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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Fragmentos 10

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Gogol – Almas Mortas

Pg 233 – A geração atual vê tudo claro, admira-se dos erros e ri da insensatez de seus antecessores, sem perceber que a história é traçada com o fogo divino, que grita cada letra com que é escrita, que de toda a parte lhe é apontado um dedo acusador, precisamente contra ela, a geração atual, que, no entanto, continua a zombar e, cheia de presunção, começa a cometer novos desatinos que por sua vez serão objetos de chacota da posteridade.

A corrupção exercida por Tchitchikov. Pg 256 – obra governamental de suma importância. “Foi criada uma comissão que levou 6 anos a agitar-se em torno do edifício; contudo, por causa do clima ou do material, o fato é que as obras se recusavam terminantemente a ir além dos alicerces. No entanto, em outros pontos da cidade surgia, para cada membro da comissão, um belo palácio de arquitetura civil. Saltava aos olhos que ali o chão suportava melhor o peso dos materiais de construção. Os membros já começavam a prosperar e a fundar famílias. E agora também Tchitchkov começava aos poucos a livrar-se das secretas leis da abstinência e de seu implacável espírito de sacrifício”.

Segue a descrição dos apuros de Tchitchkov, de sua desgraça e da tentativa de reabilitação . Sobre seu trabalho na Alfândega: “e algumas coisinhas que não eram registradas para evitar excesso de papelada”.

Gogol oferece uma excelente sátira sobre a sociedade russa do século XIX. E com surpreendentes semelhanças com o Brasil de ontem e hoje. Leitura recomendada para quem vasculha os clássicos russos.

Ukaze – decreto de Stálin estabelecendo uma pena para um tipo de delito.


A. Soljenítsin – Arquipélago Gulag

O famoso depoimento de um ex-presidiário dos campos de concentração da Rússia do pós-guerra. Uma coleção de todos os procedimentos do sistema político e social que destruiu uma das sociedades que prometia ser a mais desenvolvida do mundo, e que acabou por dizimar todas as pessoas que demonstravam talento, independência de caráter, inteligência e sagacidade. Inicia com um brado de espanto por tudo o que aconteceu na Rússia ter sido considerado irrelevante para o resto da humanidade. A perplexidade dos russos, a maioria revolucionários e fiéis ao regime, com as acusações absurdas que destruía famílias e reduzia a pó todo o futuro de um país.

Nas pgs 174 – 177 Soljenítsin analisa a questão humana daqueles que se deixam degenerar pelo sistema, e ainda guardam os traços de uma integridade perdida. Qual é o limiar humano, acima do qual tudo está perdido?

A ideologia forneceu a “justificação para a maldade, para a firmeza necessária e constante do malfeitor. Ela constitui a teoria social que o ajuda, perante si mesmo e perante os outros, a desculpar os seus atos, e não escutar censuras nem maldições, mas sim elogios e testemunhos de respeito. Era assim que os inquisidores se apoiavam no cristianismo, os conquistadores no enfraquecimento da pátria, os colonizadores na civilização, os nazis na raça, os jacobinos (de ontem e hoje) na igualdade, na fraternidade e na felicidade das gerações futuras”. Pg 176.

Nas pgs 178-179 fala do julgamento de 86 mil nazis na Alemanha e do fato de só 10 pessoas do aparato de segurança terem sido julgados por crimes na URSS após a morte de Stalin. Como pode uma nação purgar os seus pecados se mantém intocáveis seus criminosos?

“A crueldade faz aumentar obrigatoriamente o sentimentalismo. É a lei da compensação.

Pg 284 Soljenitsin fala das “Bases do sistema penal da URSS” reformada em 1958 em que os funcionários judiciais esqueceram de inserir um ponto sobre a possibilidade de uma sentença de absolvição”. O próprio órgão do governo respondeu-o de modo brando. “Isso pode dar a impressão que nos tribunais só proferem sentenças condenatórias”.

Nacos:
Loira tipo cavalona.
[Procurar IVANOV – RAZUMNIK – Prisões e deportações; Krilenko]
Manigância — Arte de prestidigitador.[Popular] Artes de berliques e berloques (!). Pequena intriga, trapaça, manobra misteriosa.
PRUGAUIN – Prisões dos Mosteiros.

Soljenitzin diz na pag 455 que não gosta da denominação de esquerda e direita porque são permutáveis, arbitrárias e não dão conta da essência.

Referindo-se as discussões trocadas na prisão com jovens recém-chegados (pg 577) lamenta sua postura ortodoxa, com a seguinte observação: “naqueles dias eu me aferrava a interpretação do mundo que impede de aceitar novos fatos, captar novas ideias a menos que vinham com uma etiqueta de boa procedência! Isso pode ser denominado de dissensão versátil e de pequena burguesia, ou se preferirem, o niilismo militante dos intelectuais decadentes”.

O clássico trabalho de Soljenitzin que lhe valeu como referência para a descrição do horror stalinista de todos os tempos constitui um misto de testemunhos de colegas de infortúnio com sua experiência pessoal pela maior tragédia humana do século XX, executada sob a fé em uma ideologia pretendendo purificar a sociedade em nome de uma profecia histórica.

Com sensibilidade literária para descrever os tormentos das almas humilhadas, dos corpos espancados, dos seres humanos amontoados em trens, celas e dormitórios, famintos, submetidos as piores condições de existência imagináveis, Soljenitzin vai apresentando as narrativas dos horrores em todos os quadrantes da Rússia transformada em matadouro sob o comando de um maníaco depressivo transformado em semideus.


Mario de Andrade – Café

“Uma das manifestações humanas mais chocantes de todo o Nordeste é a conservação, muito generalizada ainda, dessa psicologia escravista que divide claramente a coletividade nordestina em classes: o senhor e o escravo. No indivíduo nordestino intelectualizado, a psicologia do mandão permanece intimamente viva. É a maneira de mandar, ou simplesmente de pedir, é a intimativa, que hoje nós do Sul podemos imaginar que foi do senhor de escravos. O nordestino intelectualizado continua mandando desse jeito”. (pg 137)

Como exemplo cita a visita de um sulista a um abastado nordestino em que este, depois do laudo almoço chama um servente da casa, ocupado na lavagem dos pratos e manda o rapaz mostrar como se dança a conga. O coitado rebolava sem graça para satisfazer o patrão que dizia as gargalhadas: tá vendo, tá vendo!

O livro é ruim e só foi editado por servir de instrumento de carreira de professores universitários. Não tem importância para a literatura nacional. De Mario de Andrade nos basta Macunaíma e Pauliceia Desvairada.

Infelizmente é um retrato da carreira de letras na burocracia acadêmica.


Alvaro Moreyra – Havia uma Oliveira no Jardim

Livro de crônicas, anotações, epifanias sobre os 70 anos do escritor portoalegrense. Fala do cotidiano, do nosso teatro nos anos 50 no Rio de Janeiro. Uma espécie de Mario Quintana avant la lettre.


O Espelho de Próspero — Richard Morse

Acabei de reler e concluí que apesar de sua sensibilidade, de suas diagonalizações com a literatura, Morse não avançou no problema central latino-americano. Como todo schollar, seu trabalho é completamente bookish.

O defeito principal deste tipo de analista consiste na ignorância da realidade econômica, apesar de todo o cabedal de erudição com que descortinou os principais acontecimentos do mundo latino-americano.

Ele investiga nossa raiz ibérica mas mesmo entendendo a problemática da Contrarreforma, não a vê como uma arquitetura moral e política contrária ao capitalismo.

Ao final, ao abordar a “contribuição” da Escola de Frankfurt, perde completamente o rumo, encerrando o livro em um solipsismo eclético.


Poesia e Repressão – Harold Bloom

Abandonei A. Bloom na pag 66. Achei o enfoque insalvável. Nas primeiras 20 pgs me surgiu a desconfiança de Ezra Pound de que não devemos confiar na crítica literária de quem não escreve.

Olhando o perfil de Bloom na Wikipedia fiquei sabendo que abandonou a escrita para se dedicar à crítica teórica porque “suas obras foram miseravelmente recebidas pelo público”. Para um novaiorquino isto pode representar duas coisas: 1) um mau escritor ou 2) alguém que escreve fora do cânone literário americano, isto é, o estilo jornalístico dominante nas comunidades literárias dos EUA.

Ao perceber que Bloom se declara um pós-modernista associado à pior corrente da crítica francesa (Derrida, Lacan) entendi que devia abandoná-lo. Ao menos neste livro: vou tentar ler O Cânone Ocidental, mas desconfio borgianamente de tudo aquilo que se considera cânone numa época, pois tenho certeza que as mudanças no gosto leitor é um fato inelutável na velocidade do progresso humano intelectual deste século XXI.

O que torna Bloom desinteressante são suas referências eruditas (Vico, a Cabala, a Bíblia), e suas discussões pouco afeitas ao entendimento, e mais afrancesadas no esteticismo hiperbólico vazio.

O academicismo americano representa a conquista da independência de uma classe intelectual que outrora devia prestar contas à sociedade, e hoje, latinamente, vive para suas paróquias autocentradas e em seu esnobismo delirante.


Menotti Del Picchia – Salomé

Consegue coordenar os personagens utilizando a parábola bíblica para construir sua novela antes de J.L.Borges.

Considero que a complexidade dos personagens dificulta a leitura para o leitor que não consegue saber quem são os protagonistas e que são os personagens secundários.


Olavo Bilac — Vossa Insolência

Achado em 20/10/15 em uma prateleira de supermercado. Fui direto às crônicas políticas (última parte).

Pg 346: “A palavra República tinha significação amplíssima. Não é uma palavra: é uma hospedaria, um albergue, em que moram várias ideias disparatadas. É mais do que isso: é uma caravançará em que se abrigam mil caravanas de credos políticos. No regime republicano (principalmente o nosso) cabem aristocratas, democratas, monarquistas, oligarcas, socialistas, anarquistas, plutocratas”.

Pg 351 – “quando um sujeito se mete sinceramente a querer salvar a pátria – perde-se e perde a pátria”.

“Lata porta quae ducit ad perditionem” – a porta larga que conduz à perdição. Gostei da maioria das crônicas do O.B. Elas nos oferecem um quadro do Rio do começo do século passado, falando com propriedade da falta de saneamento, da malária, da pobreza e dos ônibus, da emancipação feminina, do trabalho de exploração infantil e de muitas coisas da vida social de então. A sensibilidade poética de O.B transparece na riqueza de descrições da alma brasileira e seus eternos dilemas.

“No silêncio que superveio”.

“Deviam fazer sacrifícios humanos – de judeus, por exemplo – para resgatar o “não vingado crime do Gólgota”. Uma reminiscência da Inquisição.


Simonsen X Gudin – A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira – IPEA 3a edição

Pg 40 – O desenvolvimento relativamente fraco do uso da energia elétrica é devido, em parte, à política governamental. Por decretos federais, as empresas elétricas de capital estrangeiro foram proibidas de aumentar as suas instalações. As tarifas congeladas e algumas arbitrariamente reduzidas. Como, provavelmente, cerca de 80% das empresas hidrelétricas pertencem a estrangeiros, daí resultou uma estagnação no seu desenvolvimento. Repete o argumento na pg 54.

Gudin traduz “Vested Interests” por Interesses Reacionários.

R Simonsen se engana com relação ao planejamento econômico da Rússia, creditando a ele o sucesso da reconstrução industrial no período da 2a guerra. E Gudin também se engana parcialmente, embora tenha enfatizado com correção que o escravismo russo dos tempos do czarismo tenha propiciado a aceitação pela violência da coletivização.

Gudin é mais convincente do ponto de vista econômico, mas Simonsen esclarece a dificuldade de implantar a teoria liberal no Brasil em virtude do meio cultural.

Tenho enfatizado que o liberalismo brasileiro não fez a devida adaptação à cultura nacional, e esta falta transparece claramente na atividade política onde os liberais tendem a se transformar em partidos do governo, seja este qual for e notadamente deram vitória a Lula em 2002 através do PL de José de Alencar e depois apoio institucional à Dilma através do PSD. Gudin é clássico e Simonsen profano, típico representante da indústria nacional que quer o governo de seu lado mas não desconfia que esta paridade só favorece a sua destruição pelas forças políticas.

O debate é bastante interessante e pretendo ler algumas partes deste livro outra vez.


Guilhermo Rosales – A Casa dos Náufragos

Uma boa novela cubana do exílio. Trata-se da vida dos deficientes mentais abrigados em asilos de Miami chamados de “Boarding House”. O estilo de Rosales é direto e curto, conciso, sem traços do brilhantismo barroco dos grandes mestres cubanos. A geração de exilados totais, como ele se denomina, exilados de país e de si mesmos, provocou esta reviravolta na literatura cubana, a exemplo de Reinaldo Arenas.

O tema do esquizofrênico explorado por dirigentes inescrupulosos, cuja ambição é o retrato do salve-se quem puder da vida em Miami, mostra como a geração de exilados que viveu sob o comunismo apodreceu espiritualmente, em contraste com a primeira geração que escapando sem viver o drama da perseguição, conseguiu facilmente adaptar-se e prosperar nos EUA, mantendo com a terra natal apenas a nostalgia da juventude. GR terminou suicidando-se aos 47 anos de idade, tal como R Arenas, no triste destino apontado por Cabrera Infante no seu O Suicídio em Cuba.

A personalidade de Rosales foi muito bem examinada no posfácio que lhe dedicou Ivette Leyva Martinez. Só foi resgatado do anonimato pelo sempre generoso Octavio Paz, que jurado em um concurso de escritores hispânicos nos EUA, concedeu-lhe o prêmio. O romance é autobiográfico e Rosales descreve a si mesmo como o louco convivendo entre cubanos completamente derrotados pela doença mental e impotência existencial, os incapazes que Castro despachou com os marielitos nos anos 80.


Sobre a Conspiração –
Não é preciso falar em marxismo, socialismo, comunismo, luta de classes ou qualquer chavão que identifique a esquerda dinossáurica: basta saber que infiltrada no aparelho estatal onde penetra por identidade genética – se dedica a expandir a burocracia de forma tão igual ao existente na tradição brasileira, que o observador fica confuso em determinar quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha. Um sistema que se diz revolucionário e a evolução natural do capitalismo em um novo estágio, mostra-se na prática uma imagem espelhada dele. Ou melhor, não dele capitalismo, mas do nosso estatismo recorrente. Ambos tratam de exercer o controle da sociedade em nome do bem comum que só o estado sabe qual é, e que só o estado representa. E este bem comum, dissimulado em saúde, educação e segurança, se presta para o garrote exercido em nome do controle de processos, de requisições normativas, de estatísticas, de comprovantes, de certidões e todo o diabo que atrapalha os produtores do outro lado da sociedade.

Portanto, é uma tolice achar que o esquerdismo precisa ser identificado pelo discurso e não pela prática. E, em se tratando de prática, nosso burocratismo representa o repositório por onde as ideias de igualdade se alicerçam ontem e hoje, no passado colonial e republicano como no presente bolivariano, porque o estado sendo um ente moral, sempre será a superestrutura atabalhoada, lerda, dispendiosa e improdutiva que serve de abrigo inelutável de qualquer ideologia coletivista.

Se as identidades práticas não conferem com as teóricas, a política deve mostrar as diferenças. A longa presença do PT nas casas legislativas permitiu entender perfeitamente como age a moral socialista no combate aos desvios de conduta de adversários. São os primeiros a pular na tribuna, a dar entrevistas na imprensa, a se manifestar onde quer que estejam sobre a amoralidade dos oponentes e a fazer petições, denúncias, representações contra aqueles a quem a prática do mal seja apenas e meramente uma suspeição. A suspeição não é uma anormalidade na consciência. Ao contrário, a suspeição consiste em um lento aprendizado que inicia na infância e atravessa a vida adulta para preparar o indivíduo contra a sociedade, que seria a fonte e raiz de todos os males. No entanto, a mesma conduta moral não se aplica a seus seguidores. Os erros do grupo são devidos ao regime e não a eles, próceres puros da mudança social, cujos defeitos são veemente negados por se tratar de uma vítima social, não cabendo tal distinção àqueles a quem acusam.

A burocracia silencia quando falha em detectar transgressões em grande escala nas castas superiores do país, o motivo pela qual foi criada, mas se torna impertinentemente moralizadora quando se trata dos suspeitos da sociedade civil.

Por isso, o socialismo não precisa se identificar por seu nome. Ele pode ser construído apenas pela expansão do estado burocrático que coloca seu aparelho de vigilância sobre toda a sociedade na forma de controle da atividade econômica e moral dos cidadãos, na liberdade ilimitada de sancionar qualquer empresa que esteja fora do inextricável círculo tributário, mas totalmente incapaz de atingir os “escolhidos” do alto bordo.

Uma burocracia que em si mesma é um socialismo real que se autodenomina de democracia, passa despercebida como tal pela vida política da sociedade, e se insere na continuidade de um regime propelido por sua própria herança cultural de um estado absolutista que se transformou em uma república autocrática, sem os fundamentos mais elementares da organização social democrática.

O erro insalvável do conservadorismo teocrático consiste em achar que se pode mudar essa herança cultural pela preparação do intelecto sem reformas sociais profundas no aparelho de estado. Com isso, o círculo se fecha e o país não consegue sair de seu mesmismo sufocante.

Nacos:
PLEONEXIA – O desejo de ter sempre mais, segundo os gregos.
PAREDRO – mentor, conselheiro, manda-chuva
PERFUNCTORIAMENTE – 1. que se faz de modo rotineiro, em cumprimento de uma obrigação. 2. que tem pouca utilidade; ligeiro, superficial.


Rory Carrol – Comandante

Um livro sobre o coronel Hugo Chávez e a tragédia venezuelana. Carrol é jornalista do The Guardian, e mesmo com sua visão social-democrata, consegue perceber o afundamento do país no progresso do populismo distributivista de Chávez que, de um lado concedia benefícios e de outro, liquidava com as instituições democráticas uma a uma progressivamente, até se consolidar como ditador, terceirizar o comando do país com Cuba e exilar uma parcela considerável da elite profissional venezuelana para Miami. Fala das deslealdades de Chávez para com seus amigos e até para o general que lhe salvou do golpe de 2002, de sua progressiva perda de escrúpulos a medida que começava a faltar dólares para a importação de mercadorias vitais para uma Venezuela empobrecida com uma das maiores reservas de petróleo do mundo. Situação que viria a se agravar com Maduro e que colocaria a Venezuela de hoje frente a uma crise institucional que só uma revolução contra a ditadura poderá salvá-la (13/1/16).


Jeffrey Lesser – A Invenção da Brasilidade – UNESP 2015

Interessante estudo da imigração brasileira em todos os tempos com excelentes fontes de dados, permite o conhecimento dos estrangeiros que fizeram o Brasil vindo de toda a parte. Em 1 século (1872 a 1972) mais de 5 milhões de estrangeiros chegaram ao Brasil. O autor narra casos de maus tratos infligidos aos imigrantes alemães e italianos levados para as fazendas de café onde os recém-chegados recebiam o mesmo tratamento dos escravos negros e se submetiam ao regime de compra forçada de insumos próprios no armazém da feitoria (algo que conheci do estudo da extração do látex), e com débitos cada vez maiores forçando as fugas para centros de colonização do sul onde vigorava o regime da pequena propriedade de colonos livres.

Chamou a atenção para o tratamento dado aos colonos italianos pelo Senador Vergueiro, praticando os costumes de prepotência e maus tratos da escravidão, além da exploração impiedosa do trabalho nas fazendas de café de sua propriedade.

Um caso interessante é o de Angelo Longaretti ocorrido na fazenda Nova América de propriedade do irmão de Campos Sales, e envolvendo seu filhos com as 3 filhas de 15, 17 e 19 anos do patriarca Angelo. O caso terminou em assassinato de Raul, filho de Salles ao tentar raptar uma das filhas. Angelo fugiu e foi protegido pelos colonos das imediações. A colônia se quotizou para pagar um célebre advogado para inocentá-lo do processo ocorrido à revelia do réu, onde mesmo assim foi condenado a 12 anos de prisão.

Saindo Campos Salles do governo em 1908 seu caso foi a um segundo julgamento, onde foi inocentado. A família voltou para a Itália onde Angelo morreu em 1960, sem nunca mais ter retornado ao Brasil.

Outro caso interessante foi a da vida cultural dos imigrantes, com cinemas, como o Belém onde orquestras animavam o cinema mudo e espetáculos musicais e teatrais eram levados em língua estrangeira. O caso de PIMPINELLA merece registro, pois se trata de um romance folhetinesco ao estilo das novelas da Globo. A beleza estonteante de Pimpinella foi a causa da perdição de um próspero comerciante sírio da Av. Celso Garcia que caído de amores por ela cometeu tantos desatinos, que acabou “falando sozinho”, uma repetição bem conhecida do drama da paixão arrebatadora desde Shakespeare, em Romeu e Julieta e Molière, de O Burguês Ridículo, para não citar a abundante literatura do século XIX até hoje.

Chama a atenção nas tabelas de estatísticas, o nr. de imigrantes que retornaram ou no mínimo, foram para outros países, deixando o Brasil certamente desiludidos com nosso sistema social.

Pg 140 – sobre o controle social imposto aos imigrantes nas fazendas. “As horas de sono eram rigidamente controladas por um sino conhecido como SILENZIO, e os proprietários puniam os infratores. Os fazendeiros “avançados” usavam multas em dinheiro, enquanto os mais tradicionais aplicavam castigos físicos àqueles cujas luzes continuassem acesas após o toque do sino. Os que adoeciam ou faltavam ao trabalho eram descontados no pagamento e também multados.

Os fazendeiros também se beneficiavam com as vendas da fazenda, onde gêneros de baixa qualidade eram vendidos a preços absurdamente altos. Embora a maioria dos contratos permitisse que os imigrantes cultivassem horta e criassem animais em suas horas livres, o excedente só poderia ser vendido ao fazendeiro, geralmente por preços inferiores do seu valor de mercado. Como os fazendeiros se recusavam a pagar em dia os salários, a carga das dívidas só fazia aumentar: uma estimativa realizada em 1902 pelo governo italiano sugeria que 60% dos fazendeiros estavam atrasados no pagamento. Os proprietários culpavam os preços do café, mas nem os tempos de bonança faziam com que os salários fossem pagos em dia, e os atrasados raramente apareciam.

Os maus tratos infligidos aos colonos europeus enfatizavam a discrepância entre as políticas de incentivo à imigração do trabalhador assalariado e independente e a preferência dos fazendeiros pelo trabalho subserviente. Embora os italianos fossem escravos, essa comparação não escapava aos comentaristas da época. O cônsul italiano em SPaulo escreveu em 1893, em um relatório que a “aparência distinta” dos fazendeiros não conseguia ocultar o “velho proprietário de escravos e senhor feudal, cônscio de ser o senhor absoluto em suas terras, onde sua vontade era a única norma de conduta”.

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Outras normas de assentamento foram criadas no RS. Em 1870 foram estabelecidos as primeiras colônias italianas do RS, usando o modelo da Sociedade Privada de Colonização. Pg 142 e sgts.

Em menos de uma década, 10 mil recém-chegados haviam se instalado no que mais tarde viriam a ser as cidades de Garibaldi, Bento Gonçalves e Caxias do Sul. Em 1920, o grosso da indústria paulista era de propriedade de imigrantes ou de seus descendentes o que, entretanto, dissimula o fato de que a maioria dos imigrantes não ascendeu econômica ou socialmente.

Pg 152-153: A revolta da Armada e a inculpação dos portugueses pelo fato de que os rebeldes, buscando refúgio em 2 navios ancorados na Baía da Guanabara por acaso de bandeira lusitana, aos serem demandados que fossem entregues as autoridades brasileiras e a ordem negada pelos comandantes dos navios, provocou o rompimento com a embaixada portuguesa no Rio e originou uma inculpação a todos os comerciantes portugueses do Rio de Janeiro como responsáveis pela alta dos preços e inflação que ocorriam naquela época, ao estilo bolivariano de nossos dias, o que demonstra como os problemas ibero-americanos vêm de longa data.

O tema da imigração voltará a este blog Fragmentos no livro Um Brasil Diferente de Wilson Martins, porém focado apenas no Paraná.

Naco:
Haquitia – língua falada em casa pelos judeus marroquinos, constituída por uma mistura de árabe e hebraico.


Jorge Caldeira — História do Brasil com Empreendedores

Já tinha lido a História do Brasil Ilustrada e depois a biografia do Barão de Mauá e mais tarde A Nação Mercantilista, livro a que fui obrigado a reler algumas partes devido ao estilo elíptico do autor.

Ocorre que Caldeira está escrevendo uma tese, e portanto sua metodologia esboça o esforço de mostrar como os dados se coadunam com um ponto de interpretação do período colonial. Mas ele se deixa contaminar por correntes superadas, como o marxismo, e parece que escreve a sua HdoB para Empreendedores para uma plateia acadêmica ancorada no petismo.

Não sendo marxista, em Caldeira estes erros não invalidam seu esforço, mas não o permitem ir um pouco além para o entendimento do que eu chamo de capitalismo de estado.

Isto transparece logo no início, ao situar a biografia de Antonio da Silva Prado, o patriarca da família Prado que teria em seu neto Caio Prado Jr, o primeiro intérprete marxista da história do Brasil. É o que se lê nas pg 44 e sgts: “A riqueza da família já tinha um século. Começou a ser construída por Antonio da Silva Prado (1778-1875), a partir do momento em que perdeu seu pai. Vendo que a herança tinha muitos créditos a receber, o rapaz, na casa dos vinte anos, tornou-se empreendedor: conseguiu algum dinheiro emprestado, montou uma tropa, partiu numa longa viagem para a Chapada Diamantina.

A tropa, na época, era uma mistura de loja ambulante com empresa de transporte e banco. Cada dia andava cerca de vinte quilômetros. Chegava a um pouso, onde apareciam pessoas interessadas em comprar ou vender algo – afora os que aproveitavam para mandar cartas ou encomendas pelos tropeiros. Nessa toada, levava-se mais de um ano de São Paulo até o destino. Ao chegar à região mineradora de Caitité, além de vender tudo o que levava a bom preço, o jovem teve tino para conseguir receber algumas dívidas do pai.

As margens de lucro, nas viagens bem-sucedidas, eram altas. No caso de Antonio da Silva Prado, ele ganhou o suficiente para passar da condição de empreendedor que deve a terceiros para a de fornecedor de capitais. E fez o que muitos tropeiros faziam depois de uma grande incursão bem-sucedida: mandou construir um sobrado em São Paulo – um dos maiores da vila – e se arranchou de vez por ali. Durante o resto de sua vida, viajou o menos possível e viveu de financiar negócios alheios.

A casa ficou pronta num momento muito especial: Antonio da Silva Prado nela recebeu parte da comitiva de d. Pedro, no 7 de setembro. Financiou algumas comemorações, ajudou a pagar as contas do governo – e foi ajudado. Conseguiu ganhar o contrato para cobrar os impostos no registro de Sorocaba. Quase todas as mulas que percorriam o Brasil vinham do sul; ao passar pelo posto fiscal, o dono da manada tinha de recolher impostos sobre elas, antes de vender na feira da vila – o grande centro do negócio de tropas de todo o jovem país.

O novo cobrador aproveitou o posto nos moldes da época. Juntou-se a alguns endinheirados de São Paulo e mandou comprar milhares de mulas no sul. Muitas de suas mulas passavam pela barreira sem pagar impostos, enquanto as tropas dos concorrentes eram duramente taxadas. No ano seguinte os lucros eram reaplicados no negócio – quando, em geral, os concorrentes já diminuíam o ímpeto das compras, temendo o poder do concorrente que controlava a barreira. Se a posição do cobrador de impostos se fortalecesse a ponto de chegar perto do monopólio, o preço das mulas subia tanto quanto os lucros do contratista.

Neste ritmo, Antonio da Silva Prado se tornou logo um dos homens mais ricos de São Paulo..... A essa altura já tinha poder político: controlava boa parte da estrutura do Partido Conservador de São Paulo.

Depois Caldeira narra o avanço da riqueza da família ao se adonar do Banco do Brasil na agência de SP, e as fortunas com a compra de suprimentos para a guerra do Paraguai. E assim por diante.

O que se depreende deste trecho é que Caldeira não foi capaz de fazer a síntese para o método demonstrativo do capitalismo de estado brasileiro. Em vez disso, preferiu discorrer sobre o corporativismo, uma manifestação secundária do “enriquecer com o governo” que seria a pedra fundamental do desenvolvimento do país. Ora, se a fortuna nasce da proposta do agente privado fornecer um serviço ao governo que lhe seja benéfico do ponto de vista fiscal, na qualidade de associado, é natural que uma sociedade com uma elite formada nestas condições tenha na lealdade para com o estado a sua mais importante atitude de relacionamento. E com isso, ficam bloqueadas todas as possibilidades de reordenar a sociedade sob novos eixos, e sobretudo, na implantação das ideias liberais de mercado, pois o exemplo confirma que a visão de mercado é o governo e não um ente abstrato constituído pela maioria da população que sequer progride numa velocidade que possa incorporar novos bens de consumo de uma economia livre.

A razão para que os historiadores não se flagrem desta verdade elementar é algo que não consigo aventar. Mas o próximo livro desta página fornece mais pistas.

Nota-se que o propósito de Caldeira consistiu em demonstrar a importância do mercado interno no desenvolvimento nacional, procurando focar nas figuras que enriqueceram com a mineração e que promoveram o desenvolvimento deste mercado no século XVII e XVIII, especialmente para mostrar como o país se fortalecia no regime de trocas com os benefícios do ouro mineiro, a despeito da falta de moeda interna originada pelo estrangulamento monetário dos controles coloniais.

Nota-se também em Caldeira a ausência total de considerações de ordem da moral medieval nos negócios da colônia, a influência da repressão intelectual e educacional na consolidação da fortuna nas mãos de representantes da Igreja e das iniciativas desta na apropriação e transferência de particulares para seu proveito próprio, um assunto bastante caro a Antonio Paim.

Na pg 281 cita o bispo de Tucuman (também na pg 298) que em 1591 amealhou tanta prata que carregou um navio e foi para Salvador em busca de negócios, voltando com seu navio apinhado de mercadorias. O dito bispo era um português de nascença chamado Francisco da Vitória a quem as aventuras levaram a Espanha, e de negociante se transformou em clérigo para chegar a Roma e se tornar amigo do papa Pio V e ser nomeado bispo de Tucuman, fundindo habilidade comercial com teologia, uma atitude muito repetida na vida colonial e usada como barreira de autodefesa contra as perseguições da fé.

O seguidor baiano de Francisco da Vitória foi um jovem franciscano chamado Frei Vicente do Salvador, o escritor da primeira História do Brasil.

Com esse exemplo Caldeira insiste na tese de que os negócios se realizavam fora da esfera do governo e simplesmente no mercado privado. Neste ponto faltou-lhe o conhecimento de História Econômica do Brasil de Roberto Simonsen, onde transparece claramente como o reino distribuía monopólios à nobreza portuguesa que negociando com os brasileiros como detentora do mercado no país, forçava o retorno da riqueza para Portugal. Não percebendo este mecanismo, mas procurando ver apenas o mercado interno agindo “livremente” Caldeira não conseguiu avançar na direção do entendimento da economia do Brasil Colônia.

Verifica-se que o mercantilismo funcionava como uma capitalismo de estado onde o mercado é apropriado somente pelos indivíduos autorizados por ordem real, consolidando as lealdades e introduzindo a Igreja como entidade mercantil que moralizava as reações com a doutrina da riqueza coletiva que seria disciplinada pela Inquisição.

Pg 292 – “E assim o capital circulava em forma sagrada”. A contaminação de Caldeira pelo marxismo lhe leva a confundir coisas como na pg 290: “nesse ponto o papel essencial do empreendedor começava a dar lugar ao burguês, aquele que recebe primordialmente pela propriedade do capital, como se fossem figuras separadas e conflitantes.” Ora, o dono do capital não era burguês a não ser na acepção de Marx, assim como o empreendedor estava em busca do mesmo capital, ainda que em outra forma que a monetária.

Onde está enfim o modelo?
A descrição de Rocha Pombo diz tudo, na pg 307.
No final, depois de enveredar pelo áspero terreno econômico da época colonial, Caldeira termina em E o Capitalismo? Confessando que não conhece muito bem o capitalismo, a julgar pela análise marxista atribuída a este regime.


Clóvis Bulcão — Os Guinle

CB estudou durante muitos anos a família Guinle do ponto de vista de um biógrafo interessado em descrever um passado de refinamento e elegância que acabou na terceira geração. O velho Jean Guinle saiu do sul da França como um aventureiro rumo a Montevideu, onde encontrou a cidade sitiada e com os franceses abandonando as pressas para safar-se de uma perseguição contra eles. Casou com uma francesa integrante do mesmo navio que lhe levou ao Uruguai e fugiu para Porto Alegre. Ali nasceu Eduardo Palassim Guinle que iniciou a vida como caixeiro-viajante, conheceu Cândido Gaffré, de Bagé, que indo para o Rio de Janeiro convidou seu amigo para montarem um negócio comercial que terminou se realizando como uma casa de tecidos na Rua do Ouvidor com o nome de Aux Tulleries devido a fama que os franceses adquiriram no comércio desbancando os ingleses, pois a moda francesa era imitada como etiqueta de reconhecimento pela elite imperial. O negócio deu certo, os sócios começaram a enriquecer e a diversificar os negócios, dedicando-se ao ramo da construção civil, como empreiteiros de obras de estradas de ferro e as vezes subempreiteiros.

Nesse meio tempo Eduardo Palassim já tinha constituído família, gerando 6 filhos, os quatro primeiros homens (Eduardo, Guilherme, Arnaldo e Carlos) e os dois últimos mulheres (Heloísa e Celina).

Quando surgiu no final do império a licitação para a construção dos primeiros 260 metros do Porto de Santos, a dupla associou-se à pessoas do mundo político para formar uma sociedade com propósito específico. A iniciativa deu certo, venceram a licitação, não sem algumas démarches, e a partir daí entregaram a obra no prazo estipulado e imediatamente após formaram nova sociedade para disputar a exploração do porto, nos mesmos moldes do negócio de Antonio da Silva Prado do livro de Caldeira. Associação com o estado para repassar os impostos de exportação do café e importação de mercadorias do exterior, cobrando uma corretagem.

A nova sociedade colocou Eduardo Guinle no centro da elite endinheirada do Rio de Janeiro. Em sua nova vida de rico, construiu o palácio das Laranjeiras, mandou os filhos estudar na Europa e usou-os como elementos de contato com as grandes empresas americanas, entre elas a GE, para obtenção de parceria e representação local para a exploração da eletricidade no Brasil.

A partir daí CB narra uma pequena biografia de cada um dos seis filhos e suas idiossincrasias e habilidades nos negócios e impulsos, as adaptações as mudanças ocorridas no Rio e a perspicácia em investimentos imobiliários. O fato é que os Guinle foram se dedicando cada vez mais ao patrocínio de causas de interesse da elite do que do mercado. Automóvel Club, Jockey Club, Granja Comary e o inefável Copacabana Palace foram os marcos da passagem dos Guinle da segunda geração, além do Banco Boavista.

Este ponto é importante. Um deles se apaixona pela criação de cavalos, outro pela produção de laticínios em uma granja de luxo (Comary), com investimentos em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo.

O fato é que a família não conseguiu perceber que a mudança na sociedade brasileira pendia para o lado do automóvel em parte devido a cultura do luxo, que bloqueia a sensibilidade para a cultura dos negócios de massa, e com isso foi sendo progressivamente obrigada a vender ativos, entre os quais os palácios que construíram.

A terceira geração se encarregou de dilapidar as riquezas deixadas pela anterior sobretudo em bens imobiliários, no momento em que a concessão do Porto de Santos se encerrou em 1980, depois de 92 anos de contrato e do recebimento de inúmeros terrenos gratuitamente do governo federal para expansão de suas obras. A venda do Copacabana Palace também nos anos 80 marca a saída definitiva da família de cena, completada com a liquidação do quebrado Banco Boavista em 1997.

Tanto quanto os Almeida Prado, os Guinle também foram um exemplo típico de riqueza apropriada a partir do governo e em estreita lealdade com o poder de mando, a característica mais importante do nosso capitalismo de estado. Os Guinle passaram do império para a República sem macular sua fama de grandes patrocinadores de causas originadas no centro de decisão política e nunca serviram de reserva intelectual para a proposta de reformas ao país, como acontece até hoje.

Introjetando a “síntese dos hábitos cognatos” do sistema, isto é, de que a riqueza é devida a benevolência do governo em concessões em alguma fase da vida, e o mercado vem a posteriori e só passa a existir com a anuência do primeiro, nossas elites nunca se insurgiram contra uma ordem que pudesse colocar em risco sua própria segurança, malgrado os tormentos da vida política que se repetiam ao longo das décadas.

Diferente dos Almeida Prado, os Guinle foram mais refinados, cosmopolitas e dedicados ao patrocínio de causas com que se identificavam, seja na área do teatro, da música, da promoção turística do Brasil e da inserção do país no roteiro hollywoodiano do jet set internacional.

Nos dias atuais (26/1/16) verificamos o mesmo fenômeno com uma das famílias industriais mais notáveis do Brasil: os Gerdau. Com dívidas milionárias ao fisco, Jorge Gerdau aproximou-se do governo Dilma, tornou-se conselheiro em um ministério de fachada e desta posição buscou a anistia para seus débitos, que se revelaram na Operação Zelotes da PF na descoberta do pagamento de propinas para integrantes do governo e do SIAFI para obtenção de perdão.

O caso Gerdau foi esclarecedor para entendermos como a complexidade tributária tem um papel importante na cooptação do governo aos setores empresariais que se mantêm à margem da política. Com um sistema tributário configurado com tantas filigranas subjetivas, ele se torna um instrumento apropriado para punir qualquer alvo do partido político no poder contra os empresários críticos da política econômica do governo, silenciando a oposição e forçando empresários a abrir a mão da independência em favor do financiamento de campanhas eleitorais, materializada na máquina corruptiva posta em ação. Este fator não pode ser ignorado ao classificarmos como capitalismo de estado o modelo econômico vigente. Não significa necessariamente capital estatal, porém capital privado sob chantagem tributária a serviço do modelo político estatizante.

Nacos:
Nemoroso – sombreado de árvores.
“Parmi les decolletées” - entre as decotadas.
A peça A Noite de 16 de Janeiro de Ayn Rand foi a estreia de Paulo Autran no teatro do Copacabana Palace em 1948 ou 49.
Procurar Elysio de Carvalho – Esplendor e decadência da sociedade brasileira, de 1911, Garnier.
Walter Spalding – Pequena História de Porto Alegre.


Alexandre Herculano — História da Inquisição em Portugal — Vol 1

Segue uma seleção do texto de Herculano onde se pode apreciar seu estilo e análise contundente sobre a situação clerical em Portugal e os resultados de um atavismo pela destruição social que herdamos e praticamos modernamente com os recursos públicos e humanos existentes na vida pública. Porque hoje não se condena por heresia, mas se destrói pelo modelo de estado e consequente empobrecimento generalizado da população, uma sentença que condena a exclusão da maior parte da população de inserção na sociedade high-tec.

Uma descrição (entre tantas estarrecedoras) sobre a histeria religiosa e a deflagração de motins produzidos pelo antissemitismo pregado nos púlpitos por frades, dominicanos fanáticos, pode ser lida a partir da pag 171 em diante relativa ao ano de 1506 em consequência da peste que assolou Portugal, pano de fundo para a exacerbação de superstições radicalizadas pelos padres da igreja. Vai até a pg 181.

Pgs 257, 256 – fala dos casos de violência praticados pelo medo de ser considerado herege ou judeu, em que a demonstração de adesão à Igreja forçava as pessoas a retaliação contra seus vizinhos, ocasionando chantagens, apropriação de bens e justiçamento por parte do populacho.

Pgs 259 – fala dos condenados que eram negados os meios de defesa, proibidos de saber os nomes dos acusadores e os das testemunhas em prova de acusação.

Além dos crimes de heresia, havia também os de sortilégio, feitiçaria, adivinhação, encantamento e blasfêmia.

Pg 269 – “o país decadente carregado de dívida pública, falto de instrução e de indústria, perderia cabedais, homens dado à cultura das ciências, artífices hábeis, contribuintes opulentos, boa parte, em suma, do que constitui o nervo da sociedade civil, a classe média”.

Pg 359 - “Esse dédalo de astúcias e deslealdades chamado Cúria Romana”. Interessante identidade entre Paulo III e Ayres Vaz sobre a astrologia, sendo este último um cristão-novo que obteve benefícios de indulto contra quaisquer processos da Inquisição (pg 373 - vol 2)

Pg 85 – vol 3.“Por isso, quando encontramos no meio de tão profunda decadência moral um caráter crente, enérgico, sincero, não é fácil defendermo-nos de uma admiração irreflexiva, embora esse caráter seja de um fanático. Há épocas de tal corrupção que, durante elas, talvez só o excesso de fanatismo possa, no meio da imoralidade triunfante, servir de escudo à nobreza e à dignidade das almas rijamente temperadas”.

Pg 121 – “se acreditarmos no Memorial … (importante passagem sobre os pedidos de clemência e as vinganças contra os suplicantes).
O Memorial dos Judeus é uma narrativa (pg 118) desconectada da perseguição feita em Portugal aos judeus desde a conversão violenta de 1493 a 1544.

Depois as pags 124 e sgts, veja a narrativa da pag. 128.
Pg 147 : “Simão Alvares era um cristão-novo que viera do Porto, haveria nove anos, com sua mulher e uma filha de pouco mais de seis meses, de residir em Coimbra. Esta família foi uma das primeiras sacrificadas. Pai, mãe e filha achavam-se nas prisões do castelo. Segundo parece, a denúncia contra eles falava de crimes de judaísmo perpetrados no Porto, e provavelmente faltavam testemunhas de acusação”.

“O bispo precisava de provar esses crimes. Ocorreu-lhe um arbítrio para sair da perplexidade. Mandou vir á sua presença a filha do Simão Alvares, e pondo-lhe diante um braseiro cheio de carvões acesos, disse- lhe que, se não confessasse ter visto seu pai e sua mãe açoitando um crucifixo, havia de lhe " mandar queimar as mãos naquele braseiro. A criança aterrorizada confessou que assim o vira fazer no Porto a seu pai, e o bispo teve a prova que desejava, embora a testemunha se referisse a uma época em que apenas contava pouco mais de seis meses de idade”.

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“Tratava-se do processo de uns presos de Aveiro, marido e mulher. Uma criada que os seguira foi chamada à Inquisição, e dela exigiu o bispo que declarasse ter visto praticar a seus amos fatos contrários à fé. A declaração, porém, da testemunha foi exatamente o contrario. Irritado, o dominicano fê-la encerrar num cárcere. De tempos a tempos, mandava adverti-la de que, se queria ser solta, acusasse os amos. Resistiu sempre”.

“Desenganado de que nem o amor da liberdade, nem algumas demonstrações de benevolência, a que recorreu, abalavam a constância daquele nobre caráter, chamou-a um dia ante si e, ele próprio tentou convencê-la. Tudo foi baldado. Aceso em cólera, o frenético frade começou a espancá-la com um pau até lhe quebrar na cabeça e nas costas, deixando-a lavada em sangue, e o algoz sagrado fez lavrar o depoimento que quis ao som dos gritos da desgraçada. Este método de apurar a verdade parece ter sido o sistema predileto de Fr. Bernardo da Cruz, mas às vezes obtinha o resultado sem recorrer ao uso extremo do báculo pastoral, e contentava-se com despertar os ânimos remissos com bofetões e punhadas, incumbindo das varadas e açoutes os esbirros inferiores. É verdade que o sistema só era aplicado a gente ínfima ou a escravos. E até, quando estava de bom humor, o bispo limitava-se a deixar apodrecer os teimosos no fundo dos cárceres”.

“Na conjuntura em que os réus de judaísmo começaram a povoar as enxovias do castelo foram escolhidas para serventes dos presos uma criada do alcaide e a mulher de um mulato ali retido, ao qual tinham decepado as orelhas por crime de roubo. As duas serventes estavam possuídas da doutrina pregada pelo bispo de S. Thomé sobre a necessidade de vingar nos cristãos-novos a morte do Redentor. Os presos eram inexoravelmente roubados: roubavam-lhes até a comida. A fome vinha associar-se-lhes aos outros martírios. Eram tão contínuos os seus clamores, que o dominicano temeu lhe morressem de inédia essas vítimas que destinava às chamas. Foi-lhes permitido no fim de alguns meses o serviço dos seus familiares, e que recebessem das mãos deles os alimentos necessários à vida".

"O dominicano era, pois, capaz de piedade. Tinha até acessos de bom humor, que manifestava de modo assaz expressivo. Gostava de mandar vir à sua presença mulheres casais e donzelas pudibundas, encerradas nos escuros recessos do castelo de Coimbra com seus pais, irmãos ou maridos. Tratava então com singular humanidade de lhes afastar do ânimo os tristes pressentimentos, as ideias lúgubres, que as acabrunhavam".

"Debalde se mantinham em silencio, e recusavam ouvi-lo: não lho tolerava. Fazia votos para que Deus lhes multiplicasse as venturas, e protestava que sua alteza, a rainha, não podia gabar-se de ter em seus paços tantas e tão formosas damas. Pundonoroso em provar o seu dito, extasiava-o a beleza dos olhos desta, as formas airosas destoutra. Não menos o enterneciam os padecimentos do sexo frágil. Se alguma adoecia, ia se assentar ao pé da cama, e, apesar de todas as resistências, pegava-lhe no braço e tomava-lhe o pulso. Talvez para esconder as suas apreensões acerca do estado das enfermas, distraía-as, enquanto estudava o progresso do mal, com observações de entendedor acerca dos contornos mais ou menos ideais do braço que retinha, e essas observações serviam-lhe de tema a uma serie de facécias, por tal modo espirituosas, que o rubor do pejo subia às faces das desgraçadas, reduzidas a invocar a futura justiça de Deus contra tais infâmias, visto que os seus naturais vingadores jaziam, como elas, em ferros".

"Quando a índole e os atos do primeiro inquisidor de Coimbra eram estes, pôde conjecturar-se qual seria o procedimento dos seus delegados pelo vasto território que a jurisdição daquele tribunal abrangia. Nenhum, porém, mais que o do Aveiro se mostrava digno de tal chefe. Era ele o vigário da igreja de S. Miguel, conhecido pela sua dissolução. Entregue à caça, ao jogo, e publicamente amancebado, a perseguição dos cristãos-novos veio agradavelmente distrai-lo das suas diversões ordinárias. Apenas revestido da delegação inquisitória, tratou de arranjar delatores e testemunhas. Repelido por muitos que procurou seduzir para exercerem esse odioso mister, não lhe faltou, quem o aceitasse, tanto mais desde que recorreu ao meio, já vantajosamente experimentado, de atiçar ódios pessoais e de lisonjear a sede da vingança. A pena de excomunhão fulminada contra os que não denunciassem os atos de judaísmo de que tivessem noticia deu-lhe também delatores, e as injurias, que não poupava aos que recusavam servir-lhe de instrumentos, submeteram ao seu império mais de um gênio tímido. Havia, contudo, um recurso contra as violências desse homem. Era a corrupção".

"Mais de um réu obteve a liberdade a troco de peitas, e até, quando as capturas dos cristãos-novos eram mais frequentes, a concubina do vigário de S. Miguel andava de casa em casa, prometendo a uns e a outros que não seriam presos se quisessem ser generosos. Acusavam-no geralmente de ter dilapidado varias alfaias da igreja, de jogar as esmolas dadas para aplicações pias, de ter prendido a mulher de um cristão-novo, a quem devia dinheiro, para no meio do tumulto rasgar o escrito de dívida; acusavam-no de mais de uma solicitação infame feita no confessionário, e de revelar o sigilo da confissão para chegar aos seus fins. Como agente da Inquisição, como sacerdote, e até como homem, o delegado do bispo de S. Thomé era um miserável. O memorial dos hebreus portugueses, tratando da perseguição em Aveiro, menciona fatos que nos repugna descrever, e que até seriam inacreditáveis, se não se invocasse naquele memorial o testemunho de dezenas de indivíduos eclesiásticos e seculares de todas as hierarquias".

"Se tais fatos fossem inexatos, eles teriam sido altamente desmentidos por essas testemunhas que se invocavam, e que os cristãos-novos pediam instantemente que se ouvissem".

"No meio dos furores da intolerância, o remoto e o impérvio de alguns distritos que, de ordinário, ainda hoje como que esquecem, para o bem e para o mal, na vida administrativa do país, não eram obstáculo para a mão de ferro da tirania ir lá pesar duramente sobre a raça que, porventura, esperava nesses distritos montanhosos e agrestes obter o esquecimento de um rei fanático e de uma corte hipócrita. Os desvios da Beira oriental formavam, como vimos, uma parte do vasto território dado para assolar ao dominicano D. Bernardo da Cruz. Entretido com a salvação dos encarcerados de Coimbra, o digno prelado não podia trabalhar com tanta atividade em manter a pureza evangélica por todos os logares cometidos ao seu apostólico zelo.

"Mas, ao menos, na delegação dada ao vigário de S. Miguel em Aveiro mostrara que sabia escolher agentes que compreendessem as suas intenções. Além disso, o supremo tribunal da fé ajudava-o do modo possível naquela laboriosa missão".

"Em 1543, quando” … e segue interminável o texto de Herculano descrevendo com tintas barrocas a desgraça que se abateu sobre Portugal e que haveria de criar no Brasil uma sociedade torta, disjuntiva, degenerada e cruel.

Nacos:
“A síntese dos hábitos cognatos”.
Dessoração
Transumptos - cópia, imagem, reflexo, traslado.

O que se pode tirar de lição dos fatos narrados por Herculano é, nada mais nada menos do que uma analogia com o comunismo e o nazismo, que por si só criou no movimento liderado por Olavo de Carvalho a necessidade de negar e expurgar qualquer simpatizante que mencionasse a Inquisição. E quem nega o a Inquisição só não nega o Holocausto porque este está muito perto na escala do tempo, mas demonstra que possui o mesmo mecanismo de desonestidade intelectual voltada para um propósito purificador da humanidade.

O Memorial dos cristãos-novos era chamado de Symmicta. Herculano trata apenas como Memorial.

Carta de João de Mello (pg 191) relatando os sentimentos das vítimas nas despedidas dos parentes, antes de queimarem nas fogueiras.

Sobre as acusações que levavam à fogueira, ver pg 195.


Alexandre Herculano — História da Inquisição em Portugal — VOL. 2

Citações sem aspas:

Tinha-a então o infante D. Henrique, irmão d'El-Rei, mancebo de vinte e sete anos, que na idade de quatorze fora promovido a prior de Santa Cruz de Coimbra, e na de vinte e dois a metropolita bracarense; tão bem sabia a hipocrisia daquele tempo conciliar as demonstrações do zelo religioso com a quebra de todas as leis da decência e da disciplina eclesiástica. Foi escolhido o infante para substituir o bispo de Ceuta e reanimar a Inquisição de um letargo, que não condizia nem com a sua índole nem com os fins para que fora criada. Não podendo exercer ele próprio o ofício de supremo inquisidor, D. João III mostrava, ao menos, bons desejos, nomeando para o cargo um membro da sua família.

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A escolha de D. Henrique ofendia a máxima do direito canônico que requeria para o exercício de função de tal ordem a idade de quarenta anos, e sofismava as intenções do pontífice, que, nomeando inquisidores gerais, na bula de 23 de maio, três prelados dos mais notáveis de Portugal, e deixando a El-Rei a designação do quarto, não quisera por certo que, sendo inquisidor mór só um deles, tivesse a preferência sobre todos três o de nomeação régia, fato tanto mais escandaloso quanto era sabido que se designara em primeiro logar o bispo de Ceuta para dar garantias de imparcialidade aos cristãos-novos, e que o quase imberbe arcebispo de Braga era contado entre as pessoas mais adversas a eles.

Nomeado inquisidor mór o infante, expediram-se ordens a D. Pedro Mascarenhas para que assim o comunicasse ao pontífice, dando as razões, ou antes os pretextos, que para isso houvera. Longe de deverem os cristãos-novos recear uma recrudescência de perseguição, no entender da corte de Lisboa, o moço arcebispo, ao mesmo tempo que ia restabelecer a conveniente severidade para com os maus, era para os bons, pelas suas virtudes e elevada hierarquia, fiador de paz e segurança. Por esta nomeação, porém, tornava-se mais urgente a necessidade de soltar os braços à Inquisição e, sobretudo, de tirar os poderes de revisão final concedidos ao núncio, visto que seria absurdo haver em Portugal quem pudesse alterar as decisões de um inquisidor mór irmão do próprio monarca e que se considerava como primaz das Hespanhas. Para fundamentar melhor as suas pretensões, El-Rei transmitia ao embaixador a relação circunstanciada dos atentados contra a fé que os cristãos-novos estavam praticando para que a apresentasse ao papa. Mas, ou porque esses factos fossem de pura invenção, ou porque, como El-Rei afirmava, os conversos tivessem sido traídos e denunciados por alguns de seus próprios irmãos, cujas traições não convinha se houvessem de suspeitar ou descobrir, é certo que se recomendava a D. Pedro Mascarenhas pedisse ao pontífice inviolável segredo acerca daquelas revelações, e ordenava-se-lhe que rasgasse as respectivas notas, logo que lhas tivesse comunicado.

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Entretanto, posto que homem de poucas letras, D. Pedro Mascarenhas era uma inteligência superior, que sabia apreciar as cousas e os homens, e sair com vantagem das lutas em que se empenhava. De índole, segundo parece, reta e desinteressada, tinha a qualidade de alguns estadistas, que, colocados em lugares eminentes, no meio de uma sociedade e de uma época pervertidas, se aproveitam da corrupção para realizarem os seus intuitos, sem se corromperem a si próprios; estadistas, cuja triste e suprema crença deve ser um profundo desprezo do gênero humano.

Convencido de que onde reina a venalidade só a corrupção pôde dar o triunfo, obtinha da sua corte os meios de corromper, e empregava esses meios como quaisquer outros.

Apenas revestido da dignidade de inquisidor mór, D. Henrique nomeou novos membros para o conselho da Inquisição. Foram estes Ruy Gomes Pinheiro, depois bispo de Angra, e o augustiniano Fr. João Soares, também posteriormente elevado à cadeira episcopal de Coimbra. A escolha de Fr. João Soares era a luva que desde logo o infante arremessava ao núncio [Capodiferro], ou, para melhor dizer, à corte de Roma, onde aquele frade era assaz mal visto. Nas instruções dadas por ordem de Paulo III a um dos sucessores de Jeronymo Recinati, a índole, as opiniões e os costumes do novo membro do conselho geral são descritos de modo não demasiadamente lisonjeiro. “O confessor d'El-Rei, Fr. João Soares — diz-se aí — é um frade de poucas letras, mas de grande audácia e em extremo ambicioso. As suas opiniões são péssimas, e ele público inimigo da sé apostólica, do que não duvida gabar-se, como refinado herege que é.

Todos o conhecem por tal, menos o Rei, por cujo temor, e porque, com pretexto da confissão, obtém dele a solução de muitos negócios, todos o acatam. É homem perigoso e de vida dissoluta. O paço serve-lhe de convento ”.

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(pg 309) ...a 10 de dezembro de 1539 El-Rei [D. João III] escreveu uma carta dirigida ao embaixador, mas cujo verdadeiro destino era ser lida perante o papa, carta onde as ameaças indiretas se misturavam com as expressões mais submissas de obediência filial e com os queixumes mais sentidos da falta de afeição e confiança da parte do sumo pastor. D. João III atribuía a resistência deste a ter dado mais credito as falsas informações dos conversos do que a sincera verdade da palavra real, e procurava principalmente mostrar quanto era absurdo imaginar que ele rei procedesse como procedia por outro motivo que não fosse o zelo da religião. É extrema a importância daquela carta neste ponto; porque envolve a confissão explícita das tristes consequências econômicas que tivera para o país o cego fanatismo do monarca. Segundo aí se afirmava, os cristãos-novos constituíam uma grande parte da nação, e parte mais útil que todo o resto do povo. Por eles, pelos seus cabedais, o comércio, a industria e as rendas públicas cresciam de dia para dia, quando a perseguição veio mirrar a seiva da prosperidade geral, sendo notória a saída de somas enormes de Portugal para Flandres, desde que a Inquisição se estabelecera. Razões de ódio contra os conversos não as tinha; porque sempre fora por eles leal e zelosamente servido, e a muitos fizera por isso assinaladas mercês. Cobiça de lhes tomar as riquezas não se lhe devia atribuir, visto que cedera do direito de confisco pelo espaço de dez anos, durante os quais os maus seriam exterminados, e aos bons não haveria que confiscar. A este propósito, declarava que, se o papa quisesse dar à Inquisição todos os poderes e independência que para ela se pediam, de bom grado cederia para sempre daquele direito. Depois desta prova de liberalidade, não podia deixar de deplorar que, sacrificando ele interesses legítimos ao incremento do catolicismo, Roma sacrificasse o catolicismo a interesses ignóbeis e mesquinhos. «Por cada cruzado que lá se possa ganhar com os conversos — dizia D. João III —tem-se "em Portugal perdido cem, e, todavia, sou vilmente caluniado de querer o sangue das minhas ovelhas». Todas as diligências dos cristãos-novos tinham unicamente por alvo retardarem o estabelecimento definitivo da Inquisição pelo tempo que lhes fosse necessário para porem a salvo corpos e fazendas. Dava então a entender que, se a corte de Roma, com tão estranho procedimento, desservia a causa de Deus, ele poderia, se não tratasse de reprimir o próprio despeito, fazer justiça por si, como bem lhe parecesse; resolução extrema, a que esperava não chegaria nunca pela consideração em que tinha a pessoa de Paulo III.


Alexandre Herculano – História da Inquisição em Portugal, VOL 3

Pg 38 e seguintes, sobre a situação moral no reino no tempo de D. João III:
Envolvido de continuo em questões eclesiásticas, e sobretudo em questões fradescas, e deixando, como acabamos de ver, caminhar o estado à última ruína, o rei de Portugal entretinha-se, nos intervalos de descanso que lhe concediam as matérias da Inquisição, em pensar na criação de novas Sés, na translação de mosteiros de ordem para ordem, na reformação, fundação ou supressão de outros, em introduzir frades na hierarquia eclesiástica, em intervir nas lutas de ambição sobre prelazias monásticas e em todos os demais negócios desta especie, muitas vezes inferiores aos cuidados próprios de um rei. A mesma reforma da universidade, ideia generosa e grande a principio, descera às proporções de uma intriga de claustro, sobretudo desde a entrada dos jesuítas no reino. As questões eclesiásticas tornavam por isso a enviatura de Roma a mais trabalhosa de todas e volumosíssima a correspondência com os ministros e agentes naquela corte. Quem quisesse ceifar por entre o pó dos arquivos a imensa seara de vergonhas e misérias que se dilata por essa correspondência cansaria talvez no meio de tão repugnante lavor. Para o nosso intuito basta que aproveitemos alguns factos que sobejamente indicam a decadência moral e religiosa daquela deplorável época.

Se acreditarmos D. João III ou os que falavam em seu nome, a imoralidade pululava por toda a parte, sobretudo entre o clero, e especialmente entre o regular, que ele tanto favorecia. Os eclesiásticos, por exemplo, da vasta diocese de Braga eram um tipo acabado de dissolução. Os párocos abandonavam as suas igrejas, e o povo não recebia a necessária educação religiosa, faltando castigo para tantos desconcertos. Os mosteiros ofereciam os mesmos documentos de profunda corrupção, distinguindo-se entre eles o de Longovares, da ordem de Santo Agostinho, e os de Ceiça e Tarouca, da ordem de Cistér, ou antes nenhum dos mosteiros cistercienses se distinguia; porque em todos eles os abusos eram intoleráveis. Os abades, que, segundo a regra, ocupavam o cargo vitaliciamente, faziam recordar no seu modo de viver os devassos barões da idade média.

A opulência manifestavam-na em custosas e nédias cavalgaduras, em aves e cães de caça e numa numerosa clientela, completando alguns essa existência de luxo com mancebas e filhos, que mantinham à custa do mosteiro.

Viviam os monges pelo mesmo estilo, na crápula e na bruteza, servindo muitas vezes como criados do abade, de modo que, na opinião d'El-Rei, não havia na ordem de Cistér senão ignorantes e devassos. Os conventos de freiras não se achavam em melhor estado, sendo o de Chellas, o de Semide e outros, teatro de contínuos escândalos. A história de Lorvão e da sua abadessa, D. Philippa d'Eça, é um dos quadros mais característicos daquela época. Lorvão contava então cento e setenta freiras, entre professas, noviças e conversas. A família d'Eça preponderava ali. Dela eram tiradas sempre, havia sessenta anos, as abadessas, e outros tantos havia que a dissolução era completa em Lorvão. Das freiras então atuais uma parte nascera no mosteiro. Suas mães, não só não se envergonhavam de as criar no claustro e para o claustro, mas aí mantinham também seus filhos do sexo masculino. D. Philippa era uma dessas bastardas, fiel às tradições maternas. Andava ausente quando faleceu D. Margarida d'Eça, a última abadessa. Aquelas que tinham vivido em verdes anos com D Philippa e que contavam com a sua indulgencia chamaram-na e elegeram-na sucessora de D. Margarida, estando esta moribunda. Queria El-Rei substituir a nova prelada por uma freira de Arouca ; mas opôs-se a parcialidade da eleita. Seguiu-se uma longa demanda em Portugal e em Roma, demanda cheia de estranhas peripécias. Entre estas a mais singular foi o serem certa vez encontradas D. Philippa e outra freira em casa de um clérigo de Coimbra, escondidas com a sua amante ordinária, que a justiça buscava.

A pena recusa-se a descrever o estado em que todas três foram achadas. Tais eram as devassidões e os escândalos de que vamos encontrar memoria nos mais insuspeitos documentos. Mas se estes nos revelam o estado, não só do clero hierárquico, mas também do monaquismo português, as considerações oferecidas por Fr. Francisco da Conceição aos padres de Trento têm um caráter de generalidade que abrange todas as classes, e descobrem ulceras de diversos gêneros, porém não menos asquerosas. Os bispos, com raríssimas excepções, nunca residiam nas suas dioceses, contentando-se com enviar para lá vigários gerais, cargo em que, por via de regra, eram providos aqueles que mais barato o faziam, embora dele fossem indignos. Os bispos do ultramar nem sequer curavam de semelhante formalidade, e essas regiões, mais ou menos remotas, estavam completamente privadas de pastores. Segundo afirmava o bom do carmelita, as superstições mulheris, sobretudo nos conventos e nas casas de fidalgas, eram monstruosas, além de outras relativas ao culto público a que já anteriormente aludimos.

O sigilismo tinha-se introduzido em larga escala. Com o pretexto de ser para fins honestos e com permissão dos penitentes, os confessores revelavam os segredos da confissão . Os abusos e misérias que se passavam nos púlpitos eram quotidianos. Pregadores, havia-os em nome, mas eram raros, na verdadeira acepção do termo, e esses poucos tratados com desdém. O comum deles o que buscavam eram honras e dinheiro, lisonjeando as paixões do auditório. O povo ignorava a religião, porque os oradores sagrados só curavam de vãs sutilezas. Um dos males que mais afligiam o reino era a excessiva multidão de sacerdotes. Havia pequena aldeia onde viviam até quarenta, do que resultava andarem sempre em competências, disputando uns aos outros as missas, enterros e solenidades do culto, com altíssimo escândalo do povo. Aumentava-se desmesuradamente esse escândalo com o numero prodigioso e com a imoralidade daqueles que só pertenciam ao clero por terem tomado ordens menores. Muitos tratavam de receber esse grau só para se exemptarem da jurisdição civil.

Um dos abusos frequentes que estes tais cometiam era casarem clandestinamente, podendo assim delinquir sem perigo, porque, se os processavam por algum crime de morte, declinavam a competência dos tribunais seculares, e suas mulheres, para os salvarem, não hesitavam em se envilecerem a si próprias perante os magistrados, declarando-se concubinas. Malvados havia, que, aproveitando as declarações daquelas que lhes tinham sacrificado a última coisa que a mulher sacrifica, o pudor público, as abandonavam depois, servindo-se da generosa confissão que lhes salvara a cabeça, para despedaçarem os laços santos, embora ocultos, que os ligavam às infelizes. Os casamentos clandestinos que facilitavam tais horrores, e que eram vulgaríssimos, produziam ainda outros resultados não menos deploráveis. Negava-se não raro, depois, a existência de um fato que se não podia provar. E o receio do rigor dos pais fazia com que muitas filhas aceitassem segundas núpcias pertencendo já a outro homem. Ainda quando não chegavam a esta situação extrema, a vergonha e o temor produziam infanticídios em larga copia. Por outro lado, a dificuldade e o preço das dispensas para os consórcios entre parentes completavam a obra dos casamentos clandestinos. Inabilitados por falta de recursos para legitimarem as uniões vedadas, não tendo ânimo para abandonarem a mulher que amavam e vergando debaixo do peso das censuras canônicas, muitos indivíduos calcavam aos pés o sentimento religioso e adotavam uma espécie de ateísmo brutal, esquecendo todos os atos externos do culto.

Ha poucos anos que um livro admirável (A Cabana do Pai Thomás) agitou profundamente os espíritos, descrevendo a existência do escravo nos estados americanos. As cenas repugnantes ou dolorosas descritas naquele célebre livro poderiam ter sido colocadas no nosso país em meado do século XVI com a mudança dos nomes dos personagens e dos lugares, mas talvez com mais carregadas cores. A vida do escravo, se acreditarmos a narrativa do informador dos padres de Trento, era nessa época verdadeiramente horrível em Portugal.

Mas um povo afeito a ver tratar assim uma porção dos seus semelhantes deixaria de corromper-se e poderia conservar instintos de nobreza e generosidade? Os escravos mouros, e negros, além de outros trazidos de diversas regiões, aos quais se ministrava o batismo, não recebiam depois a mínima educação religiosa. Fé não a tinham, ignorando completamente o credo e até a oração dominical, o que não procedia só do desleixo de seus senhores, mas também da relaxação dos prelados. Era permitido entre eles o concubinato, misturando-se batizados e não batizados, e tolerando-se, até, essas relações ilícitas entre servos e pessoas livres. Os senhores favoreciam esta dissolução para aumentarem o número das crias, como quem promove o acréscimo de um rebanho. Os filhos de escravos até a terceira ou quarta geração, embora batizados, eram marcados na cara com um ferro em brasa para se poderem vender; e por isso as mães, desejosas de evitar o triste destino que esperava seus filhos, procuravam abortar ou cometiam outros crimes. Os maus tratos de seus donos, acutilando o ódio nos corações dos escravos, faziam com que estes às vezes recusassem tenazmente o batismo, que nenhum alívio lhes trazia. De feito, nas crueldades que sobre eles se exerciam não havia distinções.

O castigo que ordinariamente lhes davam era queimá-los com tições acesos, ou com cera, toucinho ou outras matérias derretidas. Uma circunstância agravava o procedimento que se tinha com estes desgraçados. Boa parte deles nem eram cativos na guerra pelos portugueses, nem comprados por estes aos vencedores nas lutas entre as nações e tribos bárbaras da África, da Ásia e da América: eram homens naturalmente livres, arrebatados da pátria pelos navegadores e trazidos a Portugal para serem submetidos a perpetua servidão. Finalmente, os consórcios legítimos entre as pessoas escravas e livres, consórcios assaz frequentes, tornavam-se para os senhores num meio de satisfazerem os mais baixos e ferozes instintos de crueldade; de folgarem com o espetáculo das agonias mais pungentes do coração humano. Quando o livre queria remir a consorte cativa, opunha-se o senhor, e não raro a pretensão dava origem a cenas de violência e de sangue, ou a ser vendida a pobre escrava para terras longínquas, quebrando-se assim por um ímpio capricho os laços santificados pela igreja.

Tal era o estado da religião e da moral num país que se lançava nos extremos da intolerância e onde se pretendia conquistar o céu com as fogueiras da Inquisição; tal era o estado econômico desse mesmo país, que expulsava do seu seio ou assassinava judicialmente os cidadãos mais ativos, mais industriosos e mais ricos, destruindo um dos principais elementos da prosperidade pública, ao passo que os desconcertos e prodigalidades de um governo inepto sepultavam na voragem da usura todos os recursos do estado. A corte de Roma, que, nas suas relações oficiais com a de Portugal, lisonjeava não raro as vaidades do rei e do reino, vê-se que sabia, nas suas notas secretas, apreciar devidamente os méritos de um e as forças do outro. O leitor, porém, habilitado para avaliar a exação das apreciações da cúria, igualmente o fica para ajuizar acerca dos sentimentos de lealdade, de desinteresse, e sobretudo de caridade cristã, que serviam de norte à política de Roma para com uma nação pobre e corrompida, que ela própria reconhecia como supersticiosa e fanática, e para com um rei que reputava inábil, e cuja força moral se reduzia, conforme ela afirmava, a encobrir a extrema fraqueza debaixo das vãs fórmulas de uma linguagem altiva.

Se, como vimos, apesar da retirada dos agentes diplomáticos de Portugal, a corte de Roma nem por isso deixava de enviar a este país um núncio para conduzir os seus negócios pendentes, também, apesar daquela espécie de ruptura com o governo pontifício, D. João III não abandonava o campo aos conversos na luta relativa ao tribunal da fé. [Pg. 50]

Pg 85: Por isso, quando encontramos no meio de tão profunda decadência moral um caráter crente, enérgico, sincero, não é fácil defendermo-nos de uma admiração irreflexiva, embora esse caráter seja o de um fanático. Há épocas de tal corrupção, que, durante elas, talvez só o excesso do fanatismo possa, no meio da imoralidade triunfante, servir de escudo à nobreza e à dignidade das almas rijamente temperadas.

Nacos:
Se ufanavam enquanto afanavam a República.
Soltavam as peias e obtinham as petas.
Progenerescência –
Cloacina → de cloaca.
Sotádico – de Sotades, poeta trácio do séc. III AC, cujos versos eram “recheados de pensamentos lascivos e de expressão cloacina”.
Versos que lidos na ordem inversa apresentam a mesma leitura da ordem normal. Ex:
ROMA TIBI SUBITI MOTIBUS IBIT AMOR
Cuscuta – o fisco de cuscuta [parasita].
Proscrição do direito de votar.
Prescritivo x proscritivo.


Carlos de Vasconcelos – Deserdados

Livro essencial para compreender o modelo de exploração da borracha e o por quê do Brasil ter liquidado sua exploração nativa. A ordenação de um modelo de exploração do trabalho baseada na crueldade da escravidão, no engano e trapaça, na imposição de mercadorias a preços exorbitantes ao seringueiro aprisionado na mata e sem possibilidade de escape pelos rios vigiados e guarnecidos por uma jagunçada a serviço dos coronéis da borracha, funcionaram como a disjunção social que haveria de tornar a exploração brasileira indesejada para o mercado internacional, devido a qualidade final do produto tornada inferior pelo modelo de extração, ainda que superior em qualidades elásticas e químicas. Por si só o assunto deve ser estudado como representativo de nossa falência como Nação. Do mesmo autor de Pró-Pátria, disponível na Amazon e com resenha no blog de resumo de livros.

Começa com um barroquismo alucinado porém curioso para quem gosta de sair fora das corriqueiras formas de expressão, procurando fazer um nexo entre a linguagem alvoroçada e a paisagem folhaginosa. Depois, no terceiro capítulo, a história começa a ganhar contornos de drama, aparecendo Teodósio, o robusto cearense transformado em escravo da exploração dos seringalistas do Baixo-Purús.

José Mergulhão contra Adelino Chagas. O livro envereda para a disputa dos dois sátrapas das terras virgens tomadas por grileiros rivais em grandes acumulações de capitais obtidos pelo confisco dos seringais e desvios dos controladores dos portos. Exemplo de imagem literária na descrição de Carlos de Vasconcelos, o parágrafo da pg 69-70:
“Lisonjeando os bravos caminheiros das águas correntes, Vitor lembrou que a Natureza, alvorotada de entusiasmo ante aquela forte plêiade de nortistas, lhes jogava confete à passagem audaz, um confete policrômico, alvíçaro, cheio de vida, feito de asas de lepidópteros e nuanças filigranadas de libélulas irriquietas”.

Muito boa a narrativa de C.V. Os pré-modernistas eram melhores que os sucessores de 22.

Nacos:
Orbivagante
Turpilóquios [palavrão, palavra obscena, torpe] de rameira –
Avezinhas fulvipenes (amarelo dourado, queimado, castanho avermelhado).
Grifanha – ardilosa
Pezunhar – pisar.


Janer Cristaldo – Laputa

Novela do ano 2000 de Janer, falecido em 2014 de câncer na próstata. Autobiográfica, como todo o trabalho ficcional dele. Trata da chegada na ilha de Florianópolis de um professor antifamília, antiautomóvel, festeiro, solteirão, crítico mordaz do meio acadêmico e da estrutura universitária. Professores de ciências humanas que não passam de vagais, a trabalharem algumas horas por semana, a louvarem uns aos outros, endossar a mediocridade, favorecer pedidos no toma lá dá cá da convivência em um meio tomado pelos piores tipos humanos do ponto de vista moral e intelectual.

Todo incapaz de qualquer trabalho intelectual relevante procura abrigo nos meios acadêmicos roceiros, onde a vulgata literária basta para encobrir o gênio nacional e proliferam as mordomias, bolsas para doutoramento no exterior, participação em simpósios internacionais e o dolce far niente da cátedra periquitante de fórmulas e lugares comuns do charlatanismo nacional ideologizado.

Janer criou neologismos interessantes, como encatarinamento, uma espécie de variação de encantamento pela Ilha, suas belezas naturais e o vazio de uma atmosfera frequentada pelos olores do funcionalismo caspento, preguiçoso, rotineiro e paroquiano.

A novela fala das relações do professor, apelidado de Bagual, com alguns amigos, um publicitário que fez da ilha o chamativo para turistas argentinos e eventos turísticos anuais.

Fala mal das rendeiras da ilha, dos pescadores de tainha, com seu mau humor característico. Juliano, ou Bagual, frequenta um prostíbulo, onde uma puta chamada Pingo de Porra, devido à estatura, aplicava massagens manuais e orais e fofoqueava a vida alheia, especialmente as massagens aplicadas em um padre. Ela fala latim, o que deixa o leitor perplexo.

As conversas de botequim entre Juliano e amigos são o ponto alto do livro de Janer, onde se mostra mais criativo do que em Ponche Verde, e o livro tem importância literária apesar daquele aspecto de incompleto, de mal estruturado, de não ter encontrado um final arrematador, de incompatibilização do professor com o ambiente petralha. Parece que Janer se cansa do que está escrevendo e decide publicar para livrar-se do peso da obra.


Janer Cristaldo – Engenheiros de Almas

Um estudo das obras de Jorge Amado e Graciliano Ramos a propósito do stalinismo na literatura brasileira.

JCristaldo perseguiu o roteiro de JAmado quando de sua adesão ao PC e o oportunismo decorrente de sua filiação a um partido que passou a ser sua agência de marketing, até o conteúdo de sua obra máxima de realismo socialista chamada Os Subterrâneos da Liberdade, escrita na Checoslováquia no início dos anos 50, antes da morte de Stalin.

Quanto a Graciliano, revela sua viagem à Rússia, também na mesma época e sua ode ao stalinismo no livro Viagem. Não passaram de fantoches do comunismo brasileiro, e permanecem louvados até hoje exatamente pela vinculação ideológica que o petismo incorporou e dignificou na fase pós-muro. Que Graciliano tenha se deixado levar pela farsa das visitas agendadas a supostas fazendas coletivas (Kolkozes) e a lisonjear os teatros e balés moscovitas sem notar nada de estranho naquela sociedade me parece algo sintomático, já muito falado e analisado no comportamento de intelectuais como Aragon e Neruda.

Janer fez uma boa preleção do problema, pois conhecia muito bem a questão soviética e encerra o livro com os documentos de Zdanov sobre a estética do realismo-socialista que a Rússia passou a adotar sob comando de Stalin.


Lima Barreto — Marginália

O Lima Barreto de Marginália - uma coleção de artigos para jornais – não é o romancista. Ao escrever para a imprensa diária, sua sensibilidade fica clara a toda hora, mas a verve satírica desapareceu. Não há ironia, e ele recebe livros e critica autores como Carlos de Vasconcelos e Ranulfo Prata como seres estranhos ao seu ninho literário e erra totalmente na crítica à narrativa parnasiana. Elogia Lobato, com que teve grandes afinidades de estilo, mas não entendeu Adelino Magalhães, o que é um pecado mortal para um crítico.

Nacos:
Brederodes = nome próprio.
Terpsícore = musa grega da música e da dança.
Maxambomba
Frases bimbalhantes
As imagens sonoras de carrilhão com que atraía os devotos.


Antonil — Cultura e Opulência do Brasil

Obra do início do século XVIII, contém um relato da vida econômica do país sob a ótica do catolicismo. Precioso tratado sobre a moral da contrarreforma na vida social das fazendas de engenho. Antonil é extremamente interessante na descrição dos processos produtivos e nos relacionamentos interpessoais de todos os atores do grande empreendimento açucareiro.

Pg 25 – descreve qual o tratamento não é permitido aos feitores, denunciando os excessos aplicados aos escravos rebeldes e as escravas que se recusavam ao pecado. Posfácio de Affonso D'Escraghnole Taunay sobre a descoberta do livro e seu autor. Antonil ficou conhecido pela célebre frase: – O Brasil é o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos.

Lamento não ter um resumo de sua obra, que traz descrições da mecânica de um engenho de cana-de-açúcar e os métodos de preparação.


Teixeira Bastos – A Dissolução de Regime Capitalista

Os socialistas fabianos insistiam na análise de fatos ligados a transgressão de normas nas indústrias como um sintoma iminente da dissolução do capitalismo.

Para isso, traziam à luz casos clássicos de vigarice ocorridos em sua época. Teixeira Bastos foi o propagador destas ideias e seu trabalho discorre sobre o desemprego de 600 funcionários causado pelo incêndio de um departamento da estrada de ferro portuguesa. A inexistência de um seguro seria a causa da injustiça.

Outro ponto é a vigarice da sociedade do Canal do Panamá que analisei no resumo da obra de Arendt sobre o totalitarismo.

Seu positivismo foi essencial para vislumbrar a corrente ibérica de crítica ao funcionalismo, aos privilégios de Estado em consequência dos valores sociais dominantes de acomodação do espírito a uma ordem passiva, dada as dificuldades e hostilidades do meio em aceitar o papel do empreendedor.

Sua visão de fim do capitalismo (morreu em 1902 aos 45 anos) segue a lógica do positivismo que conferia à história uma evolução por sistemas sociais e não pelo progresso tecnológico. Veja-se, por ex, a pg 12: “em Portugal a dissolução dos costumes públicos e privados, instigada desde 1852 pela corrupção adotada como forma de governo”...


Rostovtzeff — História da Grécia

O grande historiador russo emigrado fornece mais uma interpretação dos episódios históricos à luz de suas instituições, embasadas nas referências da literatura, arte e descobertas arqueológicas com muita perspicácia para o enfoque das sociedades das cidades-estado gregas.

Ele soube, mais do que seus pares na descrição da história – situar os acontecimentos em termos de tradição e ruptura, capacidade produtiva e competição por mercados, princípios políticos e organização social.

Na pg 127 e seguintes oferece uma descrição impressionante sobre o V século A.C. No que tange ao individualismo do desenvolvimento do capitalismo grego e seu triunfo sobre os demais povos, bem como da incapacidade das cidades-estado se reunirem em uma federação.

Pg 235 – “as instituições gregas não podiam encontrar acolhimento no coração da Ásia”.

Conclusão sobre a extensão da conquista do Império Persa por Alexandre, o Grande, nos territórios do coração da Ásia e da Índia. Esta conclusão vale como reflexão sobre o fracasso da ação americana no Iraque a partir dos anos 90 e na Síria atual.

Pgs 237 e sgts. Faz uma descrição do encolhimento econômico dos países dominados por dinastias gregas, mostrando como os elevados tributos frustravam o consumo de produtos rurais e impediam o desenvolvimento da indústria. Esse assunto é importante pela semelhança com a economia colonial do Brasil e com a pauperização social derivada da tributação excessiva como inimiga do capitalismo.


Genon — Crise do Mundo Moderno, 1927

Fiquei surpreso com sua argumentação contra a modernidade, baseada em critérios da filosofia antiga e de uma mistura de ocultismo com esoterismo.

Trata-se de um autor que provoca admiração em cabalas conspiratórias e em espíritos perdidos, gente que não tem conteúdo intelectual para entender o mundo moderno, e confunde religião com filosofia e esta com o pensamento antigo sobre a natureza das coisas. Não surpreende que tenha tantos adeptos no Brasil, onde nosso mundo primitivo subsiste e foi revivenciado pelo petismo e olavismo.

Querem tudo que o estrangeiro produz de bom e de melhor, mas não querem ser como eles. A sociedade de imitação só quer do estrangeiro a possibilidade de parecer como ele, sem janais ousar assimilar seus valores, permanecendo indefinidamente no seu mundo arcaico de cultura, procedimentos, aspirações e privilegiatura.


Amós Oz – Como Curar um Fanático

Inicia falando sobre a curiosidade como condição para o trabalho intelectual e científico. Esta qualidade é também uma virtude moral. Uma pessoa interessada é melhor do que uma que não se sente tocada por esta qualidade que faz alguém ser capaz de ponderar quando os outros já tem uma ideia pronta.

A segunda qualidade humana é o humor, que somado à curiosidade, constituem dois antídotos contra o fanatismo. Segundo Oz, fanáticos não têm senso de humor e raramente são curiosos. Se o humor corrói o fanatismo por questionar a verdade, a curiosidade permite buscar respostas que não se limitam à cartilha do assentado como definitivo.

Para OZ, a fofoca também é filha da curiosidade. Mas a fofoca adora os clichês e reitera nossos preconceitos não saindo da superficialidade do já sabido.

A seguir narra seu entendimento sobre a questão do mal:
Primeiro, que a dor que infringimos aos outros é do nosso conhecimento. É mentira que não sabemos que nossas atitudes feriram os outros. Porém, na moralidade do mal, a maior dificuldade consiste em distinguir suas gradações.

Começa com o roubo, a pilhagem e a exploração humana. Depois vem o estupro e o assassinato. A opressão de mulheres, de minorias e a colonização dos povos. O genocídio, a destruição do meio ambiente. E assim sucessivamente, com as cruzadas, a jihad, a Inquisição e os gulags. E conclui dizendo que aquele que não sabe distinguir as gradações do mal poderá ser seu servidor.

Assim, “o crescimento do fanatismo pode ter relação com o fato de que quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples”. Isto significa que para o fanático sempre existe uma só resposta para todo o sofrimento e problemática humana. Além do mais, acreditar que se uma coisa for ruim deve ser extinta, incluindo aquilo que lhe está próximo, se concilia com a ideia de que o fanatismo se origina da “vontade de modificar os outros pelo próprio bem deles”.

Com isso, o fanático é um altruísta extremado: está mais interessado no outro que nele mesmo. Sendo pessoas que sequer valorizam a vida privada, o self, ele mistura a autopiedade com o desejo ardente de uma redenção instantânea conseguida em um só golpe.

Os antídotos seriam o humor, o ceticismo e a argumentatividade. Ser jocoso é um sinal de uma propensão cética de evitar a verdade absoluta e não se importar com a verdade alheia. O conflito árabe-israelense não é uma tragédia entre o bem e o mal de um lado, mas uma tragédia no sentido maior do termo: um conflito entre o certo e o certo. Ambos os lados tem suas razões e seus erros.

O mais importante é que ele detectou a questão da traição e do traidor. O traidor é aquele que muda de opiniões, enquanto o resto de suas amizades e familiares permanecem com suas antigas opiniões.

Aqueles que não conseguem mudar, não obstante, são os que querem mudar você. E se alguém que quer mudar você contra sua vontade é um fanático, logo você será perseguido por ter sofrido a mudança que aos olhos dos outros se transformou em uma transgressão que deve ser punida.

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Outra característica do fanático é o sentimentalismo: eles preferem sentir a pensar, e possuem um fascínio particular pela própria morte. Imaginam o paraíso como um mundo factível e ao alcance dos destemidos e heróis ao mesmo tempo que desprezam o mundo consciente.

Conformidade e uniformidade são as fórmulas amenas do fanatismo. Mas também o culto de líderes carismáticos políticos ou religiosos estão na mesma categoria.

A essência do fanatismo reside no desejo de forçar os outros a mudar. Eles querem nos redimir, e não poupam esforços para isso, desde a catequização até a destruição consciente do Ocidente.

Por fim a cura vem no desenvolvimento do senso de humor; garante que é impossível alguém com senso de humor tornar-se um fanático.


Roger Bastide — Brasil – Terra de Contrastes

Mais um excelente livro de Bastide para a minha coleção. Se todos os professores da USP fossem como Bastide, o Brasil estaria salvo.

Na pg 94 fala sobre a seca citando as datas a partir de 1790-1793 até 1953. Sobre a Amazônia e Nordeste com foco no fanatismo religioso. Ele explica o sincretismo da religião dos índios com a dos negros africanos e o catolicismo.

Cumpre destacar à pg 108 sobre o banditismo e a luta do jagunço Antonio Silvino contra as estradas de ferro, uma ação que lembra o MST dos dias atuais. Na pg 149 fala das religiões africanas.

Ver os contos de Aníbal Machado. Achei uma biografia na Wikipedia e dois contos em blogs literários. Não li, mas parecem muito convencionais. Tem um filme no Youtube chamado O Menino e o Vento, baseado em um de seus contos.

A descrição sobre os negros do Rio de Janeiro é sensacional e vale ser publicada. Bastide se posicionou contra a retaliação da propriedade quando começou a campanha pela reforma agrária. Na pg 260 afirma que seria a volta da agricultura de subsistência, o que ficou comprovado nos dias atuais, em que se mascara com agricultura familiar.

Procurar Charles Morazé, que escreveu Les Trois Ages du Brésil. Ver pgs 273-274 sobre as incoerências direita x esquerda dentro dos partidos políticos.

Tratado de Methuen de 1703 entre Portugal e Inglaterra. Também conhecido como tratado de Panos e Vinhos, pelo qual Portugal forneceria vinho para a Inglaterra sem restrições alfandegárias e se via obrigado a consumir a lã inglesa. Dizem que foi prejudicial à Portugal.

Nacos:
TRIBUS IMPOSTORIBUS
Raymond Lull
Joseph Ben-DAvid - O papel do cientista na sociedade. Pioneira, 1974.


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