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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Fragmentos 14

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Esta página contém o resumo de um único livro

Toby Green — Inquisição, o Reinado do Medo

Singular a apresentação do tema com a descrição da personalidade de Mañozca que era o inquisidor do México, Peru e Quito. O fatídico se apropriava da mercadoria dos comerciantes e ameaçava-os com a prisão caso protestassem nos foros civis, e chegou a perfurar um escravo com sua espada para testar se estava bem afiada.

Índice:
Capítulo Um — O FIM DA TOLERÂNCIA
Capítulo Dois — O FOGO SE ESPALHA
Capítulo Três — JUSTIÇA TORTURADA
Capítulo Quatro — FUGA
Capítulo Cinco — O INIMIGO INTERNO
Capítulo Seis — O TERROR ENVOLVE O MUNDO
Capítulo Sete — A AMEAÇA MUÇULMANA
Capítulo Oito — PUREZA A QUALQUER CUSTO
Capítulo Nove — TODOS OS ASPECTOS DA VIDA
Capítulo Dez — A ADMINISTRAÇÃO DO MEDO
Capítulo Onze — A AMEAÇA DO CONHECIMENTO
Capítulo Doze — A SOCIEDADE NEURÓTICA
Capítulo Treze — PARANOIA
Capítulo Catorze — O FRACASSO DO MEDO E O MEDO DO FRACASSO

Quem canta seus males espanta/
Quem chora seus males aumenta/
Eu canto para remediar/
O sofrimento que me atormenta.

Bethencourt - melhor obra comparativa sobre os tribunais espanhol, português e romano. Percebe-se em Toby Green um esforço para transcender o entendimento dos fatos para além do fanatismo, da inveja humana e do ressentimento. Todo o texto abaixo pertence ao livro e foi reproduzido com a intenção de resumo. Notas minhas entre colchetes.


“Uma das testemunhas da incineração foi um frade, que começou a incitar o povo contra os convertidos. Em seguida, dois frades dominicanos saíram do monastério com um crucifixo nas mãos, gritando: “Heresia! Heresia!” Em uma clara versão popular dos autos de fé espanhóis, nos quais os dominicanos eram a ordem religiosa encarregada da Inquisição, uma multidão de quinhentas pessoas correu pelas ruas estreitas da cidade, agarrando todos os convertidos que encontrava, matando-os na mesma hora ou arrastando-os semiconscientes até as fogueiras, nas quais foram queimados vivos. O prefeito de Lisboa tentou defender os convertidos com sessenta homens armados, mas a multidão voltou-se contra ele, e não havia mais nada que pudesse ser feito. As fogueiras foram atiçadas por criados e escravos africanos. Elas ardiam às margens do rio e no Rossio, e nesse dia quinhentas pessoas foram queimadas.

As coisas pioraram. No dia seguinte, uma multidão de mil pessoas arrombou casas nas quais se sabia que havia convertidos escondidos. Tiraram à força homens, mulheres e crianças das igrejas e arrancaram-lhes imagens de Cristo e da Virgem Maria das mãos. As vítimas foram arrastadas nas ruas pelas pernas, atiradas contra os muros e jogadas nas fogueiras.

Na terça-feira a fúria havia diminuído, apesar de pelo menos 1.900 pessoas terem sido mortas na carnificina. O rei Manuel, que estava fora da cidade tentando evitar a peste, ordenou que os frades que haviam incitado a multidão com seus crucifixos fossem queimados na fogueira.  É provável que seu primeiro sentimento tenha sido raiva do povo que fizera justiça com as próprias mãos; no entanto, em grande parte a culpa do que tinha acontecido era sua, por ter cobiçado o poder casando-se com Isabel e por ter forçado as conversões.”

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“Tornou-se impossível separar completamente perseguidores das heresias dos próprios hereges; em algum nível profundo e inconsciente, eles pareciam necessitar uns dos outros.”

“A partir de 1536, no vizinho Portugal e nas colônias portuguesas na África, na Ásia e no Brasil, a Inquisição foi preeminente durante 250 anos. Isso quer dizer que foi uma força significativa em quatro continentes por mais de três séculos; estamos tratando de um período que se estende da unificação da Espanha sob Fernando e Isabel, no século XV, às guerras napoleônicas.
Essa enorme abrangência de tempo e espaço é condizente com o tamanho da classe criminosa observada. Foram instaurados processos contra feiticeiras no México, bígamos no Brasil, franco-maçons sediciosos, hindus, judeus, muçulmanos e protestantes, padres fornicadores e marinheiros sodomitas. No México, a Inquisição baniu o peiote — cacto alucinógeno sobre o qual Carlos Castañeda escreveu entre 1960 e 1970 — em 1620, porque ele “fora levado para aquelas províncias com o propósito de descobrir roubos, adivinhar acontecimentos e fazer previsões”.  As práticas culturais indígenas, a feitiçaria e a superstição não eram toleradas, ainda que muitos adivinhos e feiticeiros fossem evidentemente medíocres. A Inquisição realmente precisava se incomodar com feiticeiras como Isabel Jiménez, denunciada na Guatemala em 1609 por “prever a sorte lendo mãos [...] contanto que fosse às sextas-feiras”.

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“Manter o controle sobre desrespeitos como esses era uma maneira de sustentar a autoridade sobre aqueles impérios gigantescos. O poder estava no cerne da Inquisição, assim como, inevitavelmente, a religião permeava o campo da política.”

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“Sempre havia outras pessoas a quem perseguir. Mas elas podiam permanecer esquecidas por décadas, e suas heresias podiam continuar imperceptíveis até que algum acontecimento político levava ao seu descobrimento...... Porque a Inquisição não foi nada menos do que a primeira semente dos governos totalitários e da institucionalização do abuso racial e sexual.”

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Após a fúria inicial, a sede de sangue da Inquisição espanhola diminuiu, de modo que entre 1540 e 1700 foram julgadas cerca de 84 mil pessoas.

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Enquanto isso, em Portugal, cuja população era menor do que a espanhola, houve aproximadamente 45 mil processos entre 1536 e 1767 (incluídos 13.667 processos em Goa), por meio dos quais pelo menos 1.543 pessoas foram relaxadas. Não há dúvida de que esses totais são menores do que se crê há muito tempo. Se eliminarmos da equação os primeiros cinquenta anos da história da Inquisição em Portugal e na Espanha, o número de mortes se torna muito menor do que o de pessoas executadas durante a caça às bruxas no norte da Europa entre 1560 e 1680, estimado em, no mínimo, 40 mil. E, enquanto as sangrentas caças às bruxas tomaram conta de Áustria, Inglaterra, França, Alemanha, Holanda, Escócia, Suécia, Suíça e Transilvânia, a Inquisição em Portugal e na Espanha, embora tenha perseguido “bruxas”, executou muito poucas delas. Essas comparações levaram os historiadores — antigos e contemporâneos — a afirmar que a Espanha foi vítima de uma “lenda negra”, que retrata a violência da Inquisição e da conquista espanhola da América da pior forma possível, ao mesmo tempo que trata excessos similares ou piores em outras partes com condescendência.”

A “lenda negra” teve origem em meados do século XVI, depois que o papa libertou Alfonso Díaz, um advogado da corte papal; Díaz havia instigado o assassinato do próprio irmão por ele ter se convertido ao protestantismo enquanto estudava em Paris. O caso ficou amplamente conhecido, e diversos panfletos anticatólicos foram distribuídos em todo o norte da Europa. O número desses livretos aumentou com a publicação, na década de 1560, do livro de um fugitivo espanhol anônimo que escreveu sob o pseudônimo de Reinaldo González Montes. Montes provavelmente foi um monge acusado de protestantismo em Sevilha naquela década e fez um relato vívido e negativo da Inquisição depois de fugir para o norte da Europa. Essas publicações eram aproveitadas por países que temiam e invejavam o poderio espanhol, e rapidamente se tornaram instrumento em campanhas de propaganda que, sem dúvida, demonizaram injustamente as atividades da Inquisição em comparação com as perseguições que então ocorriam na Europa e em outros lugares.”

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“No entanto, há uma diferença entre contextualizar a Inquisição e desculpar os seus excessos. A Inquisição não perseguiu bruxas abertamente, mas não fez isso porque, como veremos, a singular mescla cultural em Portugal e na Espanha oferecia outros bodes expiatórios que dispensavam a invenção de bruxas. O mais grave é que, ao tentar corrigir a lenda negra, algumas pessoas ainda cometem graves erros factuais, como afirmar que a tortura era “muito raramente aplicada, quase exclusivamente nas duas primeiras décadas” (ver Capítulo Três).

Na Espanha, muitos desses historiadores revisionistas foram originalmente treinados durante o regime de Franco, fortemente respaldado pela Igreja católica. A atmosfera intelectual daquela época transparece na visão de Antonio Sierra Corella, autor de um livro de 1947 sobre a censura na Inquisição, que declarou: “Só um autor desprezível, contaminado por um anacrônico liberalismo, poderia argumentar com convicção contra a censura legal da ciência e da literatura, como se essa função social vital fosse uma interferência injusta e incômoda do poder.”

Na era franquista, as pessoas escreviam de maneira indireta sobre os acontecimentos presentes, enfocando algum aspecto do passado. Na verdade, a intensificação das visões revisionistas da Inquisição durante o franquismo refletia uma tentativa de higienizar as opiniões sobre o regime do general e seu impacto na Espanha. Contudo, o legado dessas perspectivas não deve ser tratado hoje com o respeito de que ainda goza em alguns círculos — a menos que queiramos descobrir que a lenda negra pode ser substituída por uma branca, e que os perigos de criar um aparato de Estado persecutório não sejam plenamente compreendidos.”

“Portanto, uma das melhores razões para se concentrar na Inquisição em Portugal e na Espanha é o fato de que se trata de uma história de poder e abuso de poder, e não uma desculpa para reprisar a propaganda anticatólica do passado. Durante o estabelecimento da Inquisição em Portugal, o papado foi sempre mais benevolente do que o governo português de João III: o rei proibiu os judeus convertidos de deixarem Portugal em 1532, enquanto o papa Clemente VII lhes concedeu indulto em 1533;”

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O papel do papado na Inquisição de Portugal e da Espanha foi, de fato, quase sempre moderado.

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A perseguição nunca foi monopólio de espanhóis, portugueses ou católicos. Era algo de que todos os povos eram capazes.

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Em 1578, ao reeditar o Directorium Inquisitorium, texto sobre os procedimentos inquisitoriais de Nicolas de Eymeric, inquisidor de Aragão no século XIV, Francisco Peña escreveu: “Devemos recordar que o objetivo essencial do julgamento e da sentença de morte não é salvar a alma do acusado, mas fazer o bem público e aterrorizar as gentes.”

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O medo transformou-se em mito com o emprego da tortura e da fogueira. Tinha início no momento em que os inquisidores chegavam a um povoado e liam o édito de fé, convocando os que tivessem cometido um pecado de fé, ou conhecessem alguém que o tivesse feito, a se apresentar a eles num período de trinta dias, para se confessar ou fazer uma denúncia. O medo se espalhava no seio da sociedade devido ao poder da Inquisição de provocar a ruína social e econômica, confiscar os bens das vítimas e condená-las à pobreza, expulsá-las de sua cidade natal e decretar que seus descendentes não poderiam ocupar nenhum cargo público nem usar joias, sedas e outros adornos de prestígio. O medo provinha, acima de tudo, do princípio do sigilo, o que significava que o acusado desconhecia o nome de seus acusadores.

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No entanto, foi o próprio aparato do medo que acabou destruindo o todo. Como demonstram as histórias de Lithgow em Málaga e de Maestre em Hellín, a resistência nunca estava longe. As tentativas dos inquisidores de impor sua vontade pela força apenas inspiravam rebeliões, que, por sua vez, criavam mais alvos, formando um círculo vicioso. Era impossível livrar a sociedade de seus inimigos, porque ela própria — e a Inquisição — os estava criando.

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Dizia-se que Luna era mais rico do que todos os nobres e bispos espanhóis juntos. Se houvesse um povoado ou propriedade próximos às suas próprias terras, tinham de ser seus, e, por isso, “suas posses cresciam como uma praga”. Essa era a situação no reino quando Luna chegou a Toledo, no começo de 1449. O poder sob João II ficava cada vez mais centralizado; ocorriam caças às bruxas e a inimigos imaginários, e uns colaboravam para roubar os outros. Era como uma prévia da Inquisição; a fraqueza do rei permitira a criação de perigosos precedentes.”

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“Ah, Espanha, gloriosa, valente e aventureira! Ao passear pelas ruínas caiadas das cidades imperiais, do México ao Peru, do Equador ao Uruguai, pode-se conjeturar como esse árido apêndice do continente europeu alcançou tanto em tão pouco tempo. Mas a questão acabou sendo muito simples: a grande potência que a Espanha viria a ser forjou seu sentido de missão em parte através da invenção de um inimigo; a perseguição aos convertidos e a reconquista de Granada deram à Espanha um sentido renovado de união nacional e de força.”

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“Enquanto os inquisidores chegavam, algumas pessoas fugiam. Muitos convertidos cruzaram a fronteira de Portugal; outros foram para a Itália e o Marrocos, e outros até para a Índia. Um dos refugiados era Yahuda Ben Verga, que fugiu para Portugal assim que a Inquisição foi criada. Antes de partir, deixou três pombas na janela de sua casa em Sevilha, todas com as asas quebradas. Junto à primeira, depenada e com a garganta cortada, havia um bilhete que dizia: “Estes são os que esperaram demais para partir.” Na segunda, depenada, porém viva, outro bilhete dizia: “Estes são os procrastinadores.” Na terceira, uma ave saudável com toda a plumagem, o bilhete dizia: “Estes são os que saíram primeiro.”

Se Fernando e Isabel não tivessem tentado estabilizar seus reinos, certamente teriam sido os primeiros a sofrer com as contínuas rebeliões. A novidade na Inquisição espanhola não foi a perseguição, e sim sua institucionalização. A crise fora provocada pela modernização da sociedade espanhola no século XV, e a Inquisição foi a primeira instituição persecutória da história. Foram o medo e a desconfiança das pessoas diante das exigências econômicas do novo sistema social que asseguraram que os convertidos estivessem entre as primeiras vítimas do mundo moderno. No entanto, eles não sofreram sozinhos; poucas semanas após o primeiro auto de fé, a praga se espalhou por Sevilha, e entre as primeiras vítimas estava Alonso de Ojeda, o prior que tanto se empenhara em prol da Inquisição”.

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O posto da Inquisição estava localizado em uma área pública, e se alguém era visto entrando lá, todos começavam a imaginar quem seria denunciado.

Como ficaria provado depois, havia católicos devotos entre as principais vítimas da Inquisição. De fato, o que fica claro nos registros dos processos da cidade é que no cerne de muitos casos estavam a inveja e a discórdia familiar — sentimentos que significavam que algumas denúncias eram de má-fé.

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Após ouvir diversas informações sobre ultrajes e reclamações dos convertidos sobre injustiças, o papa foi além. Em 18 de abril de 1482, emitiu uma nova bula cujo propósito era cortar as asas da nova instituição. Nela, Sixto IV descreve como os inquisidores haviam aceitado o testemunho de inimigos e de escravos dos acusados, como haviam agido movidos pela cobiça de ganhos materiais, e não pelo zelo, e como isso resultara em um procedimento ilegítimo, um exemplo nocivo e um escândalo vergonhoso à vista de todos. Em vez disso, ele declarou, a nova Inquisição espanhola só poderia agir com a aprovação dos bispos; seria obrigada a revelar os nomes dos denunciantes e das testemunhas; deveria suspender os casos para ouvir as apelações; e teria que aceitar que qualquer confissão levasse à absolvição do acusado.

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Portanto, não havia necessidade de uma instituição persecutória nem de um bode expiatório, ainda que, como em Castela, um grande número de convertidos vivesse nesses lugares. Isso revela, sobretudo, que as bases religiosas da instituição da Inquisição eram uma fraude e uma invenção propagandística.

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Após a morte de Manuel I, em 1521, o novo rei, João III, viajava para todos os lugares do país com um enorme séquito que destruía tudo por onde quer que passasse. Entre os preguiçosos disfarçados de cortesãos, abundavam o jogo e os roubos. Esses fidalgos levavam consigo um grande número de criados, que requeriam alimentação e provisões. Comida, cavalos e carroças eram roubados. A destruição de pomares e bosques era uma forma de entretenimento. As comitivas eram tão grandes que havia escassez crônica de mão de obra no campo. Muitas terras estavam ociosas, e arrasar outras tantas apenas aumentou o problema.

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Esses excessos eram típicos de uma sociedade que acabava de passar por uma concentração de poder sem precedentes. Para convencer as pessoas de que a ostentação da fortuna não era apenas ilusão, era necessário exibir o poder diante de todos. Como não podia deixar de ser, isso significou sofrimento para os que não eram tão afortunados quanto a nova oligarquia.

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Depois que Vasco da Gama descobriu a rota para as Índias, na épica viagem de 1497-1499, Manuel mandou buscar cinco elefantes, que iam com ele a toda parte em Lisboa, guiados por um rinoceronte.
Essa injeção de exotismo era um reflexo do país que Manuel herdara em 1495. Na época, Lisboa era uma das cidades mais cosmopolitas da Europa. Do tamanho de Londres ou de Colônia, vivia repleta de estrangeiros, atraídos pelas novas rotas comerciais. Homens e mulheres compartilhavam livremente as camas uns dos outros e jogavam cartas até o amanhecer. Os cavaleiros montavam usando estribos muito curtos, ao estilo mouro, e algumas selas eram feitas de prata ou ouro. Além do movimentado porto e das ruas cheias de pessoas que de lá partiam, até o ano de 1500 havia bosques de oliveiras pela cidade. O ponto central era o Rossio, uma ampla praça irregular com colinas em dois dos lados e que descia em direção às margens do rio Tejo; no Rossio seriam instalados os gabinetes da Inquisição.

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Aprendemos por experiência própria, com as amizades e as ligações profissionais, que, em grande medida, os grupos adquirem forma não só quando se decide quem deve ser incluído, mas também quando se decide quem deve ser excluído.

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Manuel estava preocupado; segundo algumas estimativas, os judeus somavam 10% da população. Como não podia se dar ao luxo de perdê-los, o rei decidiu antes de mais nada impedi-los de partir.

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Muitos dos traços que se tornaram comuns nos relatos da Inquisição são evidentes no caso de Álvaro de Leão. Vemos os laços familiares se desmancharem durante o interrogatório, quando um homem era capaz de denunciar a esposa para parecer menos culpado. As amizades feitas nos cárceres muitas vezes eram motivadas por razões repulsivas, e os prisioneiros delatavam uns aos outros por crimes cujo fundamento teológico certamente não compreendiam. Iniciavam-se conversas com a intenção de expor os demais e com a esperança de poder denunciá-los sem a necessidade de exagerar ou mentir. Essas circunstâncias revelam o instinto de sobrevivência em sua forma mais básica. As pessoas submetidas a esse tipo de tratamento reagiam de diversas maneiras. Obviamente, algumas se mantinham em silêncio até o final, mas muitas outras se empenhavam em conseguir a liberdade à custa dos demais. Algo desse sórdido processo tinha que contaminar uma sociedade que transformara os convertidos em vítimas.

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O clima em Portugal era de preparação para a matança. Assim que a notícia da primeira bula chegou a Lamego, em 1531, as pessoas se reuniram para discutir quais propriedades dos convertidos queriam para si. Alguns acusavam o rei de ser um covarde e diziam que ele devia simplesmente passar os convertidos pela espada e não se preocupar com longos julgamentos. Outros se prontificavam a testemunhar junto com todos os seus parentes, e os mais moderados opinavam que João III pretendia apenas queimar os convertidos dentro de três anos.

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EM 1506, CÓRDOBA estava nas garras do inquisidor Diego Rodríguez Lucero, conhecido como el tenebrero — o portador da escuridão. Seu modo de agir foi resumido em uma queixa contra ele apresentada à Suprema:
Lucero queria ter relações carnais com a esposa de Julian Trigueros, e ele a forçou, porque eles resistiram; o marido, que era um cristão-velho, foi exigir justiça ao [rei Fernando] e [Fernando] confirmou que seu caso era justo e enviou [Trigueros] ao arcebispo de Sevilha [Diego Deza, o inquisidor-geral], que o enviou de volta a Lucero. [Trigueros] chegou a Córdoba em uma quarta-feira para dar prosseguimento ao seu caso e foi queimado no sábado da semana seguinte. Lucero manteve a sua esposa como amante. [Em outra ocasião], como a filha de Diego Celemín era excepcionalmente formosa, seus pais e seu marido não queriam entregá-la a ele, então Lucero queimou os três e agora tem um filho com ela, e a manteve durante muito tempo no alcácer como sua amante”.
As famílias nobres da cidade se queixavam. Escreveram à corte que Lucero e seus subordinados haviam inventado mentiras terríveis a respeito de muitos cristãos distintos da cidade e dos arredores. Inocentes haviam sido acusados de heresia; prisioneiros haviam sido forçados a testemunhar contra eles. Não era só a nobreza que sofria; denúncias foram feitas também contra monges, freiras e pessoas comuns. Além disso, todas aquelas provas falsas e enganosas foram obtidas sob tortura.

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Evidentemente, o reverendo inquisidor Lucero estava mais para águia do que para pomba. Seu lema era: “Dê-me um judeu, e eu o devolverei queimado.”

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Exageros grotescos como esses revelavam o grau do abuso de poder da Inquisição quando aprisionava e interrogava. Os rumores em Córdoba cresciam. O bispo de Catânia, na Sicília, enviou um oficial para investigar as queixas, e algumas pessoas confessaram que haviam apresentado falsos testemunhos. Elas disseram que Lucero e seus funcionários haviam feito perguntas capciosas e que, ao se recusarem a testemunhar, tinham sido torturadas e submetidas a ameaças terríveis. Esses prisioneiros, muitos deles apenas crianças, foram forçados a decorar as rezas dos judeus.

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Em uma religião que retratava a iconografia da tortura diariamente nas imagens da cruz, o fascínio pela dor podia ser exorcizado ao trazer a imagem para a realidade.

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Os católicos devotos das Canárias conheciam perfeitamente o mal que os luteranos haviam causado à sua fé. Quando lhe foi perguntado, no julgamento dos ingleses, se sabia o que era um luterano, uma testemunha respondeu: “Ser luterano quer dizer não ir à missa e roubar”; ou, como disse um inquisidor a Hugh Wingfield, de Rotherham, ao interrogá-lo em outubro de 1592: “A Igreja da Inglaterra não é uma igreja, e sim a sinagoga do diabo.” E, era verdade, os católicos das ilhas haviam sido alvo de sérias provocações por parte de um dos prisioneiros, John Smith, de Bristol, que afirmou que seria melhor “se os frades se casassem, em vez de ir com uma mulher hoje e com outra amanhã”.

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Confrontadas com a dor física inimaginável que os inquisidores podiam infligir, muitas pessoas inventavam provas. Diante da extraordinária coincidência de que aqueles submetidos à tortura subitamente começassem a confessar e a denunciar outras pessoas, os inquisidores não chegaram à conclusão de que frequentemente o terror levava suas vítimas a mentir e apresentar provas falsas e enganosas. Pelo contrário, eram vistas como pessoas que até aquele momento haviam ocultado a verdade — um conceito um tanto abrangente, que tinha uma estranha relação com as predileções do interrogador.

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Assim, o dogma da tortura era simples e irrefutável: os inquisidores sabiam qual era a verdade e prosseguiam enquanto ela não fosse revelada. Então, mesmo quando eles eram repetidamente confrontados com provas de que a tortura tivera um efeito exatamente contrário aos seus objetivos, produzindo mentiras e não a verdade, ignoravam isso. Tarde demais, em 1774, o último Regimento do Santo Ofício em Portugal reconheceu que “o tormento é o modo mais cruel de investigar crimes, completamente alheio aos sentimentos piedosos e misericordiosos da Santa Igreja, a maneira mais segura de punir um inocente fraco e salvar um malfeitor teimoso, e de extrair mentiras de ambos”.

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Até meninas muito jovens eram torturadas, e Abrunhosa afirmou que ficara encarcerado ao lado da câmara de torturas e ouvira “a crueldade com que se praticava o tormento, as confissões e os gritos dos atormentados e o escárnio escandaloso com que os padres e inquisidores tratavam as suas vítimas”.

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COMO OS ENVOLVIDOS COM A INQUISIÇÃO viriam a descobrir, inventar inimigos era a parte mais fácil; impossível era resolver os problemas que surgiam depois. Pessoas que haviam sido católicas fiéis se tornaram inimigas da Igreja depois de passarem pelas prisões inquisitoriais, como Isabel Lopes, detenta da Inquisição de Évora, deixou claro em 1594: “Meu marido e eu somos inocentes”, ela disse ao padre Manoel Luís. “Nunca fomos judeus, mas confessamos ser sob tormentos e a ameaça de morte [...] algumas pessoas vieram para estas celas como cristãs e ao sair delas tornaram-se judias e tudo por causa das mentiras e das torturas a que os inquisidores as submeteram.”

A Inquisição estava conseguindo exatamente o oposto do que pretendia: em vez de reconciliar infiéis com a Igreja, transformava católicos leais em infiéis. Se algo podia converter cidadãos leais de um Estado em rebeldes que tentavam desestabilizar o governo, era o processo jurídico da instituição persecutória. Porque se tratava de um sistema de justiça no qual a verdade vinha em terceiro lugar, após o preconceito e o poder.

O processo jurídico tinha sido estabelecido originalmente pelo inquisidor aragonês Nicolas de Eymeric, no século XIV. Em seu manual para os inquisidores, Eymeric observa que os juízes da Inquisição eram privilegiados, “pois não estão obrigados a seguir a ordem judicial e por isso a omissão de uma formalidade legal não torna o procedimento ilegítimo”. Em outras palavras, o procedimento dependia dos caprichos do inquisidor [ao estilo comunista].

O manual prosseguia no mesmo tom. As provas fornecidas pelos condenados por heresia só eram aceitas se delatassem alguém, nunca se testemunhassem a seu favor, pois “quando um herege declara a favor do acusado, pode-se supor que ele o faz por ódio à Igreja [...] mas essa suposição desaparece quando o mesmo herege depõe contra o acusado”. Parentes, criados, filhos e cônjuges só eram aceitos para denunciar o acusado, não para falar a seu favor. A atitude geral com relação ao prisioneiro se resumia na visão de Eymeric de que a morte na câmara de tortura era uma forma de feitiçaria desprezível destinada a frustrar o inquisidor: “Nem o tormento é uma maneira segura de obter a verdade [...] há os que, por meio de feitiçaria, se tornam quase insensíveis e preferem morrer a confessar.”

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Esse espantoso manual foi ligeiramente modificado pelas Instrucciones decretadas por Tomás de Torquemada em 1484 como um código de conduta para a Inquisição na Espanha, mas permaneceu sendo a base para a formulação de suas regras. Para começar, os prisioneiros da Inquisição não eram informados sobre as denúncias contra eles, nem sobre quem os delatava. Em vez disso, em sua primeira audiência eram indagados sobre seus pais e avós e, em seguida, se tinham inimigos pessoais que poderiam tê-los denunciado por maldade. Essa geralmente era uma parte angustiante do julgamento, pois o acusado tentava desesperadamente lançar dúvidas sobre as evidências de quem quer que o tivesse delatado, recitando os nomes de pessoas que apontava como “inimigos mortais”. Muitas delas provavelmente não eram inimigas, mas membros da família, amigos ou conhecidos que o prisioneiro suspeitava estarem na mesma situação que ele.

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Os documentos dos julgamentos inquisitoriais deixam claro que, muito mais do que a incineração na fogueira (que se tornou mais um evento pontual do que uma característica regular dos tribunais), era a injustiça implacável do sistema o que causava medo entre os prisioneiros. Os detidos não só eram arruinados econômica, física e psicologicamente, como também forçados a pagar pela própria humilhação.

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Essa metodologia era excelente para garantir condenações, mas arruinou a sociedade que supostamente fora criada para defender.

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No entanto, as perseguições costumam brotar de uma aglomeração de diferentes correntes de medo. [Nota minha: Não deixa de ser interessante esta abordagem como inovação na historiografia.]

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Em 1519, os inquisidores receberam informações sobre grupos de pessoas que haviam criado a filosofia dos alumbrados. A Inquisição associou a seita a diversas doutrinas infames: seus membros foram acusados de afirmar que a oração devia ser mental (interior) e não verbal (ritual); de acreditar que o inferno não existia; de desprezar o culto aos santos e as bulas papais; de não demonstrar respeito pelo sacramento nem pelas imagens dos santos e da Virgem; e de afirmar que as cerimônias e os jejuns da Igreja eram obrigações (ataduras) pesadas.

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Como normalmente acontecia, o interesse da Inquisição se originou da desconfiança. Em 13 de maio de 1519, uma beata chamada Mari Núñez, junto com sua criada e o padre Hernando Díaz, denunciou Alcaraz, Cazalla e Cruz. Mari Núñez tinha medo. Apesar de ser beata, não era muito honrada. Seu apelido era “a mulher do padre”. Ela também fora amante de Bernardo Suárez de Figueroa, um nobre poderoso, mas o desejo vencera o discernimento e a inteligência, e ela o acusara de ser impotente.

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Nesse ponto pode-se sentir uma espécie de compaixão pela Espanha. Num espaço de cinquenta anos o país saiu de um estado de guerra civil permanente para a liderança da guerra contra os muçulmanos, após a queda de Constantinopla em 1453, e para o descobrimento e a colonização de um continente absolutamente novo. De acordo com as ideias da época, um certo sentimento de destino religioso era inevitável.

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DEVEMOS AGORA RETORNAR à carta escrita pelo inquisidor-geral Valdés em 1558 e às numerosas ameaças à fé que ele comenta. Entre elas estão os muçulmanos convertidos, os mouros, que, como acabamos de ver, foram os alvos preferidos do inquisidor Salazar em seus primeiros anos em Múrcia. O problema mouro esteve no foco das atenções da Espanha no século XVI. Aqueles mouros descendiam dos muçulmanos que haviam sido obrigados a se converter ao cristianismo em Granada em 1502, e em Aragão e Valência nos anos 1520. Os problemas que enfrentaram eram distintos: em Granada, os mouros descendiam da população do último reino mouro da Espanha, mas em Aragão e Valência havia séculos que eles viviam sob o domínio cristão, o que significava que sua assimilação devia ter sido muito mais fácil.

No entanto, a maneira como os mouros aragoneses e valencianos foram convertidos foi, em si, um mau começo. Uma guerra civil assolou a região entre 1520 e 1522. Ela teve início com uma revolta popular contra a nobreza liderada por irmandades conhecidas como germanías. Como os muçulmanos de Aragão eram principalmente agricultores que trabalhavam para os grandes senhores, foram um alvo fácil para os rebeldes. Os mouros constituíram grande parte do exército do duque de Segorbe nas batalhas contra as germanías em Oropesa e Almenara em julho de 1521, e um terço da infantaria do vice-rei Mendoza em Gandía em 25 de julho; ao tomá-los como alvo, as germanías podiam não só derrotar seus inimigos como também aplacar suas consciências, alegando uma motivação pseudorreligiosa.

Assim, quando a revolta varreu o leste da Espanha em 1521, os muçulmanos foram levados às pias batismais e assassinados. Aproximadamente 40 mil pessoas morreram nas batalhas, sem contar as que morreram devido à fome e às epidemias.
Os guerreiros das germanías procuraram mouros por toda parte e mataram os que rejeitavam o batismo.

As mesquitas foram consagradas como igrejas.

Em Gandía, eram usados galhos mergulhados em nascentes e vassouras nos batismos. Em Polop, os mouros se refugiaram no castelo durante vários dias e só saíram quando as forças da germanía prometeram poupar suas vidas se eles concordassem em ser batizados — “e assim que os batismos terminaram eles cortaram as gargantas de seiscentos deles, quebrando a promessa e dizendo que aquela era uma maneira de enviar almas ao céu e moedas aos seus próprios bolsos”.

A revolta finalmente foi esmagada no final de 1522. Imediatamente, o inquisidor Churruca [que nome!], de Valência, exigiu poderes sobre os ex-muçulmanos e também as listas dos que haviam se convertido. O problema era que as conversões forçadas tinham sido tão aleatórias e desorganizadas que ninguém sabia quem tinha sido batizado e quem não tinha. A única solução encontrada foi terminar o trabalho, e, em fevereiro de 1524, a Suprema conferiu a Churruca plenos poderes para investigar os mouros apóstatas. Foi convocada uma reunião extraordinária da Suprema em Madri na primavera seguinte e, em 11 de abril, o inquisidor-geral Manrique decretou que dali em diante todos os mouros seriam considerados cristãos.

Como decidiu a congregação, “uma vez que não houve absolutamente força nem violência na conversão e no batismo, os que foram batizados são obrigados a manter a fé [católica]”; eles tinham decidido claramente que, se as germanías não tivessem forçado as conversões, a congregação as garantiria a partir daquele momento.

A ordem para que os mouros se convertessem ou partissem, veio acompanhada de uma série de precauções que, na realidade, os obrigavam a permanecer no país como “cristãos”. Uma série de cartas de Aragão deixou claro que eles eram essenciais à prosperidade do reino e, em 22 de dezembro de 1525, Carlos V emitiu um decreto que simplesmente os impedia de deixar Aragão. Assim, como o próprio rei escreveu ao papa em 14 de dezembro de 1525, “a conversão não foi de nenhuma maneira voluntária para muitos deles e desde então eles não têm sido instruídos nem ensinados sobre nossa fé católica”.

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Em 1555, o conde de Tendilla tentou assegurar uma declaração do papado absolvendo os mouros que confessassem seus crimes e devolvendo-lhes as propriedades confiscadas, mas foi impedido por Valdés, que sugeriu que Tendilla devia ser preso por ousar arquitetar semelhante plano. Ao longo da década de 1550, os turcos haviam feito conquistas no norte da África à custa dos espanhóis e, cada vez mais, os mouros eram vistos como um grupo subversivo islâmico. A cena estava montada para que eles fossem perseguidos durante o século XVI; porém, antes disso, o inquisidor-geral Valdés teria que lidar com o inimigo mais perigoso de todos, que ele menciona em sua carta e que atacara certeiramente o coração da corte espanhola em Valladolid.

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CARLOS V REDIGIU seu testamento em Bruxelas em 6 de junho de 1554. Seu reinado sobre o Sacro Império Romano Germânico se afundara em guerras na Alemanha e nos Países Baixos contra rebeldes protestantes, e ele percebeu que não conseguiria controlar seus vastos domínios por muito mais tempo. Seu filho Felipe já reinava na Espanha, e logo se converteria em Felipe II. Diversas questões preocupavam Carlos V no fim da vida, e a mais importante delas era a necessidade de eliminar a ameaça protestante. Por isso, ele escreveu em seu testamento: “Devido ao grande amor paternal que tenho por meu filho querido e amado, o sereno príncipe Felipe, e porque desejo que suas virtudes aumentem e que sua alma seja salva [...] ordeno e lhe peço afetuosamente que, como príncipe muito católico e temente aos mandamentos divinos, sempre zele pelas questões pertinentes à sua honra e ao seu serviço e que obedeça aos mandamentos da Santa Madre Igreja. Em particular, peço-lhe que favoreça e faça com que outros favoreçam o Santo Ofício da Inquisição.” [nota minha: Uma boa citação para os que negam a existência da Inquisição]

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Conta-se que no dia seguinte, enquanto era arrastado pelas ruas de Valladolid, ele viu Felipe II e lhe perguntou como podia deixar que ele fosse queimado, ao que o rei respondeu: “Eu traria a lenha para queimar meu próprio filho se ele fosse tão mau quanto você.”

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Carranza viveu em condições terríveis nos anos em que esteve preso. Ocupava uma cela tão afastada do mundo externo que não soube quando um incêndio que durou um dia e meio devastou mais de quatrocentas casas em Valladolid em 21 de setembro de 1561; só tomou conhecimento do ocorrido anos mais tarde, em Roma.
Sua cela não tinha ventilação e ele e seus criados eram obrigados a fazer as necessidades ali mesmo; portanto, todos ficaram doentes. O cubículo era tão escuro que às vezes Carranza tinha que acender velas às nove da manhã. Além disso, o carcereiro era o inquisidor Diego González, que o detivera em Torrelaguna. González o humilhava levando-lhe comida em pratos quebrados e frutas em cima de capas de livros, e forçando o arcebispo a usar seus lençóis como toalha de mesa.

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Após sete anos no calabouço de Valladolid, Carranza foi transferido para Roma por insistência do novo papa, Pio V. Lá, uma enorme quantidade de documentos do processo foi traduzida para o italiano a fim de que o julgamento pudesse prosseguir, o que só ocorreu em 1570. Ainda assim, o calvário de Carranza não terminou. Pio V faleceu e seu sucessor, Gregório XIII, foi pressionado intensamente por Felipe II a declarar Carranza culpado. Em 14 de abril de 1576, quase 17 anos depois de ter sido preso, Carranza foi condenado a abjurar a heresia e as 16 propostas luteranas das quais era considerado suspeito. Quando sua sentença foi lida no Vaticano, o arcebispo chorou copiosamente. Faleceu 18 dias depois, incapaz de urinar. A repressão fizera um círculo completo... O que esse caso revela não é tanto uma correção de erros, e sim a capacidade do poder de adotar propósitos absolutamente próprios. Valdés empregou hipocrisia, mentiras e torturas para arruinar alguém que, pelos padrões da época e do país, era um homem santo. Se o primaz de toda a Espanha podia ser condenado por heresia, ninguém poderia ser considerado acima de qualquer suspeita. O medo podia fazer sua colheita amarga entre todas as classes da Espanha.

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Europa, e enquanto os alvos eram os “outros”, os criptojudeus e os mouros facilmente identificáveis, a tática funcionou muito bem e a Espanha continuou prosperando. Mas a repressão ao inimigo protestante marcou uma virada histórica. Ao dar continuidade à política de seu pai de impor a Inquisição aos Países Baixos, onde não havia o “problema” judeu e muçulmano, Felipe II precipitou a revolta. As Províncias Holandesas Unidas se separaram do império e passaram a representar um dos maiores desafios ao poder espanhol no fim do século XVI e no começo do século XVII.

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Em León, no norte do México, Hernando Sánchez foi preso por declarar que “a simples fornicação não era pecado, contanto que se pagasse por ela”.

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Durante o auto de fé, um pequeno número de prisioneiros foi executado, e o restante foi açoitado antes de pagar suas penas nos cárceres ou nas galés. Phillips foi um dos condenados ao cárcere em um monastério e achou os monges muito gentis, pois “muitos espanhóis e os próprios frades abominavam completamente e não gostam daquela cruel Inquisição, e tentavam minorar nossas misérias e confortar-nos da melhor maneira, ainda que tivessem tanto medo daquela Inquisição demoníaca que não ousassem permitir que a mão direita soubesse o que a esquerda fazia”.

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Essa exportação da Inquisição para o México (e o Peru) foi uma tentativa de Felipe II de transformar a instituição espanhola em uma potência mundial. Era uma decisão que mudaria a vida de algumas pessoas no México, mas, para se criar a mesma reputação de que a instituição gozava na Espanha, era necessário um caso de proporções similares ao do arcebispo Carranza, que alimentasse a cultura do medo e deixasse claro que ninguém estava acima de suspeitas. A oportunidade não demorou a aparecer.

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Em 30 de junho de 1541, foi emitida uma ordem para que se destruíssem todos os templos hindus de Goa, e no ano seguinte as propriedades desses templos foram transferidas às ordens religiosas. No final da década, foi imposto um tributo especial às mesquitas das cidades de Bardes e Salsette. Entre 1558 e 1561, sob o vice-reinado de Constantino de Bragança, aproximadamente novecentos templos foram destruídos. Na época, cerca de um quinto da população de Goa havia se convertido ao cristianismo, pois os cristãos eram beneficiados com os melhores empregos. A exclusão desses novos outros se acelerava paralelamente à exclusão dos outros reconhecidos em casa: os convertidos. Assim, não demorou muito para que tivessem início os primeiros preparativos para a instalação da Inquisição.

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Assim como em Goa e no México, os inquisidores se puseram a trabalhar tão logo chegaram, no Peru os cárceres estavam tão cheios em 1575 — apenas seis anos após a criação do tribunal — que não havia onde manter os prisioneiros. Casos eram julgados em locais onde não havia tribunal, como em Buenos Aires. Lá, o antigo conquistador do Chile, Francisco de Aguirre, foi julgado entre 1571 e 1575 por blasfêmia e por falta de respeito à Igreja. Assim como na Espanha, qualquer um podia ser alvo nas colônias espanholas. Os primeiros casos no Peru concentravam-se em questões como a bigamia dos cristãos-velhos, e não na falta de fé de convertidos e mouros.

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No Novo Mundo se construía uma sociedade inteiramente diferente, e a Inquisição tentava assegurar que, em larga medida, ela se conformasse com seus valores. O problema não era só a mistura entre europeus e ameríndios, mas também o influxo de africanos que, em Lima, afirmavam poder descobrir criminosos às “segundas, quartas e sextas-feiras”, e em Cartagena admitiam abertamente fazer sexo com o demônio e se deliciar com seu sêmen cálido. Nessas condições, a Inquisição não era apenas um bastião contra a heresia, mas também um padrão dos valores corretos em uma atmosfera demoníaca.

A dificuldade do projeto da Inquisição era que o êxito dos poderes ibéricos na construção de seus impérios provinha, em parte, de suas origens e de sua mescla de crenças. Esse cosmopolitismo deu aos ibéricos uma vantagem considerável para lidar com povos da África, da América e da Ásia, e contribuiu para seus avanços tanto como conquistadores quanto como comerciantes. Ao destruir, por meio da Inquisição, esse cosmopolitismo e também aquilo que poderia ser visto como tolerância em seu próprio território, Espanha e Portugal limitaram a capacidade de seus representantes de agir além de suas fronteiras; por isso, com o tempo, a mentalidade inquisitorial e sua exportação para o império minariam a habilidade dos impérios de se envolver com povos e mentalidades distintos, o que contribuiu para o seu colapso.

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Apesar de não haver dúvidas de que o governador era um católico exemplar, como Isabel e Luis, o Jovem, deixaram claro em seus depoimentos, também era óbvio que ele estava ciente das heresias na família e não informara à Inquisição. Isso em si já constituía crime, pois todos eram obrigados a apresentar esse tipo de informação. Com essas evidências, os inquisidores conseguiriam pegar o seu homem. [tal como no comunismo].


Inquisição no Brasil

ENQUANTO A INQUISIÇÃO fazia incursões na América espanhola, as coisas funcionavam de outra forma na parte portuguesa do continente, o Brasil. Quem chegava ao país frequentemente dizia ter chegado a uma espécie de “paraíso na Terra”. Os raios de sol eram mais dourados, as estrelas no céu, mais alegres. Os europeus descreviam o lugar como “a melhor província para a vida humana em toda a América, fresca e incrivelmente fértil, deliciosa e agradável ao olho humano”. Tudo era coberto por “uma floresta muito alta e espessa, aguada por arroios nos muitos vales formosos”, e havia peixes suficientes nos rios e no mar para sustentar as pessoas sem necessidade de carne. Aquele Brasil era tão generoso que os índios tupinambás com frequência viviam até os 100 ou 120 anos. Geralmente nus e com o lábio inferior perfurado por um osso, muitas vezes portando maracás e com os corpos ricamente pintados, eles pareciam felizes. Ao contrário de Goa e dos tribunais espanhóis de Cartagena, Lima e México, nenhum tribunal inquisitorial foi estabelecido pelos portugueses no formoso Brasil.

A princípio isso parece estranho. Há casos bem-documentados de convertidos judaizantes no Brasil a partir de 1540 e, por volta de 1553, pessoas acusadas pela Inquisição haviam fugido para o Brasil. O país era um lugar perfeito para um tribunal inquisitorial. No entanto, a razão para essa ausência é fácil de entender e toca no cerne da função política da Inquisição.

Ao contrário das grandes civilizações americanas, como a asteca no México e a inca no Peru, o Brasil não contava com uma sociedade hierarquicamente organizada, com estruturas estabelecidas. Além disso, não havia grandes minas de ouro e prata, como no México e no Peru. Por isso, durante o século XVI, enquanto o império português obteve riquezas mediante o comércio de especiarias na Ásia, o Brasil teve menor importância. Foi só quando cresceram os lucros com as plantações de cana-de-açúcar que a Coroa portuguesa prestou atenção em sua colônia americana. Em julho de 1621, o inquisidor-geral de Portugal escreveu ao rei que, devido ao crescimento da população do Brasil, seria uma boa ideia contarem com fiscais da Inquisição. Mas então já era tarde demais; os poderes ibéricos estavam cada vez mais ameaçados pelos holandeses e pelos ingleses, e Portugal nunca recuperou sua força econômica o suficiente para criar um novo tribunal. Foi necessária a instauração de uma realpolitik, que reconheceu que deter convertidos abastados nas Américas provavelmente faria mais mal do que bem.

A ausência de um tribunal permanente no Brasil mostra até que ponto a Inquisição era guiada por imperativos opostos aos de seu suposto objetivo. A Inquisição frequentemente se endividava, e era um escoadouro dos recursos reais; por esse motivo, precisava concentrar suas atividades onde houvesse maiores lucros. Isso explica por que a Espanha foi tão a favor do estabelecimento de tribunais na América, mas ignorou as Filipinas, e também por que os portugueses se concentraram primeiro em Goa e ignoraram o Brasil. Assim, a Inquisição tornou-se refém dos mesmos valores materiais pelos quais professava tanto desdém; ainda que de maneira tortuosa, ela os promovia.

Contudo, quando as autoridades portuguesas perceberam a potencial importância da colônia brasileira, começaram a mudar de atitude. Em 1591, o visitador Heitor Furtado de Mendonça foi enviado de Lisboa para a Bahia, então capital da colônia, com amplos poderes de investigar a fé em seu território e em Pernambuco. Ao longo dos quatro anos seguintes, Mendonça lidou com 285 casos na Bahia e outros 271 em Pernambuco. Em Olinda, capital de Pernambuco, chegou a conduzir dois autos de fé com os poderes que lhe haviam sido outorgados em Portugal. No entanto, seus esforços quase arruinaram a Inquisição na metrópole, e ele foi ordenado a encurtar a viagem e a abandonar a ideia de visitar os postos avançados na África que estavam sob sua jurisdição quando saiu de Lisboa, em 1591; mais uma vez as preocupações financeiras se sobrepuseram à heresia.

Entretanto, isso não quer dizer que o impacto da Inquisição tenha sido insignificante no Brasil. Entre a visita de Mendonça, em 1591, e meados do século XVII, centenas de convertidos foram denunciados como judaizantes. Os problemas econômicos em Portugal só permitiram novas visitações em 1618 e em 1627, mas a Inquisição confiava em sua rede de comissários e familiares para obter informações e para fazer detenções. Os convertidos dos estratos sociais mais altos que se casavam na nobreza portuguesa eram mais visados; já os mais pobres, que tendiam a se casar com africanas e indígenas, costumavam ser ignorados. Porém, entre o final do século XVII e o início do século XVIII, quando o descobrimento do ouro em Minas Gerais tornou o sul do Brasil mais rico do que o norte, a Inquisição transferiu suas atenções para a área nas imediações do Rio de Janeiro; os judaizantes continuaram a ser enviados a Lisboa para serem queimados até os últimos anos do século XVIII.

O extraordinário alcance geográfico das inquisições espanhola e portuguesa no final do século XVI as diferencia das demais ondas persecutórias que as precederam. Além disso, muitas práticas censuradas no século XVI não tinham relação com seus propósitos iniciais, que derivavam de heresias fundamentalmente imaginárias dos convertidos na Espanha do século XV. O que foi exportado com sucesso, e cresceu rapidamente, foi uma ideia: a ideia da intolerância.

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Longe de erradicar a heresia, a perseguição teve papel crucial em sua criação e levou muitos convertidos de Portugal a se aferrarem ao judaísmo no final do século XVI. Foram eles que fundaram, entre o final do século XVI e o início do século XVII, a comunidade judaica de Amsterdã, de onde os judeus se transferiram para a Inglaterra na época de Cromwell. Assim como hoje alguns estudiosos afirmam que a identidade coletiva dos afro-americanos deriva da herança comum da escravidão, entre os convertidos talvez a herança compartilhada da Inquisição tenha feito deles um grupo coeso e tenha levado muitos a retornar ao judaísmo mais de um século depois de seus antepassados terem tentado aceitar o cristianismo.

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Muitas vezes, povoados inteiros eram aniquilados com a chegada da Inquisição, como aconteceu em Cuenca em 1585, quando 13 dos 21 prisioneiros provinham do pequeno assentamento de Socuéllamos, e em Valência, em 1589, quando 83 mouros de Mislata foram punidos.

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Portanto, o medo, provocado pelas próprias ações da Inquisição, era reconhecido em Valência como a causa do ódio. Esse temor era tão intenso entre os mouros que eles não se casavam com cristãos-velhos por receio de que isso provocasse denúncias. Às vezes, mouros suspeitos de terem denunciado alguém eram assassinados. Em vez de considerar a punição pela Inquisição um acontecimento vergonhoso, os mouros passaram a considerá-la uma insígnia honrosa e aplaudiam os que eram forçados a passar pela encenação do auto de fé público e dos sambenitos. Assim, o macabro balé de medo e ódio chegou ao clímax na relação entre os mouros e a Inquisição. Aqueles muçulmanos subversivos estavam aterrorizados por “serem privados de nossas vidas, propriedades e filhos, e a qualquer momento podermos ser jogados em uma cela escura [...] para lá passar muitos anos desbaratando nossas propriedades e vendo nossos filhos pequenos serem levados e criados por outrem”.

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Nossa história se desloca para o vale do Ebro, em Aragão, onde, em meados dos anos 1580, houve repetidos embates entre cristãos-velhos e mouros. Após diversos combates contra milícias mouras, em 1585 alguns cristãos-velhos decidiram se vingar, assassinando um mouro. Eles aparentemente acreditavam que, ao matar um mouro, agradariam a Deus, e caso morressem no caminho obteriam a salvação eterna. Essa crença na glória do martírio era diretamente derivada da ideologia das Cruzadas dos séculos XI e XII. Ela era muito antiga e (des)respeitável, e não surpreende que as autoridades tenham tido dificuldade em conter a violência. Os enfrentamentos duraram três anos, e em um ataque dos cristãos-novos ao vilarejo de Pina foram mortos aproximadamente setecentos homens, mulheres e crianças mouros.

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Não havia distinção racial entre os mouros e o restante da população espanhola. Na verdade, ao serem expulsos da Espanha, muitos mouros voltaram a Aragão, Múrcia e Granada, e foram escondidos pela população local. Os que regressaram a Granada muitas vezes iam viver em novos povoados e falavam tão bem o espanhol (e de forma tão indistinguível do restante da população) que facilmente se fizeram passar por cristãos-velhos. Portanto, teria sido muito fácil integrar a população moura à nação espanhola.

De fato, as principais diferenças entre os mouros e o restante da população eram culturais. Mas a própria cultura cristã-velha era uma extraordinária mistura do cristão com o muçulmano, o que devia significar que a fusão com os mouros era possível. A diferença no século XVI era a nova cultura da intolerância, da qual a Inquisição era o símbolo e a ponta de lança; assim, costumes puramente culturais e não religiosos passaram a ser vistos como muçulmanos e indicadores de heresia.

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Naquela época já não havia dúvidas de que um número crescente de mouros estava realmente se voltando para o islamismo. No vilarejo de Buñol, o padre Damián de Fonseca escrevera, quatro anos antes, que quando vinte crianças nasciam em um curto espaço de tempo, os pais se reuniam e escolhiam uma delas para ser batizada vinte vezes, trocavam-lhe o nome todas as vezes e o padre não podia fazer nada a respeito.

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Essa situação era intolerável para a sociedade espanhola, que se definia pela adesão à fé católica. O bispo de Segorbe — onde Maria Xaramfa tinha a sua mesquita — afirmou, em 1595, que os “mouros e apóstatas vivem segundo a lei maometana”. Isso, e a crescente agressividade física dos mouros, era algo que a Espanha e a Inquisição não podiam permitir. Em Belchite, Aragão, mouros atacavam os ministros da Inquisição com espadas, lanças e pistolas sempre que eles chegavam para tentar prender alguém. Em 1591, os mouros de Gea de Albarracín — um dos refúgios de Diego de Arcos, de Teruel — atacaram o cárcere da Inquisição, feriram alguns oficiais e ajudaram um de seus amigos a escapar. Em 1608, o investigador Gregorio López Madera encontrou 83 cadáveres na região de Hornachos, mortos por mouros locais por denunciá-los ou por colaborarem com a Inquisição.

A situação ficava cada vez mais grave. Os turcos prosseguiam com suas atividades a oeste do Mediterrâneo, ameaçando as armadas e os suprimentos espanhóis, enquanto na Espanha mantinham um contingente de aliados, que aproveitariam qualquer oportunidade para destruir o Estado. Em abril de 1609, a Coroa espanhola chegou à conclusão de que não tinha alternativa a não ser expulsar todos os mouros da Espanha.

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A DECISÃO DE EXPULSAR os mouros foi política, tomada pela Coroa e não pela Inquisição. No entanto, esta última forneceu apoio crítico à decisão, através de seu banco de informações penais que “provavam” a apostasia universal dos mouros e por meio da incitação do ódio que os mouros sentiam pelo restante da sociedade. Foi também uma decisão popular. Quando o édito da expulsão foi publicado, em 22 de agosto de 1609, “a multidão de gente comum que foi ouvir o pronunciamento era tal que empurravam uns aos outros no chão, em meio ao aplauso e à felicidade geral”.

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O que se desenvolveu junto com a vontade política de expulsar os mouros foi o condicionamento psicológico da população. Os cristãos-velhos agora sentiam-se essencialmente diferentes de povos fisicamente idênticos a eles. Sob a rígida ideologia da Inquisição, a massa do povo espanhol foi doutrinada a acreditar que sinais de diferença cultural eram sinais de traição e do desejo de destruí-la. Diversos cronistas criaram estereótipos dos mouros como feios, anormais, diferentes. Aos poucos, as pessoas começaram a ver os remanescentes da população muçulmana espanhola sob esse prisma. Paulatinamente, foram assentadas as bases para a destruição do inimigo.

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Na primavera de 1610, os mouros de Aragão “interromperam todas as suas tarefas e atividades na terra e venderam tudo o que possuíam, até as camas, os pratos e as tigelas”. Em 16 de abril, Miguel Santos de San Pedras, inquisidor de Saragoça, declarou que o pouco que os mouros aragoneses haviam deixado desapareceria em poucos dias e que “a fome e as epidemias se instalarão entre eles [...] e ao se verem famintos, eles estarão fadados a roubar e a matar os cristãos e cometer crimes atrozes”. Felipe III assinou a ordem de expulsão em 29 de maio de 1610, precipitando uma disputa entre agiotas e os senhores feudais dos mouros aragoneses, que subitamente ficaram sem renda para pagar suas dívidas. O caos e a estagnação se instalaram.

No total, talvez mais de 300 mil mouros tenham sido expulsos da Espanha entre 1609 e 1614. A maior parte foi para a África do Norte. Mais de 116 mil chegaram a Oran (na atual Argélia) entre 2 de outubro e dezembro de 1609. Inúmeros foram roubados e assaltados por bandidos, como aconteceu com muitos dos que foram para Tremecen e Fez, no Marrocos. Embora os 50 mil mouros que chegaram à Tunísia tenham sido bem tratados, o restante enfrentou a pobreza, a tristeza e a morte. Os muçulmanos da África do Norte frequentemente desconfiavam de que eles fossem cristãos renegados.

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Finalmente, o que se pode pensar de uma sociedade que faz todos os esforços possíveis para destruir uma parte de si mesma e impor a unidade de crença quando muito de sua força e de seu poder derivava de sua diversidade? Isso soa como um exercício de automutilação e até uma forma inconsciente de ódio por si mesma.

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O residente da Península Ibérica no século XV se pergunta: como podemos lidar com esse medo antes que ele nos destrua? A resposta é projetá-lo nos outros. As racionalizações desses temores buscam atributos que separam e características que unem. Os convertidos são diferentes devido aos seus ancestrais judeus, à sua linhagem. Assim, uma raça é inventada no lugar dessa fé que sempre foi uma religião, na qual Maimônides, o grande sábio judeu nascido na Ibéria medieval, escrevera que pessoas de qualquer nação podiam ser judias. Constrói-se uma patologia de raça — algo que os cientistas modernos afirmam não existir, apesar de termos de nos comportar como se existisse. E é precisamente por se tratar de uma patologia irracional que ela tem a capacidade de durar tanto tempo.


Pureza de sangue e sujeira de corpos

Como demonstra esse exemplo, na longa história desse fenômeno a preocupação com a pureza do sangue era estritamente ibérica, e não tinha relação com o catolicismo. A adoção de algumas políticas e da linguagem dessa ideologia pela Inquisição em Portugal e na Espanha estava, portanto, em aberta contradição com a doutrina católica. Era mais uma prova de que a perseguição que esses países promoviam tinha origem em forças políticas e sociais, não nos ideais religiosos da Igreja católica. Então, embora sob uma perspectiva teológica a Inquisição não devesse ter nenhuma relação com a ideia da pureza do sangue, a instituição não via as coisas assim. Após sua criação na Espanha, na década de 1480, a Inquisição encorajou o ideal de pureza ao excluir dos cargos públicos e privar de autoridade quem tivesse sido condenado como convertido. Nos séculos XVI e XVII, as Inquisições de Portugal e da Espanha foram cruciais para a consolidação do conceito da pureza do sangue. Quando, em 1586, os jesuítas ainda não tinham instituído seu estatuto de pureza, os inquisidores Pablo Hernández e Doutor Salcedo escreveram ao superior-geral jesuíta Claudio Acquaviva expressando preocupação com o número de convertidos naquela ordem.

O papel central da Inquisição na propagação da ideia de pureza naquela época transparece nos documentos do tribunal de Toledo. Só no ano de 1587 esse tribunal condenou oito pessoas por falsificação de informação genealógica em inquéritos sobre pureza de sangue.

Modicum fermenti totam massam corrumpit – uma pequena gota pode contaminar o todo – dictum de São Paulo.

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Um ditado português do século XVII dizia: “Basta o sangue sem culpa, e a culpa em si está no sangue.” Essa obsessão pelos pecados das gerações anteriores não era uma simples manifestação precoce da moderna mentalidade racista; ela simbolizava uma futura crise psicológica na sociedade ibérica. A obsessão descontrolada pela pureza é apontada por alguns autores como um sintoma de perigosos conflitos psicológicos e sociais. Havia um desejo de lavar manchas de sangue invisíveis para todos, exceto para aqueles que eram incapazes de esquecê-las e também sua própria culpa na criação delas.

EMBORA PSICOLOGICAMENTE a sociedade ibérica sentisse orgulho de se considerar cada vez mais limpa, na prática a realidade era um pouco diferente. De Madri a Lisboa e de Múrcia a Coimbra, para ser reconhecido como um bom católico era importante feder.

Em uma sociedade governada por doutrinas de pureza, os mouros eram frequentemente denunciados por se lavarem, o que era considerado suspeito por causa das abluções rituais prescritas pela fé islâmica. Ao serem questionados, eles se defendiam alegando que estavam “simplesmente” se lavando.

As abluções e a simples limpeza corporal rapidamente se confundiram; afinal, não era possível sentir a diferença com o nariz. Um mouro de Granada, Bermúdez de Pedraza, foi denunciado por se lavar “mesmo sendo dezembro”. Em 1603, em Valência, o mouro Francisco Mançana confessou que havia umedecido um pedaço de pano para lavar o rosto, o pescoço e os genitais, mas negou que se tratasse de uma cerimônia. O alcance do fedor ibérico fica claro na denúncia escandalizada de um cristão-velho de San Clemente, perto de Cuenca, que contou como “era costume dos mouros lavar-se não só ao se casarem e ao morrerem, mas diversas outras vezes durante o ano”. Devemos, claro, recordar que se lavar era um costume muito mais raro na Europa do século XVI do que é hoje, mas mesmo assim as consequências desse conceito de limpeza eram extraordinariamente fétidas.

Portanto, a ênfase na pureza, na limpeza do sangue, era totalmente metafórica. A condição de obsessão irracional fica clara nessa curiosa dicotomia entre a ideologia da limpeza e o fedor da realidade. O pavor da limpeza genuína — e talvez a certeza inconsciente de que o ideal não passava de uma fantasia — era expresso perfeitamente pelo horror à lavagem corporal e pelo fato de que isso se estendia ao menor gesto social. O clérigo francês Bartolomé Joly observou, no início do século XVII, que na Espanha as pessoas nunca lavavam as mãos antes das refeições.

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O fato de a Inquisição em Portugal ainda lidar com os convertidos levou os portugueses a serem estereotipados na Espanha como judeus. Como se dizia, “o português nasceu do peido do judeu”.

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Um documento da Inquisição de 1624 fazia referência a 200 mil famílias de cristãos-novos em Portugal, quando na verdade havia no país apenas 6 mil cristãos-novos cujos antepassados não haviam se casado com cristãos-velhos. Durante um conselho em Tomar em 1628, chegou-se a sugerir que os convertidos de Portugal deviam ser expulsos, como ocorrera com os mouros na Espanha.

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Foi em circunstâncias semelhantes, de violência publicamente tolerada dirigida contra uma comunidade minoritária, que floresceram a perseguição e a ideia da limpeza. Documentos inquisitoriais começaram a registrar se uma testemunha ou um acusado era metade, um quarto, um oitavo e um dezesseis avos convertida.

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Assim como alguns escritórios de advocacia obtêm grandes lucros com suas taxas de fotocópias, a Inquisição também custeava uma parte substancial de seus gastos cotidianos fomentando a ideologia da pureza. As probanzas de pureza — como eram conhecidas — continuaram existindo por boa parte do século XVIII e eram uma fonte importante para a estabilidade econômica da Inquisição, embora por fim tenham começado a perder importância.

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Depois da expulsão dos mouros, uma de suas principais fontes de fundos em Aragão e Valência — os confiscos e as taxas pagas pelos mouros à Inquisição — secou. Em geral, como qualquer órgão do Estado, a instituição passava pelos mesmos problemas financeiros que a Coroa espanhola.

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O impacto em todos os aspectos da vida no México ficou claro pouco depois do auto de fé de 1596, no qual morreram Luis, o Jovem, e suas irmãs Isabel e Leonor. Em 1604, Antonia Machado, bisneta de um relaxado, foi processada por usar roupas de seda com uma franja dourada, o que era proibido aos parentes de hereges condenados. Pode-se imaginar o escândalo que isso provocou, justificadamente, pelas ruas caiadas do México, varridas por escravos africanos e pelos sobreviventes da epidemia que assolou a população asteca: ninguém se chocara com o genocídio em que 95% da população indígena fora dizimada no século anterior; nem com as cicatrizes nos rostos dos índios que sobreviveram à doença; nem com as torturas nas minas e a escravização dos mineiros — não, o que provocava repugnância, afrontava e escandalizava era o fato de aquela descendente de um relaxado ousar vestir-se de seda! [maledicência do autor!]

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No mundo multifacetado das colônias, havia um grau extraordinário de superstições e práticas não católicas. No Brasil, no início do século XVIII, Joana, uma escrava africana, costumava temperar a comida dos homens que desejava com a segunda água que usara para lavar a vagina. Outra escrava, Marcelina Maria, cozinhava um ovo, dormia com ele entre as pernas e dava-o de comer ao homem desejado; ela também aprendeu que, ao fazer sexo com um homem, devia molhar o dedo na vagina e fazer com ele o sinal da cruz nos próprios olhos, para que ele nunca a abandonasse. No México, as escravas moíam pós e jogavam-nos nos homens para despertar o desejo deles; algumas carregavam consigo terra retirada de túmulos e outras portavam ervas especiais, tudo para conseguir ter relações com o homem desejado. No Brasil, os escravos eram enviados por seu senhor ou senhora para tocar nas pessoas cobiçadas por eles com amuletos, a fim de fazê-las cair sob seu domínio. Havia uma obsessão pelo sexo e uma abundância de superstições em torno do sexo e de tentativas de induzir os outros a praticá-lo; pode-se imaginar que, apesar dos grandes esforços da Inquisição, com essa atmosfera e nas tardes quentes dos trópicos, sexo era o que não faltava.

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A hierarquia de valores fica clara em um caso ocorrido no Brasil, em 1737, quando o senhor de engenho Pedro Pais Machado matou dois escravos por supostamente ferirem um boi; um dos escravos foi dependurado pelos testículos até morrer. Poucos anos depois, um dos moradores mais ricos da Bahia, Garcia de Ávila Pereira Aragão, mandou chamar uma escrava de 3 anos de idade e empurrou seu rosto em uma brasa de carvão com uma das mãos, enquanto com a outra avivava o fogo. Aragão também torturou um escravo de 6 anos de idade derramando cera quente de vela em seu corpo e rindo de contentamento enquanto o menino gritava de dor.

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Nesse contexto, é um alento saber que os escravos costumavam renunciar a Deus ao serem açoitados ou agrilhoados; o que queriam dizer era, obviamente, “renuncio ao seu Deus”. Tratava-se não só de uma expressão de rebelião, mas de uma forma de escapar; se a blasfêmia fosse denunciada à Inquisição, eles podiam ser encarcerados por um ano na prisão inquisitorial e, assim, escapar de novas surras nas mãos dos senhores. Alguns inventavam visões e pactos com o demônio e depois, já encarcerados, confessavam que seus senhores os maltratavam tanto que eles preferiam ser prisioneiros da Inquisição.

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O fato de a Inquisição ser, para muitos escravos, uma opção melhor do que a vida cotidiana diz muito sobre o horror de sua existência no Novo Mundo.

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A crença difundida na sociedade espanhola de que os portugueses eram judeus fez com que os mercadores fossem acusados de um complô criptojudaico. Onze deles foram queimados no grande auto de fé de 23 de janeiro de 1639.

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A blasfêmia tendia a ocorrer em uma de três categorias. A primeira era o desprezo pela Igreja e suas instituições. A rejeição do dízimo por Luis Godines em Córdoba é um bom exemplo disso; outro caso é o de Marco Antonio Font, um meirinho de Valência do início do século XVII enviado para prender um homem que dizia ser oficial das Cruzadas. Font fez uma saudação desafiante (e blasfema): “Então vós sois das Cruzadas, não é? Pois eu cago nas Cruzadas, limpo minha bunda com a bula papal e com as Cruzadas.” [Vale um conto].

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Às vezes a blasfêmia era uma mera expressão do senso comum, como quando o trabalhador cristão-velho Afonso Annes declarou perto de Porto, em Portugal, em 1569: “Deus não pode estar no céu e na igreja ao mesmo tempo.”

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A blasfêmia mais violenta talvez fosse aquela que refletia o que a Inquisição via como desvio sexual. Um dos tipos mais comuns era a afirmação de que a condição de um homem era melhor do que a de um frade. Isso era frontalmente contrário à visão de são Tomás de Aquino, para quem a castidade absoluta era superior a qualquer outra condição, pois era o melhor caminho para a perfeição e para a relação com Deus. Obviamente, sua filosofia era o pão e o vinho dos padres (teoricamente) celibatários, mas certamente exercia menos influência sobre a população em geral. Um exemplo dos que discordavam dessa regra era Alonso García, de Córdoba, que declarou que “não é pecado dormir com uma mulher se lhe pagas”. Em Évora, o modo como essas blasfêmias estavam relacionadas à vida cotidiana foi claramente revelado quando Fernão Matheus foi acusado de dizer que não era pecado dormir com duas irmãs; pouco depois sua cunhada Isabel Díaz foi delatada por dizer que não era pecado fazer sexo com o cunhado.

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As punições desse tipo de autotraição eram mais amenas do que as dirigidas aos mouros e convertidos, mas costumavam incluir açoites e, às vezes, o exílio, as galés e/ou o cárcere. Para que a Inquisição pudesse condenar, as pessoas precisavam vigiar os vizinhos a fim de detectar sinais de diferença. Assim, enquanto nas colônias a presença da Inquisição na vida cotidiana costumava resultar na denúncia de escravos que renunciavam a Deus ou praticavam algum tipo de “bruxaria”, na Península Ibérica ela promovia um estado mental que levava à vigilância até nas conversas mais mundanas.

É nesse contexto que podemos ver por que os historiadores tendem a pensar na Inquisição como uma das primeiras instituições modernas. Com sua organização e sua capacidade de vigiar a vida dos cidadãos, ela foi uma precursora das organizações que tornaram mais sombria a vida dos seres humanos no século XX. É verdade que alguns historiadores afirmam hoje que essa faceta da Inquisição tem sido exagerada e que os cristãos-velhos a entendiam como um tribunal remoto. Mas o alcance da instituição variou de acordo com o período em questão. Na virada do século XVI para o XVII, seu alcance nas comunidades rurais era enorme, e sua presença administrativa existia até mesmo em pequenos povoados onde não havia tribunal. Contudo, apesar de esse alcance ter diminuído, a memória coletiva assegurou que, em seus últimos anos, a abrangência da Inquisição fosse vista como algo muito maior do que realmente era.

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O prato batizado com o nome mais irônico de todos é judías con jamón — judias com presunto —, ou, como se diz hoje, ervilhas com presunto.
[segue um amplo relato sobre o controle social exercido pela vigilância dos hábitos alimentares de judeus e muçulmanos (Ramadã) como fonte de denúncias à Inquisição.] Como tanto o islamismo quanto o judaísmo proíbe o consumo de porco, oferecê-lo a um convertido ou a um mouro era um modo perfeito de humilhá-lo e, ao mesmo tempo, seguir a norma da caridade cristã. A recusa em ingerir porco está sempre presente nos casos inquisitoriais de mouros e convertidos, e demonstra como a ideologia da Inquisição permeou a mais básica atividade humana: a alimentação.

A natureza da vigilância culinária variava entre convertidos e mouros. Para os primeiros, a questão do consumo de porco era crítica, e, como observou o viajante italiano Leonardo Donato em 1573, “eles são vigiados em suas ações e em sua forma de vida com tal atenção que, quando não cumprem até o menor rito cristão, são considerados suspeitos de heresia e punidos”.50 Para os mouros, um período ainda mais perigoso era o Ramadã...

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Talvez o exemplo mais extraordinário de vigilância seja o de um caso de 1597, quando o mouro Bartolomé Sánchez foi detido com toda a família. Uma das testemunhas, um vizinho, afirmou que Sánchez se lavava inclusive após defecar. Pode-se concluir que até a mais íntima das funções corporais era vigiada, o que talvez não deva nos surpreender em uma sociedade em que o simples asseio era considerado suspeito.

Porém, se era legítimo vigiar as pessoas enquanto defecavam, o problema é que isso era simplesmente a sociedade defecando em si mesma. Considerando-se a extraordinária diligência com que membros da comunidade vigiavam os convertidos e os mouros que viviam entre eles, é difícil não concluir que foi precisamente essa base de vigilância que permitiu que ela se voltasse contra os membros da própria comunidade de cristãos-velhos. A habilidade de obter provas para a perseguição dos demais seria empregada contra a comunidade dominante. Assim, mais uma vez a instituição persecutória foi capaz de usar as práticas e habilidades desenvolvidas em um contexto e voltá-las contra as mesmas pessoas que tinham apoiado sua criação desde o início.

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VOLTEMOS aos dias violentos do início das inquisições ibéricas — a Sevilha em 1484 — e às primeiras Instruções do inquisidor-geral Tomás de Torquemada para o funcionamento da Inquisição. O sexto capítulo das Instruções diz o seguinte:

Os ditos inquisidores devem ordenar que [hereges e apóstatas] não tenham cargos públicos nem benefícios, que não possam ser advogados, proprietários, boticários, mercadores de especiarias, doutores, cirurgiões, doadores de sangue, nem cambistas. E que não possam usar ouro nem prata nem coral nem pérolas nem coisas semelhantes, nem pedras preciosas, nem usar qualquer tipo de seda nem camelão [...] e que não podem montar a cavalo nem portar armas durante a vida toda, sob pena de serem declarados culpados de recair [na heresia].

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Vale a pena pensar nas consequências das instruções originais de Torquemada, de 1484. Porque, se certas pessoas eram proibidas de usar determinado tipo de roupas e joias, montar a cavalo, portar armas e praticar certas profissões, então é óbvio que teriam que ser vigiadas. Desde o início, portanto, a vigilância mútua estava subentendida nas normas da Inquisição. Assim, embora a vigilância e as denúncias não fossem todas feitas pela instituição, foram suas regras que criaram o ambiente para que elas ocorressem.

Entretanto, ao mesmo tempo, não devemos cair na armadilha de fazer da Inquisição o bode expiatório das falhas humanas. Muitos seguiam de boa vontade a incitação à bisbilhotice. Se formos honestos, muitos de nós admitirão que gostam de falar dos conhecidos. A fofoca é comunitária, divertida e, o melhor de tudo, permite falar sobre as falhas dos outros em vez de pensar nas nossas próprias. Ao conferir legitimidade moral a esse comportamento, a Inquisição teve uma iniciativa brilhante que garantiu sua popularidade e ocultou a vontade de fofocar por trás do desejo de fazer o bem.

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NESTE MOMENTO, parece que chegamos ao âmago do ódio amistoso. Questões dignas de menção e outras inomináveis rodeiam as cidades e seu amargo declínio. Como a Inquisição penetrava no cotidiano? O que levava alguém a se submeter à sua administração e à sua alma impiedosa? Vimos que havia um sentimento de cumplicidade, um prazer na autorização para espionar. Mas para tirar vantagem dessa passividade era preciso que houvesse uma organização pronta para assumir o comando.

A história é familiar, apesar de estranha por ser antiga. Como vimos, o detalhamento dos procedimentos é algo que distingue a Inquisição como uma instituição persecutória moderna, uma das primeiras desse tipo. Com a administração da perseguição surgia a possibilidade de obter o poder, e do poder nascia a corrupção do que deveria ser uma instituição de pureza. Teoricamente um instrumento do divino, a Inquisição era fundamentalmente humana. A corrupção não surpreende. Com o desenrolar da história, ela foi sendo pontuada pela sede de sangue e por vários exemplos de ataques sexuais perpetrados pelos inquisidores. Na verdade, com frequência ambos caminhavam juntos. Os inquisidores Lucero em Córdoba, Mañozca em Lima e no México, e Salazar em Múrcia organizaram incinerações em fogueiras em larga escala enquanto satisfaziam seus desejos mais baixos, e eles sem dúvida não eram a exceção. Segundo os laços sociais da época, havia algo atraente naqueles homens autoritários — o poder de punir e o poder de perdoar.

Como esses exemplos demonstram, a corrupção era algo tão comum nas colônias quanto em Portugal e na Espanha. O mesmo ocorria em outros lugares. Em Cartagena, eixo do tráfico de escravos para a América do Sul, os abusos de poder eram diários, enquanto um grande número de escravos africanos contrabandeados chegava à América em condições deploráveis. Talvez, então, o colono espanhol Lorenzo Martínez de Castro não tenha ficado surpreso quando, em 1643, foi parar na prisão inquisitorial.

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O PODER DOS INQUISIDORES não fica evidente apenas nas atividades sexuais; ele estava ligado a cada aspecto de suas vidas: as vestimentas, o comportamento em relação aos colegas, o orgulho. Para analisarmos como o poder podia corromper a percepção do inquisidor quanto ao que era ou não permitido, vamos examinar o testamento do inquisidor-geral de Portugal, dom Francisco de Castro. Castro foi uma figura fundamental na luta pelo poder entre a Inquisição e João IV, o primeiro rei de Portugal após a separação da Espanha, em 1640. Em suas tentativas de tornar o Estado português financeiramente saudável, João IV emitiu uma lei, em 1649, impedindo o confisco de bens dos mercadores convertidos pela Inquisição. Descontente com essa ameaça às suas rendas, a Inquisição, respaldada pelo papado, que não reconhecia João, travou uma prolongada luta de poder com o rei e foi deixando as sés vagas à medida que os bispos faleciam.

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De forma semelhante, o guarda-roupa do venerável inquisidor Francisco de Castro, descrito em seu testamento, ilustra uma corrupção de outro tipo, porém não menos peculiar. Ele dá uma ideia do estilo de vida desse indivíduo em luta contra a heresia. No guarda-roupa havia peças de camelão, túnicas, capas, coletes, ceroulas, meias de seda pretas, um chapéu de sol de damasco e gorros, tudo guardado em baús de couro, bolsas de damasco e grandes arcas. Na verdade, não devemos nos equivocar e pensar que o inquisidor-geral tinha apenas um chapéu de damasco. Não! Ele tinha dois chapéus com fitas verdes, um para usar no tribunal e outro para viajar, além de mais dois de palha adornados com tafetá e galões pretos e verdes. Ele não fora forçado a poupar diante das necessidades da vida. Até a escarradeira e o urinol, que levava consigo nas viagens para depositar seu cuspe e sua urina santos, eram feitos de prata. Não lhe faltavam espelhos para se admirar. Ele possuía um serviço de jantar em ouro, grandes toalhas de mesa para banquetes e outras menores, de uso pessoal. Em meio a tanta opulência, o inquisidor-geral Francisco de Castro conseguia preservar as necessárias hierarquias sociais; enquanto ele e seus colegas comiam em pratos de ouro, os serviçais comiam em pratos de estanho.

Isso tudo era congruente com o orgulho e a ostentação característicos dos inquisidores. A instituição era impulsionada pelo status, como suas regras deixam claro.

Todo o poder fluía pela hierarquia em direção aos inquisidores, que só se submetiam à autoridade das escrituras; todos os demais integrantes da instituição se submetiam a eles. Devemos supor que todos os inquisidores tenham começado como hipócritas preparados para dizer uma coisa e fazer outra? Seria muito simplista pensar assim; os inquisidores mais famosos são os que fizeram coisas terríveis, enquanto os muitos outros que “só estavam fazendo o seu trabalho” e progredindo inexoravelmente na carreira tendem a ser negligenciados.

De fato, talvez a ideia de que os inquisidores seguiam ou a escola persecutória de Mengele ou a de Eichmann também seja uma resposta fácil demais [Ato falho: ninguém vindo depois é modelo para quem apareceu antes, muito tempo antes]. Como revelam os arquivos da Inquisição, os seres humanos têm inúmeras maneiras de lidar com os seus tormentos internos. Entretanto, o que vemos ao examinar as vidas dos inquisidores, e o funcionamento da Inquisição em geral, é um interminável abuso de poder. Inquisidores como Juan Ortiz, de Cartagena, e sua conquista predatória da jovem esposa Rufina de Roxas não eram incomuns. Na verdade, um dos melhores argumentos contra os historiadores que desprezam o impacto da Inquisição é a própria impunidade com que os fiscais da instituição praticavam o abuso de poder. Se a Inquisição não tivesse sido temida e seu poder não tivesse sido desproporcional, certamente as coisas terríveis que os seus oficiais se achavam no direito de fazer não teriam sido toleradas.

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Entre as acusações apresentadas contra Muñoz de la Cuesta estava a de que ele frequentava pomares na periferia da cidade para seduzir jovens mulheres. Ele tinha levado para Santiago uma jovem chamada Maria, de apenas 15 ou 16 anos, a quem cobria de presentes. Acompanhava mulheres casadas ao teatro e diariamente as convidava a seus aposentos, no prédio do tribunal; era público e notório que dormia com elas, e inclusive havia enviado intermediários para tentar seduzir algumas monjas. Foi destituído do cargo em 1612, mas isso não impediu que ele fosse nomeado inquisidor de Barcelona em 1615 — o que diz muito sobre os concorrentes.

Ochoa não era muito melhor. Assediara uma mulher casada, Quitería Rodríguez, até conseguir convencê-la a se mudar para Santiago, onde viviam abertamente em pecado. Ela estava com ele havia vários anos, e os fiscais da Inquisição eram obrigados a chamá-la de senhora. Quando, posteriormente, foi obrigado a se separar dela, perambulou pelo tribunal aos prantos e soluços, gritando: “Ó, minha amada Quitería!” Mais tarde armou um plano para trazê-la de volta com o marido traído, Juan Piñeiro, que ele nomeou para um cargo burocrático. Ochoa, então, passou a presidir as audiências inquisitoriais com Quitería ao seu lado, enquanto ela havia ficado conhecida por protestar contra o excesso da papelada burocrática e contra os gritos imponderados e egoístas dos prisioneiros nas celas.

Esse caso extraordinário revela o abismo entre a teoria e a prática inquisitoriais. Na teoria teológica, a simples fornicação era um pecado, mas esses inquisidores não viam nada de errado em desfrutar dela na prática. Na verdade, todos a praticavam. Além disso, casos semelhantes são muito mais comuns do que podemos imaginar. Em Barcelona, em 1592, o inquisidor Alonso Blanco foi acusado de sair furtivamente durante a noite para visitar os bordéis locais. E 66 anos antes, em 1526, quando a cidade de Granada tentou persuadir Carlos V a instalar um tribunal inquisitorial em seu território, os seus conselheiros escreveram:
Quando os juízes [inquisitoriais] são ruins, o que pode ocorrer, posto que são seres humanos e não santos como o Santo Ofício [sic], quando eles encarceram virgens e dignas jovens casadas, ou quando ordenam que elas se apresentem secretamente diante deles, como exige o Santo Ofício, sabe-se que fazem com elas o que lhes apraz, contra o que as mulheres protestam debilmente, devido ao grande temor que sentem [deles] [...] e enquanto isso, os escrivães e fiscais do Santo Ofício, sendo homens solteiros como o são em alguns locais, fazem a mesma coisa com as filhas e esposas e parentes dos prisioneiros, e isso é fácil para eles, pois o favor vai ser retribuído e elas saberão algo sobre o caso. [Um agente corruptor agindo durante trezentos anos e produzindo medo e humilhação, para não falar em tormentos, só poderia abrigar no povo uma psicologia da desconfiança que o tornaria inapto para o capitalismo em gestação.]

Convém fazer uma pausa para refletir sobre o significado disso. Uma instituição criada com o objetivo de purificar a prática religiosa e impedir a sua corrupção forçou mulheres casadas e solteiras a se prostituir em nome dos homens que amavam ou por temerem as consequências caso resistissem. Esses eventos não eram universais. Na maior parte dos tribunais, podem nem ter acontecido. Mas, certamente, também não eram raros. É difícil não concluir que, se havia um agente corruptor no mundo ibérico da época, esse agente era a Inquisição. Para os inquisidores, o poder estava em toda parte, e eles tiravam vantagem disso. Alguns chutavam os rostos dos prisioneiros quando não obtinham a resposta que esperavam ou quando queriam intimidá-los. A atitude de alguns deles perante os acusados foi revelada por Miguel de Carpio, inquisidor de Sevilha entre 1556 e 1578, para quem sua missão consistia em “queimar e abraçar as pessoas” — como se as duas ações estivessem de alguma forma relacionadas — e que preferia relaxar alguns prisioneiros a reconciliá-los simplesmente por serem pobres — felizmente, nem sempre isso acontecia, já que outros inquisidores eram mais moderados e essas decisões eram tomadas por meio de votação.

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Assim, a teoria e a prática da Inquisição nunca eram claras, e tentar entender sua história por meio da leitura de seus decretos não adianta nada. Como qualquer outra instituição, a Inquisição detestava renunciar ao poder depois de chegar a possuí-lo. Por isso, pode ter fingido consternação diante de casos de suborno e corrupção, mas esses casos em si eram testemunho de seu poder, algo do qual ela era sempre a favor. O poder era inebriante demais para ser sacrificado no altar da moralidade.

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Como vimos, ao contrário do que ocorreu na Espanha, a Inquisição portuguesa nunca lidou com mouros nem com grandes números de luteranos. Isso porque Portugal foi reconquistado dos muçulmanos muito antes e os assimilou antes da Inquisição. Quanto aos luteranos, no auge do pânico na Espanha, no final dos anos 1550, a Inquisição portuguesa tinha acabado de ser criada e voltou-se para os convertidos.

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Na Espanha, com a expansão da perseguição aos cristãos-velhos por blasfêmia, bigamia e luteranismo, o crescimento da burocracia coincidiu com o comando do inquisidor-geral Fernando de Valdés, o arqui-inimigo do arcebispo Carranza, de Toledo. Valdés reorganizou a administração da Inquisição segundo as necessidades da Contrarreforma. Consolidou as finanças da Inquisição ao cobrar aluguéis anuais das igrejas (canonjías). Ele também padronizou os procedimentos inquisitoriais com suas instruções gerais, emitidas em 1561; regularizou as visitações às áreas rurais, para que localidades remotas fossem cobertas com maior frequência, e estabeleceu a Inquisição em áreas onde ela não estava presente. No entanto, talvez sua mais importante reforma burocrática tenha sido a reorganização dos familiares, através de um decreto de 1553 conhecido como a Concórdia. Os familiares eram espiões da Inquisição e deviam denunciar qualquer atitude suspeita; às vezes eles ajudavam a prender suspeitos e recebiam retratos desenhados dos fugitivos para ajudar a encontrá-los. [Nos moldes de Cuba].

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Essa rede proporcional de espiões facilitou a penetração da Inquisição na vida cotidiana e estimulou o crescimento do poder individual dos inquisidores e demais funcionários. Em seu ápice, havia mais de 20 mil familiares na Espanha. Dali em diante e até o declínio da instituição, a partir de meados do século XVII, nem os vilarejos estavam livres daquelas pessoas que informavam às autoridades delitos insignificantes. Por volta de 1600, até mesmo a isolada província da Guatemala, na América Central, tinha entre sessenta e cem familiares, e não havia cidade colonial sem um deles. Enquanto isso, Portugal, que antes da União Ibérica, em 1580, contava com apenas 18 familiares, passou a ter cerca de 1.600 espiões ativos por volta de 1640. A partir de então, os inquisidores já não seriam os únicos a abusar rotineiramente do poder; seus ajudantes, os familiares, também se tornaram um fardo para os habitantes das cidades e dos povoados em Portugal, na Espanha e nas colônias de ambos.

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Fernandes foi nomeado familiar em 1625. Em 1627, um ano antes de queixas contra ele chegarem aos ouvidos dos inquisidores de Lisboa, desfrutou de seus privilégios de maneira extraordinária. Vestido com o hábito de familiar, ele confiscou duas mulas de um homem que as levava pelas ruas movimentadas da cidade, o que revela a impunidade com que os familiares agiam quando estavam em serviço. As mulas, ele disse ao dono, estavam sendo requisitadas para fins inquisitoriais. Fernandes as usou para ir a uma tourada naquela tarde. Esse tipo de comportamento era comum para Fernandes. Ao constatar que o reconciliado Manoel Pinto não trajava o sambenito penitencial, fez vista grossa quando lhe foi oferecido um suborno. Pinto conhecia outros dois reconciliados que haviam feito o mesmo. Um familiar, Antonio Antunes, contou que Fernandes comprava promissórias de seus desafetos com o intuito de ameaçá-los com a Inquisição caso não as quitassem.

O fato de outros familiares denunciarem Fernandes indica que havia certa supervisão e equilíbrio no sistema, mas sua reputação de mau caráter também nos leva a questionar por que ele foi nomeado pela Inquisição.

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O que isso significava no cotidiano desses funcionários da Inquisição? Os confiscos e ameaças feitos por Amador Fernandes expõem um sistema de poder dependente dos caprichos dos que o detinham. Não havia segurança em relação às posses nem à castidade das mulheres, já que os inquisidores e familiares podiam tentar roubá-las. Aquele era um mundo de arbitrariedades em que era impossível sentir-se seguro. [Isto termina definindo a falta de assertividade no caráter de um povo, sua tendência à ambiguidade e descrença no espírito diligente.]

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Falsos familiares às vezes roubavam trabalhadores ricos, invadiam suas casas e levavam o que lhes aprouvesse. Outros prendiam mulheres convertidas e depois tentavam fazer sexo com elas. Os familiares devem ter sido terríveis, já que conseguiam fazer com que as pessoas roubadas por eles ou por pretensos familiares não denunciassem o ocorrido.

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A PONTE ENTRE os familiares e os inquisidores era o oficial conhecido como comissário. Os comissários eram remunerados, residiam em grandes cidades, tratavam dos assuntos dos familiares locais e ouviam os depoimentos. No entanto, muitas vezes não eram muito melhores do que os familiares.

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Casos como esses trazem à tona a impunidade. Havia disputas frequentes entre oficiais da Inquisição e oficiais reais, que reclamavam que os primeiros faziam o que queriam. Quando, em 1565, o criado de um inquisidor brigou com uma prostituta em um bordel em Barcelona, os oficiais que o prenderam passaram três meses no calabouço inquisitorial.

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A Inquisição tentou prender, ou pelo menos censurar, os que faziam mau uso do poder, mas os abusos prosseguiam implacavelmente. No que dizia respeito aos familiares de Portugal e da Espanha, sua liberdade de ação e seu desdém pelos outros tinham origem nos privilégios que a própria Inquisição lhes assegurava. Em Portugal, a partir de 1562 os familiares ficaram “isentos de pagar impostos extraordinários, pedidos e empréstimos e quaisquer outras cobranças do conselho real ou das cidades onde residem [...] nem suas casas, seus armazéns ou estábulos podem ser requisitados pelo exército [...] e tampouco pão, vinho, vestimentas, palha, cevada, madeira, galinhas, ovos, cavalos, mulas e animais de carga de sua propriedade podem ser requisitados”.

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Essas isenções e liberdades não beneficiavam outros membros da sociedade. Os oficiais da Inquisição reivindicavam direitos e privilégios constantemente, tais como a isenção de impostos ou alojamento gratuito quando viajavam. A garantia contra o confisco de imóveis e bens pelos exércitos reais também era parte da vida inquisitorial da Espanha e objeto de um ódio generalizado. A impopularidade dos familiares nas sociedades ibéricas era tamanha que só na Catalunha houve centenas de ataques a eles ao longo da história da Inquisição. Finalmente, em 1634, quando os impérios ibéricos chegavam ao auge da crise, Felipe IV da Espanha, alegando necessidades de Estado, suspendeu as isenções e os privilégios; mas, como vimos, isso nem sempre os impedia de fazer o que quisessem.

Os abusos cometidos pelos oficiais da Inquisição, do mais respeitado inquisidor ao mais pobre carcereiro, expõem o poder da instituição nas sociedades ibéricas. O viajante italiano Leonardo Donato comentou, em 1573, que a Inquisição possuía “uma autoridade tão extrema e espantosa [...] que não creio que exista outra maior na Espanha”.

Em 1723, a pequena cidade provinciana de Aguilar de la Frontera, perto de Córdoba, relacionou todos os sambenitos pendurados em suas igrejas. Havia um total de 132, incluindo os de 12 relaxados e 111 penitentes entre 1594 e 1723. Essa lista traduz o alcance da Inquisição na Espanha provinciana e indica como os sambenitos pendurados nas igrejas recordavam constantemente a amplitude desse alcance.

O que a presença desses sambenitos implicava? Enquanto assistiam à missa dominical, os paroquianos eram confrontados com a realidade da heresia e com o fato de que ela poderia estar entre eles. Enquanto a hóstia era consagrada e os fiéis ouviam o sermão e rezavam, a ameaça de impureza permanecia em suas mentes. O medo coexistia com a oração mesmo nos momentos mais exaltados de devoção religiosa.

A prática de pendurar sambenitos nas igrejas ostentando os nomes dos penitentes persistiu enquanto a Inquisição existiu na Espanha. Eles eram periodicamente restaurados, segundo alguns documentos, e alguns tinham mais de trezentos anos ao final da Inquisição.

Outra indicação da burocracia meticulosa da Inquisição é a elaboração dos inventários dos bens dos prisioneiros. Quando alguém era preso, um notário ia à sua casa e fazia uma relação de suas posses. Esses inventários eram extraordinariamente minuciosos. Cada lenço ou lençol era relacionado.

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No entanto, com a queda da economia espanhola, o custo desses autos de fé tornou-os proibitivos. O século XVII assistiu também ao surgimento dos chamados autos particulares, acontecimentos locais menos dispendiosos. Afinal, os custos para encenar um auto de fé haviam sofrido um aumento de mais de 4.700% entre 1554 e 1632, comparados a uma inflação de pouco mais de 100%. Essa enorme extravagância retrata a expansão insaciável da Inquisição, mas ela era claramente insustentável e pressagiava um longo declínio.

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NÃO É NADA ORIGINAL afirmar que, com o tempo, os grandes impérios acabam caindo. O poder embriaga e absorve, mas por fim se esvai. Assim, estudamos com fascínio as ruínas de civilizações como a que um dia dominou a Ilha de Páscoa, os maias, Tiahuanaco, na Bolívia, e o Grande Zimbábue. A dissipação do poder parece ser inerente a ele, apesar de ser algo que talvez os poderosos não consigam aceitar no nível consciente.

A história da Inquisição não foge a essa dinâmica. A Espanha foi o país mais poderoso do mundo durante o século XVI, quando sua instituição persecutória chegou ao auge. Mas a projeção do poder da Inquisição e sua busca incessante de inimigos criaram as condições para o declínio, do qual o próprio poder imperial nunca se recuperou.

Ao considerar esse processo de autodestruição do poder, vale a pena voltar à época da criação e expulsão dos inimigos mouros. Vimos que essa foi a escolha de uma sociedade que podia tê-los assimilado, mas que preferiu marginalizar e humilhar um grupo ambíguo para vangloriar-se do poder. Na verdade, foi precisamente a expulsão dos mouros que precipitou a mais grave decadência da Espanha.

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...a perspectiva de que os muçulmanos não convertidos saíssem da Espanha deixou os integrantes da nobreza em pânico. Eles escreveram uma longa carta a Carlos V, afirmando que a prosperidade do reino dependia dos muçulmanos e que Aragão seria arruinada se eles partissem. Os muçulmanos faziam as colheitas e todo o artesanato, e seus aluguéis sustentavam as igrejas, os monastérios e a nobreza.

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Os efeitos foram drásticos. Em junho de 1610, depois que foi decretada a expulsão dos mouros, o vice-rei de Aragão registrou que da noite para o dia a nobreza perdeu 80% de sua renda e corria o risco de se ver arruinada pelos credores. Cidades inteiras foram abandonadas. Asco, cidade da Catalunha, ficou vazia, as casas se deterioraram, as vinhas, os olivais e as plantações de amoreiras definharam. Com a perda da maioria dos trabalhadores de Aragão e Valência veio a hiperinflação, já que os mouros venderam seus bens pela metade do valor real. A situação ficou tão crítica que quem se dedicasse à agricultura era dispensado do serviço militar.

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Em 1620, William Lithgow descreveu a Espanha como “nem bem habitada nem populosa; sim, tão desértica que, no coração da Espanha, atravessei 18 léguas (dois dias de viagem) sem ver casa ou povoado [...] e era comum viajar 8 léguas sem [ver] nenhuma casa”. O despovoamento acompanhou o declínio, e Lithgow, que havia viajado intensamente pela Ásia e pela África, sentiu que “os camponeses mais sofridos do mundo estão aqui e seus lamentos cotidianos podem tirar lágrimas de pedras. Seus vilarejos [...] pedem jardins, cercas, vinhedos, estábulos...”.

A abrangente burocracia inquisitorial presidiu, assim, um declínio igualmente extenso, e, quando pensamos na estagnação que promoveu, os mares que separam a intenção da realidade transformam-se em oceanos. A Inquisição devia, afinal de contas, salvaguardar a sociedade, mas com isso veio o declínio. Devia purificar a fé, mas como as pessoas podiam ter fé se seus guardiões se comportavam tão descaradamente? Longe de salvaguardar a fé, a Inquisição com frequência estimulou apenas o cinismo. Assim como criou inimigos em vez de destruí-los, corrompeu a sociedade em vez de purificá-la.

O fosso entre intenções e resultados pode parecer extraordinário para alguns, mas confirma a visão de alguns psicanalistas de que “a sinceridade de alguém não é determinada apenas pelo fato de essa pessoa acreditar sinceramente em uma afirmação”. [Novamente as origens do comunismo].

Como é possível mensurar os efeitos de séculos de abuso de poder e estagnação burocrática? O declínio da Península Ibérica e a correspondente pobreza de suas ex-colônias comparadas à América do Norte são medidas possíveis, mas há outras. No começo da década de 1990, quando eu trabalhava para a prefeitura de Santiago, o Chile me fornecia acomodação como parte do contrato de trabalho, e me foi oferecido um ferro de passar roupa. No entanto, vários meses se passaram até que eu recebesse o ferro de passar; segundo fui informado, o prefeito de Santiago precisava assinar um contrato para que o ferro fosse liberado, e ele em geral estava muito ocupado ou ausente.

Muitas pessoas têm histórias similares de inércia burocrática em outras partes do mundo. Pode parecer simples demais sugerir que essas práticas são herança direta da prosperidade administrativa do Santo Ofício, mas talvez não seja um erro sugerir que ali se criou uma atitude de deferência diante da administração e de sua importância social, atitude essa que ainda perdura.

Acima de tudo, o que se criou foi um estado de espírito. Como afirmou um estudioso com muita eloquência: “Qual é a diferença entre o sambenito inquisitorial e a estrela amarela imposta aos judeus nos anos 1930 e 1940 em diversos países europeus [...] ou as marcas aplicadas nos escravos em tantos países das Américas no século XIX? [...] Evidentemente, a mentalidade inquisitorial continua viva.”

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Carlos II, o último rei espanhol do século XVII, era física e mentalmente incapaz, não parava de babar e era impotente; sua morte levou à desastrosa Guerra de Sucessão Espanhola.

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Assim, na Espanha em particular, a ampla corrente de pensamento europeu que estava indo em direção ao Iluminismo no final do século XVII foi rechaçada, e era preciso evitar que contaminasse a nação. Esse movimento de questionamento científico, erguido sobre os ombros de Bacon, Descartes, Locke e Spinoza, afrontava diretamente a visão de mundo inquisitorial. A Inquisição percebeu que essa ideologia podia arruiná-la de uma forma que os convertidos e os mouros nunca tinham conseguido fazer.

A instituição tinha motivos para desconfiança, pois as principais raízes dessa ideologia de fato tinham penetrado fundo justamente nas pessoas que os inquisidores haviam perseguido sem remorso por tanto tempo: os convertidos. Na verdade, o desenvolvimento de uma visão científica do mundo tinha profundas ligações com as ondas de perseguição que a Inquisição havia provocado na Espanha no final do século XV, duzentos anos antes do declínio.

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A associação entre inteligência e liberdade de pensamento com os convertidos e, portanto, com a heresia teve início com a perseguição dos seguidores de Erasmo nos anos 1530, quando, como vimos no Capítulo Cinco, um grande número de intelectuais foi detido por se desviar da ortodoxia. Rodrigo de Manrique, filho do inquisidor-geral Alonso Manrique, que nessa época estava afastado do cargo, descreveu a situação de maneira eloquente em uma carta a Joan-Lluis Vives em 9 de dezembro de 1533, após a prisão do respeitado humanista Juan de Vergara:

Quando penso em seu espírito distinto, na sua erudição superior e (o que mais importa) na sua conduta irreprimível [...] me causa grande tristeza saber que algum mal pode ser feito a esse homem excelente. Mas tremo ao reconhecer nisso a intervenção de caluniadores desavergonhados, sobretudo se caiu em mãos de indivíduos indignos e incultos que odeiam os homens de valor, que pensam levar a cabo uma boa obra, uma obra piedosa, fazendo desaparecerem os sábios devido a uma palavra ou uma piada. Disseste bem: nossa pátria é uma terra de inveja e soberba; e podes acrescentar: de barbárie. De fato, cada vez fica mais evidente que ninguém poderá cultivar as belas-letras na Espanha sem que logo se descubra nele um acúmulo de heresias, de erros, de taras judaicas. Assim, o silêncio foi imposto aos eruditos; e quanto aos que atenderam ao chamado da ciência, foram tomados, como tu dizes, de um grande pavor.


Os historiadores que destacaram o papel da Inquisição na formação da sociedade espanhola tentaram frequentemente refutar a acusação de que ela era “contrária ao saber”, mas nos prolongados debates sobre essa questão ao longo do século XVIII, os defensores da Inquisição argumentavam com citações de obras de teologia em vez de obras de ciências naturais.

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...em 1558, Felipe II havia promulgado uma lei que condenava à morte os livreiros que possuíssem ou vendessem livros banidos pela Inquisição, além de proibir a posse de livros escritos em linguagem vernácula publicados fora da Espanha sem licença real. O conhecimento tornara-se um bem a ser monitorado.

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A partir de 1558, os impressores passaram a ser visitados a cada quatro meses, e às vezes a produção de obras suspeitas era interrompida. Um decreto real de 1558 impôs, pela primeira vez, o controle sistemático da importação de livros, e outras 33 cartas reais sobre esse tema foram escritas até 1612.

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Se a pureza física da nação estava cada vez mais ligada às ideias do sangue, sua pureza mental se associava à prevenção da corrupção por ideias “impuras”.

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O número de livros proibidos cresceu como um câncer, de 699 sob Valdés, em 1559, para 2.315 sob o inquisidor-geral Quiroga, no índex publicado em 1583. O Gran Índice Prohibitorio baniu livros de Abelardo, Dante, Maquiavel, More, Rabelais e Vives, além das traduções de Erasmo para o espanhol e 22 obras suas em latim, e livros de autores clássicos como Heródoto, Tácito, Platão, Plínio e Ovídio. A proibição estendia-se a imagens, moedas, retratos, medalhas, canções e estátuas.

Pobre equipe inquisitorial! Como lutar contra um mundo com tanto material herético à disposição? Em visita à casa de um vizinho, via-se uma imagem blasfema em uma medalha. Tentava-se ignorá-la lendo um livro para alcançar alguma paz de espírito, mas logo vinha o choque diante de uma afirmação contrária à ortodoxia. Ao fechar os olhos para os pecados do mundo, ouviam-se blasfêmias atraentes como o canto das sereias nas vozes de um coro. Os quatro qualificadores de Córdoba escreveram à Suprema em 1584 dizendo que os livros na lista eram tantos que eles não conseguiriam terminar a tarefa de censurá-los sem reforços. Nessa sociedade, ser ortodoxo significava viver em indignação permanente. O potencial para a indignação aumentava o tempo todo devido ao apetite voraz da indústria do livro. Em 1559, o índex tinha 58 páginas in-oitavo; os índices de 1707 e 1747 tinham mais de mil páginas in-fólio. Era cada vez mais fácil ficar escandalizado e afrontado, como deixavam claras as cartas dos qualificadores, repletas de insultos: tais e tais trechos eram escandalosos, soavam mal, eram prejudiciais à fé.

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Obviamente, é um equívoco entender a censura como um fenômeno exclusivamente ibérico. Luis XV da França (1715-74) ameaçou de morte os autores e impressores de livros revoltosos, enquanto 294 livros foram proibidos na Inglaterra entre 1524 e 1683. Mas, se compararmos esses números com os 2.315 livros proibidos apenas pelo índex espanhol de 1583, fica claro que a censura ibérica tinha um caráter peculiar. Ela pode não ter sido totalmente eficaz, e os livros proibidos furavam as barreiras pouco a pouco, mas a ideologia que a respaldava criou um ambiente no qual muitos tipos de aprendizagem se tornaram suspeitos. Talvez a autocensura que esse clima incitava fosse ainda mais nociva do que a censura oficial, já que as pessoas temiam ser marginalizadas caso se desviassem da ideologia dominante. Assim, a partir de pequenas iniciativas e proibições individuais, um mundo inteiro de ideias caiu na inércia. Entre os intelectuais surgiu um sentimento permanente de insegurança, o que implicou um temor diante das novas ideias e descobertas. A atividade intelectual voltou-se para a mera repetição dos esquemas estabelecidos, e a vida intelectual ibérica se fossilizou, tornando-se um espelho da paralisia econômica e política da região a partir do século XVII.

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Nessa ideologia, a verdade já não importava; a aparência de verdade era tudo.

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Com o avanço do Iluminismo no século XVIII — e a reação da Inquisição a ele —, o número de livros proibidos aumentou. Os autores incluíam Condorcet, Hume, Locke, Montesquieu, Pope, Rousseau, Swift e Voltaire; Laurence Sterne foi proibido em 1801, e Declínio e Queda do Império Romano, de Gibbon, que certamente tratava de questões cruciais, foi proibido em 1806. Na livraria de Estanislao de Lugo, invadida em 1817, os livros confiscados incluíam obras de Hume (Diálogos sobre a Religião Natural, hoje considerada uma obra fundamental da filosofia), Erasmo, Gibbon, Locke, Milton (Paraíso Perdido), Montesquieu, Rabelais, Rousseau e Voltaire.

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Outras sociedades, em outras épocas e outros lugares, tiveram tendências similares, mas a Inquisição foi a primeira a deixar registros detalhados de seu caminho em direção à ruína. Sua documentação minuciosa abriga uma verdadeira tragédia, pois ali jazem os restos da emoção que pode levar alguns seres humanos a destruir as próprias coisas que os sustentam.

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EM 24 DE ABRIL DE 1718, a Inquisição de Córdoba condenou uma beata à reconciliação. Ela pervertera as crenças de quatro frades franciscanos, um dos quais preferiu o garrote à indignidade do sambenito. O sentimento de humilhação do pobre frade era compreensível. A beata, “através da astúcia do demônio”, fizera uma imagem do menino Jesus falar com os frades e lhes dar instruções precisas e insólitas sobre a melhor maneira de alcançar a salvação.

A imagem do menino Jesus disse aos quatro frades que, dos quadris para baixo, a alma não habitava o corpo, e que a salvação deles exigia que tivessem relações sexuais com a beata. Só então seriam santificados. No entanto, para garantir a eficácia da salvação, teriam que ficar nus e lubrificar o corpo com certos óleos, e o frade e a beata deviam esfregar o óleo um no outro de cima a baixo. Depois disso não precisariam receber a comunhão nem se confessar, desde que seguissem certos preparativos muito precisos antes da missa. Os preparativos incluíam beijar os seios da beata e depois olhar para a hóstia, na qual ele veria a própria beata com os seios à mostra.

A estranha líder dos frades transmitiu-lhes muitos outros ensinamentos e profecias dignos de nota. Informou-lhes que teria quatro filhos, um com cada um deles, e que as crianças iriam aos quatro cantos do mundo para pregar a sua extraordinária lei divina. E quando um deles tinha dor de dente, seu método para aliviar a dor era enfiar a língua na boca do paciente. Os quatro frades aceitaram seus ensinamentos sem questionar, e certamente com algum alívio ao ver que todas as suas emoções e necessidades podiam, por fim, ser divinamente satisfeitas.

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Por que as pessoas acreditavam sinceramente na santidade das beatas? Só pode ser porque elas lidavam com certas necessidades arraigadas, com algumas das distorções da realidade que a repressão tinha forçado as pessoas a adaptar. No plano físico, claramente forneciam uma válvula de escape para a crescente repressão à sexualidade da Península Ibérica sob a influência da Inquisição. Contudo, no plano psicológico, esses casos eram sintomáticos dos efeitos do culto à Virgem.

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A Inquisição não foi a única na Europa a perseguir os homossexuais. Mais pessoas foram executadas por sodomia na Holanda calvinista entre 1730 e 1732 do que em toda a história da Inquisição portuguesa. Portanto, a repressão da homossexualidade pela instituição não era única; ainda assim, era testemunho da atmosfera de repressão sexual, que também se expressava através da perseguição aos bígamos.

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POR VOLTA DE 1717, chegaram ao fim os conflitos pela sucessão da Coroa espanhola que haviam assolado a Europa. O Bourbon Felipe V foi coroado rei, ainda que com certa amargura, inclusive na Espanha, onde muitos temiam as consequências de uma dinastia francesa para a sociedade espanhola. A França não era a porta de entrada para o norte da Europa e para todo tipo de heresias? No século XVIII, os franceses adotaram o livre-pensamento, e a França se tornou uma das potências do mundo atlântico contrária aos mundos intelectuais e culturais fechados da Península Ibérica. Esse não era, de fato, o princípio do fim da sociedade neurótica?

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Qualquer que tenha sido a verdade sobre sua relação com o diabo, ela certamente fez sexo com López, seu exorcista. Após dormir várias noites no mesmo quarto que ela, beijando-a e abraçando-a numa tentativa de exorcizar o demônio, ele apagou a luz e forçou-a deitar-se em sua cama, onde tirou sua virgindade e a fez sangrar copiosamente. Depois disso, Pizarro observou uma curiosa correlação. Cada vez que López dormia com ela, o diabo fazia o mesmo. Então, outro frade que tentava exorcizá-la, Jerónimo Ruíz de Portillo, adotou a técnica de López e dormiu com ela diversas vezes.

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Um mercador [inglês] escreveu em 1701: “Calcula-se que as pessoas religiosas somem um terço, e alguns dizem que são três quintos do total. Diz-se que o clero possui um terço das terras [...] Quem golpear um padre pode ter a mão decepada.” Ele afirma também que havia pelo menos 6 mil frades mendicantes em Lisboa, que se recusavam a comer sobras e vagavam pelas ruas cantando em voz alta, batendo de porta em porta com um saco de linho pendurado no ombro. Diariamente havia missa nas igrejas, das seis da manhã ao meio-dia — os padres precisavam ter o que fazer —, e era comum as pessoas dizerem suas preces em meio a uma conversa. Os sinos das igrejas dobravam ao entardecer; todos deviam parar o que estivessem fazendo nas ruas e rezar a ave-maria, e até os artistas de rua e as carruagens se detinham para isso. Mas pelo menos tinha sido feito um acordo entre Portugal e a Inglaterra, e os protestantes ingleses já não eram processados pela Inquisição.

Sem dúvida, nessa sociedade quase todas as ações eram determinadas pela religião. O mesmo ocorria na Espanha, onde no século XVIII se tomava extremo cuidado para que nenhuma migalha de hóstia ficasse presa nos dentes do comungante; os doentes recebiam água depois da comunhão e lhes era perguntado: “A Majestade desceu?” Como ocorria em Portugal, quando os sinos repicavam à noite, os atores e o público dos espetáculos teatrais jogavam-se no chão gritando “Deus! Deus!”, e nas casas as festas eram abruptamente interrompidas. Quando passava um padre segurando a eucaristia em uma liteira levada por carregadores, todos tinham que parar e se ajoelhar, batendo no peito até ele ter passado; quem não o fizesse corria o risco de ser chamado de herege pelo padre.

Nesses lugares, a alegria e a espontaneidade não eram apreciadas nem possíveis, já que tudo estava subordinado às exigências categóricas da ortodoxia religiosa. Como defensora dessa ortodoxia, a Inquisição era a principal responsável pela adesão ao código e, como vimos neste capítulo, sua entrada na censura moral no final do século XVI coincidiu com o surgimento dos primeiros sintomas do alastramento da neurose pela sociedade. Assim, apesar de não instigar diretamente as diversões sexuais de beatas e alumbrados e, na verdade, os processar, a Inquisição era o bastião moral por trás da atmosfera social que os criou.

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Na interpretação freudiana da sociedade, a repressão é parte essencial do contrato pelo qual os seres humanos chegam à civilização; precisamos reprimir alguns desejos para interagir com os outros e compartilhar objetivos comuns. Quando as pessoas são bem ajustadas, esses desejos reprimidos se manifestam nos atos falhos, nos sonhos ou na literatura, mas quando as pessoas desenvolvem fixações, as neuroses podem se desenvolver. Nesses casos, os desejos reprimidos continuam existindo, mas a repressão força os aspectos rejeitados da libido a se expressarem de maneira indireta e distorcida.

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POR MUITOS ANOS vasculhei os arquivos da Inquisição em Portugal e na Espanha. Tanto em Lisboa quanto em Madri, eles foram instalados nos edifícios neofascistas construídos durante as ditaduras ibéricas de Franco e Salazar, no século XX. Cada vez que um grosso pacote de papéis amarelados era trazido à minha mesa e eu desamarrava os laços de tecido que os envolviam para começar a ler, um pouco do pergaminho se desintegrava. Quando eu terminava e devolvia os documentos, restos de pó se assentavam onde eu tinha lido, recordando-me a fragilidade e a instabilidade da vida e dos padrões morais.

Como quase todo mundo, eu ouvira falar da Inquisição, mas quando comecei a fazer aquelas visitas solitárias aos arquivos, não tinha ideia das enormidades que descobriria. O mundo escurecia diante das histórias de terríveis aflições, sadismo e perda da identidade. Como mensurar um abuso sistemático como esse através de sistemas, análises, ciências? Ele ia além das palavras. Às vezes eu me entristecia não tanto com as histórias que lia, mas com a compulsão sem remorsos com que voltava a lê-las e que às vezes me parecia um reflexo da falta de remorso dos inquisidores ao conduzirem seus inquéritos. Mas então eu encontrava uma história de resistência, e a tristeza daquelas salas de leitura empoeiradas e pesadas se dissipava.

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Em 1713, o ministro de Felipe V, Melchor de Macanaz, propôs a suspensão dos subsídios à Inquisição; a instituição respondeu lançando uma investigação sobre ele, que fugiu do país.

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A relação entre os confessores e suas “filhas” era carregada de conotações decididamente sexuais. Os arquivos da Inquisição portuguesa e espanhola contêm inúmeros casos de padres que se aproveitavam das correntes subjacentes de paixão para importunar as mulheres que se confessavam com eles. Durante a visitação inquisitorial aos Açores em 1618, diversos padres foram denunciados por importunação durante a confissão, e em Lima, em 1595, 16 padres foram processados pelo mesmo motivo; um deles, Melchor Maldonado, foi acusado por 67 mulheres; um padre em Lima foi denunciado por noventa vítimas.

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Os franco-maçons foram condenados pelo papa Clemente XII em abril de 1738, através da bula In Eminenti; a bula foi confirmada em 14 de junho de 1739, pelo cardeal Firrao, secretário do Estado do Vaticano, em um documento no qual a mera suspeita de maçonaria foi declarada uma ofensa capital. [segue muita literatura sobre a franco-maçonaria no capítulo].

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A ligação com os jesuítas surgiu porque, na primeira metade do século XVIII, as inquisições de Portugal e da Espanha foram cada vez mais dominadas pela Companhia de Jesus. Os jesuítas viam o jansenismo como uma doutrina especificamente contrária a eles, associada à França e a Voltaire. Quando dois frades jesuítas foram encarregados de compilar o índex espanhol em 1747, um deles simplesmente copiou um édito de 1722 denominado Biblioteca Jansenista e incluiu nele todos os livros que repudiava. Alguns frades de outras ordens ficaram furiosos, e um deles declarou que os livros do índice que estavam sendo chamados de jansenistas na verdade não eram — o que demonstra como o conceito era vago e como era fácil se apropriar dele para fins ideológicos.

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[Agora uma descrição sobre o apartheid social que existia, que se poderia chamar de racismo no conceito atual, ao tempo de Pombal, comprovando que a discriminação legal foi uma das causas da danação de Portugal como potência, devido exclusivamente a obtusidade da monarquia e rendição ao clero, que criou na península ibérica um comunismo peculiar e teocrático, totalmente oposto a religião romana].

HÁ UMA HISTÓRIA boa, mas sem dúvida apócrifa, sobre Pombal. Em 1773, diz-se que ele se aborreceu com uma proposta irritante do rei José I. O rei, como muitos antes dele, sugerira que aqueles que tivessem ancestralidade judaica usassem um chapéu amarelo. Poucos dias depois, Pombal chegou à corte com três chapéus desses casualmente enfiados debaixo do braço. José I ficou compreensivelmente perplexo. Perguntou para que serviam e Pombal respondeu-lhe que simplesmente desejava obedecer às ordens do rei. “Mas”, teria dito José, “por que tendes três chapéus?”. “Um é para mim”, teria respondido Pombal, “um é para o inquisidor-geral e o outro é para o caso de Vossa Majestade desejar cobrir-se”.

Pombal era filho do Iluminismo. Rechaçou a proposta de José de reeditar velhas formas de discriminação e continuou a humilhar o rei, ao propor a abolição das distinções legais entre cristãos-velhos e convertidos. Como Pombal detinha o poder absoluto em Portugal, foi bem-sucedido e, assim, conseguiu acabar com a razão de ser da Inquisição portuguesa.

[Pombal e as origens do dilema da divisão social]
Os sentimentos ficaram exaltados após o terremoto. A cidade e o país haviam passado dois séculos nas garras da Inquisição. Além disso, muitos encaravam os acontecimentos como uma punição divina pelos erros cometidos. Era preciso um novo bode expiatório, e Pombal, cujo poder crescia a cada dia — ele ganharia o título de conde de Oeiras em 1759 —, mirou nos jesuítas, que considerava inimigos dos valores iluministas que ele queria impor ao novo Portugal.

Como na Espanha, os jesuítas em Portugal desempenharam um importante papel na Inquisição no século XVIII. Mas isso não interrompeu os rumores que circulavam sobre eles logo após o terremoto. O próprio Pombal escreveu uma série de panfletos anônimos acusando os jesuítas de todo tipo de crimes, inclusive de administrar as comunidades que controlavam no Paraguai com trabalho escravo. Dizia-se que os jesuítas encorajavam a desobediência ao papa, que apoiavam a traição e o regicídio, e que haviam criado um reino no Paraguai com o único propósito de enriquecer.

Os panfletos começaram a surtir efeito. Em 21 de setembro de 1757, os jesuítas foram expulsos do palácio real. Seguiram-se mais denúncias, à medida que as pessoas perceberam que havia um novo bode expiatório. Quatro meses depois, em janeiro de 1758, os cônegos de Lisboa escreveram que os jesuítas costumavam mentir sobre o passado, difamar o governo ou outras pessoas para enfraquecê-los e desejar a morte de um vizinho se isso lhes trouxesse vantagens pessoais — acusações que, certamente, revelavam as atitudes prevalecentes com relação aos jesuítas.

Pombal avançou inexoravelmente em direção ao seu alvo. No verão de 1758, foi descoberto um suposto complô contra José I liderado pela casa nobre de Távora, em que se dizia haver padres jesuítas envolvidos. Muitos foram presos, acusados de traição, e, em 3 de setembro de 1759, a Companhia de Jesus foi expulsa de Portugal. Um dos “conspiradores”, Gabriel Malagrida, ainda definhava no cárcere da Inquisição e, em 21 de setembro de 1761, foi queimado no cais de Lisboa diante de uma multidão — a última pessoa a ser queimada em Portugal. O jesuíta Malagrida representava tudo que o iluminado Pombal detestava. Após o terremoto de 1755, ele havia pregado que o desastre fora um castigo pelos pecados de Portugal. Dizia-se também que estimulava as pessoas a vê-lo como um santo e que fomentava a credulidade das massas. Era o perfeito bode expiatório para um déspota iluminado como Pombal.

O tratamento dispensado aos jesuítas criou um escândalo internacional e levou à expulsão dos enviados portugueses ao Vaticano por nove anos. No entanto, para Pombal isso representou uma oportunidade de usurpar ainda mais o poder da Igreja, na tentativa de construir um Estado moderno. Apesar de ser um sexagenário à época, ele era um homem de energia infatigável e dedicou-se ao alvo mais importante de todos: a Inquisição.

Defensor do livre-comércio e das ideias do Iluminismo, Pombal não tinha nenhum apreço pela Inquisição. Considerava-a ultrapassada e um empecilho ao crescimento econômico por meio de sua perseguição à classe comercial dos convertidos, e se deleitava tolhendo os seus poderes. Em 1768, Pombal colocou a censura sob a égide do Estado, tirando-a das mãos da Inquisição. Em 1769, subordinou a Inquisição ao poder real e ordenou que todas as propriedades confiscadas passassem ao Estado. Um decreto de 1773 aboliu o preconceito legal contra os convertidos, e no documento comenta que esse preconceito era contrário ao espírito e aos cânones da Igreja universal; com isso, arruinou a lógica da Inquisição portuguesa, demonstrando que alguns de seus princípios eram contrários à verdadeira teologia católica.

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Aquelas reformas radicais devem ter deixado os portugueses bastante perplexos. Em 1750, a Inquisição era um bastião da sociedade, com sua posição inatacável; por volta de 1774, embora não a tivesse abolido, Pombal subordinou-a à Coroa e abriu o caminho para sua completa extinção. Além disso, de certa maneira, a instituição se voltara contra si mesma ao queimar, em seu último auto, um membro da ordem jesuítica que a havia apoiado com tanto afinco ao longo de sua história.

Contudo, isso não é surpreendente. A Inquisição sempre havia sido, afinal de contas, uma instituição através da qual se canalizavam os desejos dos setores mais poderosos da sociedade de encontrar bodes expiatórios e por meio da qual se fomentava a paranoia.

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Nesse momento crucial da história da Inquisição, a perseguição que sempre promovera se voltou contra ela. A paranoia promovida por ela significava que as ameaças à sociedade eram sempre críveis; contudo, dessa vez a ameaça era personificada por seus aliados, os jesuítas. Assim, como um bumerangue, a cultura da paranoia voltou-se contra a instituição. Enfraquecida, estagnada e cercada, a Inquisição não conseguiria resistir à violência de seu próprio poder.

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ATACADA EM PORTUGAL, na Espanha a Inquisição continuou completamente comprometida na luta contra o Iluminismo. Assim, enquanto a França desfrutava de uma renovação intelectual com Diderot, Montesquieu e Voltaire, na Espanha os proponentes das ideias desses pensadores eram atacados.

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O primeiro delator foi Carlos Redonc, criado do marquês de Cogulludo [que nome!], que contou que em Valdeaveiro, o palácio de Olavide, havia centenas de “pinturas extremamente escandalosas” que podiam “provocar a sensualidade”. Outra testemunha, Francisco Porvelo, continuou falando sobre as pinturas “provocativas”, que segundo ele retratavam “mulheres aparentemente jovens, com as pernas e os seios descobertos, fazendo acordos com ermitãos”. Enquanto isso, o escândalo foi exacerbado pelo fato de Olavide ter montado sua alcova num aposento que fora um oratório e onde tinham sido realizadas missas. Tudo isso, além do grande número de livros que possuía — o que, por si só, já era suspeito —, foi o suficiente para criar sua reputação de inimigo da religião.
Essa imagem já estava claramente difundida. Ao saber que Olavide fora nomeado corregedor-assistente de Sevilha, o conde de Santa Gadea declarou: “Esse Olavide pratica a mesma religião que a mula que puxa minha carruagem.”
…...Dizia-se que possuía um retrato de Voltaire, o grande inimigo da Inquisição, e alguns inclusive afirmaram que ele conhecia esse importante personagem do Iluminismo. Olavide não só era blasfemo e duvidava de milagres, afirmava a Inquisição, como também havia declarado que, se os autores dos Evangelhos nunca os tivessem escrito, o mundo seria um lugar melhor. Estava “contaminado pelos erros de Voltaire, Rousseau e outros, responsáveis pela grande infâmia de nosso século”. Pior ainda, havia introduzido bailes públicos e festas à fantasia nas cidades espalhadas pelas colinas marrons da Sierra Morena, ao norte de Sevilha. Seu escárnio pela hierarquia da Igreja católica podia ser resumido na pergunta à queima-roupa que dirigiu a um padre da cidade de Nueva Carolina: “O que vossa mercê acha da fornicação?” Escandalizado, o padre não se atreveu a registrar a resposta.

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Todos vivem momentos de paranoia. Desenvolvemos medos infundados de que as pessoas não gostam de nós. Preocupamo-nos durante muito tempo com coisas que dissemos quando os interlocutores já as esqueceram. Vemos ameaças onde elas não existem. Mas então, quando recuperamos nosso senso de proporção, reconhecemos a paranoia como tal, e nossa própria parte nela.

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EM 18 DE MAIO DE 1776, Ignacio Ximénez, notário da Inquisição de Córdoba, recebeu uma carta do padre de Nueva Carolina, cidade onde Pablo de Olavide escandalizara o padre local. A carta denunciava Olavide por semear ideias perigosas entre os camponeses de Nueva Carolina, com base em um livro que trouxera da França: “Foi proposto”, escreveu o padre, “o ensinamento na Sociedade Agrícola e Industrial de alguns capítulos do Dicionário, que tratam de indústria, fábricas e comércio”. O padre estava indignado, pois, como observou, “eu sabia que, segundo as proibições francesas, havia capítulos perigosos nessa obra [...] e era minha obrigação opor-me à sua leitura”.

O medo das ideias iluministas entre os círculos inquisitoriais era tão grande que os livros que traziam novas ideias técnicas e científicas eram frequentemente proibidos. Quando, em 1748, o matemático Juan Jorge escreveu um livro defendendo a ideia de que o Sol ocupava o centro do sistema solar, o inquisidor Pérez Prado procurou bani-lo com base no processo de Roma contra Galileu no século anterior.

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Como comentou o frade Andrés de la Asunción em 1783, frases de livros eram censuradas por serem “cúmplices da tolerância”.

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Entre 1746 e 1755, Voltaire, Montesquieu e Rousseau escreveram livros capitais, e a Inquisição reagiu proibindo o conjunto de suas obras em 1756. Entre 1747 e 1787, foram pregados nas portas das igrejas e dos conventos 36 éditos proibindo livros; um só édito, em 1750, proibiu sessenta livros.

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A Espanha se dividiu em dois campos: uma facção burguesa liberal e uma ala não burguesa conservadora, cisão que perduraria por séculos.

A nova divisão foi condensada no processo contra os irmãos Bernardo e Thomas Iriarte, que teve início em Madri, em 1778. Eles eram figuras bem-sucedidas da sociedade madrilena do século XVIII; Tomás era romancista, e Bernardo, que entrou para o Ministério do Interior ao regressar a Madri, tinha servido como diplomata em Londres. Os Iriarte mantinham uma espécie de salão, em Madri, no qual se discutiam ideias religiosas, o que escandalizou os mais ortodoxos com os quais conviviam. Um deles, José Antonio de Roxas, do Chile, observou que os ouvira dizer que a única razão da ignorância espanhola era a Inquisição.

Esse era um refrão constante entre as classes esclarecidas da Espanha no século XVIII. Muitos apoiavam a Inquisição, como o próprio Jovellanos admitiu, mas figuras influentes nas artes e na política a culpavam pelo crescente atraso intelectual e material da Espanha em comparação com o restante da Europa.

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Era impossível conter a libertinagem e o escárnio sobre a Inquisição e sobre tudo que ela prezava. Em 1803, foi proibida a importação de certos leques franceses que, ao abrir e fechar, mostravam um frade capuchino e uma mulher em “posições indecentes”; os leques eram vendidos ao redor da Plaza Mayor e da Puerta del Sol, em Madri, e “praticamente não havia mulher que não tivesse um, pois estavam no auge da moda”. Quando, alguns anos depois, um frade se queixou a uma vendedora que expunha enfeites de porcelana retratando figuras indecentes, ela se recusou a entregar-lhe as peças e seu filho acrescentou: “Talvez o bom frei queira se entreter com elas em seu quarto.”

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Em um artigo publicado em 1782 em Paris, Nicolás Morvilliers descreve a Espanha como uma nação “atualmente paralisada”. Segundo ele, isso devia-se ao medo do conhecimento e da ciência, evidente na censura inquisitorial de livros.

“O orgulhoso e nobre espanhol tem vergonha de se educar, viajar, tratar com outros povos”, escreveu Morvilliers. “O espanhol possui habilidades científicas”, ele acrescentou, “e tem à disposição muitos livros para ler, mas essa é provavelmente a nação mais ignorante da Europa [...] todos os livros estrangeiros são confiscados, avaliados e julgados [...] um livro impresso na Espanha passa por seis atos de censura antes de ver a luz do dia”. O resultado, na opinião de Morvilliers, era a estagnação das ciências naturais na Espanha, enquanto no restante da Europa elas estavam no auge. “O que se deve à Espanha? [...] Arte, ciências e comércio foram extintos [...] na Espanha não há matemáticos, físicos, astrônomos ou naturalistas.”

O artigo causou furor na Espanha, e muitos o atacaram com insultos e defenderam a vitalidade das ciências no país. Porém, analisadas atentamente, essas “ciências” referiam-se às humanidades, que versavam sobre temas como gramática, jurisprudência e teologia. Ninguém conseguia apontar exemplos de expoentes das ciências naturais na Espanha.

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PARA ASSEGURAR e manter seu lugar no coração da sociedade, uma instituição persecutória deve contar com apoio popular. Como explica Hugh Trevor-Roper, “sem as tribunas do povo é impossível organizar a perseguição social”. Contudo, uma vez que as tensões sociais se acalmam, as massas se escondem novamente nas suas vidas respeitáveis, e a culpa passa a ser atribuída às instituições que recebiam sua aprovação silenciosa. Assim, a sociedade utiliza como bodes expiatórios as instituições que promoviam a caça aos bodes expiatórios, para que paguem por seus próprios crimes.

A Inquisição sempre foi um movimento com apoio popular em Portugal e na Espanha. Assim que ela foi criada, as pessoas não corriam para denunciar convertidos? Será que a Inquisição não foi um produto da mentalidade popular, em vez de sua causa? Na verdade, ela foi ambas as coisas; a Inquisição não poderia ter prosperado sem o apoio popular, mas usou os poderes que esse apoio lhe conferiu para moldar as ideias do povo.

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O poder da Inquisição simbolizava a crescente força do Estado, que acompanhava a modernização. Era o princípio do totalitarismo. Todavia, nos mundos da Inquisição o apoio popular à agressão, à expansão e à perseguição estava sempre em tensão com a resistência a elas.

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….;houve duas revoltas populares contra a Inquisição na Espanha, em 1591; e uma multidão apedrejou um inquisidor no Rio de Janeiro em 1646. [Laura de Mello e Souza -O diabo e a terra de Santa Cruz, – 1987]

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A repressão regressara à sua origem: a instituição que antes procurara bodes expiatórios por toda parte tornou-se o bode expiatório de todos os males da Espanha.

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No final do século XIX, um dos defensores da visão conservadora da história espanhola, que voltara a predominar nos círculos intelectuais e políticos, era Marcelino Menéndez y Pelayo, um homem notável pela precocidade intelectual e pela verborragia. Aos 27 anos, publicou uma história em oito volumes, lida ainda hoje, sobre as ideias e os pensadores espanhóis não ortodoxos, incluindo muito material sobre a Inquisição. Menéndez y Pelayo era um defensor ferrenho do papel da Inquisição na formação da sociedade espanhola. Ele argumentava que “a intolerância é uma lei inata à inteligência humana saudável”: a inteligência ativa buscava a verdade e depois tentava impô-la aos demais, sendo intolerante em suas ideias.

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Foi difícil descartar inteiramente o ponto de vista de Menéndez y Pelayo sobre a intolerância da mente humana. Era cada vez mais fácil apontar os responsáveis por diversos males: os inquisidores por sua venalidade e seu apego ao poder, os torturadores por seu sadismo e os belicosos por suas guerras, das quais os intelectuais liberais muitas vezes se beneficiaram indiretamente. Assim, a visão liberal também precisava de inimigos, os quais, como ocorreu com a Inquisição, eram renovados de acordo com a mudança das estações intelectuais e a passagem do tempo.

Seria possível afirmar que a atitude inquisitorial de alguma forma foi uma precursora inevitável da condição humana moderna? Não há dúvida de que ela teve inúmeros sucessores, ao menos por analogia. Houve a rede de informantes da Stasi, conhecida como Inoffizielle Mitarbeiter, que durante a Guerra Fria se espalhou pela Alemanha Oriental como familiares inquisitoriais para monitorar os politicamente incorretos; e os carrascos de Mao Tse-tung, que amputavam a laringe de suas vítimas para que não pudessem protestar, assim como as vítimas dos autos de fé eram amordaçadas, e que cobravam das famílias dos mortos as balas usadas para executá-los, assim como as vítimas da Inquisição tinham que pagar pela tarefa de seus torturadores.

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Nas décadas posteriores à abolição da Inquisição, a tarefa de compreender sua dinâmica psicológica foi cada vez mais transferida aos romancistas. Exemplos clássicos são Dostoievski, com sua devastadora alegoria do “Grande Inquisidor” em Irmãos Karamazov, e o retrato de uma perseguição inquisitorial burocrática na história de Joseph K. em O Processo, de Kafka. É impossível esquecer as andanças de K. atrás de um pedaço de papel insignificante cujo nome ele desconhecia e sua súbita execução depois de um encontro na catedral. Outro autor que usou esse tema foi Elias Canetti. Como eu, Canetti descendia de judeus ibéricos, os primeiros alvos da Inquisição. Isso foi um empecilho à objetividade, mas talvez permita um nível de empatia que, espera-se, libere as emoções produzidas pela Inquisição em vez de esmagá-las. Uma das obras mais conhecidas de Canetti é o romance Der Blendung, publicado na Áustria em 1935 e traduzido para o inglês sob a supervisão do autor como Auto de Fé.

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O DEBATE das propostas apresentadas pela comissão para o futuro da Inquisição espanhola foi inaugurado em Cádiz, em 4 de janeiro de 1813. Agustín de Argüelles, membro da comissão, defendeu suas opiniões, reiterou as dificuldades envolvidas no restabelecimento de uma Inquisição sem um inquisidor-geral e acrescentou que a instituição, em vez de promover a pureza da religião, havia contribuído para arruiná-la, ao “encorajar denúncias [...] e se basear na honestidade dos juízes, tão cheios de maldade quanto qualquer homem”. Prosseguiu acusando a Inquisição de ter secado as fontes do Iluminismo e expulsado da Espanha todos os homens talentosos e esclarecidos.

Argüelles foi apoiado pelo conde de Toreno, que ressaltou a falta de um inquisidor-geral e a oposição da Inquisição ao Iluminismo; ele declarou: “A Inquisição sempre se dedicou a vigiar e investigar a conduta dos homens sábios e da intelligentsia [...] não consigo pensar em nenhuma pessoa esclarecida que eu conheça que não tenha sido ameaçada pela Inquisição.” Houve muitos, porém, que falaram a favor da instituição. Alguns deputados comentaram que a nação não era composta unicamente de pessoas esclarecidas ou que gostavam de novidades, mas de gente comum, e que essa gente preferia a continuidade da Inquisição. Outros afirmaram que as Cortes não deviam tratar de assuntos relacionados a crenças, e que deviam se limitar a defender a fé, o que, na sua opinião, equivalia a manter a Inquisição.

Os críticos da Inquisição nas Cortes armaram um estratagema. No dia 16 de janeiro, quando muitos de seus oponentes assistiam ao funeral do bispo de Segóvia, os liberais aprovaram às pressas um decreto segundo o qual “a religião católica apostólica será protegida pelas leis que conformam a Constituição”. A Inquisição estava condenada; em 22 de fevereiro de 1813, o decreto da abolição foi aprovado. Os livros proibidos foram imediatamente postos à venda, anunciados como “obras proibidas pela Inquisição”. Nos desfiles de mascarados da Quaresma, pessoas fantasiadas de bispos portando machados flamejantes iam de praça em praça para ler o decreto da abolição. Em Cádiz, centro da Espanha burguesa e internacionalista, a comemoração estava no ar.

[Segue-se descrição de acontecimentos relativos ao fim da Inquisição na independência dos países latino-americanos.]

Enquanto isso, em Portugal, os acontecimentos eram igualmente dramáticos. A Inquisição foi declarada abolida pelos liberais quando a família real portuguesa fugiu das tropas de Napoleão, em 1807; os escritórios da Inquisição foram saqueados, e o inquisidor-geral fugiu para o sudoeste da França.

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Pobre Península Ibérica! Portugal e Espanha, antigas sedes dos maiores impérios do mundo, estavam arruinados. Havia divisões por toda parte. A Inquisição tentara produzir uma ideologia unificada e perseguiu as ameaças quando e onde as encontrou, mas só conseguiu presidir o declínio imperial. Não se pode dizer que a perseguição ao inimigo tenha contribuído para a prosperidade ou para melhorar a vida do povo. Ela resultou em repressão e frustração. Da frustração brotou a raiva, e dela o rancor mútuo.

O cenário para uma amargura crescente estava montado. Com o tempo, as divisões produziriam o terrível conflito da Guerra Civil Espanhola e o antagonismo entre conservadores e liberais que antecedeu o regime de Salazar, em Portugal. O inimigo nunca desapareceu. A Inquisição ajudou a persegui-lo, mas, como consequência, a divisão que se produziu ficou mais larga do que um oceano. A paranoia em Portugal e na Espanha transformou a prosperidade em decadência. Foram a intolerância da sociedade imperial e a perseguição às ameaças ilusórias que carregaram seu próprio império pelos arroios melancólicos do esquecimento.


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