com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo
Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos — A Escravidão Branca no Mediterrâneo, na Costa Berbérea e na Itália, 1500-1800 — Robert C. Davis
Christian Slaves, Muslim Masters White Slavery in the Mediterranean, the Barbary Coast, and Italy, 1500-1800 — Robert C. Davis
Parte I – Escravidão Branca
1 — Quantos Escravos?
2 — Captura e Ruptura de Escravos
3 — Trabalho Escravo
Part II – Magrebe
4 — A vida dos escravos
5 — O Front Doméstico
Part III – Itália
6 — A Celebração [do fim] da escravidão
Bibliografia
[Nota de tradução: O original Barbary é em geral traduzido por Berbérea (ou Berbéria), termo usado pelos europeus do século XVI ao XIX, mas eu optei por Magrebe (exceto no título), que é a denominação atual referida ao Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia].
[Quando se fala em escravidão, os brasileiros estão sempre presos ao passado colonial e ao tráfico atlântico da África. No Brasil, é um lugar comum associar a escravidão com o racismo, embora esta particularidade não leva em conta a escravidão praticada na exploração da borracha e tampouco as crônicas de escravos imigrantes europeus no interior de São Paulo. Nenhuma atenção tem sido depositada pela academia na questão da escravidão de cristãos por muçulmanos nos 300 anos em que ela se desenvolvia concomitantemente no Brasil.
Laurentino Gomes, que acaba de lançar dois volumes sobre a Escravidão, sequer menciona a contraparte da submissão de cerca de 1,2 milhão de cristãos entre os anos de 1530 a 1780 aos escravocratas do Magrebe, sujeitos a condições ainda piores que os escravos brasileiros nas fazendas de açúcar. Na bibliografia de Laurentino não existe sequer menção a um dos mais importantes depoimentos pessoais sobre a vida dos escravos brasileiros: o do injustamente esquecido Muniz de Souza que resumi para meus leitores em 2020.
Impressiona saber que a escravidão, tanto no Mediterrâneo como do outro lado do Atlântico, surgiu e floresceu — se é que se pode usar esse termo — quase exatamente ao mesmo tempo e pode-se dizer pelo mesmo motivo. Mas impressiona ainda mais saber da ignorância que existe em torno de um assunto tão tocante para nós.
Sobre isso, Robert C. Davis, expõe sua perplexidade:
“Essa preocupação abrangente sobre a escravidão da Costa da Magrebe, que observadores religiosos e seculares expressaram no início da era moderna, estava enraizada em um problema muito real: concidadãos — e às vezes eles próprios, — constantemente corriam o risco de captura, violência e exploração nas mãos de uma cultura estrangeira geralmente hostil. Ao mesmo tempo, essas preocupações serviram de base para abordar e examinar valores humanos básicos como a liberdade da comunidade, o contrato social e a busca pela salvação. É uma boa indicação de quão central era a escravidão branca para a autoimagem europeia da época, mas também apresenta aos estudiosos modernos a necessidade crucial de confrontar o que essa autoimagem e, de fato, toda a noção de escravidão realmente significava para o início da modernidade europeia. Tornou-se quase um dado na erudição moderna que a escravidão nestes séculos foi compreendida e justificada em bases estritamente raciais: a chamada Maldição de Noé, ou argumento dos Filhos de Cam que buscava (e ainda busca) explicar a escravidão dos negros por brancos como ordenados biblicamente. Tal abordagem da questão, que encontra suas fontes principalmente nos escritos de dirigentes de escravos do Atlântico e proprietários das plantations americanas (e com os quais era amplamente popular), pretende provar o que já pressupõe, no entanto: que os escravos no início do mundo moderno eram, por definição, negros africanos por origem. Tão dominante é a suposição na literatura de que os escravos deviam ser negros, que vários estudos recentes que se propõem a lidar com a "outra escravidão" da época não mencionam a costa da Magrebe, mas em vez disso tratam a escravidão dos negros subsaarianos pelos árabes. Como os escravos brancos da costa da Magrebe podiam se encaixar em nossas noções atuais de escravidão pré-moderna permanece por enquanto tão incerto quanto como eles poderiam se encaixar na visão de mundo de seus contemporâneos”.]
1 — Ao expulsar os mouros do sul da Espanha, Fernando e Isabel criaram um inimigo implacável para o seu reino ressurgente, que encontraria um novo lar muito perto, em Marrocos, Argel e, eventualmente, ao longo de todo o Magrebe. As sociedades islâmicas recém-revigoradas que ajudaram a criar lá, logo partiram de maneira consciente e apaixonada a acertar contas com a cristandade, construir galés, atacar a navegação mercante europeia, invadir comunidades costeiras e tomar escravos.
2 — No Magrebe, aqueles que caçavam e negociavam escravos certamente esperavam lucrar, mas no tráfico de cristãos também havia sempre um elemento de vingança, quase de jihad — pelos erros de 1492, pelos séculos de cruzadas violentas que os precederam, e para a pervasiva luta religiosa entre cristãos e muçulmanos que continuou a turvar o mundo mediterrâneo até os tempos modernos.
3 — Pode ter sido esse ímpeto de vingança, em oposição ao funcionamento insípido do mercado, que tornou os escravos islâmicos muito mais agressivos e inicialmente (pode-se dizer) bem-sucedidos em seu trabalho do que seus colegas cristãos. Ao que tudo indica, como este estudo tenta mostrar, a escravidão mediterrânea superou o comércio transatlântico durante o século XVI e XVII, e isso apenas em termos da costa do Magrebe — sem levar em conta as atividades escravistas muçulmanas no Levante e Europa oriental, nem a contra-escravidão que alguns estados cristãos praticavam ao mesmo tempo contra seus inimigos islâmicos.
4 — Em 1640, mais de 3.000 britânicos foram escravizados somente em Argel (e outros 1.500 ou mais em Túnis), "sofrendo diversas e insuportáveis opressões". Ao longo da primeira metade do século XVII, enquanto os corsários berberes circulavam livremente pelo Mediterrâneo, esses piratas também navegaram às dúzias pelo Canal e até no estuário do Tamisa, saqueando a navegação local e cidades costeiras de tal forma que, como as atas do Parlamento afirmam, "Os pescadores têm medo de se lançar ao mar e nós somos forçados a manter vigia contínua em todas as nossas costas." Embora os ataques às Ilhas Britânicas possam ter diminuído no final do século 16, a captura de navios britânicos continuou. Os argelinos teriam levado nada menos que 353 navios britânicos entre 1672 e 1682 — o que significaria que eles ainda estavam pegando entre 290 e 430 novos escravos britânicos a cada ano.
[Segue a discussão sobre o enfoque dado pelos historiadores europeus à escravidão cristã, citando Braudel, que não obstante ter estudado o assunto, minimizou o problema associando-se as ideias de que muitos casos de apreensões de cristãos nas costas mediterrâneas eram motivadas por sequestros com o objetivo de obtenção de resgates, tornando prisioneiros os que de outra forma seriam cativos como escravos. No entanto:]
5 — Pode-se ler em uma variedade de fontes contemporâneas, por exemplo, que entre novembro de 1593 e agosto de 1594, os corsários tunisianos trouxeram cerca de 28 capturas com 1.722 cativos; que entre 1628 e 1634 os argelinos capturaram 80 navios mercantes apenas dos franceses (levando 986 cativos no processo), enquanto entre 1628 e 1641 eles tomaram 131 "navios e barcos" dos ingleses, totalizando 2.555 "súditos de Sua Majestade;" por sua vez, os piratas de Trípoli, embora executando uma das operações escravistas menores, conseguiram apreender 75 navios cristãos com 1.085 cativos entre 1677 e 1685.
6 — Esses relatos são, por sua natureza, extremamente incompletos: na maioria das vezes, não temos registros de capturas de escravos nas cidades do Magrebe, além de registros consulares esporádicos. Outros relatos listam o número de navios capturados em um período específico, mas omitem a contagem dos cativos. No entanto, estes também sugerem alguns números muito grandes: a Marinha Real da Grã-Bretanha admitiu ter perdido 466 navios ingleses e escoceses para corsários argelinos entre 1606 e 1609; o Padre trinitário Pierre Dan afirmou que esses mesmos flibusteiros apreenderam 936 navios da França, Holanda, Alemanha, Inglaterra e Espanha entre 1613 e 1621; enquanto John Morgan escreveu, "Eu tenho uma Lista, impressa em Londres em 1682", que inventariou 160 "navios e embarcações pertencentes a súditos destes reinos [britânicos]", que os algerianos haviam tomado ou destruído entre julho de 1677 e outubro de 1680.
7 — Se pelo menos dez homens fossem capturados com cada navio (a taxa média parecia ser de 8-12, com muitas tripulações escapando em pequenos barcos), os corsários estariam escravizando dezenas de milhares de homens no mar. Seus ataques em terra poderiam ser ainda mais produtivos, ou pelo menos mais espetaculares. Algumas de suas expedições escravistas costeiras tornaram-se lendas entre os que viviam nas costas do norte do Mediterrâneo, como eventos quase anuais de terror e pilhagem: os 7.000 cativos que os argelinos capturaram na baía de Nápoles em 1544, por exemplo; os 6.000 que arrebanharam quando saquearam Vieste na Calábria em 1554 [Vieste fica na Puglia]; os 4.000 homens, mulheres e crianças apreendidos em Granada em 1566 (após o que disseram que estava "chovendo cristãos em Argel"). A participação encolheu um pouco no século XVII, em parte porque a frota imperial turca não estava mais participando, mas também porque muitos habitantes da costa simplesmente fizeram as malas e fugiram. Ainda assim, os piratas berberes continuavam a desembarcar, por vezes aos milhares, em incursões como as que capturaram 1.200 homens e mulheres na Madeira em 1617; quase 400 na Islândia em 1627; e 700 na Calábria em 1636, outros 1.000 lá em 1639 e ainda outros 4.000 em 1644; em 1640, despachos para Londres contavam como "aqueles piratas turcos malandros" haviam arrebatado 60 homens, mulheres e crianças da costa da Cornualha, perto de Penzance; na primavera de 1641, os piratas argelinos apreenderam o paquete John Filmer poucas horas depois de ele ter partido de Youghal, na Irlanda, a caminho da Inglaterra, escravizando os 120 passageiros a bordo e “pondo todos os homens a ferros” … levando o contemporâneo de d'Aranda, Pierre Dan, a concluir que, nos anos de 1530 a 1640, "não seria forçar a verdade dizer que eles colocaram um milhão [de cristãos] em cadeias".
8 — Mesmo quando comparadas às atrocidades do comércio de escravos do Atlântico, que enviou cerca de 10 a 12 milhões de negros africanos como escravos para as Américas ao longo de quatro séculos, essas afirmações sobre o que cem anos de escravidão no Mediterrâneo realizaram não podem ser computadas como insignificantes. Tampouco nega ou banaliza a bem documentada escravidão dos mouros e turcos pelos cristãos que ocorria ao mesmo tempo. Certamente, os espanhóis, toscanos e malteses foram todos participantes ávidos na escravidão de seus inimigos muçulmanos, principalmente para trabalhar como escravos das galés. Entre os estados cristãos, entretanto, a prática nunca foi tão difundida ou massiva como no Magrebe e feneceu mais cedo, já que a maioria das nações europeias trocou as galés por veleiros e de escravos por condenados às galés que mantinham.
9 — Não apenas a escravidão acabou sendo uma possibilidade muito real para qualquer pessoa que viajava ou vivia no Mediterrâneo, mas também foi provavelmente a religião ou etnia, não a raça, que determinou quem iria capturar e escravizar quem.
10 — Eram tantos os prisioneiros que inundavam o mercado de escravos de Argel de vez em quando que, como dizia o ditado, era possível trocar um cristão por uma cebola.
11 — Norman Bennett expressou dúvidas sobre os números feitos pelos próprios escravos, como talvez refletindo o "exagero natural dos homens que foram privados de sua liberdade", mas a suspeita recaiu especialmente sobre as estimativas fornecidas pelos trinitários e mercedários. Esses padres das ordens redentoras, que foram tão importantes no resgate de escravos cristãos no Magrebe, foram acusados ainda em seu apogeu de · "espalhar cerca de mil fábulas, a fim de realçar o mérito dos serviços que prestam ao público, ao atravessar para o Magrebe para redimir os cativos.” Não há dúvida de que há alguma verdade no receio – ocasionalmente expresso até mesmo por algumas dessas mesmas ordens – de que esses padres resgatadores tinham um interesse pessoal em exagerar suas contagens de escravos, como um meio de incutir um senso de urgência e, assim, abrir as bolsas de seus contribuintes devotos.
12 — Deve-se, no entanto, lembrar que nem todos os que contabilizaram as populações de escravos no Magrebe tinham motivos para exagerar: longe disso. As estimativas sobrevivem porque, por sua própria natureza, precisavam ser as mais confiáveis possíveis: eram fornecidas por cônsules residentes ou pelos comerciantes, agentes que eram periodicamente contratados por seu estado de origem para descobrir quantos de seus concidadãos estavam detidos por escravos em uma determinada cidade.
13 — Somente com o restabelecimento da paz europeia, apoiada por uma forte presença naval britânica no Mediterrâneo, a escravidão corsária entrou em colapso, de modo que, quando os franceses capturaram Argel em 1830, encontraram apenas 122 escravos no bagno [ou bagnio, como eram chamadas as senzalas da escravidão branca].
14 — Uma determinada população escrava pode diminuir de várias maneiras, mas a mais óbvia é que os escravos morrem. Isso os escravos do Magrebe padeceram pelos mesmos motivos deprimentes que os escravos no Novo Mundo ou em qualquer outro lugar: de abuso, doença, excesso de trabalho, falta de comida e desespero. Como escreveu um prisioneiro napolitano de Túnis: "Somos maltratados, espancados com varas, passamos fome e somos chamados de cães infiéis, [de tal forma] que eu morreria de boa vontade e só Deus sabe o que vai acontecer". A massa de “escravos públicos, os burros de carga das cidades regentes, era tratada com particular brutalidade e abandono. Durante o tempo em que estavam em terra, eles eram agrupados todas as noites nos bagnos frequentemente superlotados e imundos e recebiam apenas pão preto mofado "que os próprios cães não comeriam", junto com tudo o que podiam pegar ou roubar; ocasionalmente, eles até teriam que pagar pela água potável. Seu trabalho em terra consistia tipicamente em trabalhar em grandes obras públicas, em particular, extrair e arrastar blocos de pedra para consertar as muralhas da cidade ou o molhe do porto (que, em Argel, estava constantemente se desintegrando). Ao remarem as galés no mar, seminus e expostos ao sol, não raramente ficavam tão desesperadamente sem água potável que bebiam água do mar ou morriam em seus bancos; nunca tendo permissão de se deitar para dormir, muitos deles caíram em "êxtases contínuos" antes que sua viagem terminasse.
15 — Os chamados escravos privados podiam ser muito mais bem tratados, até mesmo mimados na casa de seus senhores. Alguns viveram muito bem, até mesmo administrando negócios e possuindo seus próprios escravos, mas mais tipicamente um escravo particular era colocado para trabalhar na masserie [fazenda] de seu mestre ou vendendo água pela cidade, obrigado a entregar a seu mestre certo soldo todas as semanas sob pena de ser espancado. Tão mal alimentados, mal vestidos e mal tratados como qualquer escravo de galera, muitos desses homens também morreram no cativeiro. Michel Fontenay mostrou que os 2.450 escravos cristãos trazidos para Trípoli entre 1668 e 1678 sofreram o que ele chamou de uma taxa de mortalidade normal de cerca de 20% ao ano.
16 — O resultado, então, é que entre 1530 e 1780 havia quase certamente um milhão e possivelmente até um milhão e um quarto de cristãos europeus brancos escravizados pelos muçulmanos da costa do Magrebe.
[Comparando com a presença negra nas Américas e também asiática conclui:]
17 — No entanto, mesmo esses monumentos ao mundo especial de opulência e crueldade do Magrebe foram em sua maioria demolidos ou enterrados: por expansões e melhorias mais recentes. A Outra Escravidão, em outras palavras, também se tornou uma escravidão invisível: uma instituição que, tendo sobrevivido por mais de três séculos em maior ou menor grau, agora desapareceu, quase sem deixar vestígios.
2 — Captura e Ruptura de Escravos
18 — No diário que manteve entre 1679 e 1685, durante seu mandato como cônsul inglês em Trípoli, Thomas Baker observou o principal tráfego de navios dentro e fora da cidade. Isso incluía o transporte marítimo comercial usual dos estados europeus, vindo para o comércio com passaporte especial e licença do paxá tripolitano; ele também registrou pelo menos alguns dos vários navios locais, partindo e retornando deste porto líbio de tamanho médio. Não era segredo que a maioria deles estava partindo "em corso suas tripulações de corsários”, como Baker disse sem rodeios, saindo à caça pelos mares e litorais entre Trípoli, a Itália Jônica e as ilhas gregas por captura de qualquer cristão de lugares pequenos ou mal defendidos para se proteger.
19 — Oportunistas à procura de todos os tipos de saques transportáveis e vendáveis, os líbios, como todos os corsários berberes, dedicavam-se especialmente ao que os observadores contemporâneos chamavam de "pegador de homem" ou "ladrão de cristão", tanto que Baker certa vez observou asperamente que" roubar os cristãos ... [é] a vocação legítima deles".
20 — Ao longo do século anterior, [a captura de escravos] havia sido perseguida em grande escala por cristãos e muçulmanos — uma característica central da longa luta imperial entre os Habsburgos e os otomanos, para quem tomar escravos prisioneiros no campo de batalha era a recompensa tradicional devida aos vencedores em seus conflitos armados inter-religiosos.
21 — Praticamente todos os anos, durante quatro décadas, esses príncipes piratas lideraram enormes flotilhas contra a navegação europeia e as terras costeiras da Espanha, da Itália Tirrena e das principais ilhas do Mediterrâneo, empenhados em esmagar a resistência cristã à expansão ocidental dos turcos. Às vezes, as forças combinadas de corsários e turcos totalizavam 10.000 ou mais soldados e janízaros em mais de 100 galés, e o tamanho das frotas que comandavam significava que eles podiam atacar à vontade em todo o Mediterrâneo ocidental, bloqueando portos importantes como Gênova e Nápoles impunemente, ameaçando Roma e saqueando dezenas de cidades costeiras de médio porte na Espanha e na Itália.
22 — À medida que o conflito Habsburgo-Otomano esfriava nos anos que se seguiram a Lepanto e os turcos começaram a restringir suas atividades de frotas de guerra em grande parte ao Levante, os paxás que governaram em Argel e Túnis como vice-reis do sultão continuaram a atacar navios e assentamentos cristãos em todo o Mediterrâneo ocidental, em nome do Império Otomano e à frente das frotas de suas próprias cidades.
23 — Operando sob muito pouco controle, mas com a proteção tácita de seus paxás locais — com a tolerância benigna e negligente dos sultões em Constantinopla — os corsários berberes continuaram seus saques e caça de escravos como uma forma peculiar e especialmente virulenta da empresa privada corporativa.
24 — A mistura de captura de escravos e banditismo mais generalizado distinguia os corsários berberes dos escravistas portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses que estavam desenvolvendo o tráfico de escravos no Atlântico a partir da África subsaariana para as Américas mais ou menos na mesma época.
25 — Esse negócio sombrio foi deixado para os estados africanos em guerra, ansiosos por vender cativos negros capturados em batalhas ou incursões a uma sucessão de intermediários africanos ou árabes. Os escravos brancos se contentavam em pagar por esses cativos frescos do interior em dinheiro ou em espécie para ser trazido para os barracões costeiros, para aguardar a coleta. Nesse sentido, a corrida de escravos pelo Atlântico era um verdadeiro comércio. Os escravistas europeus iniciaram a troca em ambas as extremidades do que viria a ser conhecido como Passagem do Meio, atendendo ao mercado: necessidades de mão de obra em plantações localizadas além do Atlântico, projetando a demanda nas profundezas do interior africano.
26 — Os corsários berberes, em contraste, nunca alcançaram ou aparentemente até mesmo nunca visaram a tais ligações diversificadas de fornecimento ou distribuição. Em vez disso, eles assumiam todo o processo de escravidão, desde a captura até o embarque e a venda.
27 — A documentação de escravos da costa do Magrebe, muito mais do que a escravidão afro-americana, sempre se baseou fortemente em narrativas escritas pelos próprios escravos, especialmente à luz das lacunas que existem em documentação como registros de embarque ou relatos de observadores locais. No entanto, tais relatos têm a desvantagem de quase invariavelmente vir de cativos levados ao mar, a maioria deles de origens nobres, clericais, administrativas ou, pelo menos, militares, capazes de refletir sobre sua experiência na escravidão e escrever sobre ela. Também sobrevivem alguns relatos de escravidão escritos por marinheiros profissionais, fornecendo algo do ponto de vista desses trabalhadores. O que está faltando totalmente, entretanto, são narrativas descritivas dos tipos de homens e mulheres que eram tipicamente levados em ataques costeiros: camponeses, pescadores ou trabalhadores rurais, ou outros que viviam perto do mar. De fato, é uma sorte que as vozes dessa classe em grande parte analfabeta de cativos cheguem a se manifestar, na forma de cartas para casa que eles conseguiram escrever em seu nome.
28 — Incapazes de lidar com os ataques dos corsários, que podiam retornar ao mesmo trecho da costa quase anualmente, as autoridades locais podiam simplesmente ordenar a evacuação geral das áreas ameaçadas. Tal foi especialmente o caso na Itália, onde o poder fragmentado e um distante governo vice-régio sobre grande parte da península deixou muitas áreas sem outra defesa. Esta foi a decisão tomada pelo governador da província em julho e agosto de 1566, quando um exército de 6.000 turcos e corsários subiu o Adriático e desembarcou em Francavilla. Por um lado, a mudança foi um sucesso: graças à ordem, provavelmente milhares de italianos escaparam da escravidão. O custo, entretanto, foi alto. Os corsários se viram de posse de um imenso trecho de costa, que haviam conquistado sem encontrar a menor resistência. Desimpedidos, os turcos tinham todo o tempo de que precisavam para trabalhar seu caminho para o interior e para o sul até Serracapriola, mais de 60 milhas ao longo da costa, aproveitando sua escolha do que saquear em mais de 500 milhas quadradas de cidades e vilas abandonadas.
29 — Já na década de 1580, Haedo poderia afirmar: "Assim, como você sabe, eles devastaram e arruinaram a Sardenha, a Córsega, a Sicília, a Calábria, as costas de Nápoles, Roma e Gênova, as Baleares e todas as costas da Espanha. "Depois de sofrer os ataques iniciais que levaram tantos habitantes, muitas aldeias costeiras aparentemente nunca se recuperaram, mas entraram em um longo período de declínio demográfico, continuando a perder população mesmo durante as calmarias entre os ataques”.
30 — Quando as cidades médias começaram a construir muralhas e torres de proteção, os corsários se concentraram nas presas mais fracas: moradias isoladas, mosteiros ou, às vezes, até indivíduos solteiros. Com muitas áreas na Itália e na Espanha cada vez mais protegidas por patrulhas navais e unidades de cavalaria que poderiam ser mobilizadas em apenas algumas horas, menos ra'is [em árabe: chefe ou líder] "arriscaram corajosamente" ou correram suas galés na praia "ao meio-dia ou de acordo com seus caprichos para que seus homens pudessem desembarcar para coletar combustível e água e pilhar os campos circundantes em seu lazer. Em vez disso, os corsários passaram a manter suas galés e galeotas principais um pouco além do horizonte ou atrás de uma conveniente ilha próxima à costa, permitindo que avaliassem com antecedência os alvos potenciais. Eles podiam enviar um ou mais barcos de pesca, previamente capturados apenas com este tipo de eventualidade em mente, para cruzar perto de uma aldeia que pretendiam atacar. Eles também podiam disfarçar o cordame, os marcadores e os estandartes de suas próprias galeras para fazer com que parecessem embarcações cristãs — bastante fácil de fazer, se os navios tivessem sido considerados cativos em primeiro lugar; para se certificar de que nenhum dos remadores escravos falariam e entregariam o jogo, todos os remadores eram amordaçados com "um bocado de cortiça que carregavam para o caso, pendurado no pescoço como um relicário".
31 — Quando esses corsários desembarcavam, geralmente era nas primeiras horas da manhã, com suas próprias galés e barcos menores intercalados com a frota pesqueira de volta. Se os invasores estivessem particularmente interessados na captura de escravos, eles chegariam o mais perto possível de suas vítimas antes que alguém pudesse dar o alarme. Para isso, eles "removiam as cordas dos sinos [da igreja], para que não pudessem ser tocados", e faziam o possível para não serem vistos pelos guardas na torre de vigia local, centenas das quais foram construídas ao longo da costa de estados cristãos durante o período mais quente do conflito Habsburgo-Otomano. Havia bem mais de 500 torres guardando a metade sul da Itália e das principais ilhas italianas: só na Sicília havia uma média de uma a cada 5-6 milhas. Embora muitos estivessem equipadas com canhões, nenhum estado tinha recursos para proteger todas as suas praias com fogo direto.
32 — Para contornar as defesas que poderiam enfrentar, os corsários dependiam de informações privilegiadas, em particular informações fornecidas por renegados ou escravos de galera que tinham vindo da área-alvo. Tanto cristãos quanto ex-cristãos parecem ter se mostrado dispostos a fornecer informações sobre as abordagens secretas de suas aldeias nativas em troca de sua liberdade, mesmo que isso significasse condenar efetivamente seus antigos vizinhos e até mesmo suas próprias famílias à escravidão.
33 — Escravos recentemente capturados podiam entregar suas cidades natais por medo de serem torturados ou em resposta a brutamontes corsários que lhes ofereciam sua liberdade ou mesmo — caso se convertessem — alguns de seus próprios escravos. Outros, que já estavam nas galés há anos, ofereciam suas aldeias como última esperança de ganhar a liberdade; eles podiam racionalizar sua traição alegando que seus parentes foram, de qualquer modo, lentos ou completamente negligentes em resgatá-los.
34 — Além de o saque humano ou não, tanto quanto possível, os corsários também poderiam fazer questão de devastar as aldeias e campos que encontrassem. Destruindo assentamentos importantes, sitiando e demolindo torres, queimando depósitos de alimentos para negá-los ao inimigo: essas eram as práticas normais de exércitos invasores e uma atividade fundamental das invasões navais em grande escala do tipo que Barbarossa e Dragut realizaram nas costas italiana e espanhola em meados do século XVI. Assim, em 1541, quando tomaram a cidade fortificada de Fondi, 5 milhas para o interior no Lásio, eles não apenas mataram mais de 100 habitantes, mas também destruíram ou danificaram a torre do castelo e mais de 1.000 casas.
35 — "Eles agarraram mulheres jovens e crianças", lembrou um siciliano, "eles arrebataram bens e dinheiro e, num piscar de olhos, voltaram a bordo de suas galeras, estabeleceram seu curso e desapareceram." Depois de um ou dois dias à espreita no horizonte ou ao longo da costa, no entanto, os invasores também costumavam retornar à área que tinham acabado de pilhar, hasteando uma bandeira branca ou algum outro sinal para indicar que os aldeões que haviam escapado poderiam entrar com segurança a bordo para negociar o resgate de seus parentes capturados. Aqui, a natureza essencialmente extrativa da escravidão mediterrânea se revela, pois mesmo que esses escravos recém-capturados pudessem receber grandes descontos em comparação com o que poderiam obter nos mercados de escravos de Argel ou de Túnis, os corsários ainda achavam mais fácil convertê-los em dinheiro imediatamente, em vez de arriscar que morressem ou sobrecarregassem as galés no caminho de volta para o Magrebe.
36 — Via de regra, os parentes tinham 24 horas — ou às vezes apenas até o pôr do sol — para pagar o resgate. Mesmo que os corsários pudessem exigir apenas um quarto ou um quinto do que o mesmo escravo mais tarde custaria para ser resgatado do Magrebe, ainda era quase impossível para muitos desses camponeses e pescadores arrecadar tais somas no curto prazo — ou mesmo qualquer prazo, uma vez que muitos deles viviam suas vidas em grande parte sem dinheiro, sobrevivendo com escambo e subsistência. Incapazes de pedir dinheiro emprestado a seus vizinhos igualmente pobres, o único alívio possível para muitos — se é que esse é o termo certo — era recorrer a pequenos especuladores. Esses forasteiros frequentemente apareciam no local logo após uma invasão, dispostos a adiantar os 50 ou 60 ducados necessários em troca das escrituras de qualquer propriedade — uma casa, um terreno agrícola, um barco de pesca — que as vítimas ou seus parentes pudessem apresentar. Mesmo isso podia não ser fácil, considerando o quão difícil podia ser para essas pessoas mostrarem o título em apenas algumas horas, sem ir a um notário ou juiz no centro provincial mais próximo. Uma vez que o negócio fosse concluído, as vítimas poderiam encontrar-se em segurança de volta para casa, mas muito provavelmente devolvidas a famílias completamente empobrecidas por esta breve experiência com a escravidão, reduzida talvez de um status de proprietário precário para o de trabalhadores dependentes e sem dinheiro, possivelmente até mesmo labutando na mesma propriedade que eles já possuíram. Assim, esses ataques aos corsários produziram seus resultados negativos no tecido social de longo prazo das aldeias que eles saqueavam.
37 — [Quando a pilhagem era feita em um navio mercante com passageiros]. Consciente do interesse dos corsários em seus status e riquezas, a maioria dos passageiros fazia o possível para esconder ambos ao ver que seu navio estava para ser abordado. Na verdade, parece que os viajantes prudentes faziam questão de não confidenciar nada sobre si mesmos ao capitão ou aos outros passageiros, caso alguém a bordo, em uma tentativa de obter favores ou evitar uma surra, pudesse identificá-los aos seus captores como uma pessoa rica na sociedade cristã. Como resultado, as viagens ao Mediterrâneo deviam ter sido bastante reservadas, sem ninguém disposto a revelar muito sobre si mesmo, pois os riscos que alguém corria por exibir muita pompa e riqueza eram frequentemente tornados dolorosamente óbvios quando os corsários subiam a bordo.
38 — As tentativas dos passageiros de se disfarçarem era um dos tropos do gênero narrativo da escravidão do Magrebe, emprestando uma atmosfera de ópera cômica a esses últimos momentos frenéticos antes da escravidão.
39 — Sabendo muito bem que, caso os corsários encontrassem algum sinal óbvio de riqueza a bordo, não descansariam até que localizassem os proprietários, os passageiros jogavam a maior parte de seu dinheiro de prata — roupas chamativas, dourados, espadas bordadas, cintos, botas, letras e outros indicadores de riqueza e qualidade — no mar, seja ... [na] apreensão de ser visto pelo inimigo como possuidor de tais bens ou pelo desejo de se disfarçar, para evitar as demandas de um grande resgate.
40 — À medida que os corsários se aproximavam, os bispos se vestiam apressadamente de padres simples, nobres e ricos mercadores pegavam batas de marinheiros ou procuravam se disfarçar de pobres soldados da fortuna; todos tentavam estar prontos com um nome para chamar a si mesmo que pudesse revelar o mínimo possível sobre suas origens. Homens e mulheres que estavam acostumados à autoridade e facilidade em casa tentavam desesperadamente se passar por trabalhadores humildes e sem educação — uma tarefa difícil que ainda era tornada mais árdua por seus esforços desajeitados para esconder em si algumas moedas ou joias.
41 — Para aumentar esse clima de passividade fatalista, os corsários começavam a abusar e humilhar livremente seus novos escravos de maneira que minassem seu senso de autoestima. Alegando que queriam ter certeza de que ninguém estava escondendo dinheiro ou joias dentro de suas roupas ou insistindo que alguns dos passageiros eram judeus (circuncidados) disfarçados, os corsários podiam forçar os escravos a se despirem, encorajando-os junto com uma saraivada de socos e chicoteadas com uma corda de nós.
42 — Outros podiam levar a pior, no entanto. Um dos passageiros, possivelmente porque se imaginasse conhecer algo de seus companheiros, poderia ser escolhido e torturado sistematicamente na frente dos outros, para forçá-lo a revelar tanto sua verdadeira identidade quanto, sempre que possível, a de seus companheiros de viagem. O método preferido era dar-lhe 100 ou mais golpes com um bastão — como disse Morgan, nesses casos ... “o bastinado começava a ser aplicado nos posteriores de quem se suspeitava — mas também podiam ser infligidas pancadas no estômago da vítima, na solas dos pés, ou na parte inferior das costas quase o suficiente para esmagar os rins."
43 — Finalmente, quando não houvesse mais nada a extrair dos novos escravos, os corsários partiam. Se o objetivo do ra'is era continuar os saques, ele podia decidir colocar alguns de seus novos prisioneiros diretamente para trabalhar nos remos. Alguns infelizes foram, assim, expulsos de suas vidas habituais de facilidade para o trabalho dolorosamente difícil e rações curtas no espaço de apenas algumas horas: Jan Struys escreveu como, minutos após sua captura, "eles me colocaram em uma galera, tiraram minhas roupas, rasparam minha cabeça e me colocaram em um remo, o que era trabalho o suficiente para seis de nós puxarmos. Mais tipicamente, no entanto, os cativos eram acorrentados e levados para um depósito ou compartimento abaixo do convés — Gramaye chamou de "cubículo obscuro" — onde eram "acorrentados, amontoados e empurrados para cima como arenques no fundo do navio para serem guardados para o Açougue ou Mercado, "muitas vezes a ponto de ser difícil para todos sentarem ou deitarem-se ao mesmo tempo. Por razões de segurança, os cativos eram mantidos embaixo pelo resto da viagem, e Foss escreveu sobre os novos escravos tendo que se esgueirar, sobre as mãos e joelhos, "em uma prisão, onde eles não conseguiam dormir devido a quantidade [de ] ... vermes, como piolhos, insetos e pulgas. " Elliot lembrou como "ficamos nessa condição miserável por cerca de quarenta dias, oprimidos pelas muitas inconveniências, especialmente lembradas pelo fedor e sordidez de nossa hospedagem”.
44 — Colocados no remo ou presos no porão do convés, muitos cativos nunca sobreviveriam à viagem para o porto, morrendo pelo choque de sua captura e súbita reversão de sua sorte, talvez, ou pelos espancamentos, comida e água insuficientes e condições insalubres que, de repente eram seu destino. Não se sabe exatamente quantos chegaram a este fim e qual foi sua proporção no total, pois seus corpos foram "lançados ao mar sem a menor consideração".
45 — Era costume em todas as regências do Magrebe que o paxá governante da cidade escolhesse uma certa porcentagem do butim trazido para seu porto por corsários.
46 — Depois que algumas outras seleções preventivas eram feitas, por vários grupos públicos e organizações que tinham uma reivindicação sobre o saque, os cativos restantes eram levados para o mercado de escravos, conhecido em Argel e Trípoli como o "badestan" e em Túnis (até hoje ) como o "Souq el Berka". A experiência de ser pechinchado no mercado, "como se vendessem animais”, era o rito chave de passagem para a escravidão, e ganha mais ou menos destaque, em praticamente todas as narrativas de cativeiro.
47 — Tal como acontece com os traficantes de escravos em qualquer lugar, esses maquignons [comerciantes de cavalos] não estavam dispostos a comprar um homem cujas enfermidades físicas pudessem restringir sua capacidade de trabalhar "pois eles são valorizados de acordo com a idade e a força" e com isso em mente "eles fazem [os escravos] andar, pular e saltar com golpes de cassetete, para mostrar assim que eles não têm gota".
48 — Eles também examinavam os dentes dos escravos, não como os negociantes de cavalos faziam para descobrir sua idade, mas para ver se eles conseguiriam roer os duros biscoitos do navio e a carne seca comida nas cozinhas. Da mesma forma, atenção considerável era dada aos braços e pernas dos escravos, para garantir que eles não fossem coxos — presumivelmente alguns cativos não hesitariam em fingir isso — já que "qualquer coisa análoga a osteoartrose no osso anelar ... derrubaria o valor de mercado drasticamente".
49 — Um sério problema para os maquignons era como chegar a uma ideia da idade daqueles que estavam à venda, já que, como observa Okeley, "aqueles que os vendiam não os criaram e, portanto, nada sabem, nem mais nem menos disso". Os compradores podiam perguntar aos próprios escravos, mas obviamente não podiam sempre esperar uma resposta verdadeira. A idade era uma questão importante quando se tratava de descobrir o quão duro um escravo poderia trabalhar e se valia a pena comprar uma mulher como possível consorte para o harém. Indicadores sólidos e confiáveis de idade são notoriamente difíceis de encontrar com seres humanos, no entanto, forçavam muitos maquignons a confiar em sua experiência como traficantes: "Eles se baseiam em conjecturas gerais da barba, rosto ou cabelo, mas um bom conjunto de dentes tornará um dez anos mais jovem e um conjunto de dentes quebrados dez anos mais velho do que a verdade.
50 — Sempre à procura de sinais de riqueza ou conexões que muitos escravos se esforçavam para esconder, os traficantes conferiam cuidadosamente os cortes de cabelo, para ver se eram de boa família, e as palmas das mãos para julgar a delicadeza da pele. Também era uma crença entre os revendedores (pelo menos de acordo com Dan) que a verdadeira natureza de uma compra em perspectiva poderia ser contada pela leitura de sua palma, tornando as mãos um "ponto duplamente importante de inspeção. Acima de tudo, d 'Arvieux afirmou que eles examinavam os lóbulos das orelhas dos cativos para ver se estes tivessem sido perfurados", inferindo que são pessoas de qualidade e distintas das pessoas comuns, pois desde crianças eles usavam protetores de orelha".
51 — Quando se tratava de resgate, as origens de um escravo também desempenhava um papel importante.
Parte II — Magrebe
O Trabalho Escravo
[Relato do comerciante português João Mascarenhas, feito prisioneiro e levado para Argel.]
52 — “Certamente não há pior momento na vida do que aquele em que um cativo espera para descobrir que senhor o quer, já que um homem não pode conhecer um infortúnio maior, nem, pelo castigo de seus pecados, uma miséria maior do que ser um escravo, mas se sua má sorte o leva a ser escravo de um mestre malicioso, ele não pode esperar nada de bom de seu futuro e deve se considerar o mais infeliz dos homens: não há pior inferno nesta vida.”
[E o relato de William Oakley:]
53 — “A crueldade deles é grande, mas a cobiça excede a crueldade; pudessem eles fazer de nós Mortos tanto quanto eles nos mantêm vivos, para que os interesses da crueldade e da cobiça pudessem ser assegurados e reconciliados, estaríamos bem seguros de qual caminho deveriam ter seguido conosco. Mas devemos ser uma boa quantidade de sebo e gordura que rende dois ou três dólares por mês”.
54 — Muito de como um escravo se sairia — como Mascarenhas e outros cativos recém-chegados bem sabiam — dependia do propósito para o qual ele foi comprado. Como Henri-David Grammont observaria dois séculos depois, todos os novos cativos, na chegada "foram separados em duas classes bastante distintas: os escravos do resgate e os escravos do trabalho. A classe em que um escravo caía dependia em grande parte do próprio indivíduo, de acordo com Grammont: aqueles que deixaram claro aos compradores em potencial que tinham riqueza e conexões suficientes em casa para se livrarem do cativeiro foram comprados por especuladores na esperança de um bom retorno de seu investimento. Esses compradores, de acordo com observadores contemporâneos, eram na maior parte mouros ou tagarinos (ex-residentes islâmicos da Península Ibérica que foram expulsos ou fugiram da Espanha) e renegados europeus. Dizem que eles veem seus escravos como um investimento e, de fato, a propriedade de escravos desse tipo, como Taoufik Bachrouch observou recentemente, devia ser vista "como uma forma de capital de aquisição análogo ao [de] dinheiro, renda, ou a 'mudança na cristandade'”.
55 — O trabalho dessa classe de escravos revelou-se muito mais variado do que o geralmente exigido dos negros africanos recém-chegados às Américas.
56 — Lá, a principal necessidade, especialmente nos séculos XVII e XVIII, era que os trabalhadores das plantações produzissem safras comerciais — açúcar, arroz, algodão e fumo. No entanto, apesar da variedade de seu trabalho, as tarefas designadas aos escravos brancos tendiam a cair em uma ou outra categoria de trabalho — e de fato em setores inteiros da economia — que as tradições escravistas do Magrebe ao longo dos séculos passaram a definir por meio do costume e uso como "as tarefas que os homens livres não estavam mais dispostos a fazer."
57 — Alguns escravos acabavam em empregos relativamente fáceis, geralmente no serviço doméstico. Este parece ter sido o destino de praticamente todas as escravas não tomadas por seus compradores especificamente como concubinas.
58 — Enquanto jantava na vila de Mehmed Chelebi (também conhecido como Dom Philippe), nos arredores de Túnis, o emissário francês Laurent d 'Arvieux foi servido por uma tropa de escravos, vestida muito apropriadamente; "teve então o prazer de um concerto de harpas, violinos, violões, imperiais, cítaras, nos quais os escravos de Dom Philippe tocavam perfeitamente bem algumas melodias italianas e espanholas.
59 — Certamente, o trabalho doméstico era muito mais fácil do que as tarefas às quais a maioria dos escravos aparentemente era designada — construção, pedreiras, extração de madeira, agricultura e, é claro, remo nas galeras.
60 — Foram as galés que simbolizaram a escravidão para os europeus brancos no Magrebe, assim como o corte da cana entre os africanos que trabalhavam nas Américas. Como disse o escravo português João Mascarenhas: "Segundo os cativos de Argel, se alguém não foi a uma galeotta, não poderia dizer que foi escravo. E isso é verdade".
61 — A escravidão nas galés era extremamente difundida no início do Mediterrâneo moderno, atraindo suas vítimas não apenas das fileiras dos escravos, mas também de condenados, prisioneiros de guerra e não poucos trabalhadores pagos. Em meados do século XVI, tanto as potências cristãs quanto o império turco eram capazes de reunir enormes frotas de centenas de galés e galeotas, cada uma exigindo entre 150 e 300 remadores. Foi uma força de trabalho que provavelmente atingiu o seu máximo por volta da época da batalha de Lepanto, em 1571, quando cerca de 80.000 remadores foram colocados em ação uns contra os outros — a maioria deles escravos, e não apenas do lado muçulmano: nas galés da Espanha, França, Malta e alguns estados italianos, podiam-se encontrar milhares de mouros, turcos, condenados católicos e não poucos protestantes condenados aos remos. Ainda assim, no final dos anos 1600, a escravidão nas galés pode ser considerada principalmente uma instituição islâmica, em vez de cristã, em parte porque os corsários berberes foram mais bem-sucedidos na captura de escravos, mas também porque as potências cristãs foram mais rápidas em se converter em veleiros totalmente equipados que poderia cruzar o Mediterrâneo sem recorrer a remadores.
62 – Foi só no final do século XVII, quando os próprios corsários finalmente mudaram de galeras a remo para veleiros que a necessidade de músculos escravos finalmente diminuiu.
63 — Os remadores eram acorrentados pelos pulsos ao próprio remo e também pelos tornozelos, presos a uma corrente que corria ao longo de cada banco e aparafusada ao vigamento do navio.
64 — Joseph Morgan chamou de "o emprego menos tolerável e mais temível de um homem privado de liberdade ... Aqueles que não viram uma galera no mar ... não podem conceber o choque que tal espetáculo deve causar a um Coração capaz da mínima Tintura de Comiseração.
65 — Fileiras de miseráveis seminus, meio famintos, meio bronzeados, magros, acorrentados a uma prancha, de onde eles não saem por meses juntos ... incitados, mesmo além da força humana, com golpes cruéis e repetidos sobre a carne nua, a uma continuação incessante do mais violento de todos os Exercícios.
66 — [Quanto aos cativos esperando o resgate, temos o depoimento de] Micozzo di Bastiano de Cittá Nuova, que escreveu para casa em 1677:
“Pelo amor de Deus, meu Pai, não me abandone neste horrível cativeiro; pelas Vísceras da Virgem Maria, o que deveis fazer, fá-lo o mais depressa possível, pois se o meu resgate não chegar logo, o meu Mestre me mandará para as galés, onde outros dos meus companheiros [já] foram. . Pelas Almas Sagradas do Purgatório, não me deixem morrer em desespero dentro das galeras, seja com a Caridade [pública] ou com a sua ajuda para me tirar deste Inferno, onde permaneço com ferros e grilhões e correntes ao redor do meu pescoço e algemas aos meus pés”.
67 — Evidentemente, Mascarenhas foi enviado várias vezes durante seu cativeiro de cinco anos ("pelos meus pecados", como ele disse), assim como Francis Knight. É graças a tal testemunho ocular, como Knight chamou a si mesmo, que temos tanto conhecimento da vida brutal da galeotta."
68 — Como escravos ao longo da história, os escravos das galés no Magrebe tentaram melhorar sua situação e suas chances de sobrevivência, de todas as maneiras que as circunstâncias permitiam. Eles parecem ter se organizado de forma hierárquica enquanto estavam no mar, o que oferecia algumas vantagens, pelo menos para aqueles no topo da pirâmide e para aqueles que eles podem ter escolhido favorecer com sua proteção. Encabeçando essa comunidade infeliz estavam cerca de uma dúzia de pessoas encontradas em qualquer galera que não precisavam remar ou, pelo menos, não com muita frequência. A maioria deles eram os marinheiros escravos, que operavam as grandes velas de lanteia e administravam os cordames. Havia também um ou mais scrivani, ou secretários de escravos, em cada galera, homens cuja alfabetização os tornava úteis demais para seus ra’is desperdiçarem no remo. Como escravos, os scrivani eram os principais responsáveis capazes de supervisionar as galeottas, distribuindo-lhes suas pequenas rações e, não raramente, registrando suas mortes no mar. Ao mesmo tempo, esperava-se que os escrivães registrassem todos os prêmios que sua galera pudesse ter ganho enquanto estava fora.
69 — [Em terra] como regra, os aspectos mais rudes da construção eram atribuídos a escravos como estes: principalmente dividir as tarefas, como alguns afirmavam, não por uma razão justa ... mas dar aos mais fracos os trabalhos mais graves, se eles não pudessem fornecer algum tipo de recompensa. "Nas capitais de regência e nas cidades portuárias de Marrocos, os projetos de construção em escala faraônica dependiam de um suprimento constante de pedra lapidada, e os escravos eram forçados a fornecê-la. Em Argel, isso significava pedras enormes "para a manutenção e para a construção do Mole" — o grande quebra-mar que transformou Argel em um porto especialmente protegido (e bem fortificado).
70 — Extraídas e explodidas das colinas cerca de 2 milhas fora da cidade e pesando algo entre 20 e 40 toneladas, esses blocos tinham de ser arrastados em uma forma de trenó com mais de "seiscentos ou setecentos homens para cada trenó ... transportadas com cordas de cerca de sete polegadas de circunferência." A cota diária para cada trenó era fixada pelo paxá e aplicada por seus capatazes, que eram responsáveis por fazer a cota e, em consequência, impeliam os trabalhadores "com rigor e severidade adicionais ... batendo continuamente nos escravos com suas varas, e aguilhoando-os com uma ponta, na qual há uma pequena lança, não muito diferente de uma aguilhada de boi, entre nossos fazendeiros”.
71 — No Magrebe, como nas cidades portuárias de Nova Orleans, Havana e Rio, os escravos eram fundamentais para o transporte e descarga de todos os tipos de mercadorias, especialmente as pesadas e volumosas. Foss observou como, nas docas, "alguma parte dos escravos estão constantemente carregando barris de açúcar, barris de vinho, tonéis de pregos, canhões, etc”. Foss também fez eco a Dan ao notar como "cada artigo que deve ser transportado de um parte da [cidade] para outra... deve ser carregado pelos escravos com varas sobre os ombros, pois as ruas são tão estreitas que aqui não se usa nenhum tipo de carroça, nem mesmo um carrinho de mão. Em muitas das ruas é difícil para um homem ultrapassar o outro. "
[Comentando as consequências do despojamento total da escravidão com a autodefesa pela busca desesperada de bens pessoais através do roubo para escambo, Davis escreveu:]
72 — Vistos pelos olhos de d 'Aranda e de alguns outros admiradores (principalmente posteriores), esses escravos mãos-leves aparecem como personagens completamente picarescos, rebeldes que permaneceram resilientemente não intimidados por seus sofrimentos no cativeiro. (D'Aranda em um ponto escreveu sobre um escravo espanhol, "um muito respeitado entre os escravos, e que poderia muito bem ser um Graduado na Universidade dos Ladrões, que não apenas roubou uma ovelha em seu caminho de volta do trabalho no campo, mas depois conseguiu contrabandear em um saco, passando pelos guardas no portão da cidade.) Sem dúvida, também era verdade, no entanto, que dezenas ou mesmo centenas de ladrões soltos em uma cidade como Argel tiveram um efeito corrosivo na sociedade local. D'Arvieux, de fato, afirma que eram os escravos de particulares, aqueles que não eram trancados todas as noites nos bagnos, que causavam mais danos, já que "tendo a comodidade de sair à noite, eles formavam um bando e saíam a arrombar os armazéns e lojas, e em algumas horas podiam esvaziar o melhor armazém suprido".
73 — Parte dessa vingança e resistência contra uma sociedade que havia roubado sua liberdade pode certamente ser detectada nos escravos da Costa do Magrebe, que, por exemplo, atacando com tanta insistência as lojas do mercado em Argel, toda a área teve de ser fechada, barricada e patrulhada todas as noites.
[Uma informação que corrobora a opinião testemunhal de Muniz de Souza quando visitou as fazendas açucareiras do Recôncavo baiano, a respeito da indiferença dos fazendeiros com a saúde e nutrição de seu plantel, pode ser lido no final deste capítulo:]
74 — Estudiosos modernos que presumem que o investimento por si só era suficientemente importante para um proprietário de escravos no Magrebe garantir um mínimo de bom tratamento para seus cativos, deveriam ter em mente que em meados de 1600 os escravos trabalhadores eram baratos (muitas vezes custando muito menos do que um cavalo) e facilmente substituídos. Já foi demonstrado que os plantadores de açúcar no Caribe achavam mais fácil fazer seus escravos trabalharem até a morte e depois substituí-los do que cuidar deles como um investimento: por que os proprietários de escravos no Magrebe teriam feito as coisas de forma diferente?
4 – A vida dos escravos
[Depoimento do escravo William Oakley:]
75 — “Durante todo esse tempo, não houve aurora de Libertação de nossa servidão: quando um ano passava, outro nos encontrava nos entregando cativos para o próximo: Nossa condição era ruim, e em perigo de cada dia ser pior, como os humores mutáveis de nossos Patrões voltados sobre nós... A verdade é que, com o tempo, ficamos tão acostumados com a servidão que quase esquecemos a liberdade e nos tornamos estúpidos e insensíveis com nossa escravidão”.
76 — O Bagno Beyli, o maior de Argel, media cerca de 90 x 35 metros; o bagno de San Leonardo (ou Kara Ahmed) em Tunis parece ter cerca de 50 metros quadrados. Essas prisões maiores tinham alguma semelhança com os tradicionais caravansários ou fonduks com vários compartimentos de celas sem portas que se abrem para um ou mais pátios geralmente com cobertura "plana, com terraço à moda espanhola". Em suma, esses grandes bagnos parecem ter sido bastante semelhantes: "edifícios de uma maneira uniforme que pouco diferem entre si, como disse d'Arvieux. Os bagnos menores, de propriedade privada, por contraste, podiam ter suas próprias idiossincrasias, alguns deles simplesmente remendados pela derrubada das paredes entre um aglomerado de casas adjacentes e com janelas bloqueadas e portas especiais.
77 — Embora fossem grandes e abrigassem muitos homens, a administração dos bagnos era realmente muito simples. O controle geral estava nas mãos de um guardião basha, geralmente um turco, mas às vezes a um cristão renegado. "Para ajudá-lo nessa tarefa, ele tinha um punhado de guardiões incontestáveis (cinco ou seis para d 'Aranda e seus 550 companheiros escravos no bagno de Ali Pegelin), que poderiam ser turcos ou cristãos renegados: aqueles que, como disse d'Aranda "têm a supervisão dos cristãos e do que eles fazem". Todas as manhãs, ao amanhecer, eles acordavam os escravos, gritando " ‘levantem cachorros, saim daí canalhas!’ este era o bom dia", observou d'Aranda. Eles então reuniam aqueles que deveriam trabalhar naquele dia, abriam os portões do bagno e os levavam para onde quer que seu trabalho fosse necessário. Todas as noites ao pôr do sol, pouco antes de os portões serem fechados, os guardas faziam a chamada da lista "e cada um devia passar pelo guardião basha quando seu nome era chamado para ter certeza de que todos os escravos fossem contados. O guardião basha terminaria o dia [gritando] em voz alta, que na manhã seguinte tal número de escravos era necessário para ir trabalhar ao romper do dia e então o bagno era bloqueado durante a noite.
78 — Essa equipe de policiamento era completada por um punhado de escribas, scrivani ou escrivains, como os escravos os chamavam — que monitoravam quem deveria trabalhar onde, quem estava doente demais para trabalhar, quem devia dinheiro ao guardião basha e qualquer coisa mais pois exigia aritmética e alfabetização. Esta posição, por razões que não são claras, era a única prerrogativa dos escravos cristãos — tanto que se um escriba se convertesse ao Islã, era entendido que ele teria que desistir de seu emprego, mesmo se ele permanecesse um escravo.
79 — Uma vez que os presos não recebiam praticamente nada além de sua cota esporádica de roupas, 10 onças ou mais de pão preto por dia (e nem mesmo isso em alguns dos bagnos), e uma ração de água potável, praticamente tudo o mais, por mais que parecesse ao observador moderno como uma necessidade da vida, era um luxo a ser comprado ou alugado do guardião basha. Isso incluía a rede de dormir dos escravos, colchões de junco ou cobertores; qualquer roupa além da alocação normal; e consumíveis como vinho, carne ou tabaco.
[Descreve os hospitais, cujas instalações eram conjugadas com os bagnos para que, não havendo saída para as ruas, não permitisse a possibilidade do enfermo escapar. E assim também eram as capelas em que as ordens religiosas sob permissão atuavam na assistência espiritual dos escravos, algo típico da escravidão em geral. Sendo as capelas também confinadas nos bagnos, os religiosos descreviam como os locais mais imundos para a prática da religião. E, competindo com todos, as tavernas, assim descritas:]
80 — Padres e missionários, cujo trabalho nas capelas os colocavam em contato próximo com as tabernas, professavam repulsa pelo que viam, chamando-os de "lugares abomináveis, onde [homens] cometem crimes horríveis de toda espécie". Os crimes que cometiam, escreveram, foram em sua maior parte "influenciados pelos turcos": a detestável liberdade dos sentidos", segundo os padres, que equivalia principalmente à embriaguez, com os vícios que a acompanham — palavrões e jogos de azar.
81 — Além disso, os donos de tavernas eram acusados de permitir que suas mesas e cadeiras se espalhassem muito perto das capelas, de modo que sua clientela frequentemente bêbada acabava interrompendo funções religiosas, contando piadas grosseiras, zombando da liturgia e até mesmo "trazendo algumas mulheres descaradas" como disse um padre, para observar e zombar das cerimônias da Santa Missa e de algumas de nossas outras devoções ... com risadas e piadas. Mesmo quando os clientes da taverna não estavam ativamente interrompendo os serviços religiosos, diziam os clérigos, suas próprias presenças eram um mau exemplo de excesso e licenciosidade, especialmente para os escravos mais jovens. A esse respeito, os missionários estavam particularmente preocupados, pois acreditavam que os escravos mais jovens eram especialmente suscetíveis às lisonjas dos renegados que buscavam persuadi-los a abjurar seu cristianismo e a se converter ao islamismo.
82 — Alguns desses jovens certamente usaram o turbante como os padres temiam, mas, como já observamos, a maioria dos mestres era justa ou mesmo abertamente hostil a tais conversões, que presumiam não ser sinceras e realizado apenas para evitar o trabalho duro.
83 — Também pareceria, embora muitos detestassem dizer isso em palavras simples, que os missionários estivessem tão nervosos que esses jovens se permitissem ser seduzidos sexual e religiosamente, para se tornarem catamitas mesmo quando se tornassem muçulmanos. De fato, muitos clérigos, na medida em que tinham noções do Islã, agiam como se as duas formas de sedução estivessem intimamente ligadas: o trinitário Alfonso Dominici, escrevendo em 1647, afirmava que, entre os escravos, esses "Giovanetti estão todos perdidos porque eles são comprados a grande preço pelos turcos para servi-los em seus pecados abomináveis e assim que eles os têm em seu poder, [então], vestindo-os e acariciando-os, eles os persuadem a se tornarem turcos. Mas se por acaso alguém não consente em seus desejos descontrolados, eles o tratam mal, usando a força para induzi-lo ao pecado; eles os mantêm trancados para que ele não veja nem frequente [outros] cristãos, e muitos outros eles circuncidam à força".
84 — Mascarenhas, usando uma linguagem mais típica dos sacerdotes, alegou que os turcos trouxeram seus escravos cristãos com eles para os banhos locais — dos quais havia dezesseis somente em Argel — onde “eles cometem sem serem punidos os pecados da carne [que são] o mais abominável e o mais vergonhoso de se imaginar". Ele também culpou a sodomia, junto com "usura, roubo, violência e assassinato", como os crimes habituais cometidos pelos habitantes de Argel e a razão pela qual foram punidos por Deus, de modo que "eles nunca poderiam desfrutar de uma vida tranquila e completamente segura. A narrativa de Mascarenhas, como observam seus tradutores, foi originalmente publicada em 1627 como um panfleto de cerca de 100 páginas, um exemplo da litérature de colportage tão difundida no início da Europa moderna. Foi apregoada em Portugal por livreiros itinerantes e, junto com outros panfletos baratos, recebia o nome de literatura de cordel, ou "livros de cordas", devido à forma como os volumes eram encadeados para serem divulgados de um lugar para outro. Obras como a de Mascarenhas, que muitas vezes abasteciam seus leitores com descrições sinistras de práticas homossexuais no Magrebe, podem ter contribuído muito para fixar a noção popular europeia de que os habitantes do Magrebe eram, em geral, “incorrigivelmente hediondos ... adeptos em cometer sodomia com todas as criaturas e tolerar todos os vícios”. Para os padres e outros cristãos que denunciaram a sodomia no Magrebe, este vício em particular foi apresentado como apenas mais uma faceta da ausência geral de Deus da região.
[A qualidade de vida nos bagnos é insistentemente repetida pelo autor conforme os diversos testemunhos que coletou para escrever o livro:]
85 — O Padre Marcello Costa, chefe dos missionários em Túnis, descreveu um deles nas proximidades de Porto Farina: "uma barraca miserável [stallaccio] onde cem e mais cristãos [escravos] eram confinados todas as noites em um espaço de cerca de trinta passos quadrados ... e para a miséria do lugar, têm de ficar uns em cima dos outros e só com dificuldade se consegue respirar ... pois não tem janela nem brisa, e com a porta fechada é tal o fedor que às vezes faz [os homens] desmaiarem, e não falo da quantidade de todo tipo de dejetos de animais ... [e] ao romper da madrugada os cristãos são libertados e carregados pelos mouros para o trabalho, e todas as noites é a mesma história”.
86 — Aqueles que estavam condenados a passar anos ou mesmo décadas nos bagnos faziam o possível para se divertir quando podiam. A julgar pela frequência com que os padres denunciavam jogos de azar — especialmente nas tabernas bagno — parece que cartas e dados eram bastante comuns. Depois de economizar durante anos para o resgate final, alguns escravos teriam simplesmente perdido sua energia e desperdiçado tudo em jogos e bebidas em pouco tempo. Mas, considerando quanto custa um resgate em comparação com o que se poderia esperar ganhar ao esmolar ou roubar, parece que a maioria tinha pouco a perder em primeiro lugar. Os escravos também tinham permissão para deixar seu bagno e vagar pela cidade nos feriados muçulmanos, uma ou duas horas após o término de seu trabalho e antes de o bagno ser fechado ao pôr do sol.
87 — Embora, para o proprietário privado de escravos com apenas uma dúzia ou mais de escravos isso possa parecer uma lição cara, para escravocratas em grande escala, como Ali Pegelin e o próprio estado, a possibilidade de disciplinar pelo exemplo deve ter valido a pena arruinar ou mesmo matar um punhado de escravos. Essa violência proposital também era bem conhecida entre proprietários de escravos e feitores nas Américas. Como disse um fazendeiro do sul dos Estados Unidos: "O medo da punição é o princípio ao qual devemos apelar, para manter [escravos] em reverência e ordem". Essas manifestações de controle total de um senhor sobre sua propriedade humana foram vistas, no Magrebe como nas Américas, como fundamental para estabelecer a subsequente relação de dominação entre os dois, relação que pode eventualmente permitir formas menos brutais de coerção ou mesmo possíveis recompensas, mas sempre baseada na opção do terror.
[Termina o capítulo fazendo comparação com os campos de concentração e o Gulag, lamentando que nenhum dos banhos tenha sido preservado, mesmo após a dominação francesa em Argel a partir de 1830.]
Parte III – Itália
O fronte doméstico
88 — A península italiana já havia sido presa dos corsários berberes por dois séculos ou mais, e suas populações costeiras haviam se retirado em grande parte para aldeias muradas no topo das colinas ou cidades maiores como Rimini, abandonando quilômetros de costa outrora populosa para vagabundos e bucaneiros.
[Palavras do Cardeal Corsi em 1696:]
89 — “Eu mal tinha chegado aqui em Rimini e vi ao meu redor uma grande multidão de mulheres pobres, cujos maridos eram mantidos como escravos em Dulcigno (modernamente Ulcinj, no sul de Montenegro)... Os senhores não poderiam imaginar quão grande é a aflição e o dano que tantas famílias [aqui] sentem pela escravidão acima mencionada, e o quanto alguém é movido à compaixão por tantos pobres coitados, com crianças mamando no peito e com angústia pela modéstia de suas filhas ao seu lado.”
90 — Na jihad cristã-muçulmana de três séculos que começou por volta de 1500, a pirataria e a escravidão se tornaram os instrumentos de política do Estado para ambos os lados: escravizar civis comuns não apenas privou o inimigo de milhares de cidadãos úteis e produtivos, mas também forneceu mão de obra útil e uma fonte significativa de renda por meio de resgate.
[Para entender a dimensão do tráfico de escravos, é imprescindível entender que na guerra dos Habsburgos contra os turcos, escravos muçulmanos eram tomados como reféns para negociar a libertação de cristãos. Portanto, a apreensão de escravos se tornou uma atividade estratégica].
91 — Descreve as dificuldades de comunicação entre os maridos e parentes tornados escravos e as famílias da Itália, uma vez que em muitos casos, o propósito da captura era o de obter resgates dos familiares, para cujo entendimento as autoridades “turcas” deveriam colaborar. A angústia das famílias em não saber se o pai ou marido tinha caído prisioneiro ou simplesmente desaparecido nas águas mediterrâneas era de tal monta que as famílias viviam em constante desespero.
[Inicialmente as ordens religiosas foram convocadas para fazer a ponte entre os desaparecidos cativos e as famílias cristãs. O autor descreve assim:]
92 — Também foi motivo de particular orgulho entre os trinitários que sua ordem se dedicasse completamente a atividade de redenção, tal que seus integrantes concordaram, com um voto solene, em não aceitar cargos eclesiásticos, de modo a não se distrair ou desviar da redenção de escravos.
93 — Como acontece com muitas outras ordens religiosas, no entanto, os trinitários e os mercedários entraram em declínio nas primeiras décadas do século XVI e, portanto, acharam ainda mais difícil lidar com o aumento repentino e maciço da captura de escravos por cristãos e muçulmanos que ocorreram depois de 1500. Um por um, os vários miniestados italianos começaram a perceber que o problema não iria embora por conta própria, e que algum tipo de trabalho redentor patrocinado pelo estado seria necessário como uma resposta aos ataques [em busca] de escravos em larga escala que estavam sendo conduzidos, primeiro pelos turcos e depois pelos corsários berberes, nas costas e nas rotas marítimas da Itália.
94 — O primeiro a responder foi Nápoles, cujos territórios não foram por acaso também os mais diretamente ameaçados pelos ataques dos corsários: em 1548, o imperador Carlos V criou a Real Casa Santa della Redentione de Cattivi. A organização napolitana forneceu o modelo para muitos dos outros estados italianos quando eles formaram suas próprias sociedades de redenção e, de fato, quando o Vaticano decidiu encomendar sua própria confraria de resgate em 1581-82, para lidar com o resgate dos súditos dos Estados papais, foi feito um pedido para examinar o estatuto da Santa Casa de Nápoles, especificamente para ver como essas coisas eram feitas. Depois de Roma, outras cidades e portos principais na Itália seguiram o exemplo, incluindo Bolonha (1584), Lucca (1585), Veneza (1586), Palermo (1596), Gênova (1597) e Malta (1607); muitas dessas organizações, quando formadas pela primeira vez, imitaram Roma e enviaram cartas a seus predecessores pedindo conselhos sobre estrutura e procedimento.
95 — Embora cobrar uma contribuição fixa dos novos membros do conselho pudesse ser necessário para iniciar uma organização de resgate, mantê-la funcionando exigia uma renda mais permanente, pelo menos se as coisas não terminassem como na Magistratura degli Schiavi de Gênova, que, não sendo sustentado por contribuições maciças, cumpriu apenas parcialmente os objetivos para os quais foi fundada.
96 — No mínimo, essa disposição de pagar podia simplesmente encorajar os proprietários de escravos a aumentar seus preços pedidos. Quando, no final do século XVII, mais dinheiro se tornasse disponível e mais escravos pudessem ser resgatados por meio da atividade passível de pagamento, foi exatamente o que aconteceu, e por volta de 1700 houve um claro início de uma espiral inflacionária que levaria a que o resgate mais que dobrasse na década de 1760. Além disso, as nações que deixaram saber que estavam dispostas a comprar de volta seus próprios cidadãos escravizados corriam o risco adicional de tornar os navios e cidadãos alvos principais — como os Estados Unidos descobririam em sua imensa costa na década de 1790.
97 — Outra razão para a rapidez era o medo de que os cativos cedessem ao desespero, às dificuldades e às lisonjas de seus senhores e se convertessem ao Islã, "salvando assim o corpo e também perdendo a alma". Os portos do Magrebe estavam cheios destes renegados: em Argel, d 'Aranda afirmava que "Existem renegados de todas as nações cristãs e na minha época [na década de 1640] encontrei mais de três mil franceses... e os 12.000 soldados, que são as forças regulares... são em sua maioria Renegados, dissolutos, sem Religião e sem Consciência.”
98 — Sociedades sob traumas contínuos se reorganizam / encontram soluções ou desaparecem. Os estados mediterrâneos obviamente sobreviveram, embora se pudesse dizer com certeza que, pelo menos para a Ibéria e a Itália, o século XVII representou um período sombrio do qual as sociedades espanhola e italiana emergiram como meras sombras do que haviam sido em seus primeiros anos de ouro. Para os próprios indivíduos, podemos ver que os traços psicológicos desse trauma duraram além do tempo em que as sociedades maiores se reconstruíram como estados modernos, muito depois de "até mesmo ter se perdido a ideia desses cães que trouxeram tanto terror."
6 – Celebração [do fim] da Escravidão
[O último capítulo trata das celebrações ocorridas pela libertação dos escravos, na forma de procissões comandadas pelos líderes religiosos das comunidades locais e das ordens religiosas envolvidas nos resgates].
99 — Bem cientes de quão populares as procissões de escravos eram em particular, muitos estados italianos colaboraram com os trinitários para encená-las, e às vezes apenas para um punhado de escravos que retornavam.
[Na Itália, os escravos retornados passavam por um período de quarentena, devido as pestes do norte da África, antes da cerimônia de libertação que era um ato religioso e político ao mesmo tempo, já que reunia autoridades no desfile, na capital do estado natal do retornado. A pompa medieval das procissões implicava em vestir os resgatados com trajes especiais, em um desfile que terminava em missa e as vezes em um banquete antes de serem liberados para envio as suas comunidades locais].
100 — A estruturação desses eventos — com seus elementos em níveis de igreja e estado... e ex-escravos marchando em companhia de seus superiores sociais — tratava-se de um ritual de reintegração, onde aqueles que foram despojados de sua personalidade e submetidos à morte social da escravidão eram visivelmente devolvidos ao seu status original de cristãos livres.
[Como e por que a escravidão tem sido tratada apenas como uma questão racial é a esperada análise conclusiva de Robert C. Davis em seu livro. Espanta saber que a escravidão branca europeia tenha recebido tão pouca atenção dos historiadores. Como isso pode ter acontecido?]
101 — Essa preocupação abrangente sobre a escravidão da Costa do Magrebe, que observadores religiosos e seculares expressaram no início da era moderna, estava enraizada em um problema muito real: concidadãos — e às vezes eles próprios — constantemente corriam o risco de captura, violência e exploração nas mãos de uma cultura estrangeira geralmente hostil. Ao mesmo tempo, essas preocupações serviram de base para abordar e examinar valores humanos básicos como a liberdade da comunidade, o contrato social e a busca pela salvação. É uma boa indicação de quão central era a escravidão branca para a autoimagem europeia da época, mas também apresenta aos estudiosos modernos a necessidade crucial de confrontar o que essa autoimagem e, de fato, toda a noção de escravidão realmente significava para o início da modernidade europeia. Tornou-se quase um dado na erudição moderna que a escravidão nestes séculos foi compreendida e justificada em bases estritamente raciais: a chamada Maldição de Noé, ou argumento dos Filhos de Cam que buscava (e ainda busca) explicar a escravidão dos negros por brancos como ordenados biblicamente. Tal abordagem da questão, que encontra suas fontes principalmente nos escritos de dirigentes de escravos do Atlântico e proprietários das plantations americanas (e com os quais era amplamente popular), pretende provar o que já pressupõe, no entanto: que os escravos no início do mundo moderno eram, por definição, negros africanos por origem. Tão dominante é a suposição na literatura de que os escravos deviam ser negros, que vários estudos recentes que se propõem a lidar com a "outra escravidão" da época não mencionam a costa do Magrebe, mas em vez disso tratam a escravidão dos negros subsaarianos pelos árabes. Como os escravos brancos da costa do Magrebe podiam se encaixar em nossas noções atuais de escravidão pré-moderna permanece por enquanto tão incerto quanto como eles poderiam se encaixar na visão de mundo de seus contemporâneos.
102 — Dado o número de brancos que caíram na escravidão no Magrebe e como seus contemporâneos estavam cientes de sua situação, é difícil aceitar que os europeus unanimemente acreditassem nisso, já que os escravos eram quase sem exceção africanos... o fato de os africanos serem negros permitia explicar sua condição em termos raciais, como disse recentemente um estudante da época. A experiência de tantas dezenas de milhares de escravos brancos, nativos de todos os países entre os Estados Unidos e a Rússia, e as histórias contadas por aqueles que tiveram a sorte de serem resgatados ou de escaparem garantiram que a escravidão no início da Europa moderna não fosse concebida apenas em tais termos conscientes da cor, como muitos observadores modernos teriam.
[Não esquecendo que a saga brasileira na exploração da borracha foi executada nos moldes da escravidão como magistralmente narrados por Carlos de Vasconcelos e Alberto Rangel, porém com os nordestinos, a maioria brancos e mestiços cearenses].
103 — Assim, Samuel Pepys escreveu em seu Diário de encontros com escravos britânicos recém retornados de Argel e de ouvir suas histórias; mais ou menos na mesma época, os islandeses estavam compondo sagas sobre o sofrimento de seu povo como escravos em Argel durante a década de 1630. O que foi indiscutivelmente o primeiro romance americano, The Algerine Slave, era sobre um habitante da Nova Inglaterra que comandava escravos negros da África Ocidental e foi escravizado pelos corsários de Argel, uma história que seguia uma tradição já estabelecida de contos de escravidão do Magrebe que remonta a Cervantes ou anterior.
[Cervantes ficou cativo dos mouros de Argel por quase 5 anos e escreveu uma comédia que se passa nos baños daquela cidade].
104 — Uma olhada nas dezenas de sermões para arrecadação de fundos e nas centenas de cartas dos próprios escravos torna isso claro que os europeus de todas as classes e credos passaram um tempo considerável lutando com as implicações religiosas e psicológicas do que significava cair nesta forma particular de morte social.
105 — Na falta da racionalização confortável dos traficantes e proprietários de escravos americanos de que sua escravidão poderia ser justificada pela raça, por "alguma diferença fundamental entre senhor e escravo — as chances eram que seu senhor era um renegado tão branco e europeu quanto eles — esses escravos no Magrebe encontravam pouco consolo em explicações raciais para sua condição. Ao menos, eles teriam que enfrentar um impressionante forma invertida de opressão racial, como Francis Brooks detalhou em seu conto bastante sinistro (e best-seller) de sua escravidão no Marrocos, uma história que rasteja com a imagem de chefes negros dominando escravos brancos em trabalhos forçados, como [os] “pobres cristãos estavam sofrendo enquanto eram dolorosamente apressados e punidos por aqueles negros infernais... e mal tinham tempo para se alimentar, ou comer o pão ruim que lhes era permitido, mas com muitas ameaças, pancadas e golpes dos negros, mandando-os se converter aos mouros”.
106 — As questões de liberdade e raça, que seriam tão amplas nos séculos XIX e XX, já estavam ganhando forma e urgência nos séculos XVII e XVIII, pelo menos em parte por meio das possibilidades discursivas oferecidas pela escravidão na costa do Magrebe. Se essas questões foram posteriormente subsumidas por outros movimentos sociais mais imediatos e universais e, acima de tudo, pela questão urgente da escravidão mutável nas Américas, isso não é surpreendente: a dizimação infligida à África Subsaariana e aos negros africanos nas Américas superou enormemente, em seu escopo, senão em todos os seus horrores específicos, o que foi imposto aos escravos brancos no Magrebe. O movimento abolicionista que a escravidão negra gerou iria, ao longo de quase um século, interromper talvez o maior, mais eficiente e mais implacável sistema de exploração de humanos por outros humanos inventado até então. Também deu um novo sentido e conteúdo à noção de direitos humanos, proteção legal e igualdade universal. Nada tão grandioso pode ser reivindicado para as tentativas, bastante casuais e muitas vezes egoístas que foram empreendidas para eliminar a escravidão no Magrebe e isso pode explicar o desinteresse comparativo que tem provocado nos últimos anos. Como vimos aqui, o discurso moderno inicial sobre a escravidão branca tendia para o místico, com um entusiasmo pelo comunitarismo piedoso e um elogio ao cristianismo absolutista envolto em um espírito de identidade pessoal e de grupo. A celebração da escravidão, tal como foi promulgada nos púlpitos e procissões da época, flertava com as noções de liberdade e cidadania, mas acabou se sentindo mais confortável com as de retribuição e redenção.
107 — No final, a purificação da escravidão branca do Magrebe foi envolvida na política das grandes potências e nas aventuras coloniais dos séculos XVIII e XIX. O ataque bucaneiro de Napoleão ao Egito em 1798 mostrou como o equilíbrio de poder entre as costas norte e sul do Mediterrâneo havia mudado claramente em favor da primeira. A batalha final pelo controle deste canto da África não seria entre muçulmanos e cristãos, mas entre dois Estados cristãos — os britânicos e os franceses lutando pelo domínio da região. Quando os franceses retornaram ao Magrebe em 1830, eles vieram não apenas para destruir a escravidão branca e o sistema que a tolerava, mas também para anexar a própria Argélia. A intrusão francesa no Magrebe induziu muitos estudiosos a assumir uma teleologia bastante condescendente em relação à atividade europeia no Magrebe, mesmo durante os séculos anteriores, tendendo a ver quase todos os movimentos feitos pelos estados cristãos nos 300 anos anteriores como de alguma forma inculcando (ou tentando negar) esse "movimento em direção a um destino" de eventual governança colonial e domínio branco.
108 — No decorrer do estudo, foi difícil enquadrar a experiência de escravos individuais no Magrebe, sejam ricos ou pobres, bem conectados ou abandonados, com os temas abrangentes da conquista do mundo europeu que se tornaram tão centrais para os estudos sobre o início da era modera. Os escravos ainda eram escravos, fossem eles negros ou brancos, trabalhando em uma plantação ou suando em uma galera. Tentar inserir a história da escravidão da Costa do Magrebe na narrativa mestra do imperialismo europeu corre o risco de perder não apenas essa essência da escravidão, mas também o senso que já foi tão prevalente, da aflição que pôde ser para a cristandade os corsários do Magrebe, de quanto sofrimento e perdas eles causaram. Ao mesmo tempo, também perdemos, ao que parece, a noção de quão grande a escravidão poderia avultar a muitos daqueles que viviam dentro e ao redor do Mediterrâneo, e a longa sombra que essa ameaça uma vez lançou sobre as vidas dos grandes e dos pequenos. Começamos este estudo nos perguntando por que ninguém jamais perguntou a extensão do tráfico de escravos brancos no Mediterrâneo, e agora percebemos que em boa parte era porque nunca serviu a ninguém saber ou mesmo adivinhar a resposta. Ao explorar a difusão e a complexidade da escravidão da costa do Magrebe e também seu poder de moldar sociedades e culturas na cristandade, tentamos fornecer algumas razões para investigar mais além esse convincente fenômeno.
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