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terça-feira, 12 de julho de 2022

Fragmentos 41 - parte 4

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


1922

130) Mussolini se cala, reflete. Nenni erra ao imputar tudo ao seu cínico individualismo. O individualismo não dá trégua, está por toda parte, o individualismo é a própria modernidade. Não é de forma alguma uma tendência pessoal de Benito Mussolini. Desde que o indivíduo tomou o centro de tudo, cada um está livre para buscar a própria ideologia, para desenhar o estilo da própria existência, para brincar com as ideias como lhe convém. O culto romântico dos sentimentos pessoais, da espontaneidade, das palpitações do coração, da liberdade de amar a si mesmo, gerou tudo isso. O cinismo, então, veio de brinde com todo o pacote. Agora até o bocejo do último dos idiotas um pouco entediado se sente no direito de engolir o mundo.

131) Além disso, o cinismo está nos fatos, não nos olhos. Veja as francesas... todas corrompidas e putas. Ele as viu babar nos bordéis de Paris. A mulher francesa gosta de negros. Porque eles não têm um pau bem sólido e robusto, mas comprido, compridíssimo, e parece que isso as diverte mais. Sim, as francesas são loucas por negros. Todas.

132) Velia é a irmã mais nova do barítono Ruffo Titta, um dos mais célebres cantores da época, nascida em uma família abastada e educada em instituições católicas que marcaram sua alma com uma fé pensativa e profunda, a ponto de cogitar fazer os votos, colocando os muros de um convento entre si mesma e o mundo. Como alternativa ao repúdio definitivo, quando garota, a freira frustrada escreveu e publicou romances.

133) Dez anos de cartas melancólicas: caríssima Velia, caríssimo Giacomo, amo você com sofrimento, como se deve amar. [Mussolini]

134) O governo Bonomi caiu. A esperança de que nascera, o pacto de pacificação que deveria amansar a guerra civil, desapareceu há meses. Já em novembro era possível entender que suas tentativas de desarmar os fascistas fracassariam, e quem o manteve artificialmente vivo até fevereiro, por cálculos de conveniência, foi Mussolini. Paradoxalmente, quem o afundou foram justo os socialistas. Por não quererem entrar em uma coalizão governamental com os partidos capitalistas, preferiram denunciar mais uma vez a impotência do Estado diante dos criminosos em vez de reforçá-lo à custa de um acordo. O resultado é que agora todos começam a se convencer de que não é possível resolver a questão tratando o fascismo como um mero problema de polícia. Pelo contrário, será necessário levá-los ao governo.

135) Com aquela gente ali, o problema é sempre o mesmo: para eles o poder significa comer, beber, trepar e arrebentar cabeças. Sempre armados com apenas uma faca, o instrumento da eterna briga, ninfomaníacos da violência, embriagados pelos próprios impulsos, dedicados à descarga do prazer imediato, eles se movem sempre na zona dos espasmos, incapazes de vivenciar dentro de si mesmos a espera, o esforço contido, o sofrimento ascensional da verdadeira batalha. Com eles, nenhuma respeitabilidade, nenhuma elevação é possível. Eles puxam você para baixo.

136) Chega de submundo, agora é pensar alto, mudar para bairros elegantes! Inaugurou-a com um artigo intitulado “Para que lado vai o mundo?”. A resposta, ele mesmo deu: o mundo vai para a direita. A farra democrática acabou em desgosto.

137) Italo Balbo, Diario, 25 de fevereiro de 1922:
O regime atual desmorona. Resta apenas uma coleção de estadistas decrépitos que comunicam sua paralisia ao Parlamento e aos órgãos do Estado. Os governadores de província não têm mais como se orientar. Que espetáculo! Nós, fascistas, nos importamos pouco com isso. É extraordinário como os membros das minhas esquadras ignoram até os nomes dos ministros demissionários e daqueles em exercício.

138) Na província de Ferrara, as massas rurais migraram em bloco das ligas vermelhas para os sindicatos fascistas. Alguns dos chefes das ligas até se rebaixaram à humilhação de pisar publicamente nas próprias bandeiras. Centenas de milhares de assalariados rurais temporários socialistas se tornaram fascistas no intervalo de um ano. Um milagre eucarístico de transmutação do vermelho em negro. [Em maio de 1922.]

139) Em 25 de abril, Balbo está em Milão com Mussolini para ilustrar-lhe seu projeto. A situação é a seguinte: para os guerreiros, a primavera é a estação dos grandes ataques, mas, para os assalariados rurais temporários da região de Ferrara, é a estação da fome. Durante o inverno, graças ao acordo que obriga os proprietários rurais a contratar seis trabalhadores a cada trinta hectares, os temporários arranjam trabalho, mas, entre abril e maio, ficam ociosos. Os números são bíblicos: cinquenta mil, setenta mil desempregados sofrendo de pelagra. No passado, o Estado remediava com 10, 15 milhões em obras públicas. Mas, agora que os campos estão nas mãos dos fascistas, o governo de Roma, influenciado pelos deputados socialistas, quer que os camponeses paguem sua conversão ao fascismo passando fome. A ideia de Balbo é explosiva: ocupar Ferrara com uma mobilização de massa que obrigue o governo a ceder e demonstre a capacidade dos fascistas de conseguir pão para os seus adeptos. Além disso, o plano teria a vantagem de obter trabalho para os trabalhadores rurais temporários à custa do Estado sem prejudicar os interesses dos proprietários rurais que financiam os Fasci di Combattimento. Ao fim da apresentação, como sempre, Balbo solta uma risadinha.

Mussolini o escuta em silêncio. No sorriso diabólico daquele jovem alto, magro e forte, vê o passado e o futuro. O fascismo discípulo e herdeiro da lição socialista: as massas não mais relegadas às margens da história, mas convocadas ao palco da política. A atuação mesclada à violência, o teatro de massa, a cidade do socialismo transformada em palco para a récita da passagem do poder.

140) A mobilização começa à meia-noite de 11 de maio. De todas as casas mais isoladas dos campos da região de Ferrara, arregimentados por secretários dos Fasci di Combattimento, a pé, de bicicleta, em carroças, a bordo de barcas puxadas por cavalos ou por homens nas margens que ladeiam os canais do Pó de Goro e de Volano, milhares de miseráveis se põem em marcha na calada da noite rumo à cidade.

141) Ferrara acorda na manhã seguinte invadida por um exército descalço: cinquenta mil trabalhadores rurais emaciados pela fome, endurecidos por uma crosta de poeira, mantas jogadas nas costas, nada além de pedaços de polenta e queijo nos bornais, que saciam a sede nos hidrantes, controlados por piquetes fascistas, desfilam enfileirados ao longo do Corso della Giovecca sob os olhos arregalados dos burgueses.

O campo adentrou a cidade, a cidade está invadida e paralisada. Balbo mandou cortar os cabos telefônicos, requisitou os edifícios escolares para os aquartelamentos, ordenou o fechamento de todos os estabelecimentos comerciais. A mobilização, considerada impossível, é um sucesso que supera todas as previsões. Milhares de miseráveis acampam nas ruas, deitados sobre enxergões. O castelo está cercado pelo exército da fome; o governador da província, aterrorizado, pede uma entrevista com o líder do exército invasor. Quando Balbo se apresenta na ponte levadiça, é acompanhado pelo grito de milhares de bocas famintas e desdentadas.

Pálido e congestionado, com o costumeiro colete branco atravessado por uma corrente de ouro sobre a barriguinha redonda, o governador Bladier recebe o ultimato de Balbo: a polícia deve ser reconvocada aos quartéis, a ordem pública será garantida pelos fascistas, os camponeses não se desmobilizarão até que o governo garanta a concessão de obras públicas.

Passam-se 48 horas, 2 dias e 2 noites de tergiversações, tratativas, comícios e acampamentos, o forno comunal produz 20 mil quilos de pão. Então, na aurora de 14 de maio, chega a notícia: o ministro Riccio cedeu em tudo, o Estado capitulou, a vitória é total. Balbo ordena a desmobilização. Ferrara agora é sua. De Milão, Mussolini exulta, mas fica pasmo diante da repentina mudança de bandeira daqueles trabalhadores rurais que até ontem eram socialistas e hoje são fascistas. Sente a grandiosidade do momento, porém, dentro de si, uma fibra oculta de pressentimento angustiado treme diante da rapidez da inversão da fidelidade dos povos. Efêmera ou duradoura? Aparência ou substância? Uma onda que passa ou algo que fica?

142) Agora, enviado por Bonomi a Bolonha com plenos poderes de coordenação regional da ordem pública, Mori não muda. Com três lances simples, acua a organização fascista: ao impedir a circulação de furgões nos fins de semana, conteve as expedições das esquadras; ao impor centrais de emprego governamentais, tirou dos sindicatos fascistas o controle das massas rurais; ao proibir a imigração de mão de obra sazonal, está destruindo a ação dos fura-greves nas paralisações dos assalariados rurais temporários. A polêmica feroz dos fascistas contra a incapacidade do Estado exige que Cesare Mori, que é a encarnação da sua eficiência, seja abatido.

O caminho foi indicado por Balbo ao ocupar Ferrara. É necessário marchar. Marchar não mais apenas para impor a própria vontade ao Estado, mas para se contrapor abertamente a ele.

143) A partir do dia 29, os fascistas chegam aos milhares das regiões de Codigoro, Portomaggiore e Copparo e se revezam em turnos de 30 horas. Os cidadãos de Bolonha assistem estupefatos ao espetáculo de milhares de homens que pernoitam durante quatro noites sob os pórticos, em leitos de palha comprimida.

Entretanto, a marcha, mais uma vez, dá o braço à violência. Ao longo do caminho, os fascistas devastam, como sempre, sistematicamente, todas as sedes socialistas, comunistas, da Câmara do Trabalho e das cooperativas agrícolas. A novidade, porém, é que agora surram sem distinção deputados socialistas e comissários da segurança pública.

144) Sitiado há três dias no seu gabinete, o governador da província envia continuamente telegramas a Roma para receber ordens. Suas mensagens obtêm respostas vagas, elusivas. Enquanto isso, chegam da praça os cânticos dos acampamentos: “Mori, Mori, você deve morrer/ com o punhal que afiamos/ Mori, você deve morrer assassinado.”

Se alguém abrisse fogo, seria um massacre. Mas a ordem não chega. O braço de ferro se rompe com uma zombaria. O método Balbo prevê que a marcha deve ser guiada com “alegria juvenil”. Então, Giacomo Vigliani, senador do reino, inspetor enviado pelo governo, informa a Roma que os membros das esquadras se enfileiram, revezando-se, e, com perfeita disciplina, um depois do outro, durante horas põem o pau para fora das calças e mijam no palácio do governador da província. O círculo do ridículo se fecha em torno do Estado italiano e de Cesare Mori, que o encarna.

145) Após cinco dias de ocupação em Bolonha, e garantida a transferência de Mori, em 2 de junho Mussolini promulga a ordem de desmobilização. “Esse exemplo”, lê-se na conclusão, “marcará uma época na história italiana. Assumo formalmente o compromisso, caso se torne necessária uma retomada da agitação, de liderá-la entre vocês. Contudo, então, ela terá amplitude mais vasta e objetivos mais distantes.” Depois de Ferrara, depois de Bolonha, começa-se a pensar em Roma. É claro como o dia que a marcha de Balbo fez escola.

146) Italo Balbo, na página de 5 de junho, comentando a ocupação de Bolonha, anota em seu diário: “Ensaio geral da revolução.”

147) Amerigo Dùmini, Milão, 3 de agosto de 1922:

A verdade é que o tormento, esse sim, existe, embora não exista dilema algum. Os fascistas não dão a mínima para nada nem para ninguém, os fascistas se proclamam autênticos representantes da nação sã, máscula, forte, contra os fantoches melancólicos que se apresentam no teatro de Montecitório; mas, no fundo, se o Parlamento italiano é uma nojeira — e quanto a isso não pode haver dúvidas —, a Itália não é melhor. De nada adianta ter ilusões, a ruína não tolera distinções, não há nenhum desvio, nenhuma margem, nenhuma fenda. A estratégia de Mussolini é sempre a mesma: ele espera, espera, espera... porque deve-se esperar a passagem do morto diante da porta de casa. No entanto, o morto já entrou porta adentro, o cadáver da democracia liberal está arrumado entre a poeira e os ácaros do sofá há tanto tempo que ninguém mais nota. Não, não há dilema algum, a violência não tem aberturas. A tática de Mussolini é sempre aquela: dosar, diluir, dilatar e, por fim, negociar em uma posição de força. E por isso estamos condenados a sempre espreitar o horizonte por sobre a copa das árvores incineradas para avistar o fogo do próximo incêndio. A única verdadeira diferença entre o Duce e os membros das suas esquadras é que, para ele, a violência é uma simples ferramenta afiada, ao passo que, para os violentos, é um sangrento desejo de luz, uma sede, um apetite; para ele, a briga é uma pequena realidade da vida, para eles, o choque entre grupos armados é um mito. Não existe partida.

148) Em pé na caçamba, com as mangas da camisa preta arregaçadas revelando os braços musculosos, um homem forte se segura nas laterais e comanda o ataque. Filho de um dos mais ricos proprietários de terras da Lomellina, 32 anos, louro-acinzentado, duas pesadas bolsas serosas sob os olhos febricitantes, Cesare Forni passou a juventude em meio a cocaína, quartos de bordéis e salas de bilhar de Turim. Depois, como muitos homens da sua geração, encontrou na guerra o sentido para uma vida sem sentido. Capitão de artilharia, foi condecorado oito vezes por bravura no campo de batalha. Ao voltar à casa do pai, semeou terror nas suas terras, liderando esquadras fascistas na destruição metódica de todas as ligas camponesas da comarca e, depois, de toda a Lombardia meridional. Após surrar centenas de camponeses, obrigou-os a se afiliarem aos sindicados fascistas pregando sua total subordinação ao partido. Seus homens o veneram. Trouxe de Mortara setecentos deles até Milão para acabar com a greve dos subversivos em sua fortaleza. Agora, o caminhão no qual Cesare Forni se ergue como um louco é lançado a toda velocidade contra o Palazzo Marino, sede da junta comunal da cidade onde nasceu o socialismo italiano. Bem na frente do Scala.

Os fascistas tentam tomar o Palazzo Marino ao longo de todo o dia, mas o comandante da divisão de Milão concentrou milhares de guardas reais na sua defesa. Os integrantes das esquadras, entocados sob os pórticos do teatro, confrontam-se com os soldados a cavalo desde a manhã. Um deles, escalando as grades das janelas de uma rua lateral, conseguiu penetrar no palácio, expondo a bandeira tricolor na sacada da sala do conselho comunal, mas logo foi preso. Agora, porém, o motorista do caminhão, incitado por Forni, pisa no acelerador diante dos cordões de isolamento da polícia.

Os policiais se afastam por um triz, a dianteira do caminhão explode contra a grade em ferro batido de estilo art nouveau floral. O som das ferragens se mescla aos relinchos dos cavalos. Enquanto o clangor ensurdece os policiais, vários carros repletos de fascistas irrompem na praça, impedindo a manobra do pelotão de guardas montados. Ao mesmo tempo, três colunas de fascistas despontam de Via Verdi, Via Manzoni e Via Santa Margherita. Gritam “Avante!”, atropelam os militares, invadem o palácio. Por um instante, tudo para: o mundo se cristaliza em um grito contra o bom senso, em um grito de revolta total contra a realidade, na necessidade irrefreável de derrubá-la.

Cesare Rossi está louco de alegria. Espera por esse momento há 48 horas, desde que os trabalhadores de toda a Itália proclamaram a greve geral para protestar contra a “coluna de fogo” de Balbo, mas, na verdade, parece que o aguarda desde sempre. Amerigo Dùmini está ao seu lado desde a alvorada, ordenou-lhe que ficasse grudado como uma sombra para proteger sua retaguarda e começou a distribuir ordens às esquadras que chegavam de toda a Lombardia. Mussolini não está presente: deveria estar em Roma, mas ninguém consegue encontrá-lo. Dizem que, assanhado por uma nova conquista, levou-a em um passeio romântico até os Castelos Romanos. Arnaldo, seu irmão, a cada meia hora liga para as centrais telefônicas de todos os hotéis entre Ariccia e Frascati. O Duce está sumido.

Eis o que aconteceu: assim que soube da “coluna de fogo” de Balbo, a Aliança do Trabalho tentou uma última resistência e proclamou greve geral a partir da meia-noite de 31 de julho. Batizaram-na de “greve legalista”: todas as organizações operárias e camponesas da Itália prontas a lutar de maneira compacta pela defesa das liberdades políticas e sindicais. Uma daquelas batalhas que não permitem revanche, o jogador aposta tudo na última cartada, preparado, em caso de derrota, para dar um tiro na cabeça.

149) Em 1o de agosto, no início da agitação, Michele Bianchi, não menos exaltado do que Cesare Rossi por aquela oportunidade imperdível oferecida pela cegueira dos socialistas, promulga o ultimato dos fascistas: “Damos 48 horas para que o Estado dê prova da sua autoridade em relação a todos os seus dependentes e a todos aqueles que atentam contra a existência da nação. Ao fim desse prazo, o fascismo reivindicará plena liberdade de ação e substituirá o Estado no caso de mais uma prova da sua incompetência.” Mussolini, nas colunas do seu jornal, exulta: “Pedimos apenas isto: ter campo livre para lutar, para viver, para sofrer, para vencer; ou melhor: para triunfar. E triunfaremos.”

Agora, enquanto circula pelos escritórios do prefeito de Milão invadidos pelas esquadras, Cesare Rossi está de fato triunfante. Continua a se virar para o seu guarda-costas e a repetir que aqueles pobres dementes dos líderes socialistas, ao proclamar a enésima greve geral, ressuscitaram o único fantasma que ainda poderia justificar a violência de Balbo: o espectro da revolução bolchevique. Um medo irracional em troca de uma esperança irracional.

150) “Realidade”, Corriere della Sera, 6 de agosto de 1922:
Há cerca de duas semanas, o fascismo não gozava de grande fervor junto à opinião pública. Suas expedições e os sistemas para executá-las e levá-las a cabo pareciam exorbitantes diante da reduzida obstinação e da fraca resistência dos adversários [...]. Hoje a Itália está muito mais propensa aos fascistas. De nada serve dissimulá-lo[...]. A greve geral foi o espelho no qual a nação viu refletido outra vez o rosto bolchevique dos tristíssimos anos após a vitória.

151) O socialismo está destruído. Não vai se reerguer. O castigo infligido pelas esquadras fascistas foi implacável, não parou nem mesmo quando, em 4 de agosto, a Aliança do Trabalho, derrotada, revogou a “greve legalista”. Pelo contrário, àquela altura, lançou-se sobre o inimigo caído no chão por dias e dias: centenas de cooperativas, círculos, Câmaras do Trabalho destruídos em todo o país, administrações socialistas demissionárias. Ele [Mussolini] sobrevoou a Itália em 12 de agosto e, na Toscana, na Emília, na baixada do rio Pó, a fumaça dos incêndios ainda era visível. Um autêntico golpe de misericórdia.

152) A Itália é de fato um país maravilhoso; 48 horas de pauladas conseguiram o que um século de luta não conseguiu: os socialistas foram massacrados. Olhe lá embaixo aqueles homens, aqueles jornais, aquelas organizações socialistas que até ontem animavam as planícies, o litoral, as encostas deste magnífico país. Olhe para eles agora... nem um gesto, nem um grito, não ousam sequer respirar.

De novo, Turati tem razão, mas exagera no pessimismo. Agora nem é mais necessário atacar os socialistas, restaram apenas duas forças em campo: os fascistas e o Estado liberal, e será um duelo mortal. Espere bastante antes de desferir seu único golpe. Essa é a máxima à qual é obrigatório se ater. Como sempre.

153) La Stampa, Turim, 15 de agosto de 1922:
Vamos ao dilema fascista: ou eleições ou violência — tão abertamente enunciado, é preciso mais uma vez que seja contraposto, por qualquer pessoa que mantenha um pingo de bom senso estatal, o pressuposto legalista [...]. Deve-se considerar inadmissível que, para afirmar a própria força, um partido apele ao veredito das urnas, de acordo com as formas legais do nosso regime constitucional, e, ao mesmo tempo, ameace claramente uma revolta, um levante armado, o golpe de Estado. O equívoco no qual se baseia é fazer crer que o fascismo está obrigado a estabelecer esse dilema entre legalidade e revolução para alcançar a própria salvação; isso é o exato contrário da verdade. O fascismo não se encontra diante de nenhuma bifurcação necessária, porque ninguém o está ameaçando e ninguém está contestando seu lugar ao sol: cabe a ele, e somente a ele, escolher entre a cédula eleitoral e a insurreição.

154) O dilaceramento se consuma em 3 de outubro, em Roma, durante os trabalhos do XIX Congresso do Partido Socialista Italiano, em uma outra sessão melancólica e torturante. A única coisa a evitar é uma nova cisão. Divididos, os revolucionários não poderão fazer a revolução, e os reformistas não poderão colaborar com o governo. Entretanto, eles se separam, uma cisão suicida, mas, àquela altura, inevitável: nas moções da direita e da esquerda, veem-se dois extremos do mesmo desespero. A proposta de Giacinto Menotti Serrati, secretário do partido, de expulsar os reformistas prevalece por um punhado de votos. Filippo Turati e Giacomo Matteotti são expulsos do Partido Socialista ao qual dedicaram a vida. Depois da mutilação, o congresso delibera a adesão à Internacional Comunista e o envio de uma nova delegação a Moscou. A discussão, acalorada, se conclui com quem deve participar da comitiva.

Os expulsos — Turati, Matteotti, Claudio Treves, Giuseppe Saragat, Sandro Pertini — fundam um terceiro partido da esquerda italiana, que, não se sabe bem se pelo prazer do paradoxo ou se por inspiração do insuperável desespero de sempre, é batizado de Partido Socialista Unitário. O jovem, enérgico, indomável Giacomo Matteotti é eleito secretário. Agora estão livres dos delírios “maximalistas” de uma revolução sempre anunciada e nunca tentada. Estão livres, mas não sabem o que fazer com sua liberdade.

155) Benito Mussolini, Milão, 16 de outubro de 1922:
“Ao primeiro fogo, todo o fascismo ruirá.” É o que supostamente disse o general Badoglio em uma reunião em Roma, na presença de banqueiros, jornalistas e até do general Diaz.

Ao primeiro fogo do Exército regular, o fascismo ruiria. Todos sabem disso. No entanto, quatro generais experientes e quatro veteranos com muitas condecorações se reúnem em uma tarde de outono em Milão para decidir a insurreição armada contra o Estado.

156) O Duce do fascismo toma a palavra e explica por que estão ali. Estão ali porque um Estado que não sabe mais se defender não tem o direito de existir. Se, na Itália, houvesse um governo de verdade, os guardas reais entrariam por aquela porta naquele exato momento, acabariam com a reunião, ocupariam a sede e prenderiam todos eles. Não é concebível uma organização armada com chefes e regulamentos em um Estado que tem seu exército e sua polícia. Só que, na Itália, o Estado não existe. Não adianta, os fascistas devem necessariamente assumir o poder, ou a história da Itália se tornará uma piada.

O silogismo é elementar: a Itália é uma nação, mas não tem um Estado. O fascismo, portanto, vai lhe dar um Estado. Na convenção fascista de Udine em 20 de setembro, Mussolini disse claramente: “Nosso programa é simples, queremos governar a Itália.”

157) Benito Mussolini, comício de Cremona, 24 de setembro de 1922:
O confronto é entre uma Itália de politiqueiros covardes e a Itália sadia, forte, vigorosa, que se prepara para varrer para longe, definitivamente, todos os incompetentes, todos os mercenários, toda a ralé infecta da sociedade italiana [...]. Enfim, queremos que a Itália se torne fascista.

158) No fim de outubro, Nicola Bombacci parte para Moscou, onde acontece o IV Congresso da Internacional Comunista. Viaja com a delegação do Partido Comunista da Itália, que se separou do Partido Socialista em Livorno em janeiro de 1921, e que, por sua vez, se dividiu em uma ala de direita, minoritária, liderada por Angelo Tasca, favorável à reunião com os socialistas depois que esses últimos expulsaram no início do mês os reformistas de Turati, e em outra de esquerda, majoritária, liderada pelo secretário Bordiga, contrária à “frente única”. Os bolcheviques russos pressionam pela fusão para poder contrapor ao fascismo em uma frente compacta de todo o proletariado, mas Bordiga resiste.

159) Nápoles, 24 de outubro de 1922, Teatro San Carlo, 10h:
Benedetto Croce também bate palmas. É provável que o filósofo napolitano seja a maior autoridade intelectual da nação, líder daquele pensamento liberal pisoteado explicitamente pelo fascismo. Tem 54 anos, é senador há 12, foi ministro da Educação no último governo Giolitti, tem horror dos socialistas, cuja revolução, a seu ver, é a revolta dos ignorantes contra os cultos, despreza em Mussolini o autodidata grosseiro, o mendigo de ideias. No entanto, Dom Benedetto aplaude.

Ao lado de Croce, o estudioso das questões do Sul Giustino Fortunato sente um arrepio:
— Tem violência demais nessa gente.
Croce, citando o filósofo, o tranquiliza com um sorriso de superioridade:
— Mas, Dom Giustino, o senhor se esqueceu do que Marx diz? A violência é a parteira da história.
Ao sair da galeria, o erudito Luigi Russo, discípulo de Croce, reúne forças para conquistar o respeito do mestre:
— Pode me explicar, professor, por que tantos aplausos? Para mim, Mussolini pareceu um histrião.
O grande filósofo, bonachão e sabichão, com ar de homem do mundo que já viu de tudo, instrui o jovem descomedido sobre a escola do cinismo eterno:
— Concordo, Luigi. Mas, como eu, você sabe que a política é teatro. Todos são comediantes. Esse Mussolini é um histrião talentoso.

160) Agora está tudo decidido. O plano está estabelecido nos “Cinco Momentos da Revolução”: 1) mobilização e ocupação dos edifícios públicos;
2) concentração dos camisas-negras nas proximidades de Roma;
3) ultimato ao governo de Facta para a cessão dos poderes;
4) entrada em Roma e tomada a qualquer custo dos ministérios;
5) em caso de derrota, recuo rumo à Itália Central, constituição de um governo fascista e rápida reunião dos camisas-negras no vale do Pó.

É um plano infantil. Mesmo um analfabeto militar entenderia isso. Os últimos dois pontos, em especial, são até motivo de riso.

161) É necessário pegar pelo pescoço a miserável classe política dominante.

162) Benito Mussolini, Piazza San Ferdinando, Nápoles, 24 de outubro de 1922:
O objetivo primário, o “plano secreto” de Mussolini, na verdade permanece igual: protelar, levar a crise política a um ponto irreversível, ao ponto em que não reste solução alternativa a não ser um governo fascista, para só então forçar Facta a renunciar sob ameaça de insurreição e tomar o poder sem desferir um golpe sequer. O terceiro momento da revolução se torna o primeiro.

163) O expresso das 20h segue em direção ao Norte. Deixa para trás Nápoles, Roma, Perúgia, afasta-se das comédias dos pronunciamentos memoráveis, da democracia ou dos guerreiros. Deixa tudo para trás, rumo a Milão! É lá que a partida será jogada. Negociar, enganar, ameaçar. Os êmbolos dos pistões que transmitem o movimento às bielas, e essas, às rodas motrizes, parecem repeti-lo como um rosário de destruição: negociar, enganar, ameaçar. Negociar com todos, trair todos.

164) Enquanto isso, porém, o Duce do fascismo usa outro tom com o mundo externo, o conciliador e satisfeito de quem até ontem cortejou o mundo, e que agora é por ele cortejado. De repente, os outros é que querem negociar com ele, e ele não nega uma piedosa mentira a ninguém.

165) De volta ao Viminale, Facta deu aos funcionários permissão para irem dormir.
— Afinal, pedimos demissão — disse —, há uma crise. Voltamos a nos reunir amanhã de manhã.
O diretor da segurança pública manifestou a mesma opinião.
— Bem — acrescentou —, de qualquer forma, os fascistas não chegarão a Roma antes das 7h.
Então, reconfortado, Facta anunciou:
— Também vou dormir.

Como costuma fazer há pelo menos trinta anos todos os dias, sem nenhuma exceção, Luigi Facta de Pinerolo deita-se também esta noite antes das 22h. Fora um dia cansativo. No seu quarto solitário no Hotel Londra, o senhor idoso não reúne forças sequer para tirar a coberta da cama. Deitado sobre a colcha, joga por cima do próprio corpo o capote que acabara de despir, ainda úmido de chuva, e adormece.

Por sua vez, Efrem Ferraris, seu jovem chefe de gabinete, de volta ao ministério do Interior, inicia sua vigília de armas.

Durante horas, observa emudecido, na escuridão da noite, o piscar das luzes dos telefones que conectam as sedes dos governos provinciais ao ministério. Durante horas, no silêncio das grandes salas do Viminale, Ferraris observa o acúmulo do fonogramas e despachos urgentes nas mesas e anota os nomes dos governos provinciais ocupados, das agências telegráficas invadidas, dos contingentes militares que confraternizaram com os fascistas, dos trens requisitados que partem carregados de armas rumo à capital. Dura até a alvorada o espetáculo grandioso do desmantelamento de um Estado.

166) Roma, 28 de outubro de 1922, Ministérios da Guerra e do Interior, noite:
A reunião que acontece ali às 2h é dramática. O ministro do Interior Taddei exprime ao general Pugliese, comandante da divisão de Roma, a própria dolorosa surpresa diante do fato de as Forças Armadas não terem sido capazes de impedir a conquista fascista de muitos governos provinciais. Pugliese, revoltado e enfurecido, joga a responsabilidade na indolência da classe política. O general preparou há dias a defesa da capital e pede há dois dias ordens escritas para poder executá-la. O ministro Paolino Taddei garante que agora ele as terá.

167) Essa providência jurídica excepcional que, diante de uma grave ameaça à soberania do Estado, suspende as garantias constitucionais e transfere todos os poderes à autoridade militar não é adotada desde 1898. Por isso, mandam buscar o texto daquela proclamação. Copiam-no, suavizando os tons mais violentos e inoportunos. O resultado é um manifesto grave, mas moderado, firme, conciso e digno. Com ele, Luigi Facta, às 9h, segue novamente até Vítor Emanuel III.

Bastará apenas sua assinatura para que a marcha dos fascistas termine não em Roma, mas na cadeia, ou no cemitério.

Logo depois das 6h, Facta transmite ao general Pugliese as ordens escritas para a defesa de Roma esperadas havia dias; passada meia hora, parte o telegrama para os governadores de província com a ordem de prisão dos responsáveis pelo levante; às 7h50, é redigido o telegrama para as autoridades militares com o qual é comunicada a instauração do “estado de sítio”; às 8h30, o manifesto é afixado nas ruas de Roma.

Giovanni Amendola, ministro das Colônias, surrado pelos fascistas na véspera do Natal, fundador do Partido Democrático Italiano e do jornal liberal Il Mondo, cuja sede napolitana foi incendiada pelas esquadras em 24 de outubro, tem enfim um significativo momento de rara felicidade.

“Os fascistas não passarão: decidimos ordenar o estado de sítio e, amanhã, esses canalhas serão colocados no seu lugar”, exulta o sincero democrata quando é liberado o decreto.

168) Toda a Itália está em estado de sítio, portanto, a autoridade militar age também por conta própria...

“Derramamento de sangue”... “estado de sítio”... Benito Mussolini entra na cabine telefônica.

Finzi: Mussolini chegou. Vou passar para ele.

Federzoni: Antes de mais nada, quero dizer que fui eu que tomei a iniciativa desta conversa. Falei com De Bono, que me informou sobre os termos da situação: há conflito; e, se essa situação continuar, aquela coisa vai acontecer... o rei abandona o trono. Aqui falta uma pessoa que possa representar o Fascio di Combattimento. De Vecchi não chegou a Perúgia. De Bono pede que eu lhe informe tudo isso e que você venha imediatamente para Roma.

Mussolini: Eu não posso ir a Roma porque a ação em Milão está em andamento. É imperativo ouvir aquele lugar que você conhece, o comando supremo. Eu aceitarei todas as soluções que o comando supremo decidir adotar...

Federzoni, exasperado, acentuando o sotaque emiliano que o assimila ao seu interlocutor, o interrompe.

Federzoni: Mas como o comando de Perúgia pode lhe informar as condições se eles nem sequer conseguem se comunicar com Milão!?

Mussolini: Trate de me informar você, que deve se comunicar com Perúgia. Preste atenção, porque o movimento é sério em toda a Itália.

Federzoni: Agora se trata de não destruir o ponto de apoio, ou está tudo acabado.

Mussolini: Estabeleça contato imediatamente e diga que Mussolini acatará o que os comandantes decidirem.

Federzoni: Trate de não sair do Il Popolo d’Italia.

Mussolini: Não saio daqui. Mas cuide para que a crise se oriente para a direita, para a direita, para a direita...

Federzoni: Em que sentido?

Mussolini: Um governo de fascistas.

A enormidade faz se instaurar um instante de silêncio. O agente duplo se recupera.

Federzoni: Estamos de acordo, não há dúvidas. Mas deve-se evitar uma situação de armistício. Até amanhã à noite, eu vou me empenhar para obter o que você deseja.

Mussolini desliga. Sai da cabine e Cesare Rossi se aproxima. Benito Mussolini solta uma risadinha.

“Como eu já lhe disse: querem que eu vá para Roma. Manobra prevista.”

169) Milão, Via Lovanio, 28 de outubro de 1922, Sede do Il Popolo d’Italia:
Às 12h30, o ministro da Guerra comunica ao comando de divisão a ordem de suspensão do estado de sítio. Pouco depois, a Agência de Informações Stefani difunde a notícia: o rei, ao contrário de todas as premissas e todos as obrigações, não assinou o decreto. O estado de sítio está revogado. (“A vitória é nossa, não devemos estragá-la. A Itália é nossa e devolveremos a ela sua antiga grandiosidade.”).

170) Às 11h05 de 30 de outubro de 1922, no momento em que subia as escadas do Quirinal para receber do rei da Itália o encargo de governá-la, Benito Mussolini, de origem plebeia, nômade político, autodidata do poder, era, com apenas 39 anos, o mais jovem primeiro-ministro do seu país, o mais jovem dos governantes de todo o mundo no momento da ascensão; sem qualquer experiência de governo tampouco de administração pública, entrara para a Câmara dos Deputados somente 16 meses antes e trajava a camisa negra, o uniforme de um partido armado sem precedentes na história. Apesar de tudo isso, o filho do ferreiro — filho do século — subira as escadas do poder. Naquele momento, o novo século se abriu e, no mesmo instante, voltou a se fechar com os seus passos.

171) [Sobre os milhares de simpatizantes que marcharam sobre Roma:]
No dia seguinte, foi inevitável deixá-los entrar na cidade. Não havia mais nada a fazer. O rei em pessoa, agora que Benito Mussolini obtivera o que queria, pediu que ele os mandasse de volta, preservando a capital. Mas Mussolini retorquiu que, se não lhes desse a satisfação de desfilar, não podia responder pela reação deles: aqueles desgraçados ficaram apodrecendo três dias e três noites ao relento, debaixo de chuva, embora já tivessem alcançado as portas de Roma antes que ele chegasse de trem na manhã do dia 30. Mesmo naquele momento, foi negada a Giuseppe Bottai a autorização para marchar sobre a cidade à frente da sua coluna de desesperados. Mas, em 31 de outubro, com a formação do governo fascista, não seria possível mandar de volta para casa os integrantes das esquadras sem permitir um triunfo apócrifo, miserável. Alguns, nas províncias, já haviam se obstinado a morrer quando, em Milão, Mussolini obteve o telegrama do ajudante de ordens do rei. Em Bolonha, após libertar dezenas de camaradas detidos na prisão de San Giovanni in Monte guiados ao ataque por Leandro Arpinati, enquanto Rachele preparava as malas do Duce, oito daqueles rapazes loucos e generosos em camisas negras acabaram mortos ao atacar quartéis de carabineiros coniventes e depósitos de munições já totalmente inúteis. Oito cadáveres póstumos.

172) Esgotados pelo cansaço que se sucedeu à tensão nervosa, enxotados como cães de uma igreja, depois de terem percorrido outros tantos quilômetros pelas ruas da capital enquanto eram aclamados pela covardia dos romanos — que, passado o medo, acenavam nas laterais das ruas —, os participantes das esquadras fascistas, os protagonistas carnais de uma história fantasma, sem nem perceber, se viram outra vez dentro de trens, mastigando os sucos gástricos de sua vitória.

Alguns, é claro, insubordinaram-se ali também. Após anos de surras e expedições punitivas todo fim de semana, sob o impulso da violência, grupos de fascistas renitentes devastaram a vila de Nitti, devastaram o escritório do deputado Bombacci, golpearam repetidamente a cabeça de Argo Secondari, o chefe dos Arditi del Popolo, deixando-o no chão, acabado com uma incurável concussão cerebral. Outros, mais corajosos ou mais imprudentes, tentaram levar a guerra ao campo do inimigo, penetrando armados nos bairros populares de Borgo Pio, San Lorenzo, Prenestina, Nomentana, dos quais haviam sido expulsos no ano anterior. Foram rechaçados dessa vez também.

173) Agora, no seu quarto no Hotel Londra, o Duce do fascismo se estica na poltrona, alonga as pernas e, preparando-se para dormir, deixando a voz cair uma oitava, prazerosamente aparvalhado pela nuvem de fedor íntimo exalada pelos pés descalços, repete aos poucos acólitos o que já disse à tarde a um redator do Corriere della Sera:

“Digam a verdade, realizamos uma revolução única no mundo. Em que época da história, em que país, foi feita uma revolução como esta? Enquanto os serviços funcionavam, enquanto o comércio continuava, com os funcionários nos escritórios, os operários nas oficinas, os lavradores nos campos, enquanto os trens viajavam regularmente. Tivemos, no total, trinta mortos, incluindo os dez em Mântua, oito em Bolonha e quatro em Roma. Com a exceção de Parma, San Lorenzo e poucos outros casos isolados, a Itália ficou olhando. É uma revolução com um estilo novo!”

Ninguém se opõe, ninguém rebate. A arte da docilidade ensina aos novos adeptos os primeiros fundamentos.

O que farão amanhã? Ninguém sabe dizer, nem mesmo naquele quarto. Inebriam-se com o fato consumado: chegaram ao poder, agora querem mantê-lo. A noite de outono em Roma é amena.

174) Richard Washburn Child, embaixador dos Estados Unidos em Roma, 31 de outubro de 1922:
Estamos assistindo a uma bela revolução de jovens. Nenhum perigo, é cheia de cor e entusiasmo. Estamos nos divertindo muito.

175) La Stampa, 1o de novembro de 1922:
Reconhecemos que houve um desenrolar pacífico dos acontecimentos [...]. Contudo, infelizmente, a ausência de tragédia em certos momentos da existência de um povo pode significar falta de seriedade moral.

[Nota minha: Essa observação não pode passar despercebida pela extensão transatlântica com que se encaixa em nossa comédia política.]

176) Às 15h em ponto, nem um segundo a mais, precedido pelo presidente da Câmara dos Deputados Enrico De Nicola, seguido por todos os ministros do seu governo, escoltado pelo general Diaz, ministro da Guerra e “Duque da Vitória” sobre os austríacos, entra o Excelentíssimo Mussolini. Todos os deputados, com a exceção dos representantes da esquerda, se levantam para aplaudi-lo. As tribunas do público se unem à ovação. A Itália, qualquer que seja o ponto de vista, está em lua de mel com esse homem, que entra no Parlamento com passo triunfal, tão acima do chão que, mesmo caminhando, parece estar entrando a cavalo.

Passaram-se apenas 15 dias desde a chamada “marcha sobre Roma”, a imprensa nacional e internacional comentou-a amplamente: “uma revolução bonita e alegre de jovens fortes”, “uma revolução incruenta”, “uma experiência decisiva, a alvorada de uma nova era”, “uma coisa tipicamente italiana, um prato de espaguete”, uma “comédia”. Passaram-se apenas 15 dias, nos quais, somente em Roma, 19 pessoas morreram e 20 ficaram gravemente feridas. Todavia, a marcha sobre Roma está prestes a ser esquecida.

177) Os primeiros a entrever no Duce do fascismo uma promessa de paz são, paradoxalmente, os liberais. Benedetto Croce continua a aplaudir, Giolitti espera que Mussolini tire o país “do fosso no qual ia apodrecer”, Nitti promete “nenhuma oposição”, Salvemini o incita a eliminar essas “velhas múmias e canalhas” da classe política em deterioração, até Amendola, cujo jornal os membros das esquadras incendiaram, espera do Duce o restabelecimento da legalidade. No seu governo, entraram, além dos fascistas, os populares, os nacionalistas, os democratas e os liberais. O filósofo de fama europeia Giovanni Gentile aceitou o convite para o ministério da Educação, o general Armando Diaz e o almirante Paolo Thaon de Revel, vencedores do conflito mundial, ficaram com os ministérios da Guerra e da Marinha. A Itália não aguenta mais jogar os mesmo jogos, ouvir as vozes de corredor, os suspiros perdidos, as conjuras palacianas incruentas e inconcludentes, as pessoas estão fartas de verem seus defeitos representados no Parlamento. Os italianos, em suma, estão enjoados de si mesmos. Quase todos, e também algumas de suas vítimas, desejam vida longa e uma “saúde de ferro” ao homem da emergência para que ele expurgue a ferida infeccionada. A doença deve curar a si mesma.

Benito Mussolini parece não ter intenção de decepcioná-los.

178) “Senhores, não quero governar contra a Câmara... até quando isso me seja possível... mas a Câmara deve perceber sua posição singular, que possibilita sua dissolução em dois dias ou em dois anos.”

179) “Não vejo necessidade“, responde o velho estadista, “esta Câmara tem o governo que merece.”

Ele não será desmentido. A Câmara dos Deputados, conquanto o Partido Nacional Fascista tenha apenas 35 deputados, vota a favor da confiança plena no governo Mussolini, o mesmo governo que a desmoralizou. São 306 votos a favor, 116 contra e 7 abstenções. Concederá a ele também os plenos poderes. Até os críticos, os indignados, como os deputados Gasparotto e Albertini, votam a favor. Um adamantino desejo de capitulação.

180) Em 24 de novembro, o Parlamento, humilhado pelo seu discurso inaugural, concedeu a Benito Mussolini plenos poderes para a reforma da administração pública e o reordenamento das finanças.

181) “Esta é a tarefa histórica que nos espera: fazer desta nação um Estado, ou seja, uma ideia moral que encarne e exprima um sistema de hierarquias bem identificadas cujos componentes, do mais alto ao mais baixo, orgulhem-se de fazer o próprio dever, um Estado unitário, único depositário de toda a história, de todo o futuro, de toda a força da nação italiana.”

182) Os primeiros que ele vai pôr na linha, graças aos seus plenos poderes, serão os funcionários da administração pública romana que não querem abrir mão da sesta. Defendem com obstinação aquela horinha de sono, agarram-se a ela com unhas e dentes, reivindicam-na como o direito secular de um povo sonolento e lânguido a quem nunca acontece nada de irreparável. Mas eles também devem obedecê-lo e o farão, ele os transformará em uma máquina de relojoaria. Para dar uma sacudida nos italianos, ele está pronto para lutar contra inimigos, amigos e até contra si mesmo.

183) É preciso tempo, calma, eles devem deixá-lo trabalhar. Ele organizou tudo para poder se dedicar à Itália, até deixou Rachele e a família em Milão para não ter obstáculos familiares. Depois, como presidente do Conselho de Ministros, escreveu ao governador da província de Trento a fim de que ele internasse em um manicômio aquela louca da Dalser, que continuava a persegui-lo, também pôs em um apartamentinho bem decorado Angela Curti, que o procurou em março de 1921 para obter a libertação do marido e logo se tornou sua amante regular — a meiga Angela, que, em 19 de outubro, poucos dias antes da marcha sobre Roma, deu-lhe outra filha clandestina. Mas daquela vez ele fez tudo como se deve: sugeriu o nome Elena — outro nome homérico — para a filha e a levou para Roma, para um apartamento elegante no Parioli.

184) Também é preciso enjaular a outra fera, a que salta, a que é feroz. Após a tomada do poder, os membros das esquadras começaram os últimos acertos de contas. Em Milão, ocuparam descaradamente as sessões eleitorais durante as eleições governamentais; na Bréscia, chegaram até a bater nos padres nas residências paroquiais; e também houve os acontecimentos de Turim... Só um mês após o voto de confiança no seu governo... Turim... uma matança. Até Francesco Giunta, um dos seus integrantes de esquadras mais violentos, enviado ao Piemonte para uma investigação, fala de uma ferocidade inédita, uma horda de delinquentes, toda uma cidade nas garras de bandos de assassinos.

185) ...pais de família abatidos durante o jantar, jovens operários arrastados para a rua e mortos a golpes de clava, as ruas do Centro alagadas de sangue, os cadáveres encontrados nos fossos, nos vales e nos bosques das colinas, os corpos devolvidos pelas cheias do rio. Atrocidades inomináveis, crueldades inconcebíveis, angústia universal.


CONTINUA

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