com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo
João Francisco Lisboa (1812-1863) – Jornal de Tímon
Por volta de 1852 JFLisboa publicou a coleção de textos que chamou de jornal de Tímon, pseudônimo do maranhense nascido nesta mesma cidade a 428 km de São Luís e que foi um dos nossos grandes personalidades do século XIX, mais retórico que jornalista, mais romancista que político, mais publicista que editor que assim explica a razão de seus comentários:
“Não escrevo um tratado, aventuro apenas rápidas reflexões, que possam pôr de sobreaviso governantes e governados. E se todavia sou forçado a alargar-me algumas vezes em citações, o leitor benévolo sem dúvida me relevará, atendendo à necessidade que tenho de fundar-me em opiniões autorizadas”.
Jornal de Tímon é um livro de fragmentos e aforismos, iniciando com uma descrição dos sistemas eleitorais da Grécia antiga, de Roma, da Europa e do Brasil, concentrando sua pena nos demais capítulos para descrever a vida política maranhense e os vícios do sistema político do Império.
A cultura política de um país não se difere de sua cultura como tal, e as relações da política com a vida social é o principal destaque de sua obra. Isto porque a questão política está na raiz da moralidade pública, no cerne da vida social e das contradições sociais que regem a humanidade enquanto agregado humano com interesses conflitantes.
JFL foi um intelectual brilhante, conhecedor dos clássicos e bem informado dos acontecimentos mundiais de meados do Novecento. Seu foco é sempre a questão ética e moral, o progresso, as virtudes cívicas, os vícios humanos e por aí afora.
Falando do México de seus 7 milhões de habitantes de então, dos quais 6 milhões eram miseráveis, o 1 milhão restante cabia uma grande parte de “homens baldos de instrução, ou pelo menos de conhecimentos positivos, mas cheios de presunção, enfatuados do seu grande mérito, dados à madraçaria, ao jogo e as intrigas. Para estes, só existe uma carreira aberta, a dos empregos públicos, única que pode satisfazer ao mesmo tempo a sua vaidade, preguiça e avidez. Vivem retalhados em facções, e pleiteiam com as armas na mão o poder e o salário, sem compaixão da pátria, que cada vez se afunda mais no abismo das revoluções com a quebra e estrago manifesto da fortuna pública e privada. Sem dúvida, as exceções honrosas não são muito raras; mas falecendo aos homens bem-intencionados o apoio do Congresso e do Governo, como o da opinião ou da parte influente dos notáveis, ficam eles impotentes, e sem meios alguns com que provejam a males tão desesperados.
Criaram-se empregos públicos, em número espantoso, inúteis sim, mas larga e magnificamente retribuídos; para passarem praça de republicanos, aboliram os títulos e distinções nobiliárias, que aliás não custavam um real ao tesouro público, mas em desconto deixaram a cada um a faculdade de fazer-se, a seu talante, capitão, major, coronel e general; e como todos estes postos têm grossos vencimentos, já todos podem ficar entendendo que o seu número é mais crescido que o dos soldados. Todavia, por mais que façam, nunca os postos, empregos e pensões bastarão para saciar os vastos apetites de todos os aspirantes; e daí essas intermináveis conspirações, revoltas, e guerras civis que a independência para cá tem devastado aquele formoso e desventurado país. Cada ano, cada semestre, ou cada mês rebenta uma nova revolução capitaneada por um general obscuro, ou cuja celebridade só avulta na proporção das desditas da pátria; o feliz vencedor renova a Constituição e tudo quanto é suscetível de renovação. Pois não tem sido porque as diversas administrações não procurassem satisfazê-los, a uns e a outros, porquanto logo nos primeiros anos da República as despesas do funcionalismo foram elevadas ao duplo do que eram sob o regime da antiga metrópole. Em face deste argumento, via-se a decadência da agricultura abandonada, o entorpecimento do comércio, cujo movimento diminuiu logo de um terço, e hoje é quase nulo, a depreciação da propriedade, exposta a mil vexações e avarias, uma apatia geral, uma falta absoluta de todos os recursos e instrumentos que conduzem os povos à riqueza e prosperidade. Estradas, pontes, canais, são coisas que ali não se conhecem e falar nelas até pode ser motivo de proscrições. A renda, como só por estas coisas se podia já supor, ficou reduzida à metade porque, além do mais, os empregados que pejam as estações, sobre incapazes, são corruptos e prevaricadores. As repartições de Fazenda mormente, só oferecem às vistas do observador confusão e desordem. O Congresso é composto de médicos, militares, padres, empregados, advogados e juízes. Algumas leis excelentes se hão feito onde tudo se acautela e regula com maravilhosa previsão, mas antes que comecem a dar-lhes uma mentida aparência de execução, já elas têm caído no desprezo, e logo após no mais profundo esquecimento. Não há opinião pública assaz poderosa para imprimir o ferrete da ignomínia nesses funcionários e legisladores negligentes, ignorantes e corrompidos. Se algumas reclamações se levantam, fracas e isoladas, são para logo abafadas nos clamores da turba famélica e perversa. Nas escolas o que prepondera são os estudos da jurisprudência; assim a chicana, os doutores e os magistrados são os que governam, se as armas todavia lho consentem. Mas essas mesmas escolas não creiam que sejam o amor da instrução e da ciência que as povoa e sustenta: é o ASPIRANTISMO, hidra multiforme de mil cabeças, e em geral só se estuda quanto baste para alcançar um diploma, e o emprego e posição que é consequência dele.” (pg 103-105).
[Confesso que nunca havia ouvido falar em “aspirantismo”. Eis que, de imediato, percebo tratar-se de fenômeno correlato com o doutorismo advogado por Lobato como característico de nossa mentalidade (que JFLisboa nos mostra ser latino-americana). Todos temos um elenco de exemplo de pessoas que só estudam para obter o benefício do diploma, não fazendo nada mais com ele. Conheci uma funcionária do Ministério Público (não sei o cargo dela) que estudava francês para obter alguns milhares de reais a mais no contracheque, sob a suposta contribuição que daria no futuro na tradução de documentação internacional daquele MP. Atualmente (junho/21) uma comissão do Exército se esforça para aprovar um projeto de bolsas para militares que frequentarem cursos no exterior sob a rubrica do interesse da defesa nacional. O detalhe é que receberiam dez vezes mais em remuneração do que os demais acadêmicos que se especializam no exterior. Este acinte não pode ser entendido senão como uma farsa da cultura do “aspirantismo”.
Os partidos políticos
“ANTES de continuar esta verídica história da presidência Montalvão, é conveniente dar uma ideia mais ampla do estado dos partidos do Maranhão, segundo se achavam e tinham sido modificados nas últimas e mais recentes administrações.
Nesta heroica província, a contar da época em que nela se inaugurou o sistema constitucional, os partidos já não têm conta, peso, ou medida; tais, tantos, de todo tamanho, nome e qualidade têm eles sido.
Parece que nisso nos mostramos verdadeiros descendentes dos antigos povoadores desta terra, muito mais inquietos e turbulentos do que geralmente se pensa, como oportunamente farei ver; mas é certo que nestes últimos tempos a ciência e a faculdade de engendrar partidos tem sido levada a um grau de perfeição e fecundidade verdadeiramente fabuloso.
As aves do céu, os peixes do mar, os bichos do mato, as mais imundas alimárias e sevandijas já não podem dar nomes que bastem para designá-los, a eles e aos seus periódicos, os cangambás, jaburus, bacuraus, muruçocas, papistas, sururus, guaribas e catingueiros. Assim, os partidos os vão buscar nas suas pretendidas tendências e princípios, nos ciúmes de localidades, nas disposições antimetropolitanas, na influência deste ou daquele chefe, desta ou daquela família, e eis aí a rebentar de cada clube ou coluna de jornal, como do cérebro de Júpiter, armados de ponto em branco, o partido liberal, o conservador, o centralizador, o nortista, o sulista, o provincialista, o federalista, o nacional, o antilusitano, o antibaiano, o republicano, o democrático, o monarquista, o constitucional, o ordeiro, o desorganizador, o anarquista, o absolutista, o grupo Santiago, o grupo Pantaleão, os afranistas, os bavistas, a camarilha, a cabilda e o pugilo. Já a mão do tempo e do esquecimento vai pesando sobre as primeiras divisões que entre nós produziram as ideias políticas modernas; é de crer porém que nos primeiros tempos os partidos adversos fossem só dois, um em frente do outro. Hoje um mecanismo tão simples não pode satisfazer à multiplicidade dos chefes em disponibilidade, e por isso a cada nova complicação da política provincial, aparecem novos partidos, não se sabe de onde saídos, e como organizados. Às vezes uma só noite tem visto um partido escachar-se ao meio, e um dos troços ligar-se ao partido contrário para se tornar a separar com violência e estrondo dentro de poucos dias; outras, abandonam-se os aliados no mesmo campo da batalha, e voltam-se contra ele as armas, como fizeram os saxônios a Napoleão em Leipzig; e não é de todo sem exemplo que durante uma curta campanha, e no ardor da luta, os combatentes tenham trocado uns com os outros as suas bandeiras, princípios e invocações. A existência de alguns dos tais partidos é coisa tão problemática e impalpável, que tem acontecido asseverar um jornal que tal partido está morto e dissolvido há muito, e sair-lhe outro ao encontro, sustentando que não há tal, que o partido vive e funciona, como bem prova a voz eloquente do jornal que lhe serve de órgão.
De ordinário ocorrem as modificações nas proximidades das eleições, ou logo depois delas. O grupo ainda não fracionado vê-se acometido da lepra dos pretendentes, e em risco de ser batido, pelos embaraços que lhe trazem a sua prodigiosa quantidade, os seus manejos, intrigas, ódios e furores: este inimigo interno é por via de regra mais terrível e assustador, e dá muito mais trabalho, fadiga e desgostos que o partido contrário. Entretanto sofre-se o mal até à última hora, e quando já de todo não é possível adiar ainda mais a dificuldade, quando chega o momento supremo e decisivo, os mais poderosos e influentes procedem à amputação dos membros que logo qualificam de ambiciosos parasitas, baldos de préstimo e influência, ao mesmo tempo que estes bradam contra o despotismo e tirania de meia dúzia de egoístas, que sem mérito e sem influência trazem, não obstante, e pela mais estupenda de todas as anomalias, escravizados aos seus caprichos e interesses privados, a província, o partido, os nossos infelizes concidadãos, ou cousa que o valha.
Com o andar dos tempos, vão as cisões em tal aumento, e multiplicam de maneira que é mister empregar o processo posto para que não venha tudo por fim a ficar reduzido a simples individualidades; e começam então as ligas, fusões, coalizões, e conciliações, sendo às vezes de pasmar como parecem minguar os partidistas, por mais que os partidos se afiliem, fundam e refundam.
Passados alguns dias, acode o periódico contrário e assevera que uma ridícula farsa acabava de representar-se; que a reunião fora miserável, e apenas composta do refugo de todos os partidos; que não há nada mais estúpido do que a inculcada fusão, pois é bem comezinha a verdade de que a existência dos diversos partidos é inerente à nossa forma de Governo, e indispensável para o jogo regular das instituições; que finalmente, a grande maioria ganhou muito com se ver livre dessa meia dúzia de desertores, hoje totalmente desconceituados, porque se foram lançar aos pés dos seus antigos e encarniçados inimigos.
É este o espetáculo que há três lustros a esta parte a província se tem habituado a contemplar; organiza-se um partido assim como quem incorpora uma companhia ou sociedade mercantil, e com muito mais facilidade, pois em vez de ser mister colher ações, semeiam-se circulares e periódicos. A mania a este respeito tem chegado a tal ponto que já um homem aliás distinto, e que não pouco avultara na cena provincial, se lembrou um dia de recomendar a organização de um partido em um simples artigo comunicado, em forma de receita, em que vinham prescritas a publicação de um jornal, o seu título (nome de pássaro), a epígrafe, o formato, e até o preço de dois vinténs por cada folhinha de quarto, rematando tudo com as luminosas doutrinas a pregar, e a formidável intriga a manejar com que dentro em pouco correria tudo às mil maravilhas!
Em geral os nossos partidos têm sido favoráveis ao Governo central, e só lhe declaram guerra, quando de todo perdem a esperança de obter o seu apoio, contra os partidos adversos que mais hábeis ou mais felizes souberam acareá-lo para si. Desta quase universal pretensão e dura necessidade de agradar ao Governo resultam às vezes as situações mais embaraçosas, complicadas, cômicas e risíveis. Os pobres chefes fazem os mais estupendos esforços, dão saltos mortais, equilibram-se nos ares, e inventam uma algaravia vaga e banal com que possam, conciliando o passado com o presente, mascarar a infâmia da sua apostasia, e a humilhação da sua subserviência.”
A votação
“À PROPORÇÃO que se vai aproximando o grande dia eleitoral, se a época acerta ser de exaltação, como na presidência do Sr. Bernardo Bonifácio, vai a nossa capital tomando um aspecto desusado e inquieto, já pela violência e multiplicidade dos jornais, já pela repetição dos clubes, sessões e reuniões, e já finalmente pela aparição de figuras desconhecidas e estranhas, que invadem e passeiam de contínuo as praças, ruas, becos e travessas, todos ou a maior parte pertencentes à classe conhecida pela designação geral de patuleia, que quer dizer povo, na acepção de plebe ou gentalha.
Dos bairros mais escusos da capital, dos arrebaldes, e do interior da ilha e da província, acode um enxame de miseráveis, que atraídos pelo amor do ganho ou da novidade, impelidos pelas influências, se repartem em bandos, conforme o número dos partidos ou centros de reunião a que possam afiliar-se…
Esta carregada turba que se compõe em grande parte de figuras vulgares, sórdidas e ignóbeis, mas no meio da qual negrejam também algumas cataduras sinistras e ameaçadoras, derrama-se pela cidade desde o amanhecer até à noite, e cada um dos tais consome o dia batendo de porta em porta, para pedir ou extorquir do pobre-diabo de candidato ou partidista dez tostões, dois mil-réis, mais ou menos, segundo as posses do que dá a esmola, ou o interesse que toma na contenda eleitoral. Os cabecilhas desta tropa, ou verdadeiros, ou reputados tais, seja pela força e intrepidez com que manejam os cacetes, seja pela sua habilidade nas cabalas, seja pelo ascendente predomínio que exercem sobre o vulgo, ou simplesmente porque vestem uma casaca e trazem lenço ao pescoço, não se contentam com tão pouco, exigem quantias muito mais avultadas, e ainda em cima, em promessa ao menos, empregos de guardas, porteiros e contínuos. Posto que em regra cada um tome o seu partido, e por ele arme rixas a cada canto com outros da sua igualha, em que não raras vezes os contendores vêm às mãos, e se faz sangue, não é isso razão para que os mais deles não solicitem a esmola dos chefes e partidistas contrários, a quem por fim pregam o logro, se não se bandeiam deveras por alguma espórtula fora do comum, ou algum outro motivo poderoso.
A justiça pede se declare que a nossa patuleia nem sempre se mostrou tão abjeta e vil, a mendigar espórtulas por preço das cacetadas que distribui aos seus iguais, sem saber a razão por que, adiando a baixeza do procedimento com certa altanaria e orgulho de porte e de linguagem, como persuadida da inocência e honestidade do seu proceder. Tempos houve em que os homens de cor, os pobres, os operários, os patuleia enfim, acudiam às eleições tão possuídos de entusiasmo como de desinteresse, senão mais ilustrados; e lançado o voto nas urnas conforme as suas afeições ou ilusões, voltaram ao cabo de dois ou três dias, quando muito, aos seus trabalhos ordinários, sem imaginar que o simples exercício de um direito se pudesse converter em um ofício ou benefício rendoso. Foram as classes superiores que lho ensinaram, sem pensar por seu turno quão pesados e incômodos lhes viriam a ser para o diante estes voracíssimos auxiliares.
E de feito gastam-se alguns anos somas fabulosas com este organizado sistema de pedintaria, com os festejos, banquetes e ceias patrióticas, com a sustentação de jornais aos quais falecem os assinantes, com os correios enfim expedidos para todos os pontos da província, cumprindo porém notar que os do lado do Governo ficam a este último respeito de melhor partido, porque os soldados pagos à custa do tesouro servem para este fim, e andam num contínuo rodopio.
Por via de regra as posses dos simples particulares não bastam para fazer face a estas enormes despesas, posto que deles haja que gastem contos de réis, e até fiquem arruinados; e então a necessidade obriga a recorrer a outro gênero de pedincha, mais restrito, porém mais em grande, a que se chama “tirar subscrição”. Não faltam sujeitos que oficiosamente se ofereçam para desempenhar este melindroso encargo, bem que os mais deles costumam tirar uma comissão tão crescida, que às vezes absorve metade do capital arrecadado. Outros há porém que o aceitam constrangidos, e o desempenham com tal acanhamento e frouxidão que quase nada conseguem. O leitor experiente e judicioso há de certamente compreender que os que de todo se não recusam a dar, dão todavia com a pior cara que podem. Há porém uma classe de sujeitos que desejam viver bem com todo mundo, e estes subscrevem para dois ou três partidos ao mesmo tempo, e com o riso nos lábios, e a dor no coração, a todos vão desejando o mais completo triunfo.
A eleição devia fazer-se no dia 12 de outubro, e desde o primeiro do mês pode se dizer que as reuniões eram diárias e permanentes de um e outro lado; a cidade tomou um aspecto aterrador; a atmosfera parecia abrasada, e a tempestade prestes a desfechar; travavam-se rixas a cada canto, ferviam as cacetadas, e as rixas para logo se transformarem em verdadeiros tumultos, que os chefes a muito custo conseguiam pacificar, se não é que algumas muito de propósito os excitavam. Nas classes superiores não se vinha às mãos com tanta facilidade, mas as disputas animadas, as palavras azedas e insultuosas, as brigas, rompimentos e inimizades se repetiam frequentemente, e as coisas chegaram por fim a termos tais que, metade da cidade não tirava o chapéu à outra metade. Esta prova significativa de ódio ou malcriação tornava-se ridícula em certos indivíduos sem importância que procuravam inculcá-la mostrando-se de fel e vinagre para com outros que nem para eles se dignavam olhar. Nos dois últimos dias a patuleia governista ocupou a frente das duas igrejas paroquiais; a contrária ficou um pouco mais distante. Algumas casas da vizinhança foram com antecipação alugadas por um e outro lado. Constou-me que os respectivos proprietários se queixaram depois de lhes não haverem pago os aluguéis.
A noite de 11 de outubro, passou-se em terrível algazarra de vivas, foguetes e zabumbas;…
De modo que ao amanhecer conheceram os pobres-diabos que estavam irremissivelmente perdidos. Ainda então fugiram alguns: outros arrependeram-se de se não haverem a tempo declarado governistas; outros enfim fizeram propósito de nunca mais meter-se em política. Era entretanto indispensável pôr termo a uma situação tão desesperada, em que se viam quase arriscados a uma debandada, sem haver ao menos motivo aparente que a desculpasse. Assim que, fazendo das fraquezas forças, cerca das oito horas da manhã se puseram em marcha, com mostras de que queriam penetrar nas igrejas; porém com a vista só de duas ou três patrulhas de polícia que acaso toparam, deram-se por coactos, e gritavam à boca aberta, ameaçando que se iam retirar e protestar solenemente; pois não havia liberdade de voto, quando um grupo de caceteiros contrários, impacientado com tais tardanças e cerimônias, caiu sobre eles, e os afugentou em brevíssimos instantes, não sem resistência de alguns dos da mesma classe, que são sempre os mais maltratados nestas refregas, e os que nelas despendem alguma coragem e vigor.
O partido vencedor, que concentrara as suas forças em um só local, mandou então ocupar a Sé até aquele momento completamente abandonada. Um grupo de cinquenta homens armados de cacetes, trazendo à sua frente cinco ou seis indivíduos de casaca, um pouco acanhados da figura que faziam, e dos sentimentos que excitavam, atravessou a cidade, soltando foguetes, dando vivas, e entoando [música]. Ao aproximarem-se estes heroicos tirteus, coxos do espírito, as portas das casas, lojas e tabernas se iam fechando ruidosamente, presumindo cada qual que era enfim chegada a hora do tremendo e receado acometimento.
Dentro em pouco duas girândolas de foguetes anunciaram que as mesas estavam formadas; mas os nossos heróis não deram com isso a tarefa por concluída, e não tendo já adversários reunidos a quem combater, derramaram-se por toda a cidade a cacetar um ou outro antagonista isolado e inerme que acaso toparam, e não tinha tempo de esquivar-se, acolhendo-se em casas alheias ou saltando muros e telhados. Colhidos estes troféus, invadiam lojas e quitandas, nos bairros onde uma demasiada segurança preterira a cautela de fechá-las, e se o taberneiro ousava recusar grátis as prestações que dele exigiam, era para logo tratá-lo como batman ou jaburu vencido, isto é, espancado.
As falsificações fazem com efeito um grande senão o primeiro papel nas nossas eleições; começam no primeiro dia, acabam no último, revestem todas as formas, tomam todas as dimensões, são de todas as espécies, materiais e morais, delicadas e grosseiras, máximas, médias e mínimas, gerais, parciais e pessoais, absolutas ou relativas, recíprocas e convencionais, exclusivas e aquisitivas, de aumento e diminuição, e têm, como os papas, o poder de ligar e desligar. O que o leitor já tem visto, e o que passa agora a ver, justificará sobejamente esta classificação.
Logo no princípio temos a falsificação por meio da corrupção, da difamação, do louvor e vitupério indevidamente distribuídos, da exaltação e aberração dos espíritos. É o que se chama o falseamento da opinião, e sem isto não há eleição.
Segue-se-lhe imediatamente o falseamento do sistema, mediante a abusiva interferência do Governo, que paralisa, estende, encolhe, sofisma e desnatura a lei nos seus regulamentos e avisos sem conta, expedidos segundo as exigências e interesses encontrados das facções, e por consequência variáveis ao infinito, contraditórios e repugnantes entre si. As declarações de incompatibilidade são uma das minas mais fecundas que o Governo, ou os partidos em seu nome, costuma explorar; e é mediante o seu auxílio que são frequentemente inutilizadas turmas inteiras de funcionários eletivos, juízes de paz, eleitores e vereadores, que a lei em sua maravilhosa sabedoria, e para evitar a influência apaixonada do momento, tinha com antecipação designado para compor as mesas.
Nas qualificações e revisões, as mesas já falsificadas, falsificam por seu turno, alistando os incapazes, e excluindo por centenas os cidadãos já anteriormente qualificados, e sobretudo tomando as decisões às ocultas, e à última hora, para que os prejudicados não possam recorrer a tempo e em devida forma.
Se acaso recorrem, lá estão os conselhos de recurso, eivados do espírito de partido, e compostos de homens estúpidos e ignorantes, quando não velhacos, para darem ou negarem provimento, contra a justiça, e segundo os interesses. De resto, as leis eleitorais que deviam ser concisas, simples, claras, acomodadas à inteligência da multidão imensa que intervém na sua execução, constituem pelo contrário um código vastíssimo, complicado e obscuro. A seguinte decisão de um conselho de recurso que subiu à nossa relação, dá a medida tanto da execução das leis, como da capacidade dos executores.
Logo ao segundo dia entraram a chegar as notícias do interior; por toda a parte se repetiam os mesmos tumultos e distúrbios; por toda a parte o Governo triunfou, e a oposição fugiu, sem outro inconveniente mais que três ou quatro cabeças quebradas.
[O autor descreve as eleições nos distritos de Sangra-Macados, Afoga-Bugios, Quebra-Bunda, Saco-dos-Bois, Moquéns, Guaribas e Palmeira-Torta. Em todos eles os acontecimentos burlescos da farsa dos votos em lista autenticados por um juiz de paz garantia a vitória encomendada. Por exemplo:]
Na Palmeira Torta, a oposição repelida à viva força da matriz, votou em uma casa particular, mas como da capital lhe haviam feito sentir que a circunstância do local era de grande peso, na ata deu-se a eleição como feita na matriz. O juiz de direito e o vigário informaram nesse sentido, mas o juiz municipal e o subdelegado fizeram participação contrária. Em regra, onde a oposição, tolhida de votar, forjou atas falsas, teve o cuidado de figurar o ato como passado na matriz. Os governistas tremiam de cólera à vista de tanta desmoralização e imprudência; mas como a lei, ou antes os regulamentos eleitorais permitem que a justificação de todos e quaisquer atos e circunstâncias relativas ao processo eleitoral, possa dar-se simultaneamente perante os juízes de paz, municipais e de direito, cada partido recorria à autoridade que era mais da sua feição, produzia documentos autênticos e testemunhas respeitáveis maiores de toda exceção; e em resultado fatos, que se excluíam reciprocamente, eram declarados verdadeiros e reais por sentenças do poder judiciário.
Porém o derradeiro supremo, e absoluto grau de falsificação dá-se quando um só indivíduo, sem o auxílio de mais pessoa alguma, fechado no seu gabinete, fabrica todos os documentos necessários, e os assina por todos aqueles cujo concurso é indispensável.
Reunido o colégio, o presidente designou para formarem a mesa provisória, como os mais moços dentre os eleitores, a quatro indivíduos da sua íntima confiança, dois dos quais já começaram a pintar de um modo pouco congruente para as suas pretensões de rapazinhos solteiros. Uma das facções em minoria reclamou contra semelhante escândalo; a maioria respondeu com retumbantes apoiados à decisão do presidente que sustentava a designação. Trocaram-se insultos e palavras vergonhosas de todo o gênero. Na apuração do escrutínio para a mesa definitiva, e na das listas da eleição, foram os escrutinadores e secretários arguidos de trocar, substituir, engolir, e não contar os votos; e a esse propósito levantavam-se a cada passo novas e mais indecentes algazarras. O presidente ameaçou a alguns dos eleitores mais recalcitrantes de os fazer retirar ou expulsar do colégio, mas eles declararam que tratavam à ameaça com o merecido desprezo, e ir-se-iam embora sim, mas somente para não autorizarem com sua presença e assinatura a farsa escandalosa que se estava representando. E efetivamente recusaram-se depois a assinar as atas.
Na eleição dos deputados provinciais houve uma verdadeira anarquia e dispersão de votos. A ralé a quem os chefes tinham conferido diplomas de eleitor, ou por necessidade, ou na esperança de dominá-la mais facilmente que a outras pessoas mais gradas, assentou de aproveitar a ocasião, e vozeando que nem sempre deviam servir de escada, barganharam ali os votos uns com os outros com tanto descaramento como boa fortuna.
Logo que se publica algum novo código ou regulamento eleitoral, as nossas principais cabeças políticas se entregam a um minucioso e rigoroso estudo... de todos os seus defeitos para aproveitá-los, e de todos os meios próprios e prontos de iludir e fraudar a execução. E é força confessar que os milhares de avisos expedidos para explicar e aclarar a lei, e sua genuína inteligência se torna tão obscura e difícil de penetrar, que com isso se suaviza grandemente a tarefa dos expositores e intérpretes a que há pouco nos referimos.
A violência parece ser uma das condições indeclináveis do nosso sistema eleitoral. Durante a crise, e sobretudo no dia da eleição, o espanto e o terror reinam nas cidades, vilas e povoações; os soldados e caceteiros percorrem armados as ruas e praças; há gritos, clamores, tumultos de todo o gênero; dir-se-iam os preparativos de uma batalha, não os de um ato pacífico, e a cena de feito termina às vezes com espancamentos, tiros e descargas.
A impunidade:
Se os criminosos ficam impunes, não é que haja míngua de processos, pois em algumas épocas eleitorais se têm eles organizado por dezenas. Antigamente, findo o pleito e contenda política, as absolvições dos processados se faziam perante o júri, em massa, e quase sem exame, tal era o conceito que dos processos se formava. Assim, primeiro se escarnecia o direito do voto, depois a justiça.
Falta de convicções:
A indiferença em matéria de opiniões e princípios, ou antes o cinismo com que cada um manifesta e até alardeia a ausência absoluta de convicções, tem chegado a um termo verdadeiramente incrível. Nada há aí tão comum como ouvir dizer: — Se não me compram tal casa, se não fazem comigo tal contrato, se não me dão tal emprego ou patente, passo-me para o lado contrário. — De um coronel de legião sei eu que nas proximidades da eleição arrancava entranháveis suspiros, e entregue a todos os horrores de uma profunda angústia, exclamava dolorosamente:
– Se eu pudesse adivinhar de que lado estava a maioria para decidir-me!
E um velho que pedia esmolas, e era não obstante, nesta boa terra, avaliador do conselho, que tanto monta como dizer juiz, perguntou-me um dia, depois de receber a costumada espórtula: — Em que partido estamos nós agora? — porquanto este pobre-diabo, em sua consciência de juiz-mendigo, tinha por uma coisa natural, e talvez como uma fatalidade indeclinável, o pertencer de necessidade a algum partido, pouco importando porém qual ele fosse.
….os melhores representantes são os que mais serviços fazem à sua província, isto é, os que obtêm mais licenças, nomeações, demissões, remoções, a troco de concessões, transações, humilhações, sendo contudo, e no fim de tudo, logrados e burlados no mais essencial. Estes tais presumem que uma missão política consiste na recíproca troca de votos e favores entre os eleitores e eleitos, e envelhecem e morrem rodando de contínuo neste círculo vicioso, sem que os seus louros perturbem neste mundo o sono de pessoa alguma, nem mesmo o de Timon, o misantropo e o mais invejoso dos mortais.
Hoje em dia não há homem medíocre, incapaz, estúpido mesmo, que se não abaste das mais largas tensões, e não se julgue predestinado a ocupar os primeiros cargos do estado.
….. De um indivíduo do interior que era ao mesmo tempo coletor, eleitor, vereador, juiz de paz, oficial da Guarda Nacional, e subdelegado, conta-se que interrogado sobre a causa de tamanhas e tão destemperadas acumulações, respondera com ingenuidade que o partido não tinha mais gente no distrito!
A utopia do voto livre
Considerando na nossa degradação eleitoral, atribuindo-a a todas, ou a parte das diversas causas enumeradas, pensam alguns que o mal desapareceria, se conseguíssemos tornar as eleições verdadeiramente livres. Mas por que meios se alcançaria a suspirada liberdade do voto? Em que ponto sólido e estranho a este globo de lama se firmaria o novo Arquimedes para mover a alavanca regeneradora? Entretanto, não é esta a maior dificuldade, porque vencida ela, o que sucederia? A Timon arrepiam-se-lhe as carnes e os cabelos só de o pensar e dizer. Se fosse lícito admitir a possibilidade de umas eleições perfeitamente livres e pacíficas, em que os votantes, descativados de quaisquer influências e sugestões estranhas, procedessem isoladamente, sem concerto, e em toda a liberdade e pureza de consciência, o resultado provável seria que apenas uma meia dúzia dos menos remissos iria à urna lançar votos verdadeiramente abomináveis. O grande número se deixaria ficar em suas casas, porque aos atuais estímulos para o mal sucederão o cansaço, o desânimo e a indiferença, primeiro que possam ter força e vigor os incentivos para o bem.
A imprensa
A imprensa é outro grande instrumento que os nossos partidos manejam de contínuo.
Nunca o Maranhão teve mais jornais do que hoje em dia, mas também podemos afoitamente dizer que nunca o jornalismo esteve mais decadente e desanimado. Publica-se atualmente não menos de seis jornais ditos de grande formato, em três ou quatro colunas de frente, e afora estes, temos quase sempre os pequenos jornais, em folha ou meia folha, que constituem as tropas ligeiras dos partidos, e em tempos de eleição, ou quaisquer outros em que as paixões se escandeçam, pululam, como os insetos malfazejos, de um modo prodigioso, e são, como eles, de uma vida mais que efêmera.
O minguado número de eleitores que tem a província, ou antes de subscritores que se repartem por tantos jornais, mal fornecem aos respectivos editores os recursos indispensáveis para poderem dar uma retribuição côngrua e honesta a escritores de mérito e talento que exclusivamente dedicassem o seu tempo e trabalho e fazê-los florescer.
A raiva hidrofóbica dos insultos e das injúrias que, por ser a enfermidade ordinária do nosso jornalismo, já não produz demasiada impressão, é todavia sujeita a umas certas exacerbações periódicas, que excedem toda medida, e tomam proporções verdadeiramente assustadoras. Falo dos ultrajes aos bons costumes, ao pudor, e à honra das famílias, na pessoa das mulheres ligadas pelos laços do sangue ou do himeneu aos campeões que andam travados na peleja, e que reconhecendo reciprocamente embotada toda a sensibilidade própria e pessoal, buscam ferir-se nesses entes delicados, expondo à irrisão pública os escândalos verdadeiros ou supostos da sua vida privada, e as fragilidades que são o condão inevitável, como o orgulho, o poder, a confusão e a vergonha dessa encantadora metade do gênero humano.
Finalmente e para dizer tudo em poucas palavras, quereis saber o que vale hoje a nossa imprensa propriamente política, nesta província ao menos? Suprimi-a, e vereis que a sua falta passará completamente desapercebida, sem que uma só pessoa desinteressada dê fé do acontecimento, ou proteste contra ele.
O eleitoralismo
Seja que o presidente pleiteie de conta própria a sua candidatura pessoal, seja que tenha ajustado na corte desempenhar uma empreitada eleitoral completa, na convenção que lhe é mister fazer com os partidos vai expressa ou implicitamente sacrificada a um tempo a liberdade do povo e a do poder.
A do povo, ou pelo menos a do partido que toma o nome de povo, na preterição dos homens de algum mérito ou serviço que possa ter a província, para se abrir espaço ao nome do presidente e de outros, que patrocina tão obscuros e nulos como o seu.
A do presidente, porque ele se identifica com o partido que adota, esposa todos os seus ódios e afeições, não vê senão pelos seus olhos, previne todos os seus desejos, e dobra-se aos seus menores caprichos. O único pensamento que o domina é o da sua eleição; absorvido por este grande cuidado, todos os seus outros deveres são transcurados, ou pelo menos subordinados a este fim principal; as forças que a sociedade lhe confiou para o bem comum de todos, ele as converte em seu particular benefício, ou no da parcialidade que o sustenta. Os cargos e dinheiros públicos são a recompensa e o salário, não dos serviços feitos à província, mas às facções ou à sua pessoa; pois para ele, todas as leis, todas as regras do dever, da justiça e do decoro, se transformam pura e simplesmente em meras combinações eleitorais.
Os partidos políticos
Sempre inúteis, estéreis e impotentes, quando não são positivamente nocivos ou perigosos, todos igualmente desonrados e aviltados por faltas comuns, e excessos imitados uns dos outros, os nossos partidos se tornam incapazes do menor bem, e perdem toda a autoridade e força moral. Mal ergue um deles a voz para exprobrar ao outro tal erro, tal falta e tal crime, para logo a exprobração contrária quase idêntica vem feri-lo no coração, e fá-lo-ia emudecer completamente e por uma vez, se a falta de pudor não fosse uma qualidade dominante de todos eles. Que lhes importa com efeito o pudor, a moral, o respeito e decoro próprio, contanto que triunfem, e levem ao cabo os seus mesquinhos desígnios?
Os nossos partidos são intolerantes e insaciáveis; qualquer vitória lhes não basta, e ainda a completa aniquilação dos partidos contrários os deixaria talvez pouco satisfeitos e malseguros de si. Daí vêm essas intermináveis precauções que estão sempre a tomar, essas três e quatro camadas de suplentes, essas leis pessoais, essas infindas opressões e injustiças, a administração pública enfim desviada dos seus fins naturais e legítimos, e convertida em máquina de guerra, com que uma parte da sociedade combate incessantemente a outra. Mas tudo isso o que denota, senão a extrema fraqueza, e o extremo terror? Se os nossos partidos fossem mais fortes, mais cheios de fé, menos divididos e multiplicados, não teriam tamanho medo uns aos outros, poderiam andar de ombro a ombro, e em muito amigável companhia, procurando cada um alargar a sua influência, melhorar a sua posição, e fazer valer os seus direitos, sem negar os alheios. Nisto é que consiste a vida política; tudo o mais é, antes a ausência dela, ou para melhor dizer, a morte. E se não vede como esses partidos, por mais que multipliquem as precauções e as injustiças, por mais que triunfem e dominem absolutamente, se acham exaustos e moribundos ao cabo de três ou quatro vitórias sucessivas, e se esvaem ao menor sopro, como essas múmias do Egito, que numa aparente integridade têm triunfado dos séculos, e se desfazem em vil poeira ao simples toque do viajante curioso que ousa devassar a solidão das pirâmides.
A par da indiferença, apatia e abstenção das grandes massas da população para os misteres da vida pública, civil e política, mostra-se o mal contrário na camada superior da mesma população, que preterindo todas as mais profissões, não procura meios de vida senão na carreira dos empregos, não tem outro entretenimento que a luta e agitação dos partidos, outro estudo que o da ciência política, sendo tudo bem depressa arrastado pelo impulso cego das paixões para os últimos limites da exageração e do abuso. E porque as classes superiores são as que dirigem a sociedade, e a classe dos políticos supere entre nós todas as outras, suprindo o número, pelo ruído que faz, e posição elevada que ocupa, é ela quem dá o tom e verniz exterior à nossa sociedade, e lhe faz tomar as aparências de um povo exclusivamente dado à política, e aos meneios, fraudes e torpezas eleitorais, quando a verdade é que o grosso da população, se nisso tem crime, é pela indiferença, antes conivência, com que contempla os abusos e escândalos da imperceptível, mas inquieta e turbulenta minoria. Em resumo: exuberância de vida política, tumulto, agitação, ardor febril, e paixões amotinadas numa pequena parte da população — silêncio, abandono, indiferença, ausência quase absoluta de vida, na outra parte que constitui a grande maioria.
Na ausência de motivos sérios de divisão, e de um verdadeiro antagonismo de ideias e princípios, os nossos partidos os inventam copiando e arremedando os estranhos, com toda a exageração própria de atores locais e mal-ensinados. Daí toda essa fantasmagoria e palavrório de poder, oposição, coalizão, revolução, clubes, jornais, credos, propagandas, sistema parlamentar, a que a pobre da província se há de moldar como a vítima no leito de Procusto, contraindo, distendendo e deslocando os membros macerados, embora a sua índole, atraso, ignorância política, e pouca população a inabilitem para tão ambiciosas experiências. Apesar porém de todas essas sentidas aparências, nem por isso é menos profunda e geral a ignorância da genuína ciência política, e a falta do verdadeiro tato e inteligência dos negócios.
A deplorável cultura do emprego público
Repetimo-lo ainda, a carreira política e dos empregos é quase a única a que se lançam as nossas classes superiores.
Indivíduos há que abrem mão de suas profissões, deixam ao desamparo as suas fazendas, desleixam o seu comércio, e se plantam na capital anos inteiros à espera de um emprego, consumindo improdutivamente o tempo, e o pouco cabedal que possuíam, e que não obstante, bem aproveitados por um homem ativo e empreendedor, dariam muito mais que todos os empregos imagináveis. Mas nem por que alcancem a primeira pretensão, se dão por pagos e satisfeitos, antes aspiram logo a outra posição melhor; e sempre inquietos e atidos à novidade, persuadidos que só as intrigas políticas, e não o mérito é que dão acesso na carreira, a única coisa de que não curam é de cumprir as suas obrigações, e de aperfeiçoar-se nos estudos e na prática necessária ao mister ou especialidade que adotaram. Raros são os que para subirem mais e mais não vejam com gosto o sacrifício dos colegas e companheiros, com cuja sorte aliás os conselhos mais óbvios da prudência os deviam levar a se identificarem; mas a desgraça alheia com que folgam é bem depressa a desgraça própria, porque o egoísmo e a cobiça são vícios universais, que se ofendem, neutralizam e embaraçam reciprocamente. A mania dos empregos é tal, o mal tão grave e profundo, que já não são somente os pobres e necessitados que andam após eles; os grandes, os fidalgos e os ricos fazem outro tanto, e sem pejo nem remorso, ajuntar aos contos e contos dos seus bens patrimoniais, os magros emolumentos de íntimos lugares, roubados porventura ao mérito modesto e desvalido. Que poderá entretanto haver no mundo de mais miserável que esta perpétua oscilação, que estas eternas vicissitudes, que esta vida precária enfim do pretendente e do empregado?
O doutorismo
Hoje em dia porém as cousas estão bem mudadas; qualquer marmanjo criado ao bafo de uma taverna, meneia-se à feição de um presidente, sendo que a própria mulher do quitandeiro vê nele o futuro administrador da sua província, e não se faz rogar para lhe dizer; os meninos de escola e de colégio escrevem, e imprimem jornais, e sonham presidências, deputações e Ministérios, como os seus antepassados da mesma idade sonhavam com bonecos, corrupios, doces e confeitos. Diria aqui também que escrevem e representam dramas sanguinolentos, frequentam os teatros e bailes, e fazem a diversos outros propósitos, de pequenos homens feitos, se me não tivesse circunscrito a só pintar costumes políticos.
Os pais de família, aproveitando e cultivando estas felizes disposições, sem consultarem nem as suas posses, nem a capacidade dos filhos, lá os vão mandando para as academias jurídicas de Olinda e S. Paulo, e para as de medicina da Bahia e da corte. Vós credes que ali se formam médicos e jurisconsultos; não o contesto até certo ponto; mas a verdade é que sobretudo e principalmente formam-se, graduam-se, e doutoram-se homens políticos, quero dizer, deputados, presidentes, ministros e Senadores, continuando na juventude, na idade madura e na velhice, os sonhos e fantasias da primeira infância e puerícia.
A propagação incontrolável da transgressão como modelo social
Mas enquanto o nosso bondoso e amável filósofo [o autor não menciona o nome depois de fazer longas citações] brada moral, prudência, moderação, trabalho, estudo, aplicação; a corrupção, a temeridade, a intemperança, a ociosidade, a ignorância e a dissipação marcham de mãos dadas e a passo igual, e transpondo a arena política, invadem todas as relações civis. E com efeito, quem no jogo dos partidos se habituou a falsificar listas e atas, a fraudar a lei, a trair amigos, a renegar princípios, a rebaixar-se e aviltar-se por todos os modos, após empregos e posições, resumindo toda a moral no triunfo e no bom êxito, esse tal ficará mais que muito habilitado para cometer na vida civil toda a qualidade de crimes. E como a escola é vasta, e os discípulos, ouvintes e espectadores numerosos, os vícios e os crimes, se têm multiplicado e generalizado de um modo espantoso.
Não é possível contemplar sem susto o grau de desmoralização a que tem chegado a nossa sociedade pelo que diz respeito aos atentados contra a propriedade, desde a falta de delicadeza e pontualidade, desde o simples calote até ao infame abuso de confiança e o roubo à mão armada. O mal nesta parte me parece mais profundo e irremediável do que em relação mesmo aos atentados contra a pessoa e a vida, que aliás tão lúgubre nomeada têm atraído à província; porque em derradeira análise, muitos dos assassinatos que se cometem derivam da cobiça desenfreada do alheio e nela prendem.
Lançai os olhos derredor de vós, e admirai o espetáculo que se vos oferece.
Uma quantidade inumerável de indivíduos gastam desordenadamente, e sem nenhuma proporção com as suas posses e meios; e para acudir aos vexames que daí resultam, recorrem primeiro ao expediente ruinoso dos empréstimos acrescidos juros e multiplicadas reformas: — depois, quando são executados, aos intermináveis enredos da chicana, às dolosas nomeações de objetos vis e sem preço para as penhoras, na esperança de que sejam adjudicados ao credor, que confiara na sua palavra de honra, e porventura os remiu com seu cabedal e dinheiro de algum grande aperto e vexame; — e finalmente, quando falham estes expedientes já vulgares, às hipotecas e vendas supostas, aos contratos simulados de todo o gênero, ao estelionato enfim!
Para todas estas infâmias é mister o auxílio de cúmplices e figurantes; e não é raro vê-los retorquir contra os maus devedores a fraude a que estes recorreram para não pagar a seus legítimos credores. É o abuso de confiança na intimidade do crime.
A usurpação de terras, o acoitamento de escravos, e o furto de gado parecem já costumes inveterados da população em certos outros lugares; como nas vilas e cidades a falsificação de gêneros, pesos e medidas, e a parceria dos vendeiros com escravos e domésticos.
A infidelidade dos comissários, as falências de má fé, as administrações pouco escrupulosas, a pública fabricação de moeda de cobre, a espantosa falsificação de títulos de dívida pública por ocasião da última guerra civil, a inundação de cédulas falsas, os repetidos alcances de tesoureiros, os multiplicados roubos de diversos cofres públicos, essas casas invadidas para serem saqueadas, mal expira o infeliz proprietário, senão é que são os próprios familiares que se lançam, por assim dizer, ao cadáver ainda quente e o despojam sacrilegamente de todos os objetos de algum preço; os testamentos falsos, que os previnem a uns e a outros, todos os crimes imagináveis enfim, completam e realçam o quadro horrível, que negreja diante dos nossos olhos.
Entretanto não é o crime só de per si considerado, que nos deve espantar; que não é só aqui que ele se comete, e por toda a parte as tendências perversas e os instintos do mal se revelam e manifestam mais ou menos. O que porém a justo título pode entre nós gerar o descorçoamento, e mesmo o terror ainda nos ânimos de mais forte têmpera, é o caráter de generalidade que vai tomando, é a publicidade e impudência com que ele se perpetra impunemente, em face das autoridades e tribunais, sem comover sequer uma população já embotada, fria e indiferente para o mal como para o bem; que a tal ponto nos havemos familiarizado com o crime que nos parece a coisa mais simples e natural fazerem o serviço de palácios os malfeitores condenados à galés, que em outros países são cuidadosamente sequestrados de todo trato e vida civil, e reclusos em grandes depósitos murados e aferrolhados; é sobretudo a horrível boa fé, o cinismo e a tranquilidade de consciência dos criminosos, que ao praticarem os maiores atentados se desculpam a si mesmos por um raciocínio que o estado da nossa sociedade legitimaria, se coisa alguma fosse poderosa para legitimar o crime. O sofisma banal dos homens imorais do nosso país é que o que eles fazem, todos os outros fariam em seu lugar.
E andam tão firmes neste conceito, que nada é comparável à estranheza que experimenta qualquer miserável quando algum homem de bem refusa aceder às solicitações do crime, parecendo-lhe, primeiro que se convença de ser a honra e a virtude uma coisa possível, que a resistência é apenas uma hipocrisia, ou um manejo calculado para alcançar mais amplos proveitos. Um destes miseráveis negociou em certa ocasião uma avultada soma em títulos falsos; descoberto (caso raro) e perseguido imediatamente pela justiça, cujo zelo fora aliás estimulado pelos particulares enganados, o delinquente, obrigado a evadir-se, narrava o acontecimento debulhado em lágrimas, lastimando-se, e dizendo a quem o queria ouvir que era o mais infeliz dos mortais; porque sendo imensa a quantidade de indivíduos que negociavam de há muito naquela espécie de papéis, só ele fora o malsinado, logo da primeira vez que procurou tentar fortuna!
Dir-se-ia que o novo sistema de liberdade e independência, suscitado para corrigir e extirpar os abusos do antigo despotismo e escravidão, se fez cúmplice obsequioso dele, e lhe deu grande e solene entrada na sociedade atual, no meio dos aplausos dos comícios e assembleias, e à grande luz fúnebre da imprensa e publicidade.
Timon, de resto, quando pinta o mal, sem exagerá-lo, é certo, mas sem dissimular também toda a sua grandeza e intensidade, não entende nisso estabelecer a negação absoluta do bem. Felizmente ainda respiram entre nós muitos homens igualmente dotados de sentimentos honestos e de grandes qualidades; nos partidos mesmo notam-se às vezes movimentos generosos; e em algumas épocas as tendências para a emenda e reformação têm sido manifestas e animadoras. E por mais que a corrupção, a imoralidade e o vício estejam generalizados e potentes, não é impossível fazer calar os bons princípios, se uma voz e uma ação poderosa se quiser fazer ouvir e sentir, porque existe sempre secretas e simpáticas harmonias entre o homem de bem e de gênio que fala e obra, e a multidão que escuta e vê.
No meio destas pequenas facções não vejo a pátria.
Crítica aos conservadores e ojeriza à revolução.
Comecemos pelos conservadores a todo transe. Esta gente arrepia-se ao só nome da revolução; e no seu santo furor, proscreve do mesmo lanço a ideia como os homens que ousam propagá-la e defendê-la. Deles há que sustentam as vantagens e a excelência de uma eterna imobilidade; e destes é que disse Lamartine que podiam ser comandantes substituídos por simples marcos de pedra. Outros persuadidos que tal lei e constituição em vigor são a última expressão da sabedoria humana; — que todo o governo é bom por si mesmo; — que não é possível enfim, variar o modo de existência de uma sociedade, — tacham até de absurda a ideia de revolução, que vale tanto, dizem como insurgir-se um povo contra si mesmo, ou atentar contra a própria existência, e procurar a salvação no abismo, pois a revolução é sempre essencialmente perniciosa e criminosa, filha da violência da força brutal, contrária a toda ideia do direito, e igualmente inimiga do repouso e da ventura dos governantes como dos governados.
Por mais que esta cruel verdade pese e amargue aos reis e aos cortesãos, como a toda a casta de adoradores dos poderes estabelecidos, a revolução é um fato dominante em toda a história da humanidade, e é mais que um fato constantemente reproduzido, é um direito fundado na justiça e necessidade, e na própria natureza do homem, que amorosa do bem e do aperfeiçoamento, o leva a aborrecer, combater e vencer o mal, revelado sob os acidentes da opressão e de um mau governo.
Negar a revolução é negar a um tempo a razão e a história, isto é, o direito consagrado pela sucessão dos tempos e dos fatos, pela força e natureza das coisas, e pela marcha irresistível dos interesses, que afinal triunfar dessa imobilidade a que tão loucamente aspiram todos os partidos de posse do poder; desse poder conquistado sem dúvida em eras mais remotas pelos mesmos meios que debalde se condenam quando chega a ocasião de perdê-lo.
Épocas há em que o estado é tão mal dirigido, e caminha tão evidente a perdição, que a ideia de derrubar, mudar ou modificar o governo e as leis, acode espontânea a todos os espíritos; e em outras, o mal, muito grave e profundo, torna até necessário e indispensável revolver os íntimos fundamentos da sociedade. Revolução suave e pacífica, se as ideias e interesses lentamente desenvolvidos alcançam o termo e madurez, sem encontrar tropeços sérios; violenta, inexorável e cruel, se a obstinação e cegueira da velha autoridade desafia a sua cólera, procurando opor-lhe uma resistência tão desarrazoada como imponente.
Os tipos de patriotismo
Citando Tocqueville:
“Há uma espécie de amor da pátria que deriva sobretudo desse sentimento irrefletido, desinteressado e indefinível, pelo qual o coração do homem prende-se ao lugar do seu nascimento. Este amor instintivo se confunde com a paixão dos antigos costumes, a veneração dos maiores, e a memória do passado; quem o experimenta adora a pátria com o mesmo amor que votaria ao paterno alvergue. A tranquilidade, os hábitos pacíficos contraindo à sua sombra as recordações que ela suscita, a vida doce que uma suave obediência facilita, eis as suas principais características. Mas não poucas vezes este amor da pátria se exalta pelo zelo religioso, e então gera prodígios. Ele mesmo é uma espécie de religião que sem raciocinar, crê, sente e obra”...
“Há outro porém mais racional, menos ardente e generoso, talvez mais fecundo e duradouro por certo que este, o qual nasce das luzes, desenvolve-se com o auxílio das leis, cresce com o exercício dos direitos, e termina por confundir-se com o interesse pessoal. Um indivíduo compreende como a prosperidade da paz influi sobre a própria; sabe que a lei lhe permite o contribuir para aquela prosperidade, e ei-lo que se interessa e inflama por ela, primeiro como por uma coisa que lhe é útil, e logo depois como por sua própria obra.
“Chega porém, às vezes, na vida dos povos, uma época em que mudados ou destruídos os costumes e usos antigos, abaladas as crenças, desvanecido o prestígio das antigas recordações, as luzes todavia permanecem incompletas, e os direitos políticos mal seguros ou restritos. Então os homens não enxergam a pátria senão por meio de uma luz fraca e duvidosa, e não a encontram mais nem no solo a que apenas consideram uma terra inanimada, nem nos costumes antigos que desprezam, nem na religião que descreem, nem nas leis que não fazem, nem no legislador enfim que temem. E pois que a pátria lhes falta, eles se retraem a um egoísmo mesquinho e inimigo das luzes, escapando aos preconceitos sem reconhecerem o império da razão, baldos a um tempo do patriotismo instintivo da monarquia e do patriotismo refletido da república; parados e suspensos e os dois, no meio da confusão e da miséria.”
Qualquer que seja o nosso [destino], eu o prefiro a este abominável e horrível estado de povos, que antecipando os tempos, destruíram as antigas instituições, sem saberem fundar e consolidar as modernas.
Por fim, a democracia
Sem dúvida, a democracia, que é a intervenção de todos no governo de todos, e a igualdade que dali resulta entre os homens, tem tido um desenvolvimento patente, estrondoso, universal, duradouro, e apresenta todos os caracteres de providencial. As guerras das cruzadas, a abolição do feudalismo, a divisão das grandes propriedades territoriais, a invenção das armas de fogo e da imprensa, o descobrimento da América, o prodigioso incremento do comércio e da indústria, o aperfeiçoamento das artes e das ciências, o vapor e a eletricidade que quase aboliram o espaço e a duração, é certo, realçaram o poder e a dignidade do homem, delindo a desigualdade das condições. E cada dia o esto popular cresce e monta, e ameaça atingir as posições mais elevadas e sublimes. Mas a realeza subsiste apesar disso, e nos recentes e terríveis embates a que se viu exposta, triunfou por toda à parte dos seus formidáveis adversários.
Se não tivermos a democracia real pela efetiva intervenção do povo nos públicos negócios, por meio das eleições, do júri e das assembleias, debalde serão aspirar à democracia nominal ou de forma, esquivando o povo todos os ônus públicos, e desamparando em geral todas as funções que não fundem como resultado imediato, honras ou dinheiro.
[Se hoje em dia a esquerda no poder se comporta como a direita na expansão do estatismo, no século XIX a alternância entre conservadores e liberais já tinha sido observada também por Macedo. Eis o que nos diz JF Lisboa:]
Reconheço que os nossos partidos, à força de se proclamarem radicalmente opostos em obras e princípios, têm com efeito contraído feições diversas, mas nem por isso o seu antagonismo é tão profundo como alardeiam, pois que com auxílio do personalismo e do interesse individual, os liberais se fazem conservadores no poder; e os conservadores, na oposição, não desdenham nem a linguagem e porte revolucionário, nem mesmo o recurso à ultima razão dos povos e dos reis, se a longa expectação lhes esgota a paciência. Nestas circunstâncias, julgo que lhes não será muito difícil a todos eles viverem em boa companhia, tolerando-se reciprocamente, por pouca que seja a moderação que queiram guardar entre si.
A Anistia
[JFLisboa termina falando sobre o indulto, a clemência e a anistia política. Novamente o julgamento moral perfaz o critério da análise, fecundado de exemplos históricos da literatura greco-romana, da europeia e das nossas revoluções.]
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