com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo
Paul Marcoy – Viagem pelo Rio Amazonas
O mito do equilíbrio ecológico
Meu interesse por Marcoy aumentou ao descobrir nas primeiras páginas que ele não era acadêmico, mas um aventureiro cuja inquietação provinha daquelas áreas cinzentas da personalidade de se por a correr mundo, muito comum em todos os tempos. O impulso pela exploração, pela análise desprovida de condutos científicos, acaba sempre na capacidade literária do observador de dissecar usos e costumes com uma narrativa elegante e prestimosa. E nisso podemos dizer que Marcoy foi tão importante como qualquer outro grande navegador cujo olhar percuciente vai se sensibilizando pelo homem e a natureza que encontra. Os detalhes são entretanto o que nos cativa. Seu primeiro tradutor para a língua inglês, assim se refere a ele (1874):
“Naturalista, ele descreveu com maestria a fauna e a flora desses países; arqueólogo, ele recupera da ruína templos e palácios, monumentos destroçados do poderio dos Incas; etnólogo, ele distingue cuidadosamente cada uma das tribos indígenas por cujo território passa; linguista, ele dá uma amostra dos seus idiomas apontando; músico, ele anota seus cantos fúnebres, seus lamentos e seus ritmos de dança; por fim, desenhista, o seu álbum proporcionou os originais das muitas gravuras com que o Sr. Riou enriqueceu a publicação do seu relato”.
Não precisa dizer mais nada a respeito deste escritor polímata obcecado pelo mundo primitivo que a fantasia europeia alimentava. Não tinha os mesmos interesses de Darwin e Wallace com a coleta de informações sobre as origens das espécies, mas nem por isso, literariamente, menos importância, embora menos ressonância, aliás, uma das desvantagens correntes da literatura sobre os demais gêneros de investigação.
O livro começa com uma descrição de sua convivência com os Ticunas, onde fala da língua, dos costumes e tradições.
Uma das falácias do ambientalismo é o julgamento da natureza como um sistema em "perfeito equilíbrio". A princípio, tudo aquilo que fala em equilíbrio me causa arrepios, pois não existe tal coisa no Universo. Entretanto, os fundamentos falsos de uma ciência são o seu atestado de óbito e não me surprenderia se alguém traçasse uma correlação entre devastação ambiental e mentalidade ambientalista, ou em outras palavras, se o fundamentalismo ecológico não tem contribuído para a degradação do meio ambiente exatamente por suas premissas falsas. Vejamos o que diz o aventureiro e explorador, que percorreu o Rio Amazonas em torno de 1846, e cujas anotações estão narradas no livro Viagem pelo Rio Amazonas (Editora Universidade do Amazonas, 2001, pgs. 41-42).
"...Sempre suspeitei, com ou sem razão, que as nove espécies de mosquitos que se encontram no Amazonas e que mais adiante nomearei fizeram de Loreto, se não a capital de seu reino, ao menos o centro de suas operações e o teatro de seus grandes feitos."
“De fato, em nenhum lugar a audácia desses bandidos alados me pareceu maior, seu zumbido mais irônico, sua picada mais penetrante, seu veneno mais corrosivo e as feridas que infligem mais lentas a cicatrizar. As galinhas, patos, pombos, Hoccos, pauxis e agamis que em Loreto são ao mesmo tempo os comensais do homem e seu alimento, não hesitariam em secundar a minha afirmação se ainda tivessem, como no tempo de La Fontaine, a faculdade de expressar-se em palavras. Devido à luta incessante que são obrigadas a travar com os mosquitos, essas aves contraíram hábitos que nunca teriam possuído em liberdade. Quando chega sua hora de dormir elas tentam afundar-se no chão, enrolam-se ou achatam-se de forma a esconder todas as partes acessíveis dos seus corpos. Mas o mosquito, que vagueia em volta delas como o leão rugiente das Escrituras, sempre acaba por encontrar uma fresta na armadura, lança o seu ataque e chama os seus companheiros para o banquete. No meio da noite, um bater de asas, um pipilar sufocado, um gemido inarticulado, desvendam a miséria da pobre ave transpassada por milhares de flechas certeiras. Na floresta os animais selvagens usam de métodos peculiares para livrar-se desses vampiros. O jaguar, metido no matagal, protege o focinho e os olhos com as grossas patas; o porco-do-mato cava um buraco, agacha-se nele e cobre-se de folhas secas; a anta, chafurdando na lama, deixa exposta somente a ponta do focinho para respirar. Quanto ao homem, ele é capaz, como se sabe, de se proteger com essa praga fechando-se num mosquiteiro, onde jaz ofegando à temperatura de 45 graus".
Podemos notar um estilo claro, bem articulado e extraordinário para um viajante soterrado de dificuldades.
O soldado escravo
Falando de crimes e assassinatos cometidos nos povoados, ele abre a janela para o drama da colonização e seus métodos cruéis de tratamento dos indígenas.
“Sou obrigado a reconhecer que esses atos, que poderiam ser atribuídos à índole feroz e insubordinada desses soldados (índios Tapuia alistas à força pelo governo nos povoados do Amazonas), não são outra coisa senão a consequência natural do tratamento a que são submetidos pelos comandantes dos postos de fronteiras. Mantidos como escravos, como tais são explorados. Alguns caçam e pescam para abastecer a mesa do patrão; outros buscam salsaparrilha, recolhem as tartarugas e seus ovos nas praias do rio ou vão aos lagos para pescar e salgar o peixe-boi e o pirarucu que o chefe do posto irá despachar aos povoados vizinhos numa igarité de sua propriedade. Desnecessário é dizer que só ele lucra com o trabalho coletivo dos seus subordinados. Desgostosos com a vida que levam e com o trabalho a que são obrigados, esses escravos soldados acabam por se rebelar. As punições corporais costumam ser a gota que faz transbordar o vaso. Os mais tímidos simplesmente fogem e os mais exaltados se vingam.
Sabemos que o imperador Pedro II proibiu esse lamentável negócio de fronteira, mas a situação não mudou em nada. O Brasil é tão grande e tantas léguas separam o Rio de Janeiro, sede do Império, dos postos fronteiriços espalhados desde Tabatinga até o Oiapoque, que não deve surpreender se os comandantes locais se convencem de que nem os olhos nem os decretos do seu senhor os pode alcançar.”
Seringueiros miseráveis
A descrição que Marcoy faz dos seringueiros é importante para o entendimento da natureza da miséria em meio à abundância.
Pgs 262-263.
“No começo da tarde, com a maré baixa, a chalupa imóvel no lodo e a tripulação andando pela floresta em busca de flores de açaí para fazer vinho, eu me armei de uma vara e comecei a andar pelo canal cujas águas mal me chegavam aos tornozelos. Cheguei à margem e me embrenhei pelo mangue observando os combates reais ou simulados dos insetos, quando ao dobrar uma curva da margem avistei três igarités encalhadas como a nossa chalupa e como ela aguardando a maré para seguir viagem. Enfileiradas uma ao lado da outra, cada uma delas apresentava uma cena diferente. Na primeira, provida de um abrigo de folhas de palmeira, havia uma jovem índia com uma criança no colo; junto dela, um índio apoiado ao abrigo parecia dormir; um terceiro indivíduo debruçado sobre a proa da igarité, estava enchendo de água um pote pendurado numa corda. Havia outro pote no fundo do barco, alguns panos estendidos e um papagaio vermelho e azul empoleirado no abrigo. As duas outras embarcações estavam unidas por uma rede de dormir cujas cordas estavam presas aos respectivos mastros. Na rede balançava-se um velho e gordo tapuia, sem camisa e fumando um cachimbo de barro de cano longo. Num dos barcos um homem tocava flauta e uma velha tirava piolhos da cabeça de uma criança e os punha na boca. No terceiro barco havia um homem deitados de bruços e um casal, igualmente de índios ocupados em trançar um cesto.
Os três barcos roçavam a vegetação ribeirinha cuja massa verde, iluminada por trás pelo sol, lançava à sua frente uma sombra intensa. Um tom esverdeado envolvia cada objeto atenuando os perfis e as cores mais vivas e espaçando sobre o cenário uma agradável quietude. Um pintor não teria tido nada a acrescentar a esse quadro perfeito, com seus vagos e confusos reflexos na água amarela do canal de Breves. Quando a maré o permitiu, nossa chalupa aproximou-se dos três barcos, as tripulações entabularam conversação e a viagem prosseguiu em companhia. Esses tapuias, de hábitos um tanto boêmios, eram seringueiros à procura de matas propícias às sua atividade. Modestos coletores do suco leitoso da Hevea guianensis, que os antigos Omagas chamavam de cahechu, eles vagavam de um canal a outro carregando seus machados e seus moldes de barro cozido, parando por um mês ou dois nos lugares onde o Ficus era mais abundante. Ao nos separarmos, eles contaram que a concorrência havia a tal ponto prejudicado o seu negócio que eles não conseguiam sequer ganhar o necessário para matar a fome. A maioria deles sofria de uma fome crônica que durava anos. O pote que eu vira borbulhando no fundo do barco não era de comida, mas de lixívia para a limpeza dos seus trapos. Presenteei essa pobres criaturas famintas com um cesto de farinha de mandioca, ganhando em troca o sincero agradecimento da mulher e a bênção do velho com o cachimbo.
A historia daqueles seringueiros era a mesma de todos os trabalhadores daquele tipo, expulsos pela concorrência das ilhas do baixo Amazonas onde a borracha, ou seringa, é beneficiada para exportação em grande escala. A região de canais onde esses párias do trabalho haviam encontrado refúgio oferecia porém magras recompensas. Eles tinham que procurar muito até encontrar as árvores lactíferas e quando as encontravam tinham que fatigar muito para transformar o seu produto em comida e roupa e para amortizar os custos dos seus barcos. Passados seus meses de trabalho e depois de despachar a borracha para Belém, eles regressavam à floresta tão pobres como a haviam deixado. Não encontravam povoados que os hospedassem, nem alimento que lhes fosse oferecido em caso de necessidade. Os seus vizinhos, quando os havia, eram seringueiros como eles e tão famintos quanto eles, que guardavam ciosamente para suas famílias o punhado de farinha ou o naco de peixe seco que tivessem conseguido. Nesta região de canais, como na Torre da Fome de Dante, teria sido menos inusitado comer o próprio vizinho do que compartilhar com ele o pão de cada dia. Um apóstolo do comunismo que tivesse ido pregar entre os seringueiros, em nome da virtude, a repartição dos seus bens materiais, teria sido imediatamente apedrejado como Santo Estevão, crucificado como Santo André ou queimado vivo como São Lourenço.
Miséria no mito do paraíso
E prossegue Marcoy didaticamente, como se desse uma lição de sociologia para nós:
“Se o leitor achar estranho que esses pobres diabos possam passar fome num lugar onde a caça, a pesca e os recursos da mata deveriam ao menos oferecer o necessário para a subsistência, devo lembrar que os frutos comestíveis são muito raros nas florestas do baixo Amazonas; que a caça tornada arredia pela constante perseguição, refugiou-se na terra firme do interior, e que os peixes seguem a correnteza principal do grande braço do rio. As espécies que habitam a região dos canais tornaram-se mais astutas que o Frontin da comédia [personagem da comédia francesa] e conhecem muito bem os vinte tipos de armadilhas que o homem criou para prendê-las... Um dia, estando nossa chalupa ancorada a um engenho, vimos um mestiço barbudo, de cabelos longos, brincos e camisa bordada. Ele estava arrastando na água uma rede de pescar, e quando lhe perguntei sobre o resultado da sua pescaria ele respondeu em português com ar tragicômico – Ah, senhor, só o diabo sabe como pegar esses peixes. Eles são tão malandros que até entendem latim!
O flagelo da escassez que aflige a região que estamos atravessando é uma nódoa no seu encanto pitoresco. Causa um senso de irritação esta perversa natureza que ostenta uma luxuriante beleza desprovida de sentido e ao mesmo tempo recusa ao homem a satisfação de suas necessidades mais elementares. Todo o dia estas plagas são testemunhas de cenas que seriam cômicas se não fossem trágicas. Mal aparece nos canais uma embarcação vinda de cima (assim eles chamam o alto curso do Amazonas), gritos vindos não se sabe de onde saúdam os tripulantes. Aparece então entre as folhagens à beira rio o rosto pálido de um seringueiro. – Tens farinha para vender? – ele grita para os navegantes, que sempre respondem negativamente sacudindo a cabeça. Se no lugar de um homem for uma mulher a fazer a pergunta, a resposta costuma ser positiva, mas num tom que obriga a pobre criatura a desaparecer mais rapidamente do que apareceu. [A prostituição no canal de Breves tem sido documentada por diversos viajantes do Amazonas].
Passando pelos sítios e barracos à beira rio e sempre construídos sobre estacas, que por sinal lhes dão a aparência de estarem montadas em pernas de pau, as mesmas perguntas são dirigidas aos viajantes que vêm do oeste. Um vulto aparece numa janela aberta; sinais são feitos com um lenço; mulheres correm na água em direção ao barco e dirigem tocantes apelos à tripulação, que respondem às gargalhadas. Algumas dessas mulheres mais ousada ou mais famintas, sobem numa canoa e alcançam a embarcação. A recompensa de sua coragem é às vezes uma explosão de abusos, às vezes também um alqueire de farinha de mandioca que elas conseguem do comandante por alguns cobres ou pela graça de Deus e que depois carregam alegremente para casa, onde a família esperava o seu regresso para comer um mingau. Duas dessas infelizes vindas de algum igarapé vizinho abordaram um dia a nossa chalupa. O piloto, homem de poucos sentimentos, ameaçou afogá-las como gatos se não saíssem imediatamente. Com grande dificuldade consegui para elas o favor de passar algumas horas conosco. Não sei bem o que elas comeram, mas deixaram a chalupa de tardezinha aparentando terem comido o suficiente para uma semana.”
Este é o viajante desprovido de títulos científicos mas equipado com a bagagem literária capaz de entender melhor os dilemas humanos da população amazonense do que os primeiros. Com um estilo límpido e sensível, equilibrado em suas ponderações sobre os costumes e a maldade inerente ao meio selvagem, Marcoy como que estendia um braço de apoio àquelas criaturas que passavam por ele. Deixou um testemunho precioso sobre o Amazonas da metade do século XIX.
Thomas Davatz — Memórias de um Colono no Brasil
A imigração sempre foi tema de especulação de acadêmicos e descendentes, de historiadores, de biografias familiares e depoimentos pessoais. A maioria dos livros dedica-se aos temas existenciais como as dificuldades dos núcleos populacionais, o trabalho duro, a ausência de infraestrutura, a geografia inóspita, a fauna hostil, as doenças tropicais e assim por diante.
No entanto, o depoimento de um colono que saiu da Suíça alemã com um contingente de mais de 250 pessoas dispostas a trabalhar no Brasil sob promessa de prosperidade para se transformar em escravos da fazenda Ibicaba da família do senador Vergueiro, é obra rara e talvez única.
Em primeiro lugar, Davatz era letrado, coisa rara em imigrantes, mas não só. Ele demonstra uma narrativa melhor do que muitos acadêmicos, pela sensibilidade e pela clareza com que trata o tema. Em segundo lugar, porque fazia anotações dos acontecimentos com vistas a organizar os fatos para buscar justiça com as autoridades. Destas anotações surgiu o livro. Sem rancor, sem um traço sequer de ressentimento, sem se fazer de vítima, consegue nos envolver numa realidade que é muito comentada mas pouco estudada, qual seja, a sorte de parte dos imigrantes que tiveram seus sonhos roubados pela mentalidade escravista.
Davatz chegou ao Brasil em julho de 1855 e voltou para a Suíça dois anos depois, de onde escreveu o livro como libelo de advertência às autoridades consulares europeias para não caírem no conto da imigração, ainda antes da fantasia comum de “fazer a América”.
A escravidão não é tema para ser limitado ao trabalho forçado. Era uma ideologia que impunha hábitos e atitudes baseados no sentimento de superioridade daquele que se coloca no lado dos inatingíveis e isentos. Ela está para o Brasil colonial como o estatismo para a realidade brasileira do século XXI. Nos altos cargos da administração dos 3 poderes, todos se sentem superiores ao resto da população, e alguns demonstram esta superioridade na justificação de mordomias, de impunidade disfarçada em foro especial, e na constelação de privilégios inacessíveis aos cidadãos comuns sem qualquer constrangimento com o sentimento de equidade que formou o mundo moderno.
O livro foi traduzido e prefaciado por Sérgio Buarque de Holanda, que nos forneceu este relato precioso sobre as relações intermediárias no processo de produção do café na fazenda Ibicaba, situada atualmente em Cordeirópolis, SP.
O escravagismo não pode ser limitado a uma relação de produção do Brasil colonia, mas a uma ideologia da diferença, que penetra a sensibilidade brasileira em todos os poros. SB de Holanda cita o historiador Kiddler que de passagem por Recife observou o caso dos alemães contratados para a construção de pontes e calçadas em 1839: “tantos e tais eram as zombarias a esses 'escravos brancos' que eles não conseguiram levar a bom termo a obra começada”.
Chama atenção o fato de os contratantes europeus que para cá enviavam os colonos, comissionados por cabeça, terem adicionado: “não só antigos soldados, egressos das penitenciárias, vagabundos de toda espécie, como ainda octogenários, aleijados, cegos e idiotas”. Os jovens e sadios só eram permitidos embarcar se assumissem responsabilidade pelos velhos e doentes, incluindo suas dívidas caso viessem a falecer.
SB de Holanda discorre sobre o regime de parceria adotado pelo senador Vergueiro sem, no entanto, criticá-lo abertamente. Considera que a revolta de 1857 na fazenda Ibicaba, teria em parte sido motivada pela desconfiança dos colonos com a prestação de contas das despesas originadas dos encargos do café até o porto de Santos, e dos impostos associados.
Já analisei a questão tributária em outras culturas, notadamente a da borracha, como fulcro do problema da competitividade da hileia brasilienses. A desconfiança dos colonos chamados parceiros é assim atenuada pela dificuldade dos proprietários de explicar a eles as despesas entre a colheita e o reembolso que as vezes levava meses. “Em 1857, o lavrador paulista devia pagar 7% de imposto geral e 4% de tributo provincial decretado durante a presidência de Saraiva para o café que ia ao mercado, assim como 2$ por arroba quando transportado em lombo de mula e mais 40, 60 ou 80 réis à municipalidade, que impunham semelhantes taxas em benefício de obras locais. Entre vinte e tantos a trinta porcento consumiam-se nessas despesas inevitáveis. Só o restante seria dividido com o colono”.
Para superar o impasse na prestação de contas, muitas vezes manipuladas pelos contadores, o regime da parceria, assinado em contrato na Europa (o embarque foi em Hamburgo), estabelecia a divisão dos lucros em 50% de parte a parte. Como conhecemos dos seringais da Amazônia, os lucros desapareciam nas prestações de contas, e as dívidas de armazém de mantimentos vendidos em preços superfaturados tornavam o modelo uma escravização sem saída.
Para resolver esta situação insana, Davatz inicia uma correspondência com as autoridades consulares suíças no Rio de Janeiro pedindo uma auditoria e inspeção na fazenda Ibicaba. Neste momento a correspondência já era censurada, mesmo aquela recebida da Europa dos familiares curiosos com o destino dos colonos. Com muitas postergações e manipulações da correspondência, conseguiu Davatz a nomeação de um inspetor suíço chamado Heuser que conseguiu mudar o regime de parceria para o de pagamento fixo por alqueire colhido. (O alqueire é também uma unidade de peso, e a narrativa contábil traduzida do alemão considerava os sistemas monetários e de medidas da época, deixando o leitor confuso com alqueire como medida de terra e o alqueire e a libra como medida de peso e ao mesmo tempo precificando ora em réis, ora em francos suíços, de resto um problema recorrente na história econômica do Brasil).
Passando a adotar também o regime assalariado misto, a situação não mudou porque o colono passou a pagar aluguéis pelo uso das residências e obrigação de cultivo de alimentos e execução de reparos em toda a fazenda. E para cúmulo de desfaçatez, tiveram os domingos e feriados descontados do salário por ser dia não trabalhado.
Ao final, SB de Holanda faz uma apologia da importância do depoimento dos envolvidos diretamente no assunto, em termos de um real entendimento dos acontecimentos, ao contrário da história escrita pelos “ausentes” da produção, como historiadores e abolicionistas políticos e fazendeiros, em contraste com a “imensa multidão de figurantes mudos que enchem o panorama da história”, como Thomas Davatz. Esta abordagem passou a ser chamada de micro-história na linguagem acadêmica.
“Os colonos que migram recebendo dinheiro adiantado tornaram-se pois desde o começo uma simples propriedade da Vergueiro & cia, e em virtude do espírito de ganância, para não dizer mais, que anima numerosos senhores de escravos e também da ausência de direitos que costuma viver esses colonos na província de São Paulo. Restava conformar-se com a ideia de que são tratados como simples de mercadorias ou como escravos.“
Mais adiante ele conclui depois de muitas observações a respeito da ordem que era mantida na Fazenda:
“E dos Absurdos como não permitir visitas e só poder sair autorizado até o cúmulo de ter que construir uma igreja com mão de obra de protestantes que não podiam participar de batismos.”
A respeito das multas que eram aplicadas como se fosse um recurso burocrático cultural ele conclui dizendo:
“Este fato explica-se provavelmente mais perigoso de agir de modo discricionário tão frequente em certas pessoas do que pelo propósito e cumprir as leis vigentes“.
Sobre a vida cotidiana e das necessidades materiais como de alimentação:
Ele fala que a obtenção de alimentos no Armazém da Fazenda era efetuada da seguinte maneira: “o diretor enche uma folha litografada com os nomes de diversas mercadorias, conforme o desejo dos colonos, quando os aprove, e escreve o montante em dinheiro dos gêneros solicitados, no lado esquerdo da folha do caderno de contas. A seguir dirigi-se o colono à sede da Fazenda e recebe mediante apresentação da folha as mercadorias pedidas e registradas.
Os gêneros que se podem obter por essa forma são os seguintes: café, fubá, farinha, açúcar, feijão, sal e açúcar e de quando em vez, arroz. Do mesmo modo que obtém-se também no primeiro sábado de cada mês, certa importância em dinheiro para compra de carne de vaca, sabão, azeite de iluminação, aguardente (a única bebida além de água) e outras coisas de menor importância até aqui tudo bem, mas se alguém prestar atenção à qualidade das mercadorias, e também ao seu preço verificará mais de um fato digno de reparo. No medir e pesar os artigos, operações essas que estão a cargo de negros, não se acha presente o colono, que não vê assim de que modo são praticados. Só lhe é dado verificar, de vez quando, que os negros amontoam com os pés o fubá ou a farinha de trigo, e que essas mercadorias, depois de pesadas, são metidas em sacos. O mesmo se passa com o açúcar, o toucinho, etc. Em outras épocas sucedia, por vezes, que uma negra, com um filho atado às costas, (e que naturalmente urinava), ficava no da caixa de fubá e dali fornecia o mantimento. Ao que eu saiba nunca ninguém se queixou de que os gêneros que nos forneciam fosse de pequeno volume. Quanto ao peso, não sei se as medidas seriam insuficientes ou se a pesagem era mal feita. Sei apenas que em outras fazendas obtinha-se pesos melhores. Em 16 libras (7,25 kg), por exemplo a diferença chegava a ser uma libra (0,454 kg). Tal observação não foi só por mim; fizeram-na também outros colonos que, tendo obtido para essa ou aquela via, iam comprar alguma coisa fora da nossa fazenda. Também é certo que quando o Dr. Heusser [enviado pelo consulado suíço do RJ] estava para chegar a Ibicaba a fim de proceder às sindicâncias e especialmente quando ele estava presente os pesos melhorariam sensivelmente. Assim como 8 libras de café do melhor aspecto e peso, o mesmo saquinho que se fornecia anteriormente ficava visivelmente mais cheio. Na mesma época também se efetuaram alterações semelhantes em relação à qualidade dos alimentos e aos preços. Poucas vezes o fubá, o café e outros artigos apresentaram o bom aspecto de então, e o toucinho, como o açúcar baixaram consideravelmente de preço, em breve período, ao ponto de primeiro ter passado de 240 para 120 réis a libra. Convém dizer alguma coisa sobre os mantimentos obtidos na fazenda e na loja subordinados à fazenda. Nos primeiros anos o café não constava dos fornecimentos. Cada qual podia tirar das suas plantações quanto lhe aprouvesse para o uso da família. Infelizmente não faltou entre os colonos, e particularmente portugueses, quem abusasse de tal permissão e fosse vender café nas cidades vizinhas. Em resultado disso acabaram proibindo que se lavasse café para casa, mas com a promessa de que se daria ao colono do melhor pela metade do preço habitual da Fazenda. Assim o colono pagaria pelo café apenas o mesmo que o senhor lhe proporcionaria como trabalhador ou parceiro. Ficava assim, praticamente, na situação de antes. Sucedeu porém que na maioria dos casos, o café fornecido estava longe de ser dos melhores e também o preço não se aproximava sequer do que fora prometido. Eu próprio, como os demais, recebi na fazenda café de tão má qualidade, que não se comparava aos piores que já vi na Europa....”
Para reduzir a insatisfação, a fazenda organizou uma festa de aniversário do senador Vergueiro. Era algo especial e não visto na fazenda Ibicaba. O objetivo era a pacificação das relações dos colonos com os administradores, e ao mesmo tempo dissipar as tensões. “Em honra do homenageado, homem poderoso e cheio de prestígio, vieram muitos figurões das redondezas, senadores, companheiros de negócio e de partido, inclusive dois senhores europeus. E toda essa gente deveria convencer-se graças ao discurso que me caberia fazer, os hinos do coro masculino, instado a comparecer (criado recentemente entre os colonos), às danças, ao júbilo da multidão dos colonos, etc, da satisfação e da alegria reinantes entre estes últimos. Pelos pratos e bebidas servidas aos trabalhadores poder-se-ia também julgar do zelo fraternal que animaria o sr. Vergueiro com relação aos subordinados. E ninguém negará que esses ilustres visitantes chegariam depressa à inabalável convicção de que tais aparências correspondiam à realidade e não hesitariam em transmiti-la a todo o mundo... transformando dessa forma em sedutores de muita gente pobre da Europa”.
O coro, apoiado como iniciativa cultural dos colonos, se transformou, no entanto, em instrumento de protesto. Um dos membros declarou que o sr. Vergueiro era um trapaceiro, que roubava os salários dos trabalhadores. A causa: os resultados do balanço da casa Vergueiro, com a redução dos pagamentos do café de $740 até $798 para $467, além do aumento alarmante das dívidas.
A dívida, no Brasil colonial como na República, imputada a alguém pela exploração fraudulenta, tem a função de não liberar a pessoa dos pesados encargos que a mantém em servidão. Pelo contrato assinado na Europa, depois de 4 anos estariam os colonos desobrigados do serviço na fazenda, mas ficavam atados ao pagamento dos débitos que aumentavam cada vez mais.
Os colonos queriam apenas uma pequena propriedade para serem independentes, como estava acontecendo em outras partes do país, formando todos uma comunidade ordeira e progressista.
Com frustrações crescentes, com a percepção de que não atingiriam os fins prometidos na propaganda europeia, criou-se o germe da rebelião.
Se as trativas com a administração da fazenda fracassaram, as ameaças causaram tal desconforto que os colonos criaram uma vigilância de proteção a Davatz dia e noite.
As reivindicações eram extensas, desde a violação e retenção das correspondências, até os balanços que eles sabiam ser fraudados pois conheciam os preços do mercado de Santos que, em contraste, eram apresentados como um valor inferior ao negociado.
Embora estivessem em vias de enfrentamento, não houve mortes nem violência física, e Davatz conseguiu por sua inteligência e preparo diferenciados, a permissão para voltar à Europa com sua família.
Lá chegando, Davatz desenvolve uma campanha de denúncias contra a situação dos imigrantes, escrevendo o livro e alertando todos os serviços consulares. Citando o conselheiro privado da Prússia, um tal de Kerst que havia participado da colônia de São Leopoldo, e que lutara no exército na revolução farroupilha e preso por um ano sem julgamento:
“ O Brasil ocupa o primeiro lugar entre os países da América do Sul que desconhecem quaisquer garantias de liberdade, que não reconhecem direitos aos estrangeiros, quando tais direitos não se acham claramente assegurados por tratados internacionais de caráter permanente. O governo brasileiro tem se esquivado insistentemente, porém, de firmar acordos internacionais dessa natureza (como os que a Confederação Argentina, por exemplo, acaba de concluir com as nações mais importantes), e sobretudo com a grande potência alemã. Eles poderiam por à prova a tolerância brasileira”.
Em resposta a imprensa de aluguel iniciou uma campanha para desmoralizar os críticos da imigração de parceria.
Davatz afirma que o movimento brasileiro em direção a imigração europeia foi causado pela interrupção do tráfico de escravos imposta pela Inglaterra, fazendo com que as elites agrárias se voltassem para os europeus com a mesma perversidade com que tratava os negros.
A repercussão da situação dos imigrantes levou a mobilização dos círculos liberais do Rio de Janeiro em apoio da causa. Em 1861 foi criada a Sociedade Internacional de Imigração, cujo estatuto foi escrito pelo nosso conhecido Tavares Bastos (ver duas resenhas neste blog), com a finalidade de acolher imigrantes e proporcionar assistência para o Brasil superar a herança colonial portuguesa maculada pela escravidão.
Na mesma época, Tavares Bastos encaminhou ao congresso a lei de liberdade de culto ampliada para o reconhecimento civil do casamento de protestantes, até então monopólio da igreja católica. Como sempre acontece, a lei foi deformada, com a introdução de cláusulas estapafúrdias como a de que a cerimônia só poderia ser conduzida por pastores cadastrados, e outros artifícios tão singulares de nossa burocracia em consonância com o parlamento.
Foi duramente criticado pelo clero a ponto de escrever um artigo se defendendo da acusação de ser anticatólico.
Quanto a Davatz, encerra seu livro combatendo a imigração para qualquer parte do mundo, incluindo a Austrália e Estados Unidos (onde esperou por algum tempo autorização antes de vir ao Brasil) afirmando que as exigências destes países era descabida para a situação de pobreza dos europeus.
Foi uma voz dissonante. O ciclo de imigração mal começara e iria embarcar em diferentes épocas, em diferentes quantidades, milhões de europeus para o continente americano.
Wilson Martins — Um Brasil Diferente
Introdução
Wilson Martins nasceu em São Paulo, em 1921, e faleceu em Curitiba, em 30 de janeiro de 2010. Foi bacharel em direito (1943) pela Faculdade de Direito do Paraná e doutor em letras (1952) pela Universidade Federal do Paraná. Bolsista do governo francês (Paris, 1947-1948). Foi professor da cadeira de língua e literatura francesa na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade do Paraná (1951-1962). Professor visitante da Universidade Kansas (1962). Professor associado na Universidade de Wisconsin-Madison (1963-1964). Professor titular de literatura brasileira na New York University (1965-1991). Crítico literário dos jornais O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, O Globo e Gazeta do Povo (PR).
O livro trata da epopeia da imigração no Paraná. Inicia comentando a geografia do Paraná para familiarizar o leitor com as variáveis do território.
A climatologia
Ao analisar as constantes climáticas no estado, apresenta os dados das temperaturas médias anuais de um grupo de cidades típicas como Curitiba, onde a coleta é mais antiga (pgs 20-24), a constância dos dados me intrigou, e resolvi pesquisar junto ao Instituo Nacional de Meteorologia o complemento das variações de temperatura a partir do ponto em que Wilson Martins tinha parado até nossos dias.
O resultado é surpreendente. Tomando a cidade de CURITIBA como referência, temos os seguintes valores:
De 1885 a 1944 - Média anual: 16,3 graus C. (dados de WM)
De 1931 a 1960 - Média anual: 16,5 graus C. (dados do INMET com sobreposição de 13 anos, isto é, de 1931 a 1944).
De 1961 a 1990 - Média anual: 16,8 graus C. (dados do INMET)
De 1991 a 2010 - Média anual: 17,4 graus C. (dados do INMET).
Variação de 1885 para 2010: 1,1 grau C.
Conclusão: como se trata de medida localizada na cidade, e que o microclima da região deve ter sido alterado pela expansão da cidade e impermeabilização do solo, ainda assim, a variação média no período de 125 anos é irrisória.
E os fatores antropogênicos, tão comumente propalados como causa do aquecimento global?
Ficamos sabendo que no recenseamento do Paraná entre 1853-62, o estado tinha 62 mil almas. Em 1873, 126.772 habitantes. Segundo o IBGE, o Paraná continha 11.377.239 habitantes em 2019. Ou seja, a variação de 126 mil para mais de 11 milhões produziu um aumento insignificante de temperatura. Isto comprova que os profetas do aquecimento são charlatães que se dedicam a sugar dinheiro público com um evangelho inventado por uma igreja universal do catastrofismo.
Os dados de desmatamento são também reveladores (pg 25). Não tendo habilidade nem ferramentas adequadas ao manejo florestal, os imigrantes logo recorreram ao costume da coivara indígena, queimando progressivamente contingentes significativos da floresta nativa. Dos 178 mil quilômetros quadrados de mata virgem no Paraná, até 1930 tinham sido dizimados 38 mil. E com o grande ocupação do oeste do estado nos anos 30 a 45, foram dizimadas mais 48 mil km quadrados. Fica claro, mais uma vez, que não houve aquecimento RELEVANTE, justamente na fase de maior transformação no relevo vegetal do Paraná.
Infraestrutura
Entre os entraves ao progresso do Paraná, um deles foi a falta de estradas (pg 17). O ritmo lento da infraestrutura fez com que muitas colônias, perdidas no meio do território, fossem paralisadas pela migração contínua para as cidades, já que sem um fluxo de comércio é impossível prosperar. Some-se a isso a questão do talento. Muitos imigrantes não tinham preparo nem tradição de agricultores. Eram antes, marceneiros, sapateiros, ferreiros, moleiros, ceramistas, açougueiros, padeiros, etc, em suas terras natais. Como resultado, migravam das colônias para as cidades para se estabelecerem como comerciantes.
Outro problema era a qualidade das terras oferecidas aos colonos russos-alemães. Devido ao solo pedregoso e arenoso, muitas famílias resolveram empreender o caminho de volta, causando uma certa comoção e crítica que atribuíam aos imigrantes falta de empenho e esforço. Na realidade, em um desses casos, apurou-se tratar de um negócio sujo que envolvia políticos e grileiros, que tomavam o partido da imigração para enriquecimento pessoal. Até Dom Pedro II, cuja descendência alemã o fazia um grande entusiasta da vinda de colonos para o Paraná, ao visitar as terras desses ex-colonos constatou que tinham sido logrados. Não se pode tomar a nuvem por Juno, porque na maioria dos casos, o problema principal era a falta de infraestrutura.
Contudo, o favor psicossocial do imigrante tem um certo relevo na questão da adaptação. Como recebiam subvenções do estado para se instalarem, os desanimados preferiam tomar o caminho de volta, enquanto outros, passando pelas mesmas dificuldades, enfrentavam a hostilidade com perseverança e trabalho. Wilson Martins cita as diferenças culturais entre alemães, italianos, poloneses, russos (alemães do Volga), franceses, americanos e ingleses, estes últimos dois em pequeno número. Pragas naturais (p. 122), como ratos e gafanhotos, doenças como amarelão e malária expulsaram 2/3 dos colonos alemães de Irati. “Uma praga não menor seriam os agentes de cobrança da dívida colonial [...] os quais extorquiam dinheiros dos colonos e praticavam toda sorte de tropelias.”
Na questão da escravidão, comenta: “a emancipação dos escravos em 1888 encontrou no Paraná quase tudo feito”, referindo-se ao processo gradativo de libertação da pequena quantidade de escravos da província. No período de fastígio da escravatura (1872-1882), o Paraná diminuía seus escravos “sem ruído e sem violências” de 10.669 para 7.668.
Escravidão
Na questão da escravidão, comenta: “a emancipação dos escravos em 1888 encontrou no Paraná quase tudo feito”, referindo-se ao processo gradativo de libertação da pequena quantidade de escravos da província. No período de fastígio da escravatura (1872-1882), o Paraná diminuía seus escravos “sem ruído e sem violências” de 10.669 para 7.668.
Assimilação
Uma das questões mais importantes no estudo da imigração ao Brasil reside na assimilação. Enquanto os alemães – em menor número – se destacavam economicamente devido à tendência as profissões urbanas, os poloneses – em maior número – não tinham grande expressão no desenvolvimento do estado pela tendência ao enclausuramento em núcleos rurais. Observação que vale também para os russos.
Wilson Martins discorre sobre todas as nacionalidades de imigrantes, sejam alemães, ucranianos (alemães do Volga), italianos, japoneses, suecos, suíços, franceses e ingleses e suas respectivas histórias de adaptação. Contrariando o temor de Sylvio Romero sobre a alemanização do sul representar um potencial disruptivo de fermento de novo separatismo, WM mostra dados estatísticos do entrecruzamento e da assimilação dos costumes, língua e participação social a despeito das idiossincrasias de cada colônia em seu próprio núcleo.
Detalhista ao extremo, WM nos aborrece com numerosas páginas contendo os anúncios de emprego do jornal Dezenove de Dezembro para mostrar a marcha da assimilação no Paraná.
Vale assinalar que nas questões judiciais, muitos advogados evitavam um juizado dirigido por alemão, por serem muito rígidos na aplicação da lei. “A influência do meio, não só pelo ar que se respira, como pelo fluído intelectual que o cerca” (pg 191).
Sublinha também o contrário, isto é, o acaboclamento do imigrante no que se chama de “perdas culturais”. Alguns núcleos degeneram, tornando seus ocupantes pobres miseráveis em situação pior do que chegaram, embora em pequena escala quando comparado com o contingente que progredia.
Sobre a recusa à calefação, por achar que era responsável pelas gripes e resfriados, assim diz WM (pg 290) ser uma “velha manifestação desta desconfiança um pouco supersticiosa – o terror primitivo que habita na alma de todo o homem contra o progresso mecânico, aliado a uma espécie de condenação moral contra o sibaritismo” [isto é, o desejo incontrolado de luxo e prazeres].
A questão da assimilação é vasta e, por isso, recorrente no livro. A questão do germanismo é uma delas, quando na véspera da segunda grande guerra começou a se falar novamente no “perigo alemão”. Wilson Martins menciona os rumores de que os teuto-brasileiros estariam preparando certas organizações paramilitares para a separação do Brasil. (pg 211). Cita a defesa de brasileiros a estas acusações, e o autor comenta até mesmo a chegada do nazismo e sua influência no Brasil, a partir do reconhecimento do Reich de cidadania alemã aos descendentes nascidos fora da Alemanha. Para isso, cita o livro do tenente coronel Aurélio da Silva Py, “A 5a Coluna no Brasil – a conspiração nazi no RGS”.
Em As Doenças (pg 219 e sgts) fala da propagação da varíola, influenza, tifo, sarampão, todos trazidos do estrangeiro, e aportando por Santos ou Paranaguá. Não só o coronavírus foi uma doença importada.
Quanto a colonização italiana, o autor destaca apenas a facilidade de assimilação e os elogios proferidos pelas autoridades locais. Mas não comenta as mesmas perseguições ocorridas na entrada do Brasil na Segunda Guerra, pela paranoia da simpatia destes com o governo Mussolini. Neste caso, é preciso salientar que os imigrantes tinham assistência dos consulados de seus respectivos países, fazendo com que as mudanças de governo na Itália e Alemanha fosse vista com suspeita. Os russos, por sua vez, eram maus vistos pelas autoridades que achavam um contingente com uma estupidez asinina. Não aceitavam novos costumes, novas e mais evoluídas ferramentas de trabalho e, ficavam mais isolados em seus redutos do que os demais.
Lembro que, com a queda da União Soviética e os esforços de reconstrução, o governo russo ofereceu terras para os descendentes que voltassem para a grande Rússia. Um contingente partiu do Paraná para Odessa depois de já estarem no Brasil há algumas gerações.
Em AS IDEIAS, apresenta os contrastes entre a língua alemã e o português, conflitos e caldeamentos. Por algum tempo vigorou o nacionalismo linguístico e a proibição dos cultos luteranos usarem a língua de Lutero, embora não houvesse a mesma restrição para o latim no culto católico. WM explica a resistência alemã aos cultos em português por ser tradição luterana as prédicas em alemão.
A assimilação da língua alemã ao português é apresentada em uma série de notas de compras guardadas, aparecendo o termo “rossen” significando roça, “fosfor”, fósforo, “Káscháss”, cachaça.
Cartas a redação
Nas pgs 370 e sgts lista os nomes, diretores e data de fundação dos jornais em língua estrangeira no Paraná. Surpreende pela quantidade – havendo um deles que se chamava Prawda, fundado por um tal de José Ockolowico em 1/3/1900. E conclui a seção dizendo ser inútil acrescentar que todos aqueles jornais desapareceram com a vaga nacionalista de 1937.
Digno de notar eram as cartas escritas aos jornais, sejam para manifestar um protesto, seja para fazer uma sugestão ou pedido. Uma delas, escrita por um polaco e publicada “a pedido” no Diário da Tarde de 23/11/1903 fala por si mesma:
GRÊMIO CHEIRA PESCOÇO
Eu, polaco, venho protestar contra o Grêmio Cheira Pescoço, sociedade de moças do quarteirão Bigorrilha, que no sábado 21 fez baile perto de minha casa: a meia noite deu jantar aos sócios, de feijão, buxo e pé de porco. Esta comida feia faz mal na barriga da gente que dança, vai tudo expelir pela boca, pelo campo, pelo caminho, pela ponte. Um engraçado foi expelir na frente de minha casa.
Eu agora peço ao presidente para os sócios quando tomarem indigestão irem para longe e não sujarem a casa do polaco e infeliz mauppa Kiriquimfrinks.
Um que não comeu.”
A assimilação, como se vê não era uma questão étnica, porém de compartilhamento cultural, como se nota na notícia pulicada no Jornal Dezenove de Dezembro (era o nome) de 22/08/1887:
PASSEIO DE MAU GOSTO
"Os laboriosos e morigerados polacos não deixam passar desapercebidos os dias santos ou domingos. Reunidos nessa ou naquela taberna, raro é o que não vai de gatinhas para casa. No domingo, porém, entendendo um ir a cavalo, nas proximidades da ponte do Mato Grosso foi atirado à lama, sendo arrastado por ter ficado preso às redes pelas pernas. Graças, porém à mansidão do animal e à macieza do terreno não ficou contundido”.
Enquanto alguns se queixavam da “frieza inconcebível” das alemãs, “o mesmo não se poderia dizer das polacas que viviam nesta excelente Curitiba... a dar crédito a um 'pedido' do Dezenove de Dezembro de 19/2/1881.
“Pedimos ao Exmo. Sr. Dr. Chefe de polícia providências no sentido de evitar o ajuntamento de criadas estrangeiras (com especialidade as polacas), nas esquinas, chafarizes, e etc., visto que as mesmas, contando com a valiosa proteção de Santo Antônio, dirigem insultos aos transeuntes e proferem palavras obscenas em altas vozes. Esperamos que S. Excia. tomando na devida consideração o que acabamos de expor, dê as providências que julgar necessárias, recomendando a St. Antônio que não faça tantos milagres. – X.Z.”
Atividade cultural
Na questão cultural, importantíssima para avaliar o grau de assimilação, descreve a atividade teatral dos alemães, seja na reprodução de peças alemãs (a comédia Fidele Brueder foi traduzida como Os Patuscos), como na adaptação de brasileiras ao idioma alemão. Ao comparar com os tempos atuais (1953) cita uma comédia de Juracy Camargo chamada Maria Cachucha. Cita ainda os bailes das 20:00 as 5:00 h da manhã, os restaurantes musicados e as festas.
Tributo em polvorosa
Digno de observar, foi a greve dos comerciantes convocada pelo telégrafo contra a cobrança do imposto sobre vendas instituído em 1883. Era uma taxação de 1 ½%, que até então não existia, e foi o suficiente para gerar uma revolta de pequenas proporções. O local de reunião era o Salão Lindmann, onde em uma ocasião, estando em reunião permanente, foi noticiado que se encontrava reunido um grande contingente de estrangeiros “armados de pistolas, revólveres, espingardas, facas e bombas de dinamite... disposto a atacar o palácio da presidência (da província) e outras casas.”
“Depois de 8:30 h de deliberações ouviram-se tiros e detonações de bombas de dinamite “de um grupo maior de cem homens”, que atacando a guarda foram rechaçados e posteriormente rendidos. Um grupo de 10 homens foi preso e o sucessivo se torna, para o estudo da brasilidade, mais importante que o ato de sublevação. A acusação de sedição, punida pelo código criminal, era legal porque a introdução do referido imposto era uma decisão da assembleia provincial.
Mas aí ocorre a confusão que nos rege: imediatamente os prisioneiros entraram com pedidos de habeas corpus feito pelo cônsul do Império Alemão em Curitiba. Decorrido o prazo e não apresentada a denúncia contra os acusados, a detenção deveria ser relaxada ficando os libertos a disposição da polícia. O que ocorreu, a posteriori foi bastante surrealista. Ocorre que a autoridade encarregada de assinar o habeas corpus se ausenta, deixando em seu lugar um subordinado que alegou doença para não se apresentar no serviço. Passaram para o substituto do substituto, que remeteu a outra instância, até que os prisioneiros enviaram um abaixo-assinado pedindo indenização por perdas e danos a que teriam direito por privação da liberdade.
Neste meio tempo a concessão do habeas corpus estava com o chefe da polícia (Carlos de Carvalho) que o remete ofício ao promotor público que responde a propósito do abaixo-assinado avisando o procedimento da denúncia enviada ao juiz municipal que passa ao segundo suplente e o vaso vai prosseguindo de mão em mão. Por fim, o sumário de culpa foi enviado ao 3o suplente que exercia a titularidade do mandato, que se declarou impedido por ter agido no inquérito como autoridade policial, que terminou passando ao vereador mais votado que se declarou impedido “de moléstia, indo o processo a seu imediato”. Decorridos 19 dias da entrada na prisão não havia testemunha inquirida, excedendo em mais do dobro o prazo do tempo assinalado no art. 148 do código de processo criminal para a formação de culpa em tais casos. O Chefe de Polícia ordena novamente ao promotor o cumprimento da lei que afinal concede perfazendo o total de 22 dias de detenção.
As profissões
Wilson Martins analisa as profissões exercidas pelos alemães, belgas, franceses e italianos, citando uma lista e remunerações. Um caso curioso foi o do maestro italiano Romualdo Suriani, nomeado em 1913 a regente da banda de música da Força Militar do Estado. Segundo WM, “[era] um conjunto capaz de ombrear com as melhores do país, senão ultrapassá-los. Velho maestro que empregou sua vida numa obra de devotamente sem par e que devia terminá-la amargurado, perseguidos pelos excessos condenáveis de uma mal entendida campanha de nacionalização”. E arremata WM, desabafando; “Pátria! Pátria! Quantos crimes se cometeram em teu nome”.
As escolas
A seguir explora a documentação a respeito das escolas do Paraná, com enfoque no ensino das línguas francesa, italiana, alemã, inglesa e das matérias correlatas de português, geografia, história, disciplinas acessórias e aritmética e geometria sem mencionar a álgebra, hoje matéria indispensável nos cursos secundários. Além disso, o problema do ensino, em que o governo cortou as subvenções para escolas particulares alemã, polaca, russa e italiana devido ao colapso financeiro com a guerra de 1914.
A nacionalização do ensino foi criada em consequência da Primeira Guerra Mundial. O “perigo alemão” aparece para criar desordem no ensino e alterar as práticas educacionais. Deve-se observar que as escolas primárias e secundárias eram em sua maioria fundadas por particulares, concorrendo o governo estadual tão somente com subvenções anuais.
Liberdade religiosa
A questão é importante porque o governo imperial havia garantido a liberdade de culto aos imigrantes. Esta liberdade não foi exercida sem confrontos com a igreja católica que até então reivindicava o monopólio do culto através da religião de estado. “Para o colono, o serviço da missa aos domingos é o acontecimento social mais importante da semana.”
O fato é que, salvo alguns confrontos originados da instigação fundamentalista, a pluralidade religiosa foi respeitada no Paraná.
Quanto a liberdade religiosa (pg 380) bate na tecla do fundamentalismo da colônia e da recente emancipação do direito civil da teologia e da religião de estado, apontando em 1873 “a falta de liberdade de consciência; a não existência do casamento civil como instituição, a imperfeita educação; a ignorância e imoralidade do clero; a ambição de mando temporal por parte do episcopado brasileiro, traduzindo-se na luta impropriamente chamada – questão religiosa”. Observa que o Brasil foi feito pela civilização portuguesa em sua intolerância. E citando Joaquim da Silva Rocha, critica a legislação que impede que os filhos de pais protestantes se candidatem às eleições como deputados. Uma coisa repugnante para o século XIX.
Nas pgs 418-19 apresenta as notícias datadas das depredações efetuadas por católicos contra templos protestantes de 1873 a 1896, no resto do Brasil, afirmando não terem acontecido no Paraná, exceto uma delas em Campo Largo.
Contrariando a opinião de Martim Francisco [ver fragmentos de Viajando] – quando de sua visita a Roma, a propósito de ser o cristianismo uma religião sem alegria, quando comparada com o paganismo, WM vê o catolicismo no Brasil, romântico e dionisíaco, enquanto o protestantismo “em sua definição tradicional é clássico e apolíneo. Assim o barroco é antiprotestante, como o protestantismo é antibarroco.”
“Daí porque o protestantismo teria melhor acolhida no Paraná, por ser o paranaense mais apolíneo e clássico que dionisíaco e romântico”. Com isso, o barroco e o rococó não passam de manifestações de espírito romântico, enquanto o gótico representa mais fielmente o espírito clássico.” Destaca a observação de Roger Bastide, estudioso da religião no Brasil, que enquanto o misticismo cristão e muçulmano consiste numa longa ascensão da alma a Deus, até que Nele se perca, o misticismo [do ubandismo] consiste em fazer Deus ou o Espírito, por meio de ritos apropriadas, vir, por um momento, apossar-se da alma de seu fiel.” Quanto ao carnaval, é significativo que em Curitiba existisse no século XIX um bloco carnavalesco denominado de “Niilistas do Averno”. Isto já diz tudo quanto ao reconhecimento social do contraste entre o apolíneo e o dionisíaco.
O livro Um Brasil Diferente é um clássico sobre a imigração, não só pela abundante bibliografia de consulta, a grande quantidade de dados meticulosamente apresentados, como por se tratar de um estudo sociológico na sequência do método desenvolvido por Gilberto Freyre.
Nacos
Vexilo – bandeira, estandarte – signo de movimento.
Ad hominem – ad pellem.
Que interessante, não conhecia este livro, é uma fonte muito importante para os estudos sobre a imigração.
ResponderExcluirMuito interessante o livro. Peguei do Wilson Martins que estudou a imigração no Paraná.
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