta Corte de Justiça.’ Pergunto formalmente: nesta Câmara, ou fora desta Câmara, há alguém que queira se valer do artigo 47?”

236) Basta que apenas um fale e ele estará perdido.

Entre os líderes da oposição, sentados em suas cadeiras ou em meio à multidão das tribunas, há homens corajosos. Por anos, o dia a dia deles foi uma trincheira, suportaram ameaças, alguns foram surrados várias vezes. Basta que apenas um deles se levante, que se erga solitário na acusação, rompendo a disciplina partidária, o anel da violência, opondo força moral a força física, respondendo ao apelo do futuro, sendo justiçado no presente para ser vingado na posterioridade, submergido pela vida para se salvar na história. É suficiente que apenas um se levante para envenenar tudo aquilo que “Ele” ainda teria a dizer, anotado em poucos apontamentos lançados de improviso em uma folha solta.

Ninguém se levanta.

Ficam em pé somente os cortesãos fascistas para aplaudir seu Duce.

Então o Duce extravasa

237) Assim, sua voz se ergue, potente, no plenário de Montecitório, metralhando uma sílaba após a outra. Disseram que ele teria fundado uma Tcheka. Onde? Quando? De que maneira? Ninguém poderia dizer. Se ninguém o culpa, ele, então, exonera-se: ele sempre afirmou ser discípulo daquela violência que não pode ser expulsa da história, mas ele é corajoso, inteligente, visionário, a violência dos assassinos de Matteotti é covarde, estúpida, cega. Que não cometam a injustiça de considerá-lo tão cretino! Ele nunca se demonstrou inferior aos acontecimentos, não teria sequer imaginado poder ordenar o absurdo, catastrófico assassinato de Matteotti; ele não odiava de maneira alguma aquele adversário inflexível, até o estimava, apreciava sua teimosia, sua coragem, tão semelhante à própria indefectível coragem. Da qual ele agora está prestes a dar uma prova.

238) Durante meses, fez-se uma campanha política imunda e miserável, difundiram-se as mentiras mais macabras, mais necrófilas, fizeram-se inquisições até debaixo da terra. Ele permaneceu calmo, freou os violentos, trabalhou pela paz. E como responderam seus inimigos? Elevando a aposta, sobrecarregando-o. Encenaram a questão moral, disseram que o fascismo não era uma paixão soberba do povo italiano, mas uma libido obscena, que o fascismo era uma horda de bárbaros acampados na nação, um movimento de bandidos e assaltantes. Dessa maneira, reduzindo tudo a delinquência, foi sugerido aos italianos que nunca aceitassem nada como verdadeiro, insinuou-se a venenosa suspeita de que o céu, a terra, o ar, as cores, os sons, os cheiros são todos somente o logro de um demônio maligno, que o drama grandioso da história — a luta dos povos jovens contra os decadentes, o cais mediterrâneo do continente europeu lançado na direção do africano — deveria ser desqualificado como um caso banal, inútil, de reportagem policial.

239) “Pois bem, senhores, declaro aqui, perante esta assembleia e perante todo o povo italiano, que assumo, sozinho, a responsabilidade política, moral, histórica por tudo o que aconteceu. Se as frases mais ou menos deturpadas são suficientes para enforcar um homem, peguem a haste e peguem a corda! Se o fascismo foi apenas óleo de rícino e cassetete, e não uma paixão soberba da melhor juventude italiana, a culpa é minha! Se o fascismo foi uma organização criminosa, eu sou o chefe dessa associação criminosa!”

Mais uma vez, ninguém se levanta para deter o filho do século. O plenário responde com um único grito, respeitoso, devoto, entusiasta:

“Todos com o senhor! Todos com o senhor, primeiro-ministro!”

Ele, então, ergue o queixo na direção do horizonte, estufa o peito, conclui. Quando dois elementos estão em luta e são irredutíveis, a solução é a força. Nunca houve e nunca haverá outra solução na história. Ele, homem forte, promete que a situação será esclarecida “em toda a sua extensão” em 48 horas após seu discurso.

Aquela expressão ambígua, ampla — “em toda a sua extensão” — cai sobre a Câmara dos Deputados como uma lápide. A sessão é encerrada sem discussão nem voto. A assembleia, sem ter estabelecido data ou ordem do dia da sessão seguinte, será reconvocada em domicílio. Atenuados os clamores das ovações fascistas, o plenário, lentamente, pouco a pouco, se esvazia. Benito Mussolini fica por muito tempo, sozinho, sentado à sua mesa de primeiro-ministro.


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